Em 16 anos, milicianos ampliaram seu território em mais de 130% no Rio. Crescimento acelerado, capilarização do crime e defasagem das instituições de repressão são grande desafio
Notas & Informações, O Estado de São Paulo – 18/09/2022
Há quatro décadas grupos armados expandem seu domínio territorial na região metropolitana do Rio de Janeiro.
Segundo o Mapa dos Grupos Armados, do Grupo de Estudos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense e do Instituto Fogo Cruzado, nos últimos 16 anos o crime organizado ampliou seus territórios em 131%, saltando de 8,7% da área urbana habitada para 20%. O fato novo é que as milícias estão se tornando a principal ameaça à segurança no Rio.
Nesse período, enquanto as áreas sob domínio do Comando Vermelho (CV) cresceram 59% e seu controle sobre a população cresceu 42%, o domínio territorial das milícias aumentou 387% e o populacional, 185%. Sua participação sobre as áreas controladas pelo crime subiu de 24% para 50%, enquanto a do CV caiu de 59% para 40%. No domínio sobre a população, se a participação do CV caiu de 54% para 46%, a das milícias subiu de 22% para 39%.
A pesquisa destaca dois marcos na expansão das milícias. O primeiro no início dos anos 2000, quando havia ambiguidade sobre o papel das milícias no debate público e nas arenas políticas. Esse crescimento foi freado a partir de 2008, quando a CPI das Milícias desbaratou parte da arquitetura do crime. Desde 2017, contudo, a expansão explodiu, em parte pelas disputas entre o CV e o PCC pelas rotas internacionais da droga, em parte pela crise socioeconômica de 2015, e em parte pela gestão de segurança estadual, que, desde o governo de Wilson Witzel, se caracterizou pelo incentivo ao uso desmedido de força letal e pela autonomização das polícias em relação a diretrizes, metas e protocolos estabelecidos por políticas de Estado.
A expansão das milícias não só é quantitativamente maior que a do narcotráfico, mas é qualitativamente mais complexa. “O tráfico de drogas é a criminalidade desorganizada; ele atua na interface com o Estado de maneira muito mais precária”, explicou um pesquisador. “Já os milicianos têm uma relação de tolerância e participação direta de agentes públicos. É um mercado de atuação muito mais diversificado e articulado do que o do tráfico, que é, basicamente, um varejo de droga. Os milicianos controlam a água, a internet, o transporte; ou seja, toda a infraestrutura urbana da cidade é produzida com a mediação desses grupos.”
Trafegando na zona cinzenta entre a legalidade e ilegalidade, as milícias contam com uma dupla vantagem, política e econômica. O que as diferencia é precisamente a participação de agentes públicos, como policiais da ativa e da reserva, juízes ou parlamentares. Assim, elas não só são mais eficientes que o narcotráfico em criar um “Estado paralelo” em seus territórios, como se infiltram no Estado, pervertendo-o a seu favor. Isso facilita, por exemplo, a obstrução de investigações, assim como o emprego das forças policiais para retaliar adversários do narcotráfico – os dados mostram que as ações policiais são bem menores em áreas controladas pelas milícias do que nas controladas pelas facções. Além disso, as milícias são favorecidas por agentes públicos em seu mercado legal e ilegal, sobretudo imobiliário.
A sua expansão impõe novos desafios. Primeiro, uma atualização da legislação, já que o complexo de crimes das milícias ultrapassa os delitos tipificados no Código Penal. Além disso, não há uma dimensão oficial do fenômeno nem políticas integradas de prevenção e enfrentamento. Operações policiais, além de frequentemente ineficazes e catastróficas para a população, vêm sendo instrumentalizadas pelas milícias a favor de sua expansão. Mais importante seria sufocar a fonte do vigor das milícias, o clientelismo de atores estatais, com mais regulamentação, transparência e prestação de contas sobre o que se passa nos mercados urbanos.
Em suma, a expansão das milícias é triplamente alarmante: pela sua velocidade e diversificação; pela sua capilarização na economia e na política; e pela defasagem das instituições responsáveis por investigá-la e reprimi-la. A menos que esse mal seja extirpado pela raiz, no futuro o Rio de Janeiro será lembrado como apenas o foco de uma metástase nacional.