P: As primeiras medidas da administração Obama para combater a crise econômica, somadas às iniciativas da administração Bush, serão suficientes para debelar a crise?
R: No meio desta confusão, acho que só existem três coisas que podem ser afirmadas com algum grau de certeza. A primeira é que, faça o que faça, o governo americano será absolutamente decisivo para a evolução da crise em todo mundo. A segunda é que neste momento todos os governos envolvidos estão fazendo a mesma aposta e adotando as mesmas estratégias monetárias e fiscais, e aprovando “pacotes” sucessivos (e até agora impotentes) de ajuda à estabilização e reativação do sistema financeiro e de estímulo à produção e ao emprego, junto a um aumento generalizado – mas ainda disfarçado – das barreiras protecionistas. E todos os governos estão se propondo aumentar o rigor da regulação dos seus agentes e mercados financeiros. A terceira coisa que se pode afirmar com toda certeza é que ninguém, absolutamente ninguém sabe se estas políticas darão certo.
P: Este novo consenso poderia ser considerado uma vitória do pensamento keynesiano, e uma retirada definitiva da ortodoxia monetarista e neoliberal?
R: Não, não acho. Haverá resistência e haverá desintegração social, mesmo que elas não assumam a forma de uma resistência consciente. E se a crise se prolongar por muito tempo, deverão se multiplicar as rebeliões e as guerras civis, sobretudo nas zonas de fratura do sistema mundial. E não é impossível que em algumas destas rebeliões se recoloquem objetivos socialistas. Mas com certeza não haverá uma mudança de “modo de produção” em escala mundial, nem tampouco uma “superação” hegeliana do sistema inter-estatal capitalista. Pelo contrário, do meu ponto de vista, nesta hora de “estreitamento de oportunidades” haverá uma fuga para frente e uma intensificação da corrida imperialista que já estava em curso nestes últimos 20 anos.
R: Não creio que o papel internacional do dólar seja afetado ou alterado como conseqüência desta crise. Basta você olhar para a chamada “fuga para o dólar” que se acelerou depois de setembro de 2008, como resposta à crise financeira americana. Este processo fica ininteligível enquanto não se entenda o funcionamento do sistema monetário internacional que meu colega Franklin Serrano apelidou, já faz alguns anos, de sistema “dólar-flexível”. Desde a década de 1970, os EUA se transformaram no “mercado financeiro do mundo”, e o seu Banco Central (FED), passou a emitir uma moeda nacional de circulação internacional, sem base metálica, administrada através das taxas de juros do próprio FED, e dos títulos emitidos pelo Tesouro americano, que atuam em todo mundo, como lastro do sistema “dólar-flexível”. Por isto, como diz Serrano, a quase totalidade dos passivos externos americanos é denominada em dólares e praticamente todas as importações de bens e serviços dos EUA são pagas exclusivamente em dólar, configurando um caso único em que um país devedor determina a taxa de juros de sua própria “dívida externa”. Uma mágica poderosa e uma circularidade imbatível, porque se sustenta no poder político e econômico norte-americano. Agora mesmo, por exemplo: para enfrentar a crise, o Tesouro americano emitirá novos títulos, mas estes títulos serão comprados pelos governos e investidores de todo mundo, porque seguem sendo uma aplicação segura para todo o mundo e inclusive a China, como diz o influente economista Yuan Gangming, ao garantir que “é bom para a China investir muito nos EUA; porque não há muitas outras opções para suas reservas internacionais de quase US$ 2 trilhões, e as economias da China e dos EUA são interdependentes”.
Não creio. Nada do que está acontecendo tem a ver com qualquer tipo de vitória ou derrota teórica. Trata-se de uma reação emergencial e pragmática frente à ameaça de colapso do poder dos estados e dos bancos, e como conseqüência, dos sistemas de produção e emprego. Foi uma mudança de rumo inesperada e inevitável, que foi imposta pela força dos fatos, independente da ideologia econômica dos governantes que estão aplicando as novas políticas, e que na sua maioria ainda eram ortodoxos e liberais até anteontem. É como se estivéssemos assistindo a versão invertida da famosa frase da senhora Thatcher: “there is no alternative”. Só que agora, do meu ponto de vista, esta nova convergência aconteceu sem maiores discussões teóricas ou ideológicas e sem nenhum entusiasmo político, ao contrário do que aconteceu com a “virada” liberal-conservadora dos anos 80/90, que atravessou todos os países e todos os planos da vida social e econômica. A ideologia econômica liberal não previu e não consegue explicar a crise que ela provocou, e como conseqüência não tem nada para dizer nem propor neste momento. Por isto mesmo, as idéias ortodoxas e liberais saíram do primeiro plano, mas não morreram nem desapareceram; pelo contrário, permanecem atuantes em todas as frentes e trincheiras de resistência às políticas estatizantes que estão em curso. Uma resistência que tem crescido a cada hora que passa, dentro e fora dos EUA, apesar de ainda não ter sido devidamente identificada e diagnosticada.