Ultradireita, por Jorge Alemán

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Jorge Alemán – A Terra é Redonda – 18/09/2025

Prólogo do autor ao livro recém-lançado

“Na escuridão mais densa, é fácil apelar para as mandíbulas de um leão e dizer: “Eu fiz meu trabalho”. Mas acelerar a ferida, provocar o fim inevitável, não nos isenta do cuidado de criar nossa alma.  Antes do limiar final, é aconselhável parar o impulso e, com atenção, sentir as mandíbulas cavarem em nós e a ferida se tornar leve” (Chantal Maillard).

1.

Escrever sobre a extrema direita não é simplesmente um exercício intelectual. É uma necessidade política. As páginas que compõem este livro são o produto de uma insistência: uma ânsia de entender os mecanismos pelos quais o neoliberalismo e sua lógica de fragmentação deram origem a uma nova ordem pós-democrática. Não é um retorno ao passado, mas uma mutação na qual a extrema direita não é mais apresentada como uma anomalia ou uma regressão, mas como a saída do regime niilista do capitalismo tardio.

Minha preocupação com a irrupção da extrema direita no Ocidente remonta a vários anos. De fato, foi Jacques Lacan o primeiro que, graças às propriedades e condições que atribuiu ao discurso capitalista, me permitiu vislumbrar a deriva neofascista do imperialismo. Se as listo aqui, é porque talvez elas também possam ajudar alguns de meus leitores a entender esse novo fenômeno político.

As suas observações são hoje, de fato, mais pertinentes do que nunca, pois entre elas estão certos temas que poderíamos facilmente reconhecer no neoliberalismo contemporâneo. Um movimento circular que não é suscetível, em princípio, de ser interrompido por uma vontade histórico-política; a destruição da experiência da verdade e dos laços sociais; as condições para um individualismo de massa governado pelo prazer mortal; um funcionamento sem repressão apoiado em uma lógica de rejeição psicótica que se expande na esfera social.

Foram essas questões que me possibilitaram estabelecer uma conexão estrutural entre o discurso capitalista e o niilismo da tecnologia, um elo que hoje, quando olhamos para Donald Trump e sua proximidade com os tecnoligarcas, se torna cada vez mais claro para nós.

2.

As primeiras reflexões que compõem este livro nos permitem situar o problema em seu contexto atual. Nelas, proponho como a política contemporânea não pode mais ser pensada sem a presença de um excesso destrutivo que atravessa discursos e práticas coletivas. A extrema direita usou a raiva e o ressentimento como essa força dirigida contra tudo aquilo que o neoliberalismo tornou precário. Portanto, podemos dizer que opera sob a lógica da devastação.

Enquanto o fascismo histórico foi sustentado pela ideia de uma ordem total, o pós-fascismo contemporâneo funciona dentro da anarquia do mercado, aproveitando suas ruínas para estabelecer formas de governo baseadas na administração do ódio e da exclusão. Não é uma ditadura clássica, mas uma governabilidade onde o sujeito se submete voluntariamente, guiado por discursos identitários e pelo apelo permanente à ameaça externa.

Na segunda metade do livro, coleciono três de minhas palestras públicas, proferidas nos últimos anos, sobre três tópicos que acredito estarem intimamente ligados aos problemas delineados na primeira parte: a relação do indivíduo com a lei, o monoteísmo e a inteligência artificial.

Se em outros momentos históricos o sintoma operava como um ponto de tensão entre desejo e lei, hoje o sintoma social tornou-se parte do regime dominante. A extrema direita, longe de tentar resolver a agitação, a administra, amplifica e a transforma em uma máquina de mobilização política. Aqui fica claro que o neoliberalismo não oferece uma promessa de felicidade, mas uma administração da miséria na qual todos devem encontrar seu próprio culpado e desfrutar do exercício contínuo do sadismo.

Nesse ponto, a leitura de Franz Kafka, que é a espinha dorsal da primeira intervenção, torna-se inevitável. Se em sua obra encontramos a imagem de um poder opaco, inacessível, que submete o sujeito a uma lei indecifrável, hoje nos deparamos com uma versão ainda mais perversa: uma lógica em que o sujeito não é mais apenas confrontado por um tribunal inalcançável, mas ele próprio foi absorvido pela maquinaria, devorado por um sistema que o torna responsável por sua própria miséria. Como em O Processo, não é mais uma questão de buscar justiça, mas de aceitar a condenação como parte da ordem das coisas.

Por outro lado, na segunda dissertação, falo de como o monoteísmo, com sua herança do absoluto, nos ensinou a pensar a verdade em termos de um fundamento último, de uma lei que, embora inacessível, garantia uma ordem simbólica. No entanto, na atual era neoliberal, essa garantia desapareceu.

Não é que tenha havido uma secularização completa, mas que o mercado tomou o lugar do sagrado, gerando um regime de crença baseado na acumulação infinita e na promessa de satisfação total. A extrema direita tem sabido tirar proveito dessa questão, reativando a inclinação monoteísta sob novas formas de identidade fechada, onde a exclusão do outro se torna o novo ritual de pertencimento.

Soma-se a tudo isso o surgimento da inteligência artificial, que é o assunto da minha terceira palestra. Se o capitalismo encontrou na digitalização uma nova fronteira de exploração, a inteligência artificial representa o ponto em que a automação do desejo se torna possível. Resta saber, como Jacques Lacan argumentou em Roma, qual será sua versão sintomática.

Este livro não é apenas uma análise, mas um aviso. A extrema direita é um sintoma do fracasso das democracias neoliberais e da incapacidade de construir um horizonte alternativo. Mas não basta denunciá-los: é preciso pensar em como sair desse tempo, como sustentar um desejo que não seja capturado pela lógica do gozo mortal.

Franz Kafka nos ensinou que o julgamento nunca é final, que a culpa pode ser uma construção arbitrária. A questão é se ainda é possível pensar em uma política que não seja governada pela lógica da culpa e da punição, mas pela abertura ao que não pode ser programado, ao que resiste à captura total da IA, do mercado e da identidade. Essa é a aposta destas páginas.

Jorge Alemán é psicanalista e escritor. Autor, entre outros livros, de Capitalismo: crimen perfecto o emancipación (Ned Ediciones).

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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