Amaro Fleck – A Terra é Redonda – 10/06/2025
Comentário sobre o livro, recém-lançado, de Quinn Slobodian
“Este livro mostra que muitas das manifestações contemporâneas da Extrema Direita surgiram dentro do neoliberalismo, e não em oposição a ele. Elas não propuseram uma rejeição total do globalismo, mas sim uma variedade dele — uma que aceita a divisão internacional do trabalho, com fluxos transfronteiriços robustos de mercadorias e até acordos comerciais multilaterais, ao mesmo tempo em que endurece os controles sobre certos tipos de migração. Por mais repulsiva que sua política possa parecer, esses pensadores radicais não são bárbaros às portas do globalismo neoliberal, mas sim filhos bastardos dessa própria linha de pensamento. O suposto choque de opostos é, na verdade, uma briga de família.” (Quinn Slobodian, p. 24)
A tese central do novo livro do historiador canadense Quinn Slobodian afirma não haver uma ruptura entre o neoliberalismo da Sociedade Mont Pèlerin e a extrema direita contemporânea. Tampouco se trata de uma mera continuidade. Como o próprio título indica, essa extrema direita seria uma espécie de filha bastarda dos neoliberais clássicos. Em outras palavras, uma descendência, mas não uma descendência querida ou deliberada.
Quinn Slobodian, professor de história internacional da Boston University, foca sobretudo na “nova fusão” [new fusionism] ocorrida no começo da década de 1990 entre os paleolibertários e os paleoconservadores. Essa aliança forma a matriz do pensamento de extrema direita contemporâneo e se cristaliza numa organização, o John Randolph Club.
Trata-se de uma “nova” fusão pois ela remete a outra: a original é aquela ocorrida na década de 1950 por meio de uma aliança entre libertários e tradicionalistas promovida sobretudo pela National Review sob direção de William F. Buckley Jr, fusão essa responsável pela criação do tripé do conservadorismo norte-americano tal como o conhecemos: tradicionalismo moral, liberdade econômica e forte defesa nacional.
A aliança paleo
Os paleolibertários são, basicamente, os anarcocapitalistas com posturas tradicionalistas em questões de costumes e de gosto, ou, em outras palavras: eles sonham com mercados livres em sociedades opressivas, marcadas pela coação nos mínimos detalhes das vidas de seus indivíduos, nas quais os defensores da ordem e dos bons costumes podem decidir com quem eles podem se deitar, no que podem acreditar ou quais substâncias podem consumir (seus principais expoentes são Murray Rothbard, Lew Rockwell e Hans-Hermann Hoppe).
Os paleolibertários nada tem de antigos, eles são resultado de uma cisão tardia no movimento libertário americano, uma contraposição à sua versão clássica minarquista com sua defesa da menor intervenção possível do Estado tanto nos costumes quanto na economia (pense-se, sobretudo, em Robert Nozick). Além disso, os paleolibertários são antiigualitários: para eles as diferenças entre raças e entre sexos (eles recusam a própria concepção de gênero) estão inscritas na própria natureza humana, e não podem e nem devem ser mitigadas.
Já os paleoconservadores, por sua vez, são tradicionalistas que se opõem ao intervencionismo militar (seus protagonistas são Pat Buchanan, Thomas Fleming e Paul Gottfried). Eles defendem um isolacionismo nacionalista. Eles também são resultado de uma cisão tardia no movimento conservador americano, uma contraposição ao neoconservadorismo e sua promoção militarista da democracia mundo afora, assim como uma reação contra a adoção, por parte dos neocons, de políticas com intenções de promoção da igualdade racial.
Contra isso, os paleoconservadores querem resgatar um velho conservadorismo, cético em relação às intervenções externas, simpático a tarifas e outras formas de protecionismo econômico e radicalmente contrário a todas as políticas mitigatórias ou redistributivas, pouco importa se elas busquem reduzir disparidades de classe, raça ou sexo.
O argumento dos três “hards”
Pois bem, o cerne dessa nova fusão é o argumento dos três hards: a defesa de uma natureza humana rígida [hard nature], baseada na tese de que as diferenças humanas são biológicas e imutáveis; de fronteiras rígidas [hard borders], a apregoar livre circulação de capital, mas forte restrição à imigração, sobretudo de seres humanos “inferiores”, com baixo capital humano; e de moeda rígida[hard money], de preferência com um retorno ao padrão-ouro ou diretamente ao uso do próprio metal como moeda, e logo, também, com o fim da mera possibilidade de qualquer flexibilização monetária.
Natureza humana rígida
Esse argumento tem sua gênese em uma guinada biologicista e racializante ocorrida no começo dos anos 1990 no interior do movimento neoliberal, sobretudo por parte de sua vertente mais radical, os agora intitulados paleolibertários. Eles passam a argumentar que políticas redistributivas ou de reparação histórica são contraproducentes e ineficientes pois as desigualdades estão bem assentadas em diferenças inatas e imutáveis entre seres humanos. Nas palavras de Murray Rothbard: “a biologia permanece como uma rocha diante das fantasias igualitárias” [“Biology stands like a rock in the face of egalitarian fantasies”].
Essa tese ecoa em um livro de grande sucesso nessa década, A curva do sino. Inteligência e estrutura de classes na vida americana (1994) [The Bell Curve], de Richard Herrnstein e Charles Murray. Para Herrnstein e Murray, a estratificação social estadunidense é cada vez mais uma estratificação cognitiva, de modo que as pessoas com maior Quociente de Inteligência (QI) desempenham profissões mais valorizadas e consequentemente auferem uma renda maior. A elite se torna assim uma “neurocasta”.
Embora o QI, de acordo com os dois autores de A curva do sino, tenha tanto fatores genéticos inatos quanto aspectos ambientais, o século vinte teria equalizado em boa medida os aspectos ambientais (ao universalizar o acesso às escolas, por exemplo), desse modo, as diferenças preponderantes indicadas na estratificação cognitiva seriam agora genéticas e inatas.
Ainda que Herrnstein e Murray evitem entrar em querelas raciais explícitas, Richard Lynn, em A curva do sino global (2008), extrapola os limites nacionais estadunidenses e aplica a mesma metodologia para discriminar a inteligência entre diferentes países e raças.
Fronteiras rígidas
Isso coaduna com a proposta de fronteiras rígidas, outro dos tópicos da aliança entre os paleos. O livro Nação Estrangeira. Uma Visão de Senso Comum sobre o Desastre da Imigração nos EUA (1995) [Alien Nation], de Peter Brimelow, é a principal referência aqui. Trata-se da ideia de uma etnoeconomia, uma mistura perversa de nativismo racial com racionalidade econômica neoliberal.
Peter Brimelow praticamente já antecipa a tese conspiracionista da “grande substituição” (a saber: estaria em curso uma substituição das populações autóctones por imigrantes e seus descendentes, causada tanto pelos incentivos à imigração quanto pelas maiores taxas de fecundidade dos imigrantes em relação a dos nativos).
De acordo com Peter Brimelow, isso ocorreria tanto por um masoquismo branco (uma espécie de impulso irracional por parte dos brancos, algo como um desejo de se submeter aos grupos que eles antes oprimiram), quanto por um interesse de uma nova classe formada por burocratas, intelectuais, e pelas elites empresariais e das mídias, pois essa nova classe prefere um Estado multinacional fragmentado, carente de patriotismo e prestígio.
As políticas de reconhecimento, notadamente as ações afirmativas, seriam responsáveis pelo surgimento de um “socialismo de pigmentação”, o qual serviria tão somente para a perpetuação do poder das elites. Contra a ideia da imigração como um direito humano (para não falar da muito mais idílica noção de um mundo sem fronteiras), os neoliberais passam assim a defender uma política de imigração como importação de capital humano, vantajosa tão somente, portanto, quando consegue atrair capitais de alta qualidade.
Dinheiro rígido
Por fim, com a proposta do dinheiro rígido os paleos se afastam da ortodoxia neoliberal, oriunda do monetarismo de Milton Friedman, ao defenderem um retorno ao padrão ouro. De acordo com eles, há uma ladeira escorregadia a conduzir do fim do padrão ouro, em 1971, quando o dólar americano deixou de ser conversível no metal, para a completa e absoluta degradação moral. Desde então a ganância estatal não teria mais limites, aumentando os programas sociais, mas também a inflação.
Os goldbugs, entusiastas do ouro, preveem um colapso monetário num futuro próximo, causa de hiperinflação e crise financeira. Esse colapso, no entanto, é também uma oportunidade, pois os “libertários do desastre” disseminam sua ideologia por meio de newsletters de conselhos financeiros (o mais conhecido é o Ron Paul Survival Report), nas quais indicam a compra de ouro como único meio de garantir a segurança patrimonial (mas também toda uma estratégia sobrevivencialista, com o armazenamento de armas, alimentos e com a obtenção de cidadanias alternativas).
Em sua conclusão, Quinn Slobodian comenta como essa nova fusão foi capaz de combinar cultura, economia e política para justificar as hierarquias sociais e se contrapor a qualquer projeto de transformação ou questionamento delas. Por meio de uma mescla entre sociobiologia, psicologia evolutiva e genética eles promoveram uma ideologia baseada num vínculo entre livre-mercado, nacionalismo étnico e determinismo biológico. Essa ideologia foi propagada com sucesso por meio de empreendedores ideológicos interessados em fazer fortuna por meio da venda de pacotes de alarmismo grosseiro com soluções simplistas para tempos incertos.
Uma fuga para a segurança por meio da oferta de estabilidade simbólica e material diante do caos. O presidente argentino Javier Milei é o exemplo emblemático dessa ideologia, e não à toa batiza seus cães mastins com nomes de economistas dessa tradição: Milton [Friedman], Murray [Rothbard], Robert e Lucas [em homenagem a Robert Lucas Jr.].
Mas, afinal, qual a relação entre os neoliberais e os paleos?
O livro de Quinn Slobodian é bem-sucedido em iluminar aspectos teóricos muitas vezes negligenciados da extrema direita contemporânea, em especial ao jogar luz sobre essa aliança entre paleolibertários e paleoconservadores e ao mostrar como ali é gestado parte do terror que nos assalta. Mas deixa a desejar justamente em seu objetivo maior, isto é, especificar qual exatamente é o laço a vincular os neoliberais clássicos aos seus “filhos bastardos”.
Quinn Slobodian oscila entre duas explicações. A primeira, proeminente, busca mostrar como há uma continuidade teórica entre os pensamentos de Mises, Hayek e James Buchanan e as ideias de Rothbard, Murray e Brimelow. É como se os neoliberais clássicos já fossem criptorracistas, entusiastas comedidos de uma volta ao ouro ou defensores envergonhados de uma concepção robusta de natureza humana.
Os filhos bastardos, aqui, apenas revelariam de forma mais explícita traços já presentes, mas ao mesmo tempo ocultos, em seus genitores. Mas isso é, no melhor dos casos, algo bastante forçado. É difícil encontrar algo de bom nas teorias de Mises, Hayek ou James Buchanan, mas nem tudo o que há de mal está lá.
Notem bem: o argumento neoliberal de atrair imigrantes com alto capital humano, ao mesmo tempo em que se repele a migração de trabalhadores pouco qualificados é sem dúvida repugnante, mas é muito diferente da defesa paleolibertária da criação de enclaves brancos ou da tentativa, algo desesperada e com um leve atraso de três ou quatro séculos, de tornar os EUA um território etnicamente homogêneo.
A segunda estratégia, mais interessante, consiste em identificar vínculos institucionais: indicar a participação desses autores na Sociedade Mont Pèlerin (é o caso dos três: Rothbard, Brimelow e Murray), mostrar a reunião dos paleolibertários no Instituto Mises, chamar a atenção para o fato de líderes da extrema direita europeia, sobretudo da maldita AfD, baterem ponto na Hayek Society.
Aqui, na periferia sul do mundo (“como se chegando atrasado, andasse mais adiante”) isso tudo é evidente: afinal um Chicagoboy foi ministro da economia do governo da versão canarinho da alt-right e algo como um sósia disso é agora presidente dos nossos pobres y combalidos hermanos. Enfim, é óbvio que há conexões entre os neoliberais e a extrema direita contemporânea, mas ainda é preciso elaborar teoricamente e interpretar essas conexões.
Amaro Fleck é professor do Departamento de Filosofia da UFMG.