A rebeldia de direita e o homem comum, por Camila Rocha.

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Slogan da esquerda de 1968 tornou-se central para as direitas contemporâneas

Camila Rocha, Doutora em ciência política pela USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

Folha de São Paulo, 09/01/2023

Por que e em que momento a ideia da rebeldia foi apropriada pela direita? Foi com essa pergunta que o presidente chileno Gabriel Boric iniciou uma entrevista concedida à jornalista Mônica Bergamo. De fato, ao longo das últimas duas décadas, o “politicamente incorreto” ganhou ares de rebeldia. Hoje, o conhecido slogan da esquerda de 1968, “é proibido proibir”, tornou-se central para as direitas contemporâneas.

As origens do fenômeno coincidem com a popularização da internet entre pessoas de classe média e alta. No início dos anos 2000, redes sociais como MySpace e Orkut, e fóruns como Reddit, 4chan e Vale Tudo, do brasileiro UOL Jogos, permitiram a circulação de ideias inusitadas, absurdas ou mesmo odiosas e violentas.

O propósito de direitistas que frequentavam tais espaços era demolir as estruturas ideológicas do establishment a partir da periferia da esfera pública. A esquerda era vista como hipócrita, corrompida e vendida à sociedade de consumo, e a direita tradicional tida como abobalhada, tediosa e incapaz de fazer frente aos avanços da esquerda no campo cultural.

Com o tempo, a partir da circulação crescente de memes, discursos que antes ficavam restritos a livros e fanzines obscuros começaram a atingir cada vez mais pessoas. Mas foi apenas quando a internet se massificou, e privilégios históricos começaram a ser questionados na esfera pública tradicional, amplificando o alcance do chamado “politicamente correto”, que parcelas mais amplas da sociedade passaram a fazer coro à rebeldia de direita.

Para um segmento expressivo de trabalhadores, os avanços progressistas incomodam em várias frentes. Em primeiro lugar, há o incômodo com a possibilidade de que outros setores oprimidos possam roubar seu lugar na fila do pão. Depois, a percepção de que a família e a religião, suas principais fontes de proteção e acolhimento frente à violência e insegurança cotidianas, teriam passado a ser vilipendiadas. Mas mais do que isso, seu próprio modo de ser e estar no mundo, e seu orgulho, estariam sendo atacados de forma insistente e pedante pelo “politicamente correto”.

O sentimento é de que qualquer deslize pode provocar brigas na família, com amigos e conhecidos, ou até mesmo a perda do trabalho. Daí a sensação constante de repressão e a catarse provocada por políticos e influenciadores que “mandam a real, sem papas na língua”, alardeando uma suposta liberdade absoluta contra uma “ditadura do politicamente correto capitaneada por esquerdistas”.

Porém, o que ocorre de fato é que o mesmo “ímpeto civilizatório” utilizado nas redes sociais para defender grupos que historicamente são alvo de discriminação e violência não costuma se estender à defesa de trabalhadores comuns. Sobretudo daqueles tidos como ignorantes e atrasados.

Além disso, a esquerda não consegue enfrentar a opressão econômica e as injustiças vivenciadas por largos setores da população, que incluem justamente as pessoas tachadas de ignorantes e atrasadas. Na prática, o que prevalece é o neoliberalismo progressista, que, na visão de vários trabalhadores, seria o mesmo que defender os interesses dos ricos e o “politicamente correto”. E assim o homem comum fica abandonado à própria sorte e aos rebeldes de direita, que apresentam ser mais “empáticos” com suas angústias.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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