Em suma, Trump tentou um golpe
Folha de São Paulo, 19;01/2021 – Extraído de Financial Times
O que aconteceu foi isto: o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirmou durante meses, sem provas, que não poderia ser derrotado em uma eleição limpa.
Assim sendo, ele atribuiu sua derrota a uma eleição fraudulenta. Quatro em cada cinco republicanos ainda concordam com isso. O presidente pressionou autoridades para reverter os votos em seus estados.
Ao falhar, tentou forçar seu vice-presidente e o Congresso a rejeitarem os votos dos colégios eleitorais apresentados pelos estados. Ele incitou um ataque ao Capitólio para pressionar o Congresso a fazer isso. Cerca de 147 congressistas, incluindo oito senadores, votaram por rejeitar os votos dos estados.
Em suma, Trump tentou um golpe. Pior, a grande maioria dos republicanos concorda com seus motivos. Um número enorme de legisladores federais os acatou. O golpe falhou porque os tribunais recusaram casos sem evidências e as autoridades federais fizeram seu trabalho. Mas dez ex-secretários de Defesa sentiram a necessidade de advertir os militares para não se envolverem.
Em março de 2016, antes que Trump tivesse ganhado a nomeação republicana, afirmei que ele era uma séria ameaça. Estava evidente que não tinha qualquer das qualidades exigidas de um líder de uma grande República. Mas, como se viu, ele tinha o defeito redentor da grave incompetência.
Como você reagiria se lhe contassem a seguinte história sobre uma democracia: a “grande mentira” sobre a eleição fraudada que o mandatário claramente perdeu; a mídia partidária que disseminou essa mentira; os eleitores que acreditaram nela; o ataque ao Legislativo por uma turba insurgente; e os legisladores que afirmaram que a eleição devia ser suspensa em resposta à dúvida que essas mentiras haviam criado? Você concluiria que ela estava em perigo mortal.
Os Estados Unidos não são uma sociedade majoritária. Pequenos estados têm poder de voto desproporcional, e alguns estados têm uma história de supressão de votos racista. Mas as eleições são feitas para decidir quem detém o poder. Como isso pode funcionar se a maioria dos eleitores de um dos dois partidos principais acredita que as eleições perdidas foram roubadas? Como pode o poder ser ganho pacificamente e detido legitimamente? O que resta como fator de decisão, senão a violência?
Como afirma Timothy Snyder, de Yale: “A pós-verdade é o pré-fascismo, e Trump foi nosso presidente pós-verdade”. Se a verdade é subjetiva, a força deve decidir. Não pode haver verdadeira democracia, somente gangues rivais de bandidos ou a gangue dominante do chefão.
Os otimistas teriam de concordar que este tem sido um momento muito ruim para a credibilidade mundial da República americana, para deleite de déspotas de toda parte. Mas, eles podem afirmar, ela passou pelo teste de fogo e agora está mais uma vez pronta para renovar sua promessa, no país e no exterior, como fez nos anos 1930 sob Franklin Roosevelt, em um momento ainda mais perigoso que hoje.
Infelizmente, não acredito nisso. O Partido Republicano está podre com insurreição. Assim que eu escrever isto, sei que pessoas vão começar a se queixar da violência e dos socialistas da esquerda. Mas absolutamente não há um equivalente a Trump entre os líderes democratas. Os pré-fascistas estão na direita.
Pior, Trump não é propriamente a doença, mas um sintoma. James Murdoch declarou recentemente que “O saque do Capitólio é a prova sólida de que o que pensávamos que era perigoso o é de fato, muito, muito. Esses canais que propagam mentiras para seu público libertaram forças insidiosas e incontroláveis que estarão conosco durante anos”.
Estaria ele se referindo à Fox News, a criação venenosa de seu pai, Rudolph?
O papel da bolha da mídia de direita ao criar o mundo da pós-verdade do trumpismo é evidente. Também o é a longa marcha financiada por plutocratas através das instituições. O Judiciário que isso criou produziu a cidadania armada, as contribuições políticas invisíveis e a crescente desigualdade que hoje põem em risco a estabilidade política.
Mais perturbador é como a elite republicana usou como arma a política da divisão racial, uma parte tão temível da história dos EUA, para atrair o apoio de eleitores de que precisavam para cortes de impostos e desregulamentação. Pessoas brancas sem diploma universitário estão experimentando “mortes por desespero” prematuras. Mas os liberais e as minorias étnicas são os verdadeiros inimigos da direita.
Enquanto as políticas da direita continuarem como estão, o perigo revelado desde a eleição não vai evaporar. Os congressistas republicanos vão tentar garantir que o novo presidente, Joe Biden, fracasse. Os fanáticos e carreiristas continuarão combinados. A propaganda de direita lunática continuará jorrando. Que tipo de pessoa se imagina que tal movimento escolherá como próximo candidato presidencial? Um conservador tradicional como Mitt Romney?
Trump mostrou o caminho. Muitos tentarão segui-lo. Como o objetivo de tantos republicanos é fazer o governo federal fracassar e enriquecer os ricos, é assim que sua política deve funcionar.
Chegamos a um momento de inflexão na história. Os Estados Unidos são a República democrática mais poderosa e influente do mundo. Apesar de todos os seus erros e defeitos, foi o modelo global e protetor dos valores democráticos. Sob Trump, isso desapareceu. Ele foi o opositor constante dos valores e aspirações incorporados em um ideal republicano.
Trump falhou. Além disso, depois de sua tentativa de golpe, ninguém pode negar que sua ameaça era real. Mas isso não basta. Se a política americana se desdobrar como parece provável que faça, haverá outros Trumps. Um deles, mais competente e impiedoso, poderá ter êxito. Para que isso seja evitado, a política dos EUA deve agora mudar para o respeito à verdade e uma versão inclusiva de patriotismo.
Roma foi possivelmente a última superpotência republicana. Mas os ricos e poderosos destruíram aquela República, instalando uma ditadura militar, 1.800 anos antes do nascimento dos EUA. A República americana sobreviveu ao teste de Trump. Mas ainda precisa ser salva da morte.
Martin Wolf
Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.