Luis Fernando Vitagliano – A Terra é Redonda – 11/09/2025
O Parlamento não é uma república de bacharéis, mas um espaço de garantias para todos. Se protege apenas os que detêm o poder, já não é democracia – é seu simulacro
1.
O Brasil elegeu em 2022 pelo menos 131 deputados cuja formação é em Direito (103 advogados e 16 bacharéis, 13 delegados). Talvez haja outros formados na área que não foram contabilizados pela profissão. Mesmo assim, este número equivale a ¼ dos deputados em exercício hoje na Câmara. Ainda que entender dos processos, conhecer as leis e atuar dentro das regras jurídicas e dos estatutos é fundamental para o exercício dos mandatos, parece haver uma preocupante relação acrítica limitante da área do Direito.
Isso tem consequências para o modo com que se apropria dos fatos. Optar pelo Direito enquanto perspectiva da política pode gerar distorção para o olhar da democracia. Obviamente entre os bacharéis, os barões do centrão e os golpistas autoritários há diferenças, mas se não nos preocuparmos com o padrão das instituições democráticas, essas diferenças acabam por dar indícios de deturpação do exercício da democracia e aproxima oportunistas de golpistas, cafajestes de sabichões, ingênuos de maldosos.
Sem a sociedade saber exatamente o que é, como se manifesta e o que sustenta a democracia, fica difícil defender seus princípios elementares e mais fáceis de atingi-la. O que podemos perceber rapidamente, com um olhar para a opinião pública, é que dificilmente encontramos definições coerentes do que seja democracia. E como cada um usa a noção de democracia do modo que convêm, corremos agora o risco de interromper o período mais longevo da democracia brasileira – que começou com a promulgação da Constituição de 1988.
São 37 anos de altos e baixos das instituições democráticas, que hoje estão sob a ameaça real de sucumbirem às pressões de uma maioria que acredita estar coberta pela iluminação, mas que abusa do precedente não democrático da decisão de maioria.
Defendi uma tese para o doutoramento exatamente sobre democracia. Desde suas definições até suas disfunções. É um exaustivo trabalho de leitura, pesquisa e reflexão. A análise histórica, factual e comparada é muito importante para formar uma robustez conceitual que dá contornos a definição. Longe de ser um conceito em que há uma definição única e precisa é preciso olhar para a história e suas múltiplas manifestações práticas.
Defendi que a democracia tem dois pilares que a sustentam: de um lado a deliberação coletiva através de consultas públicas. Eleições, Leis, deliberações públicas, impessoais e transparentes formam um governo que toma decisões com base no jogo de representação pública; de outro lado há a garantia de direitos individuais e coletivos de minorias. Ou seja, para defender a democracia é preciso reconhecer que os derrotados tenham seus direitos garantidos mesmo quando são minorias.
Ao contrário então do que comumente se supõe: democracia não é o direito constituído pela deliberação da maioria; democracia é o exercício da deliberação que garante o direito da minoria. Preservar quem perdeu é tão importante para a democracia quanto é o exercício da deliberação pelos vitoriosos. Eu diria, até mais importante; porque se quem ganhou ou teve o mandato concedido pela maioria propõe algo que atinja os derrotados diretamente deve haver mecanismos que impeçam essa ação de acontecer.
2.
Tratemos de um exemplo concreto, pergunto: ao ganhar uma eleição, conseguir apoio legislativo, com maioria no Congresso, pode um partido da maioria propor o fim da cultura cigana, por exemplo? E que aqueles que insistirem em manifestar através dessa prática serão presos e punidos com a morte? A resposta é não. Mesmo vencendo, mesmo cumprindo todos os trâmites legais e os ritos da deliberação, o princípio da maioria não se impõe ao direito de existência e de livre expressão das minorias. De modo que um ideal de democracia é a composição de minorias sem a existência de uma maioria consolidada. Portanto, não há direito que sustente a extinção da oposição.
Democracia como pode ser entendida historicamente é o regime que permite a coexistência pacífica de diferentes concepções sociais, políticas e culturais nas instituições políticas, de modo que as garantias dos direitos individuais e coletivos se harmonizam com as deliberações de governo, garantindo oportunidades sociais, econômicas e políticas a todos os grupos e indivíduos.
Assim, quando comecei a desenvolver o trabalho acadêmico, me fiz a seguinte pergunta: a democracia tem por princípio, entre outros, a garantia do direito a livre manifestação política e que minorias tenham assegurada sua liberdade de defender quaisquer que sejam seus princípios políticos. Democracia pressupõe tolerância e diversidade de opiniões e para provar a efetividade desse direito, me propus a discutir o argumento em suas últimas consequências.
Perguntei se, por exemplo, uma constituição pode banir ou proibir um partido nazista (como se faz na Alemanha)? Esta postura afasta ou aproxima a Nação da democracia? Minha resposta naquele momento era ainda inconsistente: embora reconhecesse que há razões históricas para sustentar o banimento de partidos nazistas, e que mesmo isso não sendo o ideal era coerente com a história e isso não torna o país menos democrático, reconhecia que com essa postura o conceito de democracia poderia se enfraquecer dado que não se supunha a tolerância mesmo que em se tratando de um movimento totalitário. Em linhas gerais, o que eu me perguntava é a respeito do dilema mais complexo enfrentado sobre o tema e que pode ser resumido na seguinte pergunta: podem os democráticos tolerar os antidemocráticos?
O dilema me permitia definir algumas características a respeito de democracia. Em primeiro lugar, de que há um ideal puro de democracia que concretamente não se pode atingir. Democracia plena em todos os seus aspectos é uma utopia importante para que as decisões a respeito das condições democráticas nos permitam agir.
Em segundo lugar, é preciso entender que a resposta a respeito da presença ou ausência de democracia num país não é binaria: existe e/ou não existe. Assim como não é efeito de um cálculo racional: com essas condições temos uma democracia, sem elas, não. Há uma seria de, digamos, tonalidades e/ou possibilidades de exercício de democracias dentro de um leque de deliberações que permitem a ação das maiorias e/ou não permitem determinados limites de defesa política e ideológica.
3.
Quando terminei minha tese, porém, tinha compreendido algumas ideias e questões históricas que mudaram minhas conclusões. Não em relação ao conceito geral de democracia. Mas, no que diz respeito aos seus dilemas. Entendi que há um princípio balizar da democracia que apresenta seus limites: sua própria sobrevivência enquanto sistema de garantias de direitos as minorias. Se este princípio estiver ameaçado por um grupo e/ou movimento, é preciso reagir a ele com todas as forças das instituições.
A democracia não apenas pode, como deve, reagir contra movimentos políticos antidemocráticos. Então, não só é legitimo proibir a organização de um partido nazista como é dever da democracia – baseada no argumento de que não pode este regime permitir a institucionalização de um aparelho que propõe destruir um dos seus pilares básicos: o direito da minoria.
Então, qualquer ação que tenha por objetivo a supressão através da força de movimentos de minoria, deve ser condenada pelas instituições democráticas e punida de modo que não possa existir ou ter condições para manifestar esses ideais. Portanto, só há uma lei que obriga a democracia restringir direitos: quando está diante de movimentos políticos totalitários.
Cito os bacharéis do parlamento brasileiro porque eles entendem muito bem do primeiro pilar da construção democrática (os direitos e garantias a respeito das deliberações), mas pouco do segundo (a defesa e a garantia dos direitos fundamentais coletivos) que obriga a democracia reagir em relação aos antidemocráticos.
Para os juristas que tem se manifestado na opinião pública brasileira da atualidade, democracia não é muito mais que o respeito ao devido processo legal. Não poderia ser diferente ao que diz uma especificidade da ciência jurídica. Mas, o rito processual é algo específico que não determina os elementos centrais da história política de um país.
4.
Veja o que está em questão no Brasil hoje: não é apenas o julgamento de um golpe contra um governo. Mas, a concepção por detrás desse grupo que não reconhece o direito do outro de existência e de manifestação política. Que a maioria parlamentar define tudo. Para os bolsonaristas, o direito da maioria é a democracia. Vence, tem maioria, se permite suprimir a minoria.
O bolsonarismo não é apenas um regime autoritário, é uma proposta de hegemonia política baseada na opressão das forças que a fazem oposição. Destruir o contraditório como propõem é destitui a democracia. Hoje isso se aplica a política. Num futuro próximo pode se aplicar a religião também… e assim pode seguir de esfera em esfera de valor. Portanto, quando falamos do bolsonarismo, (que agem contra as instituições e se valem do direito da maioria para oprimir a minoria), ou as instituições democráticas agem com rigor, ou a democracia está acabada.
Nenhum regime autoritário, ditatorial, opressor começa com uma defesa fundada nos valores da ditadura. Todos defendem alguma ideia de democracia. Ou sua própria ideia de democracia. Mas, na prática, exercitam a ditadura da maioria ou constroem subterfúgios dentro das instituições para tornar suas decisões majoritárias e oprimir grupos menores. Para ser tornar uma ditadura é preciso parecer ser democrático.
Pode ser que as ditaduras tenham, em algum momento a maioria dos votos. Pode ser que em outros momentos, excluam parte dos eleitores para ter a maioria dos votos. Em um ou em outro caso, são ditaduras da mesma forma. Nascem da defesa de valores consagrados.
O fato da oposição no Brasil hoje ter a maioria dos votos no Parlamento para aprovar a anistia, não quer dizer que esta seja uma deliberação legal e de acordo com as regras da democracia. É apenas um disfarce de legalidade. Sabemos que isso pode confrontar o Legislativo com o Judiciário em uma grande crise institucional. Nesses casos, o judiciário (que não tem votos nem base popular) costuma retroceder.
Finalmente, que fique claro: não haverá democracia se aprovada a anistia. Não é uma ação democrática ou sequer legal. Aprovar a anistia é um ato contrário a própria sobrevivência da democracia. Essa anistia é um salvo-conduto ao aprisionamento da democracia pelas forças autoritárias. Em primeiro lugar, parece que está na esfera da legalidade é um indicio da sua maledicência. Porque parece seguir os trâmites legais, mas os segue no sentido de aprisionar as instituições, não defendê-las.
Aprovar uma emenda de anistia é o mesmo que permitir que os setores antidemocráticos sejam alimentados para que, em seguida, tomem as rédeas do governo para reivindicarem como majoritários para conduzam a maioria à ditadura. É a asfixia do regime: impedindo-o de reagir contra aqueles que querem sua morte. É a ingenuidade de supor que a proposta destrutiva de autocratas possa limitar-se a respeitar algum princípio. Condenar os golpistas não é apenas uma defesa de uma concepção de mundo ou uma defesa de ideais. É a democracia se manifestando e atuando segundo a lei da autopreservação.
Luís Fernando Vitagliano é doutor em “Mudança social e participação política” pela EACH-USP. Autor, com Marcio Pochmann, do livro O atraso do futuro e o “homem cordial” (Hucitec).