Frei Betto, Escritor, e autor de ‘Diário de Fernando – Nos Cárceres da Ditadura Militar Brasileira” (ed. Rocco), entre outros livros
Folha de São Paulo, 09/11/2025
Nas últimas décadas, o conceito de terrorismo tornou-se um dos mais poderosos instrumentos políticos e jurídicos para subverter os princípios do direito. Criado para descrever ações violentas com motivações ideológicas ou políticas, o termo se transformou em categoria jurídica e moral capaz de justificar exceções à lei e à própria ideia de justiça.
O que começou como resposta legítima a ameaças reais, acabou se tornando uma ferramenta perigosa em mãos de Estados e governos que, em nome da segurança, subverteram princípios do direito internacional e das liberdades individuais.
O ponto de inflexão ocorreu após 2001, com a derrubada das Torres Gêmeas. Diante do trauma coletivo, os EUA e seus aliados declararam a chamada “guerra ao terror”. Sob essa bandeira, práticas antes consideradas ilegais, como detenções sem mandado, tortura, sequestros internacionais e prisões secretas, foram normalizadas.
O centro de detenção de Guantánamo, em território cubano, simboliza esse novo paradigma. Ali, centenas de pessoas são mantidas presas e submetidas a torturas por tempo indeterminado, sem acusação formal ou julgamento, sob a justificativa de que a luta contra o terrorismo exige “novas regras”.
Essa “exceção permanente”, segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben, abriu um precedente devastador. Em nome da segurança nacional, diversos países passaram a operar fora dos limites legais e éticos, e tratam o suspeito de terrorismo não como cidadão com direitos, mas como inimigo absoluto, alguém que pode ser neutralizado antes mesmo de se provar sua culpa. O direito à defesa, ao julgamento justo e à presunção de inocência foi substituído pela lógica de antecipação e punição preventiva.
O preocupante é que essa erosão da legalidade não se restringiu ao combate ao terrorismo internacional. A mentalidade de “guerra permanente” contaminou outras áreas da segurança pública.
Nos últimos anos, diversos governos, inclusive democráticos, passaram a aplicar a mesma lógica de exceção contra facções criminosas e organizações de narcotráfico. Operações policiais e militares têm adotado o discurso de que certos grupos representam uma ameaça tão grave à ordem pública que o Estado pode agir sem os freios da lei.
Sob o pretexto de combater o crime organizado, como ocorreuagora no Rio de Janeiro, multiplicam-se execuções extrajudiciais, desaparecimentos e intervenções letais em comunidades pobres. O inimigo agora não é o “terrorista estrangeiro”, mas o “traficante”, o “miliciano” ou o “membro de facção” —rótulos amplos e fluidos que permitem justificar ações fora do devido processo legal. Em muitos casos, a sociedade, movida pelo medo e pela descrença nas instituições, aplaude essa postura, sem perceber que mina as bases da própria democracia.
Ao transformar o combate ao crime em guerra, o Estado abre mão do papel de garantidor da lei para se tornar juiz e carrasco. A fronteira entre justiça e vingança se apaga. A morte passa a substituir o julgamento; a suspeita, a prova; e o inimigo, o cidadão. Esse processo corrói os princípios que sustentam o Estado de Direito, como a universalidade da lei, a proporcionalidade da punição e a dignidade da pessoa humana.
A força da lei não está em seu predicado de punir, mas em sua capacidade de limitar o poder. Quando o Estado reivindica o direito de matar sem julgar, ele nega a essência do contrato social.
Ao admitir que alguns indivíduos ou grupos podem ser eliminados sem defesa, a sociedade regride à barbárie, em que o mais forte impõe sua vontade sobre o mais fraco.
O desafio agora é resgatar a primazia da legalidade em um mundo que se acostumou à exceção. O combate ao terrorismo e ao crime organizado é legítimo e necessário, mas precisa submeter-se ao controle jurídico e ao respeito aos direitos humanos. Não há segurança duradoura quando o medo se torna justificativa para a suspensão da justiça.
Se o século 21 começou com a promessa de um mundo interconectado, rapidamente revelou o perigo de uma liberdade condicionada pelo terror. Hoje vivemos as consequências de um paradigma que transformou o inimigo em categoria política e o direito em instrumento de exceção. A luta contra o “narcoterrorismo” deve ser travada dentro da lei, nunca acima dela. Do contrário, o Estado, ao tentar nos proteger, acabará por destruir aquilo que mais deveria preservar: a própria ideia de justiça.

