Brasil NÃO é dos brasileiros, por Michael França

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Loteria do nascimento define quem será forasteiro dentro das próprias terras

Michael França, Ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford.

Folha de São Paulo, 05/08/2025

Nascer em uma família rica ainda é um dos maiores determinantes para continuar tendo riqueza material no futuro. Não porque essas pessoas, ou ao menos parte delas, não trabalhem duro. Mas porque o jogo da vida começou a pavimentar seus caminhos antes que seus pés tocassem a estrada.

Agora, veja bem. A narrativa de vencer por conta própria é bonita. Todos nós queremos acreditar que, com esforço e dedicação, podemos alcançar nossos objetivos. Essa é uma crença poderosa e necessária. Mas ela não pode alimentar uma mentira reconfortante. Porque, se fecharmos os olhos para o terreno desigual onde tantos brasileiros começam a vida, não estaremos apenas traindo o ideal de justiça. Estaremos adiando o dia em que o Brasil se tornará a grande nação que deveria ser.

O país, como está moldado hoje, é uma fábrica de destruição não só do potencial humano como também de seu próprio povo. Nenhum país consegue crescer de forma sustentada quando sua população está presa em um sistema de castas disfarçado de instituições livres. Nenhuma economia será forte se continuar impedindo que grande parte das capacidades de seu povo se realize.

Meu novo livro busca sintetizar, em uma linguagem acessível, parte desse nosso drama. A obra “A Loteria do Nascimento”, escrita em parceria com o sociólogo Fillipi Nascimento, tem um subtítulo tão provocador quanto a própria obra: “Filha do porteiro termina a universidade, mas não alcança o filho do rico”. O argumento central é que educação não basta. Há uma engrenagem social e econômica hereditária que favorece os mesmos de sempre, sempre. E, se quisermos construir um Brasil à altura de suas promessas, precisamos quebrar essa engrenagem.

Esse livro não é um manifesto contra as elites. Ele é um chamado à consciência. Ele não prega ressentimento. Ele propõe responsabilidade. E isso é o que líderes de verdade fazem. Nós encaramos os fatos com coragem. Nós reconhecemos as falhas do presente, mas trabalhamos por um futuro diferente.

Eu acredito. E acredito com força. Acredito que nossa realidade pode mudar. Mas a mudança só vem quando cada um de nós entende que tem responsabilidades individuais e coletivas. E que não dá mais para aceitar um país onde o destino de milhões está escrito antes mesmo de aprenderem a escrever o próprio nome.

Essa é a nossa missão. Abrir caminhos. Destruir as divisões. Esvaziar as trincheiras que nos separam. Desfazer heranças que aprisionam. Garantir que a determinação seja recompensada, não sufocada. Que a loteria do nascimento não determine o tamanho dos sonhos. Que o Brasil seja mais do que uma promessa para poucos e se torne, de fato, um lar para todos.

E, para isso, não precisamos acender um holofote. Precisamos, apenas, que cada um de nós, onde quer que esteja, acenda a sua pequena luz. E a deixe brilhar.

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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