Marcio Aith, Advogado e jornalista, foi secretário de comunicação do Supremo Tribunal Federal e do Estado de São Paulo (governo Alckmin). Foi também correspondente da Folha em Tóquio e Washington
Folha de São Paulo, 02/11/2025
[RESUMO] Na Indonésia, Lula encerrou o teatro: disputará novamente a Presidência em 2026, aos 81 anos. Há quatro décadas ele eclipsa a política brasileira, renascendo das cinzas a cada crise — da prisão ao encontro com Trump na Malásia. Mas na sombra dele cresce apenas o deserto político, sem alternativas, que ele mesmo ajudou a criar.
Quando Lula sentou-se ao lado do turbulento Donal Trump em Kuala Lumpur, no domingo passado, o encontro tinha todos os ingredientes do impossível. Três meses antes, Washington havia imposto tarifas de 50% sobre produtos brasileiros e sanções a ministros do Supremo Tribunal Federal. A crise bilateral era a mais grave em dois séculos de relações diplomáticas.
E ali estava Lula —perseguido, preso, com processos anulados pelo STF, reeleito— conversando de igual para igual com Trump, que declarou admirar a carreira política do brasileiro, eleito três vezes presidente da República.
A cena na Malásia é a síntese perfeita da extraordinária capacidade de sobrevivência política de Lula. Ele renasce das cinzas. Da prisão em Curitiba ao Palácio do Planalto em menos de cinco anos. Do político com processos judiciais ao estadista que negocia com potências. Essa capacidade de renascimento, porém, tornou-se também sintoma de uma debilidade nacional: nossa democracia não consegue produzir alternativas ao seu protagonista mais longevo.
Poucos dias antes, em Jacarta (Indonésia), Lula havia encerrado qualquer suspense sobre 2026. “Eu vou completar 80 anos, mas pode ter certeza que eu estou com a mesma energia de quando tinha 30 anos. Vou disputar um quarto mandato no Brasil”, declarou ao lado do presidente indonésio Prabowo Subianto. E completou, com uma franqueza reveladora: “Estou preparado para disputar outras eleições.”
Com essa frase, acabou o falatório mais previsível da política brasileira. Em 2022, o mesmo Lula dizia: “Quando chegar 31 de dezembro de 2026, quando a gente entregar esse mandato para outra pessoa, o país estará bem”.
Pois bem. Chegou o segundo ato. Prometeu mudar tudo e mudou de ideia. Jurou sair, mas só jurou. A indecisão foi teatro. O final, previsível.
Ao confirmar que disputará um quarto mandato, Lula encerra o teatro da dúvida e revela um país incapaz de substituí-lo. Neste ponto, o autor se vê obrigado a corrigir o próprio texto: não se trata de disputar um quarto mandato, mas de uma sétima tentativa presidencial. Lula foi candidato em 1989, 1994, 1998, 2002, 2006, 2022 e agora será novamente em 2026. Antes disso, foi eleito deputado federal em 1986 e derrotado ao governo de São Paulo em 1982.
Ou seja: há 43 anos Lula é candidato a alguma coisa. E talvez o país tenha se acostumado tanto a vê-lo disputar que, quando vota nele, parece reencenar o mesmo ato.
A questão, portanto, não é a idade, mas a longevidade. Não a biológica, mas a política: o fato de o Brasil, quatro décadas depois, ainda depender do mesmo nome para salvar a democracia, articular esperança, poder e estabilidade. A política brasileira parece um carrossel: gira, mas o eixo continua sendo Lula.
Nascido em 27 de outubro de 1945, ele chegará ao primeiro turno de 2026 com 80 anos e 11 meses; ao segundo, com 81. Nenhum presidente em democracia consolidada chegou tão longe em idade e, sobretudo, em tempo de influência contínua. Mas não é o corpo que preocupa. É o vazio em volta.
A energia de Lula aos 80 é, de fato, notável. Viajou 22 horas de avião até a Indonésia. Participou de cerimônias, firmou acordos comerciais, ganhou uma festa de aniversário antecipada com o presidente Subianto (que fez 74 anos dias antes). Seguiu para a Malásia. Reuniu-se com Trump por 50 minutos. Negociou tarifas, defendeu ministros do STF, propôs mediação na Venezuela. Voltou ao Brasil após uma semana de agenda intensa.
Não há sinais de fadiga cognitiva. Não há perda de comando. Lula mantém o instinto político, o carisma, a capacidade de improvisação —que, de tão eficiente, às vezes tropeça na autoconfiança e comete gafes, como a de dizer que traficantes são vítimas de usuários. Sua lucidez aos 80 anos supera a de muitos líderes mais jovens.
Individualmente, tanta vitalidade é admirável. Coletivamente, nosso problema é a ausência de energia ao redor dele. Lula persiste porque o sistema não produziu alternativas —e ele mesmo não permitiu que existissem.
Em 2010, obrigado a deixar o cargo, Lula tinha capital político para eleger qualquer um. Havia quadros preparados, lideranças jovens, ministros de talento. Ele escolheu Dilma Rousseff, uma técnica sem trajetória eleitoral, com origem em outro partido.
O objetivo era claro: não o ameaçar. Dilma não foi projetada para liderar, mas para guardar o lugar até o retorno do chefe. Lula quis voltar em 2014? Os que o conhecem de perto dizem que sim. Não voltou por resistência da própria Dilma, em um episódio nunca satisfatoriamente esmiuçado por jornalistas, historiadores e cientistas políticos.
Fernando Haddad, desprezado em 2010, só virou alternativa na missão impossível de 2018, quando Lula estava preso, e Bolsonaro varreu o país. E Haddad, agora, carrega pedras no Ministério da Fazenda. É assim que Lula move as suas peças
(Aqui, o autor se vê obrigado a corrigir novamente o próprio texto. Mesmo da prisão, em 2018, Lula se lançou candidato, mas foi barrado pela Justiça Eleitoral. O que leva a oito o número de suas tentativas presidenciais.)
Dilma não foi herdeira, foi interregno. Haddad virou preposto. Gleise Hoffmann é bedel, não alternativa. Nenhum sucessor sobreviveu dentro do PT. O partido envelheceu sob a sombra do homem que o fundou. E ali ficou. Na sombra. Houve várias oportunidades de forjar novas lideranças ao longo de décadas. E 2010 talvez tenha sido o momento mais adequado para uma verdadeira renovação.
Em 2022, Lula literalmente segurou a democracia pelo colarinho. Por pouco. Mas 2026 será outra história. O golpismo bolsonarista, que venceu, foi contido e punido. O próximo pleito promete correr dentro da normalidade democrática. A direita terá seu nome. À esquerda, só há Lula. Ao redor dele, o deserto político que ele mesmo ajudou a criar.
E sempre há uma justificativa para Lula concorrer. Desta vez, é o avanço da direita no eleitorado. Só ele poderia se contrapor a essa onda. Só ele manteria a esquerda no poder. A lógica se renova a cada ciclo, mas o protagonista permanece o mesmo.
A crítica, repito, não é ao octogenário candidato, mas ao sistema político que o torna indispensável, ao partido que se dissolveu nele e ao país que não soube criar alternativas.
Lula é populista. E isso não é ofensa, é constatação. Dispenso o aval acadêmico: a palavra tem valor descritivo, não depreciativo. Quando “Vem fazer o L” substitui programa partidário, fica óbvio que não há mais partido, apenas um homem.
O homem que fala “como o povo” há décadas aprendeu a ser o próprio povo. Seu populismo é democrático, performático, conciliador e centrado em si. Fala aos de baixo contra os de cima, encarna o injustiçado que venceu, transforma a biografia em mito. Promove inclusão social sem romper o pacto dos privilegiados: rentistas, conglomerados erguidos por crédito estatal.
Seria injusto, porém, tratar Lula como aberração. Os modelos de representação mudaram no mundo todo, como bem demonstrou o cientista político francês Bernard Manin, falecido em novembro de 2024. Segundo ele, as democracias contemporâneas deixaram de ser de partido para se tornarem “democracias de público”.
Nelas, os eleitores não se guiam mais por ideologias ou programas coletivos, mas por vínculos afetivos com figuras carismáticas. A política virou espetáculo, e o voto, ato de identificação pessoal. O líder passa a representar o sentimento difuso da maioria —não uma plataforma, mas um personagem.
Nesse ambiente, o populismo não é desvio nem destino: é uma possibilidade constante. Surge quando a representação política se confunde com a performance, e o público transforma o político em protagonista. A democracia de partido deu lugar à democracia do público.
Há outro fator a se registrar. Lula também é filho legítimo do sistema que o cerca, o mesmo que manteve oligarquias no poder por décadas. Alckmin governou São Paulo durante 12 anos no período de hegemonia tucana; Sarney controlou o Maranhão por quase meio século; ACM transformou a Bahia em dinastia; Maluf, Quércia, Garotinho e Barbalho são variações regionais do mesmo padrão. No Brasil, o poder raramente troca de mãos.
Lula, portanto, não inventou a perpetuação, apenas a democratizou. Construiu sua longevidade no voto direto, na popularidade genuína e no carisma pessoal. No entanto, o resultado é o mesmo: a incapacidade do sistema de produzir renovação.
E não apenas nas eleições majoritárias. Como observa o cientista político Antonio Lavareda, o voto proporcional em “lista aberta” é, na prática, uma lista desordenada, um convite para escolher rostos, não ideias. O modelo transforma cada candidatura em uma franquia pessoal de poder. O voto deixa de representar um projeto coletivo e vira ativo privado.
As legendas, dominadas por seus donos de voto, perdem a capacidade de se renovar. O resultado é um Congresso imóvel, de caciques vitalícios e reeleições sem fim. É nesse terreno que o populismo prospera —e que Lula se torna, mais do que líder, uma instituição.
Democracias tendem a se apegar a líderes que parecem insubstituíveis, como os Estados Unidos fizeram com Franklin D, Roosevelt, eleito quatro vezes seguidas entre 1933 e 1945. Sua permanência no poder foi tamanha que o país criou, em 1951, a 22ª Emenda, limitando todos os presidentes a dois mandatos. A medida nasceu do medo de ver uma democracia transformar-se em monarquia eletiva.
O Brasil, ao permitir a reeleição em 1997 através da Emenda Constitucional nº 16, seguiu caminho oposto. Acreditou que a limitação a dois mandatos consecutivos, ainda que com a possibilidade de retorno depois de um interregno, seria suficiente para evitar a perpetuação.
Ignorou, porém, a lição que o caso Roosevelt havia ensinado: um líder não precisa de golpe ou fraude para se perpetuar. Bastam a popularidade e a falta de alternativas. Foi exatamente isso que os americanos temeram: não o abuso do poder, mas a dependência em relação ao líder.
Lula, como Roosevelt, não governa pela força, mas pela ausência de quem possa substituí-lo. E, como Roosevelt, tornou-se o fiador de uma estabilidade que, também, esconde a fragilidade das instituições. A diferença é que os americanos aprenderam a lição em 1951. O Brasil ainda a adia.
Lula, aos 81, será o mais velho candidato de uma democracia estável. E o mais longevo líder popular da história do país. Getúlio Vargas, é verdade, governou por mais tempo —18 anos e meio, entre 1930 e 1954. Mas desses, apenas seis anos e meio foram em governos democráticos (1934 a 1937, eleito pela Assembleia Nacional Constituinte, e 1951 a 1954, dessa vez pelo voto popular). Oito anos foram de ditadura declarada, no Estado Novo (1937-1945). Quatro anos, de governo provisório sem eleições (1930-1934), após tomar o poder pela Revolução de 1930. Getúlio construiu sua longevidade também pela força, pelo golpe, pela supressão do voto.
Lula, ao contrário, construiu a sua exclusivamente pelo voto direto, pela popularidade genuína, pela capacidade de se reinventar dentro das regras democráticas. É exatamente isso que torna sua longevidade ainda mais emblemática: não apenas o tempo no poder impressiona, mas sobretudo os 43 anos de influência política ininterrupta, de candidaturas sucessivas, de presença constante no imaginário nacional.
Um feito admirável e, ao mesmo tempo, um sintoma alarmante: o de uma nação que confunde continuidade com futuro. A democracia envelhece quando o futuro é tratado como risco, e o passado, como zona de conforto.
O encontro com Trump provou que Lula ainda tem energia, sagacidade e presença de palco. Mas também revelou algo mais profundo: o Brasil, após 43 anos, ainda precisa dele para se fazer ouvir no mundo. O Brasil não envelheceu com Lula. O Brasil envelheceu por não conseguir sair de dentro dele.

