A “Indústria Americana” e o novo modelo de trabalho

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Neste período de pandemia, instabilidades, incertezas e crescentes conflitos econômicos entre as maiores economias internacionais, o filme A Indústria Americana, ganhador do melhor documentário no Oscar deste ano, analisa grandes mudanças nas estruturas organizacionais das empresas, de um lado encontramos os modelos adotados nos países asiáticos e de outro os modelos que dominaram quase todo o século XX, mas perdeu centralidade no cenário internacional, mostrando impactos culturais das organizacionais dos grandes atores da economia global, para muitos, este será o grande conflito ou geopolítico contemporâneo.

Estamos num momento de novos conflitos geopolíticos, neste momento percebemos o crescimento da China na economia internacional, uma economia que, desde os anos 1980, vem ganhando centralidade na economia global. Inicialmente, percebemos uma economia produtora de produtos de baixo valor agregado, como produtor de grandes escalas produtivas, marcados com preços reduzidos e uma gigante capacidade produtiva, levando o país a ganhar espaço na indústria global. De um crescimento econômico com mais de 10% ano nos últimos quarenta anos, o país angariou grandes somas de recursos monetários internacionais, com isso, é atualmente o grande detentor das maiores reservas mundiais, em torno dos US$ 4 trilhões, recursos que a China está dianteira das grandes aquisições em todas as regiões, desde os negócios no continente africano, na América Latina, no Oriente Médio e no continente Europeu, temendo seus concorrentes e possibilitando novas possibilidades de negócios rentáveis.

O documentário mostra um impacto dos modelos organizacionais dos dois grandes atores internacionais, um conflito cultural, econômico, político e geopolítico. O filme destaca a compra de uma planta industrial da General Motors em Dayton, Ohio, depois pela crise de 2008, que levou a empresa norte-americana a fechar a fábrica e mandar embora mais de 2,8 mil funcionários, gerando grandes impactos pelos trabalhadores e em toda a cidade, com incremento no desemprego, queda na renda das famílias e o crescimento da desesperança, gerando indicadores sociais negativos para toda a coletividade.

O documentário tem uma peculiaridade interessante, dentre os investidores deste filme está o ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e a ex-primeira dama Michele Obama, que patrocinaram a ideia e levou a película para o prêmio mais importante de Hollywood, levando a estatueta e garantiu o Oscar de melhor documentário de 2020.

O filme destaca os primeiros períodos da compra da planta industrial da General Motors, adquirida pela empresa multinacional chinesa Fuyal, responsável pela produção de vidros automotivos, cujos métodos de produção e sua estrutura organizacional entram em conflitos, mostrando a precarização crescentes, a exploração dos trabalhadores, a aversão pelos sindicatos e os novos modelos de exploração industrial centrados nas chamadas empresas da indústria 4.0.

Neste filme, A Indústria Americana, percebemos que grande parte dos trabalhadores são norte-americanos, permeados por trabalhadores oriundos da própria China, com seus modelos de organização, centrado na disciplina, na rigidez, na hierarquia, no trabalho duro e os turnos elevados, salários reduzidos e sem cobertura sindical, cuja diretoria deixa claro para todos os empregados americanos que são contrários a sindicalização, que incorreria em custos elevados de produção e o corte de funcionários, aumentando o desemprego.

Percebemos que a diretoria da Fuyal, uma grande produtora de vidros automotivos, enxerga o projeto da planta industrial nos Estados Unidos como um grande desafio para a multinacional, uma forma de mostrar para as autoridades americanos como os chineses conseguem produtos com alta qualidade e com baixos preços reduzidos, colocando-a como no nível de produtividade das plantas industriais de outras regiões do mundo e, principalmente, da produtividade da empresa chinesa.

No decorrer do documentário, percebemos os conflitos organizacionais e os modelos produtivos, destacando as diferenças dos trabalhadores destes dois países, os asiáticos são magros e ágeis, flexíveis, trabalhando em cargas crescentes e disponíveis a aceitar salários reduzidos, muitos destes trabalhadores são oriundos da China, ficam distantes de suas famílias, seus pais, seus filhos e não conseguem acompanhar o crescimento de seus descendentes. De outro lado, percebemos trabalhadores norte-americanos, vistos como obesos, lerdos e poucos ágeis, sem iniciativas limitadas e descontentes com seus salários, vistos como uma remuneração baixa e cargas excessivas de trabalhos.

No decorrer do documentário, um dos funcionários americanos critica a remuneração reduzida paga pelo empregador chinês, cujos salários giram em torno de US$ 12,2 ao dia, um valor muito a quem dos salários pagos pela General Motors, ex-dona da planta industrial de Dayton, cujos valores giravam em torno de US$ 29,2 ao dia. Estes recursos monetários garantia uma qualidade de vida maior para os trabalhadores e perspectivas melhores para seus familiares, possibilidades de estudos, alimentação mais dignas e esperanças de um futuro mais promissor, todos buscando o sonho americano.

O documentário mostra como as empresas estão cada vez mais centradas em novas tecnologias, nas fábricas percebemos uma redução significativa dos empregos e, ao mesmo tempo, um incremento da produtividade e o crescimento dos lucros. Dentro da dependência, os gestores da empresa Fuyal, criticam o excesso de horas de trabalho dos trabalhadores norte-americanos, que na cultura organizacional foram contratados para cargas de trabalho de oitos horas de segunda a sexta, visto como excessivo e dispendioso, quando comparamos com as cargas na China, cujos trabalhadores possuem apenas um dia de descanso no decorrer do mês, um modelo altamente degradante e humilhante nos colaboradores.

A globalização impulsionou a economia internacional no século XX, principalmente o final da segunda guerra mundial, período marcado pelo incremento da hegemonia dos Estados Unidos, neste período os norte-americanos se transformaram no país hegemônico da economia global, criando as bases da estrutura econômica, concentrando a força industrial, além do poder financeiro baseado na moeda, na força bélica e pelo soft power, centrados na força da cultura e das instituições americanas, a democracia, da livre concorrência e da busca constante do sonho liberdade.

            Este modelo criado pelos Estados Unidos foi responsável pelo empoderamento da economia norte-americana, ganhou espaço nos países socialistas, fragilizou os interesses hegemônicos do Japão e sente a força de outro país asiático, percebendo que a China é o maior rival para a predominância da hegemonia dos Estados Unidos, levando-o a adotar políticas que sempre contestaram em outros países ou regiões, recorrendo a políticas protecionistas contra empresas concorrentes, com isso, percebendo que os ideários liberais são adotados quando lhe convém e são rechaçados quando os ameaçam frontalmente.

O documentário, mostra claramente que os Estados Unidos encontraram seu maior adversário, além de desbancar empresas norte-americanos no cenário internacional, as empresas chinesas estão ganhando espaço internamente, instalando em solos americanos, implantando as estruturas organizacionais asiáticas, adotando modelos de organizacionais do trabalho, a ojeriza pela organização sindical, o alto crescimento das horas trabalhadas, a queda dos direitos trabalhistas e salários reduzidos. Neste novo modelo organizacional, adotado pela Fuyal em solo norte-americano, percebendo um novo modelo de trabalho e estrutura laboral, com cargas rigorosas de trabalho, diminuição dos modelos hierárquicos, alta rotatividade de funcionários, redução das conversas entre os funcionários e rigorosa fiscalização dos gestores.

No documentário A Indústria Americana, destaca um momento em que uma trabalhadora negra norte-americana chora diante dos gritos e das ordens de chefes chineses, neste momento percebemos que os asiáticos descrevem os trabalhadores americanos como “preguiçosos”, trabalhando menos que os chineses e são substituídos pelos empregadores quando percebem a inaptidão do cargo, sendo trocados por trabalhadores importadores diretamente da China, mais aptos pela cultura organizacional asiática.

O documentário mostra as perseguições pelos empregadores chineses, as demissões constantes, os assédios são crescentes, principalmente para que os trabalhadores não vinculassem os sindicatos, para evitar estas organizações sindicais os chineses adotaram inúmeras medidas para pressionar os funcionários americanos, principalmente os mais novos, para que não os trabalhadores aceitem a intermediação com os sindicatos.

O modelo de trabalho destacado no documentário é assustador, ao analisar os modelos laborais nos Estados Unidos, percebemos que não é nenhum modelo de organização virtuoso para os trabalhadores, muito ao contrário. Nos Estados Unidos, o modelo é marcado por pouca regulação do trabalho, onde boa parte das pessoas realiza o trabalho intermitente (pagamento por horas trabalhadas permitindo mais de um emprego), muitas horas de trabalho, sem acesso à saúde e educação pública, e com muita restrição ao direito de livre organização sindical.  A sociedade brasileira precisa se atentar com as mudanças no mercado de trabalho, o modelo norte-americano está no horizonte das mudanças implementadas na Reforma Trabalhista de novembro de 2017, baseadas nos ideários norte-americanos, com mais redução dos custos de trabalho, facilidade da contratação e da dispensa dos trabalhadores e, principalmente, numa redução abrupta do Estado como intermediário dos conflitos entre capital e trabalho.

O documentário A Indústria Americana mostra claramente que os modelos preconizados pelos conglomerados produtivos chineses são piores e excludentes para os trabalhadores, as cargas de trabalhos são elevadas, o controle interno é crescente, os benefícios e os salários são reduzidos, as folgas são pequenas e a facilidade de demissão são mais altas, um ambiente preconizado são instáveis e incertos, gerando ambiente de desesperança e medo elevados, vivemos um ambiente de inseguranças crescentes.

O documentário não destaca uma crítica mais consistente nos modelos de trabalho que crescem em todas as regiões, o capitalismo está criando um rastro de destruição em todos os continentes, os trabalhadores estão sem proteção e percebemos um discurso de que os sindicatos são incapazes de garantir ganhos para os trabalhadores, mas percebemos que a ausência destes instrumentos de defesa aos trabalhadores apenas facilitam o controle das classes dominantes do capitalismo contemporâneo e o incremento da degradação das classes trabalhadores, com salários reduzidas, benefícios menores e cargas de trabalhos cada vez maiores. O ambiente da Indústria 4.0 poderia ser um novo momento de melhoria de todos os grupos sociais, levando-os todos a participarem dos ganhos desta nova sociedade, mas o que percebemos, é que estamos gestando uma sociedade mais segregada, desigual e centrada na exclusão social.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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