Márcio Luiz Miotto – A Terra é Redonda – 01/05/2025
A universidade brasileira está sendo afetada pela ausência, cada vez mais notável, de uma cultura leitora e acadêmica
É notório que a universidade brasileira sofre diversos ataques externos. Mas há algo ocorrendo dentro dela e que talvez ofereça outros perigos para sua própria existência. Trata-se da ausência, cada vez mais notável, de uma cultura leitora e acadêmica.
A falta de cultura leitora diz respeito à notável repulsa (sistemática? crescente?) de muitos universitários em enfrentar os textos, argumentos, deduções de fórmula, memorizações de observação (enfim: desafios, lógicas internas, problemas inerentes aos conteúdos que estudam), fazendo com que o “ensino superior” se transforme numa série de conteúdos e programas rasos, cabíveis em manuais simplificados e plataformas facilmente voltadas ao online.
Essas generalizadas faltas de base e/ou negligência, que provavelmente têm origem fora da universidade (via redes sociais, o “horror ao textão” cultivado nos últimos anos, a pandemia, os problemas de formação etc.), sob certos aspectos tornam-se interiores a ela, pois com frequência as universidades encontram dificuldades para combater certo senso comum não-leitor e atitudes refratárias ao estudo. Na universidade dever-se-ia aprender a ler textos, linguagens e argumentos complexos, a deduzir fórmulas, a (re)construir lógicas e arquiteturas conceituais etc.
Disso advém a corrosão da cultura acadêmica. Sem um senso comum leitor de base ou certa disposição espontânea para uma cultura leitora, as demais práticas constituintes da universidade tendem a esfarelar ou implodir. E a universidade tende a se transformar, ou na melhor das hipóteses a se confundir com outros tipos de ensino não necessariamente universitários, tais como o técnico, o profissionalizante etc.
O resultado visível da erosão da cultura acadêmica é o enfraquecimento da pesquisa, da extensão, da assistência estudantil (a qual permitiria dedicação maior aos afazeres universitários), dos projetos acadêmicos ligados ao ensino (monitorias que deveriam ser iniciações à docência e não meras aulas de reforço, redução das pesquisas monográficas, rarefação dos eventos científicos ou de bolsas de atividades acadêmicas etc.), enfim, daquilo que compõe a universidade no que ela tem de público e universalista.
Essas ameaças à cultura acadêmica talvez sejam reforçadas por algumas reações das próprias universidades a isso. Um exemplo notável é a perspectiva que reduz a pedagogia ao pedagogo, isto é, que individualiza o ensino na simples figura do professor, fazendo dele uma espécie de self made man, de “empresário de si”, enfim, transformando-o em algo como um animador de plateia, alguém cujas estratégias devem necessária e suficientemente garantir a educação (pois a pedagogia, enfim, reduziu-se ao pedagogo).
Se não há um cenário de fundo delimitando o que significa estudar e quais deveriam ser os horizontes de estudo, ou mesmo se esse cenário perdeu seu valor, ao fim resta à figura individual do professor a ingrata tarefa de transformar a pedagogia em picadeiro (sob cenários que, aliás, também são pressionados pelo tema da evasão das universidades). A partir daí, as fórmulas de sucesso e insucesso docente tendem a se resumir em receituários pessoais, convicções de ego, perfis e canais de rede social e expressões do tipo “é, mas comigo (não) é assim”.
A redução da pedagogia ao pedagogo ocorre devido ao apagamento de uma cultura de fundo, aquela que serviria de base para formar eventuais projetos pedagógicos e reunir atuações individuais. E essa redução, bem como esse apagamento, são especialmente vistos nas disciplinas de ciências humanas.
Nas ciências naturais, por exemplo, há debates recorrentes entre aqueles professores que não abrem mão da forma e do rigor (pois afinal, uma fórmula independe de circunstância) e os outros que defendem que o rigor não poderia ser destituído de preocupações pedagógicas ligadas aos perfis dos alunos. Seja qual for o desfecho, ambos os termos desses debates dizem respeito (ou deveriam dizer) a critérios pedagógicos de fundo, os quais presumivelmente servem de horizonte à atuação de qualquer profissional da área, independente de suas escolhas pedagógicas individuais.
Afinal, quer se penda para um ou para o outro lado desse debate, algo permanece o mesmo: um estudante que se depara com uma matéria de ciências exatas sabe que ali haverá questões direta ou indiretamente ligadas a cálculos, experimentos etc., cabendo à pedagogia a pergunta sobre como oferecer melhor essas racionalidades.
Algo correlato poderia ser visto nas matérias de ciências biológicas: a não ser que o professor ludibrie o aluno, independente do cenário uma matéria como a de anatomia, para ser razoavelmente ensinada, sempre exigirá uma racionalidade analítica detalhada, baseada em métodos de observação e certos rituais de análise e memorização. Sem o que, caberia imaginar um oftalmologista que desconhece a anatomia do olho, um neurocientista que desconhece as localizações cerebrais, um fisioterapeuta que desconhece a anatomia do corpo etc.
Em humanidades, entretanto, o apagamento de um horizonte leitor e acadêmico de fundo, e a redução da pedagogia ao pedagogo, por vezes são ainda mais visíveis, dando vazão a práticas – e juízos – bem diversos. É o que alimenta preconceitos como o de que os cursos de humanas seriam sem objetividade, eivados de meras opiniões (“cursos-coxa”, como se diz em algumas gírias paulistas), ou ainda desnecessários ou supérfluos.
Ou em via contrária, há também os juízos de que matérias de humanidades seriam atraentes não devido ao rigor ou ao conteúdo, mas a motivadores ocasionais e arbitrários como as discussões em grupo, os momentos de “descontração” ou o carisma individual do professor, a emulação de memes, a confusão entre a divulgação científica (tão bem feita por gente como Leandro Karnal ou Mario Cortella, dentre outros) e o estudo da ciência etc.
Essa individualização das estratégias, unida ao apagamento da cultura do texto, é muito bem descrita por textos como O método da leitura estrutural, de Ronaldo Macedo (MACEDO, 2007). A simples necessidade de que métodos de leitura sejam ensinados aos ingressantes do estudo superior evidencia que a leitura já não é um item óbvio e natural (como o era na época das fotocópias – pois mesmo se as pessoas apenas fotocopiassem, isso não disfarçava que havia uma injunção materialmente dirigida à leitura generalizada…), e o esforço dos professores para que os alunos leiam significa, mais uma vez, a simples inexistência de uma cultura difundidamente leitora.
Mas há mais: Ronaldo Macedo demonstra em seu texto algumas pesquisas nas quais o Brasil teria ficado entre os últimos lugares no quesito “leitura” (MACEDO, 2007, p. 14). Motivos? Não se trata de sustentar o velho preconceito da diferença entre as escolas “ricas” versus as “pobres”, pois Macedo destaca que os mesmos prejuízos ocorreriam em ambas. Trata-se, sim, de mostrar que quando o brasileiro estuda, e mesmo nas ditas “melhores” escolas, ele não estuda para compreender e articular a lógica de um texto, e sim para resolver questões demandadas por testes (isso quando, pelo contrário, não se abandona à simples opinologia).
Em miúdos: muitos brasileiros lêem textos (quando lêem) de forma apenas provocada e dirigida, isto é, de modo heterônomo e orientado por terceiros, como se respondessem a questões de teste, e isso em áreas nas quais escolheram estudar. Isso não à toa lembra as críticas de Richard Feynman ao ensino de física brasileiro dos anos 1950, nas quais “os estudantes haviam memorizado tudo, mas desconheciam o significado” de suas matérias (FEYNMAN, 2017).
Diante disso, para além do apagamento da cultura do texto e da redução das iniciativas a estratégias pedagógicas individuais, talvez não seja inútil lembrar que as ciências humanas, todas elas, também possuem uma cultura de fundo. Bastaria, para detectar essa cultura, retornar ao século XIX e à querela dos métodos dos alemães – a mesma que instaurou a psicologia científica (como a de Wilhelm Wundt), os debates sobre explicação versus compreensão desde Wilhelm Dilthey, as abordagens explicativas e compreensivas em sociologia, as contra-reações positivistas e assim por diante. Desde seu surgimento, seja subordinando-se às ciências naturais, seja – pelo contrário – apelando à sua irredutibilidade e especificidade, as ciências humanas não deixaram jamais de reclamar para si mesmas um espaço próprio.
E se há alusão a um espaço próprio, isso significaria no mínimo que há algo como um campo (por mais disperso que seja, e é, o que não significa que isso não tenha uma história e uma lógica), com contribuições e racionalidades específicas. Dentro das ditas “ciências humanas”, por mais diferenciado que seja um estudo sobre dança contemporânea, sobre uma tribo originária ou sobre história da filosofia, tem-se o pressuposto mais geral de que tais estudos não implicam imediatamente o mesmo tipo de racionalidade daquele praticado por um físico ou um biólogo. O que não significa dizer que ali não exista um outro rigor, encontrável na especificidade de cada ramo das ciências humanas, com seu estudo, textos e lógicas próprios.
Há, sim, uma cultura de fundo em humanidades, e ela perpassa o rigor conceitual (mesmo que não seja o do cálculo, o do experimento ou o das descrições anatômicas) e a análise textual, bem como outros métodos desenvolvidos em cada área específica. O que, mais uma vez, supõe o seguinte: para além das escolhas individuais dos docentes, há ou deveria haver um cenário de fundo, uma figura de rigor, por mínima e abrangente que seja, está sim a orientar as atuações individuais. Grosso modo, tal como se dizia no início do século XX, independente das ciências humanas desejarem ou contestarem uma objetividade naturalista, elas não deixam de ser, cada qual a seu modo, ciências “de rigor”.
Isso deveria dizer respeito, como se ilustrava mais acima, a uma cultura leitora e acadêmica, aquela que permitiria um estudante apontar o dedo e dizer “isso são humanidades” – sem reduzir a questão ao simples carisma do professor ou aos preconceitos de frouxidão de conteúdo. Se um estudante de exatas reconhece sob o fundo de suas matérias o cálculo como uma das racionalidades inerentes ao campo, e o de biológicas reconhece o raciocínio analítico-anatômico, por que o de humanidades muitas vezes, ao apontar o dedo, aponta ao professor para falar bem ou mal do assunto, e quando aponta ao campo costuma enxergar incertezas (isso quando enxerga algo)?
Não deveria haver um reconhecimento geral de que, diante de uma matéria de humanidades, haveria ali uma racionalidade baseada por baixo em análise de textos e rigor conceitual? Pois estes dois componentes – o rigor frente ao texto e aos conceitos – são, no fim das contas, comuns em todas as áreas.
Um aluno de ciências humanas que vai estudar estatística reconhece espontaneamente que ali haverá cálculo. Sendo isso dado em seu currículo, ele também reconhece que, mesmo que não utilize estatística depois, sua formação será precarizada caso não aprenda, pois aquilo lhe servirá de componente formativo. E o mesmo ocorre para quem precisa estudar peças anatômicas ou observar tecidos e células num microscópio.
Afinal, universidade não se reduz a curso profissionalizante. Mas por que, então, certa dúvida sobre o correlato disso em ciências humanas (e até em alguns cursos de formação)? Por que motivo, quando as matérias são de ciências humanas, a necessidade de ler textos e analisar conceitos (no nível mais amplo e geral, pois sabe-se que não se reduz a isso) aparece em tantos cenários como algo não espontaneamente óbvio? Por que aparece como algo que até poderia ou deveria ser minimizado ou desviado por outros subterfúgios?
De todo modo, conforme sugerido, a crise do rigor, ou da cultura acadêmica, não pertence apenas às humanidades (a citação acima de Feynman que o diga). E a crise das universidades não é apenas interna, embora internamente também diga respeito a certa erosão de uma cultura leitora e acadêmica.
Mas a resolução dessa crise não poderia ser reduzida a critérios individualizantes, pois estes são os mesmos que compõem o problema. Há quem gostaria de desfazer de vez o caráter acadêmico das universidades, reduzi-las a cursos online sob conteúdos pré-formatados, sem pesquisa e extensão.
Igualmente, há quem queira reduzir a atuação docente a uma espécie evolucionismo ingênuo (abandonando cada professor a uma fórmula de “esforço” e “eficácia” individuais, o que inevitavelmente redunda em comportamentos de sobrevivência e manada, cartéis e alianças de ocasião para amenizar o primado da competição), há quem queira reduzir a pedagogia ao pedagogo. Pois aí estão também os vínculos de trabalho precarizados e provisórios, bem como as inviabilizações da pesquisa e da extensão a longo prazo. A redução da pedagogia ao pedagogo e a individualização dos processos de ensino contribuem, enfim, para aquilo mesmo que se deveriam combater.
O reconhecimento de que cada campo tem especificidades próprias, a defesa de cada racionalidade inerente ao campo, a composição de cenários pedagógicos de fundo, talvez não acabem com a erosão da cultura acadêmica e leitora (pois muito dela é, como se disse, exterior à universidade). Mas a universidade, e cada docente, não são passivos diante disso. A maior prova é a de que a escolha mais simples ocorre por vezes sob a via individual. Mas afinal, isso também prova que há escolha…
Marcio Luiz Miotto é professor de psicologia na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Bibliografia
FEYNMAN, R. Richard Feynman: sobre a educação no Brasil. Medium, 2017.
FEYNMAN, R. Surely You’re Joking, Mr. Feyman! [s.l: s.n.].
MACEDO, R. O método de leitura estrutura Cadernos Direito GV, v. 4, n. 2, 2007.