Aos trancos e barrancos, as instituições de ensino erguem-se como bastiões de defesa contra o avanço do neofascismo
Muniz Sodré, Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”.
Folha de São Paulo, 15/06/2025
O ataque de Trump às universidades americanas, maioria no rol das melhores do mundo, é sintoma forte do neofascismo transnacional. Não foi adiante no período de Bolsonaro, mas exerce controle total na Hungria de Orban. Pode ser característica de toda autocracia, porém tem mais a ver com fascismo do que com nazismo ou stalinismo, apesar do sinistro parentesco entre os três.
Suscita-se uma hipótese de vingança pessoal de Trump contra as altas instituições de ensino, de onde provém a elite dirigente dos EUA. Não só oito presidentes foram formados na Ivy League, núcleo de excelência universitária, assim como professores, economistas e cientistas, sempre nas pautas do Prêmio Nobel. Obama graduou-se em Harvard. Trump, embora proveniente da Ivy League (onde nunca foi benquisto), é produto de show televisivo. Respira e transpira banalidades, mas soube navegar no vácuo de credibilidade do elitismo: desde Truman, o povo americano descobriu que seus líderes eram grandes mentirosos. A verdade sobre as guerras inúteis do Vietnã e do Iraque não foi revelada aos jovens por governos, mas pela imprensa e pelas universidades.
O neofascismo trumpista constrói-se na mentira aberta, sem descambar no neonazismo. É que o nazismo como programa político “tinha uma teoria do racismo e do arianismo, uma noção precisa da entartete Kunst, a ‘arte degenerada’, uma filosofia da vontade de potência e do Übermensch. O nazismo era decididamente anticristão e neopagão” (Umberto Eco, “Fascismo Eterno”). O fascismo, ao contrário, sem bases filosóficas nem controle ideológico real, articulava-se emocionalmente em torno de arquétipos tradicionais. Houve só um nazismo, mas vários os fascismos.
Duas características do velho fascismo permitem identificar o novo: oposição ao avanço do conhecimento e ação irracional do chefe. Em Trump, o açodamento da guerra comercial e ameaças de conquistas territoriais. Depois, universidades como alvos de alegações infundadas, dentre as quais o antissemitismo. Ele finge desconhecer participação de judeus nas manifestações contra o massacre em Gaza e agora a própria revolta interna em Israel.
Na realidade, o ambiente universitário no mundo todo é conservador. Não exatamente de direita, mas de valores universalistas derivados de um sistema de ideias. Isso comporta uma diferenciação estrutural, processo pelo qual a estrutura de ensino se abre ao surgimento de institutos e laboratórios. Para tanto é imprescindível o avanço do saber, logo, liberdade de pesquisa e opiniões. Manifestações estudantis e docentes são o epifenômeno desse espírito libertário, sujeito ao debate.
Nenhuma comunidade de saber é possível num sistema educativo à distância nem em universidades-empresas. Isso não significa que o conhecimento esteja restrito às universidades. Mas, entre nós, as instituições públicas são fontes de ensino aliadas à produção de conhecimento. Vivem na corda bamba de orçamentos mesquinhos e cortes drásticos, em meio à farra de emendas parlamentares sem prestação pública de contas. Ainda assim, ascendem, como acaba de acontecer com a UFRJ no ranking das melhores. Aos trancos e barrancos, aqui e no mundo, a universidade ergue-se como bastião de defesa contra a metástase progressiva do neofascismo.