A ressaca da Globalização, democracia e a desigualdade social

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O processo de globalização foi responsável por um grande conjunto de transformações na sociedade mundial nos últimos trinta anos, desde uma maior aproximação entre os agentes econômicos e produtivos, até um incremento no desenvolvimento científico e tecnológico e uma maior aproximação entre os indivíduos, com um aumento da imigração e uma maior integração entre as culturas, as línguas e os comportamentos, este processo alterou a vida de todas as regiões e transformou o cotidiano de grupos sociais e comunidades, gerando novos desafios, oportunidades e muitos medos.

Os defensores do processo de globalização defendiam a ideia de que a imersão no mundo globalizado seria a grande panacéia da sociedade global, os ganhos seriam generalizados, a pobreza e a fome estariam com os seus dias contados, o mundo estaria iniciando uma nova fase de integração, solidariedade e forte crescimento e desenvolvimento econômico.

Nestes anos a economia dos países se abriram para uma maior integração comercial, os fluxos financeiros cresceram de forma acelerada, as exportações e importações se tornaram fundamentais para que a nova produção global se efetivasse, os investimentos estrangeiros se avolumaram, os fluxos de imigração cresceram e as empresas multinacionais ganharam uma centralidade poucas vezes vistas na história da humanidade.

O pós segunda guerra mundial propiciou um momento fértil para o avanço do processo de globalização, como a grande parte das regiões foram destruídas pelo conflito, foi necessário a construção de consensos entre os países, para que a sociedade mundial fosse reconstruída e os países tivessem a oportunidade de se levantar, criando instrumentos para suas populações voltarem a ter melhores perspectivas, depois de décadas de mortes e conflitos que deixaram mais de 100 milhões de pessoas mortas e regiões inteiras destruídas, inclusive locais vitimados com bombas nucleares de alta destruição.

O grande líder deste período foi os Estados Unidos da América, país emergente em todas as áreas e setores, desde o industrial até o tecnológico e o cultural, além de possuírem a moeda que se tornaria reserva para a nova estrutura econômica internacional. Para agilizar a recuperação global e se consolidar como potência hegemônica, os Estados Unidos levaram sua moeda e suas empresas para as mais variadas regiões, obrigando os outros países a aceitarem suas empresas, seu modelo de produção baseado no fordismo e a aumentar o comércio, a integração financeira e produtiva.

O crescimento do comércio e a integração produtiva, somados ao aumento dos fluxos financeiros consolidaram os Estados Unidos como a grande economia do mundo, levando seu governo a adotar políticas liberais, desde que estas atendessem aos seus interesses econômicos e políticos, ou intervencionistas, desde que fossem positivas para civilização, com isso, garantiram grandes benefícios para sua economia e se consolidavam como a maior estrutura militar da sociedade global, líder em variados setores mas tendo no militar sua grande força bélica e, principalmente, tecnológica e científica.

O modelo difundido pelos Estados Unidos estava centrado, na democracia representativa e na economia de mercado, com separação de poderes e uma maior liberdade para seus agentes econômicos, estimulando o empreendedorismo, a concorrência e a inovação, bases para a construção de uma nova sociedade, mais dinâmica e menos dependente do estado.

Com a ascensão da China nos anos 1990, os Estados Unidos acabaram perdendo a centralidade deste modelo, mesmo tendo sido considerado o grande vencedor da chamada Guerra Fria, os norte-americanos perderam terreno com a ascensão asiática, primeiramente o Japão, a Coréia do Sul e, principalmente, com a chegada da China. Inicialmente, os norte-americanos viram a região oriental como um local para produção com mão de obra mais barata e, posteriormente, vendo-a como um forte competidor, um rival e até para muitos como inimigos, vide a guerra comercial deflagrada contra empresas chinesas.

A ascensão asiática, vista inicialmente como uma grande oportunidade de reduzir custos de produção, já que estes países são dotados de mão de obra abundante e com preços baixíssimos, se mostrou um grande fator de desequilíbrio para toda a economia internacional. Com uma economia mais integrada e interdependente, grandes conglomerados ocidentais passaram a transferir suas estruturas produtivas para os países asiáticos, gerando milhões de empregos e contribuindo para uma vigorosa transformação na estrutura dos países asiáticos.

Nestas regiões da Ásia, milhões de pessoas que viviam em condições de forte degradação, passaram a ser empregados em grandes empresas ocidentais, foram treinados e capacitados para participar dos processos produtivos, com isso, as regiões mais pobres passaram por um grande fluxo migratório para as regiões mais industrializadas, gerando novas ocupações e garantindo um maior crescimento econômico, com fortes impactos sociais e políticos.

Os trabalhadores orientais passaram a trabalhar no setor industrial, foram treinados e capacitados, ao mesmo tempo os governos investiram fortemente em qualificação e expandiram os recursos para a educação básica, transformando alguns países da região em grandes produtores de mão de obra qualificada e fortalecendo a perspectiva de que, num futuro muito próximo, a região se transformará em um grande polo de desenvolvimento tecnológico, gerando inovação, ciência e tecnologia.

Neste movimento os países asiáticos, principalmente, China, Coréia do Sul, Japão, Indonésia, Malásia, Singapura, dentre outros, foram os grandes ganhadores com o processo de globalização, sua participação no comércio internacional cresceu de forma acelerada, galgando novos espaços, atraindo investimentos e se utilizando de uma política pragmática que combina governos fortes e autoritários com uma economia de mercado, centrada na ampla concorrência e competição, é bom lembrar que esta competição só aconteceu quando os países estavam capacitados e suas empresas preparadas, antes disso, o Estado teve um papel central como grande construtor de instituições dinâmicas e eficientes.

O modelo chinês se caracteriza por traços de grande autoritarismo, os cidadãos são reprimidos e são obrigados a seguir as regras implementadas pelo Partido Comunista Chinês, PCC, que define as regras e estrutura todas as instituições. Este modelo ajudou a garantir um crescimento fantástico desde os anos 1980 e foi responsável por um recado negativo para o sistema democrático dos países ocidentais, isto porque deixou em aberto que os regimes autoritários podem garantir crescimento econômico e ganhos sociais consideráveis, ao contrário das democracias ocidentais.

Uma população que sempre viveu, em sua grande parte, na miséria, sob governos autoritários ou em condições de indignidade, moradores de comunidades rurais que sobreviviam em condições degradantes, muitos deles viviam como seus antepassados viveram durante muitos séculos, sem perspectivas e esperanças de melhorias e avanços nas condições de sobrevivência. Nesta situação, a chegada de investidores estrangeiros e um forte planejamento e intervencionismo do Estado, levaram estas populações a um espasmo de crescimento, com melhoras consideráveis na vida, mesmo ganhando pouco, mesmo assim, era algo muito melhor e mais consistente do que ganhavam anteriormente.

A chegada de empresas multinacionais em territórios asiáticos significou, para os países ocidentais a migração de suas empresas para a Ásia, afinal num mundo marcado pela concorrência crescente, os custos da mão de obra fazem a diferença na conquista ou na perda dos mercados. A migração de multinacionais dos países desenvolvidos para a Ásia, significou a perda de empregos e a redução do poder de compra da população dos países desenvolvidos, impactando diretamente sobre a classe média destes países, que viram seus empregos serem reduzidos e suas massas salariais em queda acentuada.

A globalização trouxe benefícios para os países asiáticos, os investimentos estrangeiros criaram bons empregos e alteraram de forma substancial a vida destes trabalhadores, que migraram do campo para as cidades, impulsionaram o crescimento econômico destes países e abriram espaço para novos mercados e setores produtivos dentro da sociedade, incorporando uma região inteira no sistema capitalista de produção.

No lado ocidental os impactos são variados, de um lado, o preço dos produtos que passaram a ser produzido nos países asiáticos se reduziram rapidamente, inundando o mercado mundial com mercadorias de baixo preço e bastante competitivas. De outro lado, os empregos migraram dos países ocidentais para as economias emergentes da Ásia, gerando uma leva de desempregados e subempregados, levando muitas regiões a um amplo processo de desindustrialização, com queda na arrecadação de impostos e graves desequilíbrios para as finanças dos governos estaduais e municipais. Um exemplo interessante deste esvaziamento das regiões, geradas pelo processo de desindustrialização, foi a cidade de Detroit, que sempre se caracterizou pela dependência do setor automobilístico, sua economia girava em torno destes produtos e das cadeias produtivas dos automóveis, com a migração destas empresas para os mercados da Ásia, a região entrou em uma situação falimentar, com graves desequilíbrios sociais, econômicos e políticos.

A fragilização desta classe média em países ocidentais levou uma parcela considerável de seus membros a flertarem com o populismo de direita, apoiando decisões protecionistas e xenofóbicas, além de uma grande hostilidade a imigração e uma ojeriza a órgãos e instituições multilaterais, com isto, estes grupos passaram a flertar com políticas autoritárias e eleger líderes com viés totalitária, fragilizando e colocando em xeque a democracia. As pessoas estão ansiosas em relação ao futuro, e como nos diz a Psicologia, quando ansiosas, olham para o mundo exterior em busca de culpados. Ao propor o fechamento das fronteiras, isso acalma a ansiedade das pessoas mas não resolve os problemas que as afligem.

A classe média passou a se afastar das classes ricas e a se aproximar dos grupos mais depauperados, esta aproximação gerou graves constrangimentos para a classe média e uma grande revolta com relação a sua degradação e perda de centralidade na sociedade contemporânea, alimentando partidos e movimentos de direita ou de ultra direita, que defendiam ideias e prometiam reverter a situação de empobrecimento da classe média, tão central no desenvolvimento das economias e fundamental para setores culturais e de direitos humanos, setores estes abandonados atualmente.

Como destacou Lucas Chancel, um dos coordenadores do Relatório de Desigualdade Global, as promessas da globalização fracassaram para muitos ao redor do mundo: “Onde quer que olhemos ao redor do mundo, na Europa, na América Latina, na América do Norte ou na Ásia, vemos a renda do 1% mais rico subindo brutalmente. São taxas acima de 100% ou de 200% para 1% do topo entre 1980 e hoje. Em alguns países a taxa ultrapassa os quatro dígitos”.

Neste novo modelo, os grupos mais poderosos dos países desenvolvidos e em desenvolvimento conseguiram construir um modelo com grandes benefícios para o capital em detrimento do trabalho, como controlam ou tem muitas influencias sobre os Estados nacionais, controlam estes órgãos e definem as políticas que lhes garantem ganhos consideráveis, com isto as Bolsas batem recordes de rentabilidade, agora, quando percebem movimentos perturbatórios, os capitais fogem rapidamente, esvaziam as Bolsas e geram perdas substanciais, com isso, mostram seu poder e sua capacidade de acumular ganhos consideráveis.

O grande problema do processo de Globalização é que nos últimos anos, os grandes comandantes deste processo, foram os donos do capital financeiro, estes senhores passaram a controlar os recursos disponíveis na sociedade global e transformaram este poder em rentabilidades maiores, garantindo retornos fáceis e astronômicos. Cabe a este grupo de poderosos o controle dos Bancos Centrais, dos Secretários do Tesouro, dos Ministros da Economia e das Finanças e das agências multilaterais, garantindo aos membros ganhos crescentes e aos dissidentes um empobrecimento e um afastamento da inovação e do conhecimento científico e tecnológico.

A classe média perdeu espaço neste modelo, principalmente das cidades menores que apresentam menos oportunidades e esperanças de angariar bons empregos, obrigando-as a migrarem para outras regiões ou cidades maiores, objetivando uma melhor colocação profissional, única forma de manter seus ganhos e vantagens como classe.

Com o crescimento da fome e da pobreza e um enfraquecimento da democracia, percebemos que o processo de globalização apresentou ganhos relativos, neste ambiente de instabilidades e constrangimentos aos perdedores, cabe aos Estados Nacionais uma centralidade maior, organizando as estruturas e garantindo serviços públicos de qualidade e com eficiência, com isso, aliviam os temores da classe média, pois se estes temores crescerem, os movimentos posteriores serão bastante negativos e preocupantes, com impactos generalizados sobre todas as comunidades, no final do século passado estas instabilidades culminaram em duas grandes guerras mundiais, esperemos que neste momento a civilidade e o respeito não abram espaço para a barbárie.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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