Interferência militar na política produziu governos autocráticos no país asiático
Helder Ferreira do Vale, Professor do Departamento de Estudos Internacionais da Xi’an Jiaotong-Liverpool University (China)
Folha de São Paulo – 11/05/2022
Os contínuos embates entre Poderes já são um padrão do governo Jair Bolsonaro (PL). No último conflito, em que o ministro Luís Roberto Barroso, do Suprema Tribunal Federal, afirmou que as Forças Armadas estão sendo orientadas a “atacar o processo eleitoral”, ficou patente a deturpada percepção da elite militar no Brasil: a de que as eleições são um tema de segurança nacional e, portanto, a democracia deve ser tutelada pelos militares.
A intromissão dos militares na política é corriqueira no Brasil. Muitos de nós já não nos chocamos quando o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, classificou a declaração de Barroso como “ofensa grave”. Ou quando o vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos) afirmou que “Forças Armadas não são crianças para serem orientadas”. Tais manifestações seriam inaceitáveis em qualquer democracia consolidada.
O custo da tutela militar à democracia brasileira é alto. Duas consequências são inevitáveis: Forças Armadas movidas por ideologia política e uma dinâmica política condicionada pelo uso da força militar.
Em apenas dois anos de governo, Bolsonaro dobrou o número de militares da ativa e da reserva cedidos ao governo federal, passando de 2.765 a 6.157. Em relação aos altos cargos no governo, entre 2018 e 2020, houve um salto de 2,4% a 6,5% de militares ocupando esses postos. Quanto ao número de militares no primeiro escalão da gestão, eles ultrapassam a quantidade de oficiais indicados por qualquer outro governo do regime militar (1964-1985).
México e Venezuela são exemplos notórios dos inúmeros problemas provocados pela interferência militar na política.
No México, entre 1929 e 2000, o Partido Revolucionário Institucional utilizou os militares para legitimar as fraudes nas eleições no país, o que rendeu ao México o título de “ditadura perfeita”. Na Venezuela, a erosão das instituições públicas iniciada pelo governo do presidente Hugo Chávez (1999-2013), como consequência da Revolução Bolivariana, ideologizou as Forças Armadas e minou a pluralidade política no pais.
Para além da América Latina, o país que realmente serve como mau modelo a ser seguido é o Paquistão, onde os militares sempre foram os protagonistas da política nacional. O Paquistão e a Índia se emanciparam da Grã-Bretanha em 1947 em condições similares, nas quais um partido dominante em cada país adotou o parlamentarismo e o federalismo. Mesmo com as semelhanças históricas, cada nação seguiu um caminho distinto quanto ao desenvolvimento democrático.
Na Índia, desde sua independência, todos os chefes de Estado e de governo foram civis e nunca deixaram seus cargos por algum golpe de Estado. Já no Paquistão, durante a sua história, houve quatro chefes de Estado que eram chefes do Estado-Maior do Exército, e três primeiros-ministros civis sofreram golpes.
Com a ativa participação dos militares na política, o Paquistão viveu sob governos autocráticos a maior parte da sua história. Como consequência, a política paquistanesa vem sendo marcada por assassinatos políticos, interrupções dos mandatos de chefes de governo, escândalos de grandes proporções e incapacidade institucional para legitimar o poder do Estado. Diferentemente, a Índia manteve os militares à margem da política e logrou consolidar a maior democracia do planeta em número de votantes.
No Brasil, a maior parte da população desaprova a militarização da política. Em pesquisa realizada pelo Datafolha em maio de 2021, 54% dos entrevistados eram contra a indicação de militares em cargos governamentais, e 41% a favor.
Mesmo com a desaprovação popular, as instituições públicas brasileiras seguirão influenciadas por militares, que em princípio deveriam ter como principal função garantir a nossa segurança contra ameaças externas, não participar da vida política nacional.
Reverter a paquistanização do Brasil será um trabalho árduo.