A revolução do óbvio, Túlio Augustus Silva e Souza.

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É difícil desconstruir o imaginário de que o bem-sucedido financeiramente é um ente divinal; deslumbramento com bilionários é chaga nacional

Túlio Augustus Silva e Souza, Professor e doutor em sociologia (USP)

Folha de São Paulo, 26/05/2025

Um confiável termômetro sobre o desatino de uma época é a capacidade de seus contemporâneos de se entorpecerem diante de uma simples obviedade. Se, como reza o ditado, em terra de cego quem tem olho é rei, vale acrescentar que, em palco de maluco, quem junta lé com cré vira gênio. Em tempos normais, o óbvio só consegue ser banal. Mas, na era do descalabro, o truísmo pode adquirir status de verdade revelada.

Nessa segunda categoria se insere a pregação de Abigail Disney, herdeira de fortuna e sobrenome que dispensam apresentações. Em entrevista à Folha (“Precisamos parar de idolatrar os ricos, diz herdeira da Disney “, 5/5), a cineasta filantropa, que visitou o Brasil recentemente, disse algo que vem a calhar nestes tempos aziagos. Segundo ela, o mundo precisa parar de idolatrar os ricos, achando que eles sabem mais. Atentemo-nos: cifras demais não necessariamente são neurônios a mais.

Com a autoridade de quem já doou US$ 70 milhões de sua fortuna e diz ter encontrado na filantropia uma felicidade que seu dinheiro antes não comprara, Abigail lidera uma organização de ricaços a favor de uma maior taxação de fortunas. E emenda: “Todo bilionário que não consegue viver com US$ 999 milhões é uma espécie de sociopata”. Lapidar.

Mais do que o passatempo preferido de alguns ricos, o de parecer bonzinho, a exortação da neta de Roy O. Disney (que fundou a The Walt Disney Company com o irmão, Walt) é pílula de sensatez em uma época que tem naturalizado a idolatria a Bilionários, por mais que suas opiniões políticas fascistoides favoreçam tudo, menos um mundo de mais justiça e equidade.

Quando se lembra, conforme pesquisas, que na Faria Lima os nomes de “Marçais e Gusttavos Limas” despontam como líderes desejáveis, a fala de Abigail adquire o peso de uma verdade incômoda.

O deslumbramento com os Tios Patinhas da vida real virou uma chaga que a sociedade brasileira exibe orgulhosa. No Congresso Nacional, de 2025, por exemplo, é mais difícil encontrar um oposicionista defendendo a justa redução dos impostos da cesta básica, conforme preconizado pelo governo, do que um representante do povo afoito para vociferar contra a taxação de fortunas, medida adotada em todo o mundo desenvolvido. A declaração do presidente do PP, Ciro Nogueira, confessando pretender aliviar qualquer aumento de impostos para o 0,006% mais rico é uma evidência da plutofilia da elite nacional.

Noves fora a interrupção de uma sessão congressual que discute um problema coletivo para tirar selfie com a influencer Virgínia Fonseca.

Uma das tarefas mais bem-sucedidas do neoliberalismo a granel nas consciências contemporâneas é exatamente a leitura de que qualquer indivíduo que porventura tenha alcançado a riqueza o fez apenas por méritos próprios, sem qualquer vínculo ou relação com o meio, as circunstâncias ou a sociedade que o cerca. Diante desse imaginário, fica mais fácil heroicizar todo e qualquer milionário.

Acrescente-se ainda uma mentalidade difundida Brasil afora com as novas versões da Teologia da Prosperidade, segundo a qual o sucesso é sempre uma recompensa ao esforço individual. Nesse caldo cultural, portanto, constrói-se a versão idealizada de que o rico, seja ele herdeiro ou “self-made man”, é sempre um incontestável merecedor da riqueza que o precede. Na gramática moral contemporânea, enriquecer via “jogo do tigrinho” é tão louvável quanto ganhar o Prêmio Nobel.

Desconstruir o imaginário de que o bem-sucedido financeiramente é um ente divinal entre os mortais não é tarefa fácil. Corre-se sempre o risco de se resvalar para uma aversão tola à prosperidade, que é sim bem-vinda, obrigado. Mas o apontamento da herdeira de Mickey Mouse faz todo sentido. Estimular que os ricaços doem quantias vultosas a projetos promovedores de equidade é um ato civilizatório. Todos ganham em uma sociedade com menos desigualdade. E que os ricos comecem a se dar conta disso é uma obviedade que pode nos salvar.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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