Armar civis é levar a morte a suicidas, pela tristeza; às mulheres, pelos homens furiosos; e aos Durvais, pelos Aurélios amedrontados.
Carlos Alberto Vilhena, PROCURADOR FEDERAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO
O Estado de S. Paulo – 09/07/2022
Durval Teófilo Filho era negro e tinha 38 anos. Pai de Letícia e marido de Luziane, trabalhava num supermercado. Morava com a família num condomínio em São Gonçalo, Rio de Janeiro. Na noite de 2 de fevereiro, ele voltava a pé para casa enquanto mexia em sua mochila. Sem aviso, recebeu três tiros na barriga. Aurélio Alves Bezerra, militar da Marinha e seu vizinho, efetuara os disparos. Ele havia confundido Durval com um bandido e pensou que fosse ser assaltado. Durval morreu. Até maio, Aurélio seguia preso.
Aurélio provavelmente queria se sentir protegido, por isso a pistola. Essa tem sido a base do discurso armamentista. Nessa linha, com uma arma, uma pessoa será capaz de se defender de qualquer ameaça, num país de violência extrema como o Brasil.
O lema “mais armas significam mais segurança” permeou a campanha do atual presidente da República. Seu programa de governo previa a alteração do Estatuto do Desarmamento para garantir ao cidadão a legítima defesa, ou seja, armar os civis.
O governo tenta cumprir seu compromisso eleitoral. Sua intenção é facilitar o acesso a armas e munições pela população civil. Publicou, até março deste ano, 36 normativos infralegais com esse fim.
Os Caçadores, Atiradores Desportivos e Colecionadores (CAC) foram especialmente contemplados: segundo o texto do Decreto n.º 9.846/2019, questionado no Supremo Tribunal Federal (STF), um atirador pode ter até 60 armas, 30 delas de uso restrito, e adquirir até 180 mil balas por ano.
Coincidentemente, os registros de CACs aumentaram 474% entre 2018 e 2022, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Há mais de 673 mil CACs no Brasil, um número superior ao de todos os policiais civis e militares somados, cujo efetivo era, segundo o site da revista Piauí, de 499 mil agentes em 2021.
Contudo, armar a população não produz os efeitos apregoados pelo governo. O próprio presidente foi assaltado quando era deputado federal em 1995. Dois rapazes roubaram sua moto e sua pistola. Na ocasião, ele disse: “Mesmo armado, me senti indefeso”.
O fato é que as armas contribuem para a insegurança da sociedade. Das mais de 47 mil mortes violentas ocorridas em 2021 no Brasil, 76% foram causadas por armas de fogo. Ressalte-se que 78% das vítimas de assassinatos eram pessoas negras, como Durval.
O mesmo ocorre nos feminicídios. Entre 1999 e 2019, 51% das vítimas desse crime foram mortas a tiros. E mais de 70% delas eram mulheres negras.
Quanto a enfrentar assaltantes, um estudo da Secretaria de Segurança de São Paulo, realizado em 1998, mostrou que uma pessoa armada tinha 56% mais chance de morrer em um latrocínio do que uma desarmada.
Além disso, as taxas de suicídio crescem nos lugares onde há mais armas. Estudo conduzido nos Estados Unidos indicou que cada incremento de 10 pontos porcentuais na taxa estadual de lares com armas eleva o suicídio de jovens em quase 27%.
Ressalte-se que muitas armas usadas em crimes têm origem legal. Estudo do Instituto Sou da Paz mostrou que 33 mil armas legais foram parar nas mãos de criminosos entre 2011 e 2020.
Uma recente pesquisa do instituto Datafolha indicou que 72% de nossa população discordam da ideia de que mais armas trarão mais segurança à sociedade, enquanto 70% das pessoas discordam da facilitação do acesso a armas. Ou seja, o governo age em desacordo com a vontade popular.
Com tantas objeções de peso e com mais gente contra do que a favor, por que insistir no armamento da população?
A principal razão talvez seja econômica: segundo a revista Tecnologia & Defesa, Taurus e CBC, as duas principais empresas de armas de fogo e munições do Brasil, geram 60 mil empregos diretos e indiretos, com faturamento de R$ 5 bilhões.
É preciso refletir sobre um gestor público que propõe o armamento de civis como política de segurança. Ao fazê-lo, diante de tantas evidências contrárias a essa ideia, ele confessa sua incapacidade de proteger a população.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) entende que as medidas adotadas para armar civis contrariam o espírito de nossa Constituição. Se a segurança pública é dever do Estado, e há ampla comprovação de que mais armas significam mais mortes, tais medidas não podem ser legítimas.
Some-se a isso o uso de meios infralegais para burlar o Estatuto do Desarmamento, aumentando a circulação de armas no País. É inadmissível que o Executivo extrapole suas competências regulamentares, visando a alterar normas aprovadas pelo Legislativo.
A PFDC também repudia ato em defesa da liberação das armas convocado por grupos armamentistas para este 9 de julho, Dia Mundial pelo Desarmamento.
Armar civis é levar a morte aos suicidas, pela tristeza; às mulheres, pelos homens furiosos; e aos Durvais, pelos Aurélios amedrontados.
Arma é lucro, arma é violência, arma é morte. Arma não é segurança. Quem vende essa ideia está com o dedo no gatilho, apontando e apostando contra mim, contra você e contra milhões de brasileiros que não desejam matar, mas apenas viver.