Sem mágicas no Brasil real, por Maria HermíniaTavares.

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O conservadorismo do Congresso não é o efeito espúrio do sistema eleitoral

Maria Hermínia Tavares, Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Folha de São Paulo, 03/07/2025

O conflito entre o Executivo e o Congresso sobre o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) põe a nu tensões de várias origens.

De um lado, trata-se de um capítulo do rearranjo das relações entre os dois Poderes, requerido pelas mudanças nas respectivas forças relativas.

Como se sabe, a Presidência perdeu em parte sua capacidade de controlar a agenda legislativa e o Parlamento ganhou mais protagonismo, por força de mudanças institucionais que se sucederam ao longo dos anos. Entre elas, a regulamentação das medidas provisórias; o crescimento, em tipo e valor, das emendas impositivas; e o aumento do fundo partidário, que fortaleceu as lideranças das legendas representadas na Câmara e no Senado.

A principal consequência disso tudo foi a diminuição do controle que o governo exercia sobre a parte do Orçamento da União não destinada a despesas obrigatórias —aquela que permitia ao governo de turno fazer suas políticas e dar marca própria à sua gestão. Os efeitos dessa mudança estão detalhados no artigo da cientista política Lara Mesquita, também colunista desta Folha.

A outra fonte de tensão é propriamente política e vem do fato de o presidente Lula, de centro-esquerda, ser minoritário do Congresso e, em consequência, depender de uma coalizão de governo com grande participação de partidos da direita mais pragmática. Esse descompasso não é incomum no país. O grande economista Celso Furtado já apontara o conflito entre presidente progressista e Congresso conservador no artigo “Os obstáculos políticos ao desenvolvimento econômico”, de 1965, que se tornou um clássico. E perdurará enquanto as escolhas do eleitorado continuarem produzindo esse desacerto.

Coalizões congressuais heterogêneas são mais difíceis de disciplinar. Especialmente quando o governo deixa de contar com alguns dos instrumentos para ganhar o apoio de parlamentares dispostos a deixar de lado convicções conservadoras em troca de seja lá o que lhes aumente o cacife para a reeleição.

De toda forma, apesar das importantes derrotas sofridas pelo governo no Congresso, produzidas por sua base indisciplinada, levantamento publicado por O Estado de S. Paulo, no domingo (29), mostra que os partidos na Câmara merecedores de ministérios apoiaram o governo em 72% das votações por ele orientadas. Um percentual e tanto, mesmo ao se levar em conta que o índice ficou 18 pontos aquém dos 90% das gestões anteriores do presidente Lula.

Além disso, é inegável que uma base congressual que inclua a direita pragmática limita o alcance de políticas de mudança ao gosto da esquerda. A discussão sobre o ajuste fiscal e uma reforma progressiva do Imposto de Renda bem o demonstram.

De toda forma, convém ter em mente duas realidades: uma é que o conservadorismo do Congresso não é o efeito espúrio de um sistema eleitoral que perverta a representação —mas das inclinações do eleitorado. A outra é que o presidencialismo de coalizão, a forma possível de governar por aqui, passa por mudanças sem volta no seu modus operandi, requerendo ainda mais negociação entre os jogadores.

No Brasil real, não há soluções mágicas nem instituições ótimas.

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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