O editorial do Estadão, por Carlos Eduardo Martin

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Carlos Eduardo Martins – A Terra é Redonda – 16/04/2025

A grande razão do atoleiro ideológico em que vivemos não é a presença de uma direita brasileira reativa a mudanças nem a ascensão do fascismo, mas a decisão da socialdemocracia petista de se acomodar às estruturas de poder

O editorial do jornal O Estado de S. Paulo de 12 de abril, contrário à anistia para Jair Bolsonaro e aos demais criminosos do 8 de janeiro, e crítico à posição assumida por Tarcísio de Freitas em favor do PL da anistia, revela o drama da velha oligarquia burguesa no Brasil. Não confia em Jair Bolsonaro, mas sem liderança política própria, é obrigada a fazer um pacto com o Partido dos Trabalhadores, que se presta ao papel de salvar uma burguesia parasitária, rentista, colonial e subdesenvolvida.

Estamos no meio de uma brutal crise orgânica da reprodução do capitalismo no Brasil. O PIB per capita brasileiro não cresce em dólares constantes desde 2013, oscilando entre soluços que não reverteram a tendência à baixa (ver Cepalstat), mas somos incapazes de oferecer uma alternativa ideológica ao nosso povo.

A grande razão do atoleiro ideológico em que vivemos não é a presença de uma direita brasileira reativa a mudanças nem a ascensão do fascismo, mas a decisão da socialdemocracia petista de se acomodar às estruturas de poder prevalecentes ao invés de lutar pelas grandes causas populares. Prefere a garantia de cargos, salários e remunerações no Estado – que alimentam a sua máquina partidária –, a enfrentar as grandes questões sociais, nacionais e democráticas – que podem ameaçar a sua estabilidade política imediata.

É falsa a tese de que as esquerdas não têm força porque existe o “pobre de direita”, produto da sua conversão à classe média baixa e da ofensiva fascista. A classe média brasileira é muito mais restrita e mais de 70% das famílias recebem remuneração abaixo do salário-mínimo necessário estipulado pelo DIEESE. A onda fascista existe, mas não possui toda essa força e encontra-se em crise de liderança e organização. A raiz da crise ideológica é a capitulação de classes do petismo, que desistiu de realizar transformações sociais no país para realizar a sua: converter-se em parte da elite burguesa brasileira.

Em 2006 a socialdemocracia petista teve mais votos que Jair Bolsonaro em 2018 e 2022, 12 ou 16 anos depois, sem o apoio dos dois maiores partidos do centrão de então (PSDB e PFL), da rede Globo e da grande burguesia liberal. A conversão de classes que desarmou a ideologicamente o povo brasileiro é a da elite petista e parte de seus militantes orgânicos a frações da burguesia, em particular, as médias e pequenas. Não foi a suposta ascensão dos extremamente pobres à classe média baixa.

A descoberta pontual e tardia petista de que no Brasil há uma direita refratária a mudanças sociais e políticas, usada para justificar a composição com as estruturas de poder e a capitulação, tampouco é aceitável, e revela grave manipulação oportunista. O que esperar de uma direita que levou ao suicídio de Getúlio Vargas? Que tentou o golpe de Estado em 1961? Que o conquistou em 1964? Que deixou impune o terrorismo de Estado em uma anistia que contraria o Tratado Interamericano de Direitos Humanos? Que estabeleceu outro golpe em 2016, impondo ainda o teto de gastos por emenda constitucional?

Houvesse no Brasil uma direita sensível às questões sociais, a urgência de uma esquerda de fato não seria tão grande. Sua absoluta necessidade vem de que as mudanças sociais e políticas dependem de uma vanguarda disposta a se arriscar na luta política, social e ideológica para promover o avanço da consciência de classe de um povo que dedica o seu cotidiano à sobrevivência.

No Brasil de hoje, a luta de classes se dá principalmente o plano interburguês entre os seguintes segmentos do grande capital:

(i) De um lado, o rentismo e a burguesia ilustrada, representados pelos grandes bancos brasileiros e o grande monopólio midiático da Globo, associados à liderança política da socialdemocracia petista e a sua capacidade de cooptar movimentos sociais, personalidades da cultura e da ciência e neutralizar o fascismo. Essa aliança se vincula contraditoriamente ao imperialismo liberal, representado pelo Partido Democrata e as forças multipolares impulsionadas pelo BRICS.

(ii) Do outro lado, estão o agronegócio, o extrativismo, as igrejas neopentecostais e as milícias. Em resumo, a grande burguesia do baixo clero, mas emergente em razão da desindustrialização brasileira, que se associa ao neofascismo.

O primeiro grupo impulsiona as taxas de juros reais mais elevadas para fortalecer os bancos nacionais, e não é casual que a Selic deflacionada tenha sido bem mais alta nos governos petistas que nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. O segundo grupo pretende promover a internacionalização financeira e a dolarização do país, pratica um arrocho fiscal brutal – com cortes nos gastos sociais e no custeio para atingir o conjunto dos trabalhadores e servidores públicos da educação e da saúde, organizadores das greves mais importantes do país nos últimos 15 anos –, e pretende expandir a fronteira agrícola e extrativista ampliando a superexploração da natureza e dos trabalhadores.

Essas forças representam as duas vias da tragédia brasileira. Encarnam formas distintas de modernização da dependência, do subdesenvolvimento e do legado colonial que mantêm o Brasil como uma nação de excluídos e um Estado muito abaixo das potencialidades que se abrem, num mundo multipolar e de transição energética, aos países continentais, anfíbios, dotados de recursos estratégicos e de uma população mestiça com imensa riqueza cultural e possibilidades de criação.

Nesse contexto, não surpreende o isolamento da minoria do PSol e de líderes como Glauber Braga, que se dedicam a combater intransigentemente o neoliberalismo e o fascismo, desvelando suas vinculações ou proximidades. A articulação de sua cassação na Comissão de Ética da Câmara de Deputados enquanto Arthur Lira – que a lidera, já sem o comando da casa – partia em viagem na comitiva presidencial de Lula para o Japão, e o silêncio no Palácio da Alvorada, são reveladores da extensão do incômodo que uma esquerda combativa pode causar.

Entretanto mesmo quando vencida ou derrotada, sua razão de existir permanece como necessidade histórica. Ganhando ou perdendo, Glauber Braga fica na história sufocada do Brasil profundo, que mais cedo ou mais tarde poderá se levantar, esgotadas as ilusões com forças decadentes e mantidas acesas as chamas e as centelhas da renovação da luta popular e democrática.

Carlos Eduardo Martins é professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (Boitempo).

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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