A Reforma como rito: A servidão financeira do Estado brasileiro, por João dos Reis da Silva Júnio

Compartilhe

João dos Reis da Silva Júnior – A Terra é Redonda – 01/11/2025
Sob o véu da eficiência, a reforma administrativa consolida a financeirização do Estado, convertendo o fundo público em ativo e o cidadão em cliente, num gesto que atualiza uma secular colonialidade do poder

A chamada Reforma Administrativa — a PEC 32 de 2020 — chega ao Brasil como eco tardio de um projeto global iniciado nos anos 1980, quando o neoliberalismo converteu o Estado social em Estado gerencial, servil às finanças. Aqui, a modernização chega deformada: enquanto o mundo revê o dogma neoliberal, o país o abraça como se fosse novo. Reformamos não para libertar o Estado, mas para aperfeiçoar sua servidão.

A Constituição de 1988 havia prometido um Estado social; a PEC 32 rompe esse pacto, convertendo o fundo público em ativo financeiro. Sob o pretexto da eficiência, instala-se a lógica da rentabilidade: o servidor torna-se custo, o cidadão, cliente. Como observa Leda Paulani (2017), “a financeirização transforma o fundo público no mais importante meio de sustentação do capital fictício.” A reforma é, portanto, o instrumento jurídico da financeirização — o Estado transformado em gestor do rentismo.

A estabilidade e a função pública cedem lugar a contratos precários e métricas empresariais. O “servidor” é substituído pelo “colaborador”. O Estado republicano se desfaz, e o serviço público torna-se empresa. Eleutério Prado (2021) descreve essa mutação como “subsunção real do Estado ao capital”: o poder público torna-se engrenagem do lucro. Em vez de planejar o futuro, o Estado curva-se ao curto prazo da valorização financeira.

O resultado é um Estado contábil que silencia a linguagem da justiça. Em nome da moralidade administrativa, sacrifica-se o sentido público. A reforma não combate privilégios — combate a própria ideia de política como mediação coletiva. Maria Lúcia Fattorelli (2020) adverte: “não é contra privilégios, é contra o Estado público e contra a democracia.” Ao flexibilizar vínculos e dissolver a estabilidade, a PEC 32 reabre as portas do patrimonialismo sob a máscara da eficiência.

A temporalidade é também perversa: enquanto os centros capitalistas enfrentam a crise de suas reformas, o Brasil as imita com atraso. Reformar-se tardiamente é repetir a história como caricatura. A modernização nunca significou emancipação — sempre significou ajuste. É o que Aníbal Quijano (1992) chamaria de colonialidade do poder: a reprodução da dependência sob o discurso da racionalidade moderna. Assim, o Brasil reforma o que nunca completou — um Estado social — e conserva, com nova linguagem, a velha subordinação.

A reforma administrativa é o rosto burocrático da desesperança. Desmonta-se o Estado democrático de 1988 e instala-se o Estado planilha. O servidor é número; o orçamento, ativo; o cidadão, consumidor. Quando a política se transforma em contabilidade, o futuro se reduz à perpetuação da crise.

O contexto político e a perda da palavra

A reforma administrativa amadurece num Brasil de crise prolongada, onde a democracia se esvazia sob o peso de uma racionalidade fiscal que se apresenta como neutra. Desde 2016, o país atravessa uma sequência de rupturas silenciosas: o impeachment sem crime, o avanço do ultraliberalismo, a militarização da política e a captura das instituições pela austeridade. É nesse ambiente que a PEC 32 surge — travestida de técnica, mas portando um programa de poder: transformar o Estado em empresa e o cidadão em cliente. Não se trata de corrigir excessos, mas de consolidar um regime novo — o da administração sem política.

O discurso da eficiência converteu-se em dogma. Fala-se em enxugar, otimizar, profissionalizar — mas sem dizer a serviço de quem. O verbo público da democracia é substituído pela gramática contábil do mercado. O Estado deixa de falar em direitos, justiça ou igualdade; fala em metas, custos e resultados. Essa mutação da linguagem é o primeiro sinal da perda da política: quando o poder fala o idioma das finanças, o povo deixa de compreender o que o Estado diz. A comunicação republicana é substituída por slogans gerenciais, e o espaço público se converte em vitrine de desempenho. A reforma administrativa é o sintoma desse empobrecimento da palavra pública — um Estado que já não articula o “nós”, apenas administra o “eles”.

Nas palavras de Eleutério Prado, o Estado curvado ao capital não apenas serve às finanças — internaliza sua moral. Essa submissão é também simbólica. As instituições passam a reproduzir a lógica do lucro, naturalizando a desigualdade como preço da estabilidade. A democracia, reduzida a ritual eleitoral, perde substância: os orçamentos são decididos por índices de confiança, as políticas públicas por agências de rating, e a soberania nacional por planilhas de investimento. O Estado deixa de mediar conflitos e passa a zelar pela dívida.

Perde-se a palavra — e com ela, a esperança. A política, esvaziada de conteúdo, é substituída pela gestão. A promessa de 1988, que unia cidadania e justiça social, dissolve-se no pragmatismo fiscal. O Estado deixa de projetar o futuro e se limita a administrar o presente. Como lembra David Harvey (2010), o neoliberalismo “não apenas transforma a economia, mas a própria imaginação do possível.” O Brasil vive essa redução do imaginável: o futuro foi hipotecado. O servidor torna-se descartável; o serviço público, custo; o Estado, operador do curto prazo.

O discurso da responsabilidade fiscal encobre a irresponsabilidade social. O Estado que se curva às finanças renuncia à escuta da sociedade. A reforma administrativa, mais do que um arranjo técnico, é o sintoma de uma democracia que perdeu a voz: fala em eficiência, mas silencia sobre justiça. A política se converte em contabilidade, e o cidadão é reduzido a usuário. Quando o Estado não fala em nome de todos, torna-se apenas administrador da desigualdade.

O peso da história do Estado brasileiro

A atual reforma administrativa é o capítulo mais recente de uma longa história de subordinação. Desde a Primeira República, o Estado brasileiro não se ergueu como expressão da soberania popular, mas como instrumento de conciliação entre elites. A política nasceu tutelada, e a administração pública foi extensão das relações de mando herdadas do escravismo e do patriarcalismo colonial. A burocracia moderna, quando surgiu, não apagou essas marcas — apenas as racionalizou.

Ao longo do século XX, cada reforma do Estado serviu menos à democracia e mais adaptação do capital. A República Velha atendeu às oligarquias cafeeiras; o Estado Novo, à industrialização autoritária; a ditadura militar, ao capital internacional que financiou o chamado milagre econômico. Reformas sempre vieram de cima, em nome da modernização — e essa modernização sempre foi excludente. Ampliou o aparato técnico, mas reduziu a participação popular. A reforma administrativa atual repete o padrão: reforma-se para submeter-se, agora sob a lógica das finanças globais.

A Constituição de 1988 representou um breve respiro: tentou erguer um Estado social num país desigual, reconhecendo o trabalho, a saúde e a educação como direitos universais. Mas as bases econômicas permaneceram intocadas. Nos anos 1990, a abertura financeira e a dependência de capitais externos corroeram a autonomia do Estado e limitaram a promessa democrática. As reformas seguintes, sob o manto da estabilidade, esvaziaram lentamente o pacto social. A reforma administrativa é o desfecho lógico desse percurso: retira do Estado o pouco que restava de seu conteúdo republicano.

Essa continuidade revela o peso da dependência. O Estado brasileiro nasceu subordinado e continua a reformar-se segundo receitas externas. Se antes havia tutela política das potências, hoje há tutela dos mercados. O FMI, o Banco Mundial e as agências de rating exercem a autoridade que antes cabia aos diplomatas e militares estrangeiros. A soberania, aqui, é exercício vigiado. Cada modernização promete autonomia, mas reforça o ajuste permanente à racionalidade do centro.

Essa é a modernização como servidão: o gesto de reformar-se para caber na ordem global. A colonialidade, como definiu Aníbal Quijano, persiste sob novas formas. Já não é o domínio militar, mas o domínio epistêmico e econômico — a convicção de que o progresso virá de fora. Por isso, o Brasil nunca completou o ciclo de construção de um Estado público e democrático. A cada avanço, uma contraofensiva restaura a função original: administrar a desigualdade.

As palavras de Quijano ecoam: a América Latina é o espaço em que o capitalismo mundial se forma como dependente e colonial. O Estado brasileiro, ao reformar-se, confirma essa condição. O discurso da eficiência substitui o da justiça; a modernização, o outro nome da servidão. Reformar é obedecer — e a obediência tornou-se nossa forma de modernidade.

Relações internacionais e a erosão do trabalho

A reforma administrativa brasileira não é um evento isolado, mas parte de uma reestruturação global que ajusta os Estados nacionais às exigências do capital financeiro. Desde a crise de 2008, a austeridade tornou-se linguagem universal, e o trabalho, um obstáculo à rentabilidade. Nos países centrais, desmontaram-se direitos; nas periferias, consolidou-se a dependência. O Brasil insere-se nessa lógica como executor tardio de um mesmo roteiro: o desmonte do público e a conversão da cidadania em risco fiscal.

A América Latina é o laboratório dessa política. A Argentina ilustra o ciclo: endividamento, cortes, deterioração do trabalho, sob o jugo do FMI. O Estado torna-se administrador da crise, e o orçamento, instrumento de punição. Em Portugal, sob a troika europeia, a administração pública foi reformada à imagem dos credores. O resultado é sempre o mesmo: redução dos direitos sociais e precarização do trabalho. O Brasil segue a receita, mas sem amortecedores sociais — aqui, o ajuste é direto e sem anestesia.

A reforma administrativa prolonga o efeito corrosivo das reformas trabalhistas de 2017. Ao flexibilizar vínculos e permitir terceirizações, leva ao setor público a mesma precariedade que já domina o privado. O servidor, antes símbolo da continuidade institucional, converte-se em trabalhador intermitente, sujeito às oscilações do orçamento e à vontade dos governos. O serviço público, antes expressão do coletivo, torna-se prestação eventual. A eficiência, nesse vocabulário, significa desproteção institucional. O Estado abandona a linguagem do direito para adotar a da produtividade.

Essa erosão do trabalho público é também erosão da soberania. O Brasil internaliza as reformas ditadas por organismos multilaterais e agências de risco, adotando o discurso da modernização como espelho burocrático da dependência. Reformar o Estado é, na prática, obedecer. O que em outros países é política doméstica, aqui é destino. A colonialidade reaparece não mais sob a espada, mas sob a forma financeira e epistêmica. O país deixa de pensar — imita. A dependência, agora, é modo de governar.

Ao alinhar-se à austeridade global, o Brasil renuncia ao futuro. A reforma administrativa, ao precarizar o trabalho e desmontar o público, aprofunda a subordinação e consolida a posição periférica no capitalismo mundial. A política perde o gesto emancipador e torna-se técnica de gestão da escassez. O servidor financeirizado — endividado, vulnerável, sem estabilidade — encarna a tragédia nacional: um país que se reforma não para mudar, mas para permanecer dependente.

Dependência para além da economia: Aníbal Quijano e a colonialidade do poder

O pensamento de Aníbal Quijano oferece a chave para compreender o que a teoria da dependência deixou em aberto: a subordinação latino-americana não é apenas econômica — é civilizatória. A modernidade, lembra ele, nasce da colonização da América. A América Latina não é o espaço atrasado da modernidade, mas seu ponto de origem e laboratório. O capitalismo mundial formou-se como sistema colonial, articulando exploração econômica e dominação epistêmica. As independências nacionais não romperam esse vínculo; apenas o traduziram em novas formas. A essa continuidade invisível, Quijano deu o nome de colonialidade do poder.

A colonialidade é o lado escuro e permanente da modernidade: o modo como as hierarquias raciais, de gênero, de saber e de trabalho se naturalizam dentro da ordem global. O trabalho forçado, a expropriação dos povos originários, o patriarcado e o eurocentrismo não são resquícios do passado — são mecanismos ativos do capitalismo mundial. O Brasil é exemplo eloquente dessa persistência. Sua modernização econômica nunca significou ruptura com a lógica colonial, mas sua atualização. A reforma administrativa, vista por essa lente, traduz em linguagem jurídica a subordinação histórica: transforma o Estado em aparelho de reprodução da dependência.

Em Quijano, a dependência deixa de ser mero vínculo externo e torna-se estrutura interna de poder, que organiza as formas de pensar, agir e governar. No Brasil, ela se manifesta em múltiplas dimensões: o Estado que precariza o trabalho é o mesmo que perpetua desigualdades raciais e regionais, e o mesmo que marginaliza os saberes populares. A racionalidade da eficiência administrativa é, no fundo, uma racionalidade colonial, que desqualifica o conhecimento local e exalta o modelo europeu de gestão como o único legítimo. O discurso técnico da reforma é, assim, a nova face do eurocentrismo.

Ao rastrear a formação da modernidade, Quijano mostra que o capitalismo mundial é, desde o início, um sistema global de hierarquias. A reforma administrativa brasileira, ao importar modelos de gestão e racionalidade fiscal, reatualiza essa hierarquia. É o mesmo gesto histórico: acreditar que o progresso virá de fora, que a modernidade é um produto de importação. Essa crença é o núcleo ideológico da colonialidade. Por isso, a reforma administrativa é regressiva e subalterna: copia o discurso da eficiência para perpetuar a dependência.

A crítica de Quijano vai além da economia: propõe uma descolonização do saber. Romper o monopólio epistemológico do Norte é condição para repensar o Estado e suas formas de racionalidade. Aplicada à administração pública, essa crítica exige recuperar o sentido de justiça social e a pluralidade dos saberes. Um Estado descolonizado não seria apenas eficiente — seria capaz de reconhecer a diversidade como fundamento. No Brasil, isso implicaria reconstruir o sentido do público a partir das experiências populares, e não das planilhas do mercado.

A colonialidade do poder, porém, sobrevive justamente por neutralizar essas possibilidades. A reforma administrativa é sua forma contemporânea: uma política de Estado que reafirma, sob o pretexto da modernidade, a velha servidão colonial. Sob a linguagem da gestão, reintroduz a hierarquia; sob a aparência do mérito, legitima a exclusão. O Brasil, ao reformar-se, reafirma a crença de que modernizar-se é imitar — e que pensar por conta própria seria atraso. É o triunfo silencioso da colonialidade epistêmica. Assim, a reforma administrativa não é apenas um programa técnico, mas um gesto de submissão intelectual: revela que a dependência deixou de ser relação econômica e tornou-se forma de consciência. A modernização, nesse contexto, é rito de fé — uma liturgia em que o país oferece seu futuro em troca da aprovação dos mercados.

Estado dependente e financeirizado: Jaime Osorio e Eleutério Prado

As reflexões de Jaime Osorio e Eleutério Prado revelam o ponto de chegada dessa longa trajetória. Ambos concordam que o Estado contemporâneo, especialmente nas economias dependentes, já não é mediador neutro entre capital e trabalho: é parte ativa da acumulação. O Estado financeirizado tornou-se operador da valorização fictícia do capital; seu orçamento, um campo de disputa entre a reprodução da vida e a reprodução do lucro.

Osorio, retomando a tradição marxista latino-americana, entende a dependência como relação estrutural e ativa, forma própria de existência do capitalismo periférico. Nela, o Estado é nacional apenas na forma; em sua função, é estrangeiro, ajustado à lógica da valorização global. O discurso da eficiência, que legitima a reforma administrativa, é o idioma técnico dessa submissão. O Estado atua para garantir a rentabilidade do capital mundializado, não para sustentar a cidadania.

Para Eleutério Prado, a financeirização desloca o centro da acumulação para as finanças. O capital fictício domina a reprodução social, subordinando produção e Estado à lógica rentista. No Brasil, a política fiscal, as reformas e até a linguagem da administração pública refletem essa hegemonia. O fundo público vira ativo, o servidor torna-se custo, o cidadão, variável contábil. O Estado deixa de mediar o conflito e passa a administrar a desigualdade. O que se apresenta como técnica é, na verdade, submissão política: o Estado age como engrenagem da valorização financeira.

Entre Osorio e Prado delineia-se uma convergência: o Estado dependente e financeirizado institucionaliza a servidão sob o disfarce da racionalidade. Se antes o Estado legitimava-se pela promessa de desenvolvimento, agora o faz pela obediência ao mercado. A cidadania cede lugar à confiança dos investidores; a democracia, ao ajuste permanente. A gestão substitui o governo; o cálculo substitui o juízo. O Estado financeirizado é, assim, a forma política da colonialidade econômica — um Estado que governa para fora e administra para dentro.

Essa metamorfose encerra o ciclo da modernização como projeto emancipador. O Estado já não promete progresso; promete estabilidade. O orçamento deixa de ser instrumento de redistribuição e torna-se mecanismo de acumulação financeira. O fundo público, antes pensado como base da universalização dos direitos, é capturado pelo rentismo. A financeirização transforma o Estado em operador da dívida, e a democracia em ritual de legitimação do poder dos mercados.

A convergência entre Osorio e Prado revela o conteúdo da reforma administrativa: ela é o código jurídico da dependência em sua forma financeira. O Estado brasileiro, que um dia se legitimou pela ideia de desenvolvimento, agora o faz pela austeridade. Modernizar, aqui, significa adaptar-se ao império das finanças. O gestor substitui o cidadão; o orçamento substitui o projeto; o ajuste substitui a imaginação. O Estado financeirizado é o espelho da dependência: reflete o capital global e apaga a sociedade que o sustenta.

Como advertia Quijano, a modernidade latino-americana é inseparável de sua colonialidade. Osorio e Prado completam essa crítica, mostrando que, no século XXI, essa colonialidade assume a forma da racionalidade financeira. O Brasil reforma-se sem projeto, racionaliza-se sem justiça e moderniza-se sem autonomia. O Estado converte-se em administrador da escassez, e a política em contabilidade. O futuro se reduz a uma equação fiscal. Enquanto o fundo público for tratado como ativo e o cidadão como passivo, a emancipação continuará adiada.

Conclusão

A reforma administrativa brasileira expressa mais que uma reorganização institucional: é o sintoma final de um ciclo histórico e da persistência de um padrão de subordinação que se reinventa a cada modernização. Sob o discurso da eficiência e da moralidade fiscal, o Estado se desfaz como espaço público e se consolida como instrumento de valorização financeira. A política cede lugar à gestão; a cidadania, à contabilidade; o futuro, à administração da crise.

Desde a República, o Brasil acostumou-se a reformar-se de fora para dentro. O Estado sempre se modernizou segundo as exigências do capital — nacional ou estrangeiro —, raramente a partir das demandas da sociedade. A reforma atual é a versão financeirizada dessa tradição: reconfigura o Estado como empresa, esvazia o sentido do serviço público e transforma o servidor em peça fiscal. O Estado, que deveria mediar o comum, passa a gerenciar a escassez.

A dependência, que antes se explicava pela economia, agora se reproduz pela linguagem. Como ensinou Aníbal Quijano, a colonialidade do poder não desapareceu: apenas trocou de vocabulário. Hoje, a submissão se expressa em jargões de gestão, planilhas de eficiência e dogmas de austeridade. O Brasil importa racionalidades e as toma como destino. Reformar é crer que a obediência técnica substitui o pensamento político.

Jaime Osorio e Eleutério Prado mostram que o Estado contemporâneo, especialmente nas economias dependentes, tornou-se parte do circuito de acumulação financeira. O Estado financeirizado é aquele que perdeu o poder de decidir sobre si e passou a operar como agente da valorização fictícia do capital. No Brasil, ele é dependente duas vezes: financeiramente, das exigências do mercado global; epistemicamente, das ideias que o convencem de que essa dependência é inevitável.

Reformar-se, nesse contexto, significa ajustar-se ao império das finanças. O fundo público, que poderia sustentar a vida, é capturado pelo rentismo. O servidor, que deveria garantir continuidade institucional, é transformado em custo. A democracia, privada de conteúdo social, torna-se rito. A reforma administrativa, ao consolidar esse processo, marca o ponto em que o Estado abdica da promessa de universalidade e se curva definitivamente ao cálculo do mercado.

O desafio, portanto, é epistemológico e político. Repensar o Estado exige descolonizar o pensamento, romper com a naturalização da dependência e recuperar a centralidade do trabalho e da vida. Enquanto a eficiência substituir a justiça e a gestão ocupar o lugar do cuidado, o Estado continuará a reproduzir a dominação que o funda. A verdadeira reforma não será administrativa, mas histórica: aquela que devolva à palavra pública o poder de nomear o comum e à política a capacidade de criar futuros.

O Brasil que um dia sonhou com o desenvolvimento agora administra a própria impotência. O desafio é reaprender a sonhar — não com o progresso ditado de fora, mas com a emancipação que nasce do próprio povo.

João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados).

Referências

ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.
CHESNAIS, François. Financeirização e crise do capital fictício. São Paulo: Boitempo, 2016.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
FATTORELLI, Maria Lúcia. Reforma administrativa: a destruição do serviço público e o aumento do poder financeiro. Brasília: Auditoria Cidadã da Dívida, 2020.
HARVEY, David. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011.
MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1973.
OSORIO, Jaime. Estado, classes e questão nacional: ensaios sobre a teoria marxista do Estado e a América Latina. São Paulo: Boitempo, 2019.
PAULANI, Leda Maria. Brasil Delivery: servidão financeira e estado de emergência econômico. São Paulo: Boitempo, 2017.
PRADO, Eleutério F. S. Da lógica da crítica da economia política. São Paulo: Lutas Anticapital, 2021.
PRADO, Eleutério F. S. Economia e complexidade. Blog do autor. Disponível em:  Acesso em: 30 out. 2025.
QUIJANO, Aníbal. Modernidad, identidad y utopía en América Latina. Quito: Ediciones El Conejo, 1988.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. Revista Internacional de Ciencias Sociales, n. 134, p. 533–580, 1992.
QUIJANO, Aníbal. La americanidad como concepto. Revista Casa de las Américas, n. 216, p. 88–99, 1999.
QUIJANO, Aníbal. Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: CLACSO, 2014.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

Leia mais

Mais Posts