Modo de consumo norte-americano foi destruído, diz Stiglitz

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Autor: Economista Joseph Stiglitz, da Universidade Columbia – FSP 23/08/2009.

Mesmo que a recessão técnica esteja perto do fim, ainda há um longo caminho rumo à recuperação econômica -é o atraso entre os instrumentos de medição econômica que temos (como o PIB) e o bem-estar da população, que precisa de emprego e renda para sentir que, de fato, a recessão acabou.
Após a melhora do setor financeiro e do ajuste de estoques, a economia encara seu problema fundamental: a destruição do motor global, o modelo de consumo dos EUA, disse o economista Joseph Stiglitz, da Universidade Columbia, em entrevista por telefone de sua casa em Nova York.

FOLHA – Economistas e analistas dizem que a recessão americana deve ter terminado em julho, e o BC dos EUA afirmou que a atividade econômica do país já se normaliza. Houve exagero, no ano passado, sobre a extensão que a crise teria ou agora há otimismo excessivo?
JOSEPH STIGLITZ – O termo recessão é normalmente usado para crescimento negativo. Se a economia está se normalizando e o crescimento não é mais negativo, muitos economistas iriam dizer que a recessão acabou.
Mas, para a maioria das pessoas e mesmo para muitos economistas, a definição de recessão tem a ver com a restauração da economia, o que significa você conseguir trabalho. O desemprego, na verdade, ainda deve crescer e talvez significativamente. Há vários riscos rondando o setor financeiro.
Então, mesmo que temporariamente a economia se normalize ou até mesmo cresça, a recuperação ainda é muito frágil e vai levar muito tempo para o mercado de trabalho se recuperar. Os EUA tiveram uma bolha no mercado imobiliário que apoiou um boom de consumo.
No estouro da bolha, o consumo que apoiava a economia americana -e a do resto do mundo- teve de diminuir, com os índices de poupança indo de zero para 5%, 6%. As pessoas poupavam muito pouco porque esperavam o aumento da renda por meio da valorização do preço das casas. Isso não mais existe. Parte considerável dos americanos agora perde dinheiro com suas casas. Mesmo que os bancos estivessem totalmente recuperados -e não estão-, eles estariam poupando mais. O modelo de consumo americano foi destruído.
Isso tudo significa que em médio prazo a economia americana tem problemas fundamentais. Além disso, temos o total derretimento do setor financeiro pós-15 de setembro [quebra do Lehman Brothers], e nós tivemos um ajuste de estoques como resultado da consequente desaceleração da economia. O pior aspecto do congelamento do setor financeiro e do ajuste de estoques talvez tenha se encerrado. Mas isso significa que estamos de volta ao problema fundamental de fundo: o que sustentou a economia americana antes da crise era o consumo, por meio de uma bolha no mercado imobiliário que agora foi destruída.
FOLHA – A hipótese da autossuficiência dos mercados guiou, por décadas, a maioria dos modelos financeiros. Após esta crise, o que muda?
STIGLITZ – Creio que essa hipótese foi uma bolha que também se estourou com essa crise. Mesmo antes havia provas contundentes contra essa hipótese, mas era mais uma ideologia, usada para apoiar interesses específicos no setor financeiro. Por exemplo, em 1989, o mercado de ações sofreu queda de 25%. Não havia evento possível que pudesse corresponder ao desaparecimento de um quarto do capital acionário do mundo. E mesmo assim houve muita gente que continuou acreditando nela.
FOLHA – O sr. avalia que a crise vai ajudar a “fazer a globalização funcionar”, expressão que sugere em um de seus livros, ou o xadrez geopolítico deve apenas sofrer correções cosméticas, com um G20 pouco incisivo para fazer mudanças?
STIGLITZ – Essa pergunta ainda está solta no ar. No início da crise, esperava que houvesse reformas fundamentais nas estruturas regulatórias dos EUA e na maneira com a qual a globalização é gerenciada, o que levaria a uma economia mundial mais estável e à maior equidade, tanto interna como entre países. Agora estou mais cético. Principalmente porque assisti ao resgate financeiro nos EUA: na verdade, os problemas foram reforçados, com os grandes bancos ficando ainda maiores, com o fracasso em fazer algo para sanar os problemas de fundo mais importantes, com muitas das reformas sendo mais “cosméticas”.
FOLHA – Na reunião mais recente do G20, em abril, a avaliação foi de que “um grande passo” havia sido dado rumo à regulação financeira. O senhor mesmo afirmou isso à época. Quatro meses depois, o que foi revelado como mera retórica?
STIGLITZ – É um passo rumo à direção certa, mas claramente não o suficiente. O ponto crítico é que os bancos estão se tornando não só grandes demais para quebrar mas também grandes demais para serem financeiramente solucionáveis.
Há uma apreciação insuficiente até mesmo da natureza do problema, que é não apenas tamanho, mas interdependência.
E isso significa que firmas como AIG e Goldman Sachs podem fazer a economia americana de refém. Nós sabemos disso agora, mas não fizemos absolutamente nada, ou quase nada, para impedir que continuemos reféns no futuro.
FOLHA – Pode-se dizer então que, como democrata e apoiador de Obama ao menos desde 2007, o sr. está decepcionado com o governo?
STIGLITZ – Na maioria das áreas ele está bem, bem melhor do que a administração Bush. Por exemplo, fizeram um pacote de estímulo; a administração Bush não teve nenhum. Eles fizeram algo em relação às hipotecas; o governo Bush, quase nada. Mas o plano de estímulo não foi tão grande quando deveria ter sido e não é bem desenhado. Fizeram muitos cortes de impostos, o que é relativamente inútil. Relativamente poucas hipotecas foram refinanciadas. Os resgates aos bancos foram totalmente injustos e custaram, aos contribuintes americanos, centenas de trilhões de dólares. Obviamente, com esses exemplos, estou decepcionado. Mas também estou satisfeito porque houve, por exemplo, progresso significativo em relação ao Iraque.