A violência de Estado organiza o crime no Brasil, por Guilherme Pimentel

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Megaoperação não disparou um tiro nem vimos corpos pelo chão; quem lucra com o ilícito vive em bairros nobres e dispõe de ampla rede de proteção

Guilherme Pimentel, Advogado, é coordenador técnico da Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência de Estado (Raave) e ex-ouvidor da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.

Folha de São Paulo, 05/09/2025

A maior operação contra o crime organizado da história do Brasil ocorreu em São Paulo e atingiu setores da elite econômica nacional. No mercado financeiro, estima-se que foram lavados R$ 30 bilhões do Primeiro Comando da Capital.

Sem disparar um tiro, não vimos corpos no chão nem rostos estampados nos jornais. Quem lucra com o crime vive em bairros nobres e possui uma ampla rede de proteção: dos 14 mandados de prisão, apenas 6 foram cumpridos. O diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, fala em suspeita de vazamento. Nos bastidores, especula-se que instituições estaduais tenham avisado os alvos da operação antes de ela acontecer.

A pesquisa do Latinobarómetro de 2020 sobre facções na América Latina, publicada recentemente pela Universidade de Cambridge, derruba mitos da segurança pública: o punitivismo, a guerra às drogas e a superlotação carcerária alimentam as organizações que o Estado afirma combater. A presença de facções nos territórios não decorre de abandono, mas de logística eficiente e economia pujante. Afinal, abandono não faz chegar armas e munições em lugar nenhum.

A política pública mais duradoura da nossa história é a produção de violência contra a maioria da população. O Brasil a exerce de forma direta, por agentes públicos, e indireta, fomentando um mercado criminal. Facções não nasceram nas periferias, mas em presídios, batalhões, delegacias e palácios.

O Estado, enquanto extermina a população negra e periférica, organiza a economia da violência e promove um necromercado de armas e segurança privada. A “ordem” imposta por facções é efeito da repressão oficial, uma terceirização da violência, conveniente para produzir lucros e, ao mesmo tempo, absolver o próprio Estado, simulando sua “ausência” das cenas do crime.

A violência estatal eleva os valores de corrupção e aquece o mercado de armas. Os discursos que enaltecem a letalidade policial escondem queimas de arquivo e favorecimentos a determinados grupos.

São as agências de segurança que matam ou encarceram chefes de quadrilhas, gerando substituições convenientes. A miséria fornece mão de obra descartável, sem direitos. Rachas estimulados por agentes públicos intensificam disputas e competitividade no mercado criminal. É capitalismo selvagem: trabalho barato, sem regulação ou proteção.

As raízes são históricas. Desde a colonização, o Estado se organiza como produtor sistemático de violência: do extermínio indígena e da escravidão ao encarceramento em massa e às chacinas, sem políticas de memória, verdade, justiça e reparação. Essa continuidade explica por que o Brasil lidera o ranking latino-americano de “governança criminosa”: 26% da população —cerca de 61 milhões de pessoas— vivem sob regras impostas por facções.

O modelo de gestão social armada age diretamente por agentes públicos ou terceiriza sua ação ao crime organizado. Seus lucros irrigam a indústria bélica e os próprios aparelhos estatais. Não é a ausência do Estado que gera o crime organizado, mas sua presença violenta, que preserva privilégios coloniais e transforma o sangue da população negra e pobre em recurso econômico a serviço do lucro de poucos.

Enquanto não desmontarmos essa máquina, seguiremos alimentando aquilo que fingimos combater. A dicotomia entre violência de Estado e violência criminal é falsa: combater o crime exige menos violência e mais controle nas agências de justiça e segurança, além de respeito aos direitos humanos —única forma de frear o crime e o derramamento de sangue no Brasil.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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