José Roberto Castro, 21 de julho de 2019 – NEXO Jornal
Na mais completa pesquisa sobre distribuição de renda no Brasil, pesquisador Pedro Ferreira de Souza analisa nove décadas de concentração entre os mais ricos.
O Brasil é um país extremamente desigual, mas nunca foi muito melhor ou pior do que é hoje. Esta é uma das conclusões de “Uma história de desigualdade”, livro do pesquisador do Ipea Pedro Ferreira de Souza que analisa a concentração de renda no país entre 1926 e 2013. A obra é a adaptação da tese de doutorado do pesquisador, premiada pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e pela Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais) em 2017 e aclamada entre estudiosos do tema.
O sociólogo Celso Rocha de Barros, por exemplo, chamou “Uma história de desigualdade” de “o melhor trabalho produzido pelas ciências sociais no país nos últimos anos”. Além de analisar a desigualdade no Brasil por um longo período, a obra de Ferreira de Souza tem inovações.
O pesquisador seguiu uma tendência recente no mundo de utilizar dados do imposto de renda para ajudar a medir a concentração de renda entre os muito ricos – o principal foco do estudo. No passado, se utilizava apenas pesquisas por amostragem como a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), que têm dificuldades de medir a renda no topo da pirâmide.
Um levantamento de um período tão longo utilizando também dados do imposto de renda é inédito no Brasil. E algumas das conclusões a que o pesquisador chegou contrariam o que se pensava antes.
Para Ferreira de Souza, a concentração no Brasil “não obedeceu modelos pré-definidos: não houve a história de primeiro crescer pra depois distribuir, nem é verdade que a desigualdade está sempre piorando”. Uma das polêmicas do estudo é afirmar que a desigualdade não caiu drasticamente durante o governo Lula, mesmo que os programas de transferência de renda tenham tirado milhões da pobreza.
A pesquisa também percebeu que o país vive ondas de concentração de renda e que os dois piores períodos para a desigualdade aconteceram nas duas ditaduras do período analisado: o Estado Novo e a ditadura militar. Durante todo o período, a renda do 1% mais rico variou em torno dos 25% do total. Já o 0,1% mais rico ficou com algo próximo de 10% da renda nacional.
Pedro Ferreira de Souza conversou com o Nexo sobre as conclusões do livro, sobre a influência do Estado na concentração de renda e sobre as possibilidades de o Brasil se tornar um país menos desigual no futuro. A seguir, os principais trechos.
Qual a origem histórica da desigualdade no Brasil?
PEDRO FERREIRA DE SOUZA A gente aprende desde muito cedo que a colonização é o que determina o que a gente é, que a gente está até hoje pagando o preço de ser fundado na escravidão e na grande propriedade. Recentemente passou a se perceber que no início do século 20 a desigualdade da América Latina era muito parecida com a da Europa e lá mudou muito rapidamente. Então a questão não é só entender os motivos pelos quais a América Latina é assim, mas também os motivos pelos quais ela continua assim, por que perdeu o bonde da história. Os resultados da tese dão algum apoio a essa hipótese de que não era tão diferente no início do século 20. Claro que há ressalvas, estimativas de distribuição de renda são complicadas em uma sociedade em que uma parte grande da população é escrava. É uma desigualdade qualitativamente diferente que não pode ser ignorada. Mas o que a gente consegue ver é que mesmo países que naquele momento eram muito desiguais e que pareciam que não mudariam, conseguiram ser diferentes em 20 anos. Então no Brasil podemos dizer que a desigualdade foi estruturada muito alta a partir desse processo de colonização, mas também o país perdeu diversas oportunidades de entrar numa via diferente. A origem pode estar lá atrás, mas as saídas que a gente não tomou foram muitas. A própria interrupção da normalidade democrática contribuiu para isso.
Há alguma relação entre democracias e ditaduras com a concentração de renda no topo?
PEDRO FERREIRA DE SOUZA Há uma relação. Acho que a história é mais complexa do que simplesmente dizer que democracia é menos desigualdade e ditadura é mais. Mas em última instância tem sim uma relação. No Brasil, e em outros países a gente também vê isso, a ditadura foi bem mais eficiente em piorar a desigualdade do que a democracia foi boa para reduzir. No geral, o aumento rápido em períodos de ditadura é muito nítido. Na Alemanha nazista, no Chile de Pinochet também houve aumento de concentração no topo. Mas há outros fatores. No caso do Estado Novo, acho que a guerra foi muito importante para aquele aumento da desigualdade. Na ditadura militar, o aumento é contínuo nos dez primeiros anos, mas até ali houve um limite, o que mostra que em nenhum lugar a desigualdade seguiu crescendo para sempre. No governo Geisel começa inclusive uma preocupação com a redução da desigualdade. Nos anos 1980, com crise e inflação, a desigualdade inclusive piora. Nos anos 90 tem uma queda provavelmente associada ao controle da inflação. Mas nos últimos anos, olhando só a concentração de renda no topo, na melhor das hipóteses ela está estável.
É possível identificar como o Estado brasileiro operou no aumento ou redução da desigualdade?
PEDRO FERREIRA DE SOUZA O Estado é um agente central da vida em sociedade. Justamente dessa coincidência de flutuação da desigualdade conforme eventos políticos marcantes veio o empurrão para eu tentar interpretar os resultados sob essa luz. Obviamente não dá para avaliar empiricamente tudo, mas dá para tentar entender quais foram as políticas e quais os efeitos plausíveis sobre a distribuição de renda. São abundantes exemplos de políticas que obviamente favorecem mais alguns grupos do que outros. Nas duas ditaduras, há exemplos caros. No Estado Novo, o fechamento total do regime foi um fechamento à direita, anticomunista, e com uma aliança muito forte com fatias do empresariado – aliado a severa restrição de manifestação fora do aval do regime. A CLT foi promulgada sem os trabalhadores rurais, que eram a maioria. E mesmo assim, com vários direitos trabalhistas já efetivados, durante a guerra houve a suspensão desses direitos em várias indústrias que seriam estratégicas. No fundo, era um momento de complicação no comércio mundial, não tinha como importar matéria prima, mas tinha demanda até por manufaturados. A solução foi explorar ao máximo a capacidade instalada, inclusive a força de trabalho, com arrocho salarial. Assim como em 1964 houve um movimento parecido. Perseguição a todos os movimentos de oposição, uma interferência profunda no mercado de trabalho determinando regras de reajuste de salário mínimo e de acordos coletivos. A política oficial, reconhecida só depois de forma meio envergonhada, era dar reajustes bem abaixo até mesmo da inflação. E esse tipo de arranjo também é possível em determinados momentos até em democracias. O Estado está o tempo todo dando vantagens e desvantagens para diferentes grupos, não é à toa que o Brasil dos últimos anos é uma grande fila de empresários batendo na porta de gabinete.
Sua tese conclui que a desigualdade se mexeu muito pouco nas últimas décadas. Mas falando sobre a renda e sobre as condições de vida dos mais pobres, houve alterações?
PEDRO FERREIRA DE SOUZA Houve mudanças, é importante separar as coisas. O que entusiasmou todo mundo era que o Brasil estava tendo um momento de crescimento, com redução da pobreza e redução da desigualdade. Uma coisa inédita e que parecia fantástica. O que aconteceu foi que tivemos crescimento de renda, com certeza a pobreza diminuiu bastante. Em medidas de desigualdade a mudança até existe, mas ela é bem mais fraca do que a gente imaginava. É uma mudança modesta. Quem avançou muito foram os mais pobres e os muito ricos, o topo e a base da pirâmide avançaram mais do que quem está no meio. Então quem está no meio, no sentido estatístico mesmo do termo, acabou sendo apertado. Viu os pobres chegarem mais perto e os ricos ficarem um pouco mais longe. Embora, em termos absolutos, em real no bolso, todo mundo tenha tido algum ganho. A pobreza diminuiu muito até o início da crise, com políticas desde os anos 1990, nos anos 2000 mais ainda. É uma melhora significativa, é muito importante. Na desigualdade é que a mudança é menor do que se imaginava antes.
Há algum tipo de indício sobre os efeitos da crise de 2014 na desigualdade no Brasil?
PEDRO FERREIRA DE SOUZA A resposta definitiva vai demorar alguns anos, até por um certo azar de não podermos comparar períodos diferentes porque o IBGE fez uma mudança metodológica nas pesquisas, já estava prevista há anos. Interrompe a série, não se compara 2017 com 2011. Mesmo antes da crise, mesmo nos dados mais otimistas que não contavam o Imposto de Renda, já havia uma queda mais lenta da desigualdade, uma leve estacionada. Com a crise, o cenário mais provável é que houve algum aumento da desigualdade e certamente um aumento da pobreza. Mas a desigualdade não deve ser também explosiva porque todo mundo empobreceu com essa crise, foi muito pesada. Catastrófica é a queda da renda média, na desigualdade devemos medir alguma piora. Para desigualdade, mais do que os efeitos do auge da crise, pode ser importante ver como vai se dar a recuperação dessa crise. Sobre isso a gente não sabe nada ainda e isso vai ditar as perspectivas dos próximos anos, do que vai ser o novo normal.
Taxar mais os mais ricos seria o principal mecanismo de diminuição da desigualdade? Quais seriam os parâmetros e os mecanismos adequados?
PEDRO FERREIRA DE SOUZA A tributação é a bola da vez do debate. O Brasil tem problema fiscal, precisa aumentar a arrecadação ou cortar gastos, pode pelo menos distribuir de um jeito mais justo o fardo da arrecadação. Para tentar diminuir a desigualdade, a reforma tributária é a ferramenta mais óbvia – desde que a gente entenda que não vai ser isso que vai resolver magicamente nossos problemas de distribuição de renda. Se fizer uma boa reforma – que aumente tributação de renda e patrimônio, que desonere o consumo dos mais pobres e diminua as distorções econômicas causadas pelos impostos indiretos – provavelmente o país vai melhorar. Mas isso sozinho não transforma o Brasil na França. O governo federal poderia mexer no imposto de renda, que funciona muito bem, mas os parâmetros podem ser muito melhorados para fazer do imposto mais progressivo. Aumentar a base do que é rendimento tributável é a primeira coisa. Hoje há uma anomalia de que o tributável é a menor parte da renda dos mais ricos – esses têm muito rendimento isento ou muito rendimento que é tributado na fonte numa alíquota muito menor, como investimentos financeiros. Os rendimentos de capital são cada vez mais importantes para os mais ricos. Resolvido isso, há espaço para mexer nas alíquotas. A primeira aproximação seria manter as alíquotas atuais e criar novas acima de 27,5%. Outros países parecidos com o Brasil têm alíquotas entre 35% e 40%, não seria nada revolucionário chegar nisso. Outra possibilidade seria mexer nas deduções, dedução ilimitada com saúde, por exemplo. Há pessoas que só de dedução de plano de saúde têm mais do que o Estado gasta com dez famílias. Os estados podem mexer na tributação de heranças, os municípios podem criar progressividade no IPTU, que alguns já tentaram e a Justiça barrou. É politicamente difícil, mas poderia fazer o imposto ser mais bem usado. Arrecada-se menos com IPTU do que com IPVA no Brasil, tem o ITR que praticamente não existe em um país que tem um agronegócio extremamente produtivo. São debates às vezes muito técnicos e politicamente difíceis.
O seu estudo afirma que ‘não há casos bem conhecidos de países que tenham partido de um grau tão alto de concentração de renda no topo [caso do Brasil] e avançado de forma tranquila e gradual até percentuais próximos aos de um país europeu típico’. E, ainda, que ‘é razoável postular que a democracia pode servir mais para conter um aumento da nossa desigualdade do que para reduzi-lo’. Por meio de que mecanismos então você acha que pode ocorrer uma mudança relevante nesse quadro geral?
PEDRO FERREIRA DE SOUZA Não sei se sou pessimista ou cético demais. Mas dado que a gente não quer que nenhuma catástrofe aconteça, óbvio, é muito difícil um cenário em que a gente consiga uma evolução europeia em uma ou duas gerações. Acho que podemos melhorar, bastante, mas isso dependeria de algum tipo de coalizão política capaz de juntar interesses que são tão diversos no eleitorado numa única direção de reduzir muito a desigualdade. Isso parece muito pouco provável, considerando os grupos mais organizados no Congresso, por exemplo. São ligados a setores específicos da economia, corporações, grupos de interesse que não têm nenhuma receptividade a uma pauta dessas. E isso é dificultado pela própria desigualdade. A força de trabalho é tão heterogênea, é difícil achar bandeiras comuns muito explícitas. Por isso, toda eleição é promessa de genérica, não se vê alguém dizendo que vai defender um interesse específico e quem vai perder é o outro grupo. E isso não é uma exclusividade da democracia brasileira. Aqui parece um jogo de soma zero. Se por um lado se cria um programa que tem um bom resultado para uma clientela mais pobre aqui, por outro um outro grupo que se sente prejudicado vai lá e consegue reverter alguma regulação acolá. E assim vai seguindo. Não vejo o Brasil saindo do patamar de hoje e chegando daqui 30 anos num nível europeu, que também é desigual. Não é realista, pelo menos nada sugere que isso vá acontecer. As grandes transformações que o mundo viu no século 20 aconteceram em cenários extremos, como nas duas guerras. Essas mudanças não têm a ver só com a destruição que a guerra causa, com a inflação e destruição de capital. Tem a ver também com o fato de que os governos precisaram chamar boa parte da população para ir para o campo de batalha e morrer, mobilizar. E isso tem um preço, precisa de compensação. Os próprios impostos sobre renda e herança nasceram basicamente ligados a uma ideia de que todos tinham que contribuir para o esforço de guerra. Em alguns países houve limitação de quanto as empresas podiam lucrar durante a guerra. E essa era também acabou, com a tecnologia uma guerra não demanda de 10% a 15% da população.