Alberto Acosta: “Governos progressistas apostaram na expansão do extrativismo”

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Nessa entrevista, Acosta fala sobre os temas de seu último livro e como os governos da América do Sul, progressistas ou não, têm se utilizado das práticas extrativistas para criar um desenvolvimento econômico predatório.

*Raul Galhardi é jornalista – Le Monde Diplomatique.

Político, economista, ex-ministro, ex-presidente da Assembleia Constituinte do Equador, candidato à Presidência e autor de obras como “Pós-extrativismo e Decrescimento — saídas do labirinto capitalista” (Autonomia Literária e Elefante), seu livro mais recente. Pode-se dizer que Alberto Acosta se encaixa na definição de Gramsci de “intelectual orgânico”, para quem o trabalho intelectual deve estar diretamente ligado ao papel de organização e de condução do movimento político transformador.

Nessa entrevista, Acosta fala sobre os temas de seu último livro e como os governos da América do Sul, progressistas ou não, têm se utilizado das práticas extrativistas para criar um desenvolvimento econômico predatório. Ele também aborda o processo que elaborou a Constituição de Montecristi em 2008 e o que restou dela nos sucessivos governos equatorianos, atacando principalmente seu antigo aliado, o ex-presidente Rafael Correa, a quem denomina como “caudilho do século XXI”.

Por fim, faz comentários sobre as eleições brasileiras, que elegeram o representante da extrema-direita Jair Bolsonaro (PSL), e diz o que esperar dessa conjuntura política mundial de radicalização do conservadorismo.

Como você explicaria, resumidamente, os conceitos de pós-extrativismo e decrescimento? Eles podem ser aplicados na vida cotidiana dos indivíduos sem a necessidade de políticas públicas governamentais?

O decrescimento e o pós-extrativismo poderiam ser vistos, em uma aproximação bastante simples, como dois lados da mesma moeda. São dois processos em andamento e que começam a convergir.

Especialmente no Norte global, há uma consciência crescente da necessidade de superar o vício do crescimento econômico, que está causando cada vez mais danos ambientais e sociais. No Sul global, a resistência contra o extrativismo aumenta à medida que as sociedades entendem que uma forma de acumulação baseada na exportação de produtos primários as mantém amarradas de maneira submissa ao mercado mundial, em estado de permanente prostração.

O decrescimento, entretanto, não pode ser confundido com uma crise econômica vulgar. Ele convida a construir economias e, sobretudo, sociedades que garantam uma vida digna a todos os seres, humanos ou não. Já o pós-extrativismo nos confronta com a necessidade de superar a dependência das exportações de bens primários, com todas as suas consequências de subdesenvolvimento, marginalização e das múltiplas violências.

Esses processos, para se transformarem em poderosas forças transformadoras, requerem políticas nacionais. No entanto, à medida que essas ideias ganham força, tanto no Norte como no Sul, multiplicam-se alternativas concretas que começam a caminhar nas direções propostas por esses horizontes transformadores.

Após um ciclo de direita neoliberal, na década de 90, e um ciclo de esquerda progressista nos anos 2000, a América do Sul está entrando num novo ciclo de direita liberal. Porém, todos esses ciclos, segundo seu livro, se baseiam nos ideais extrativistas. Como discutir ideias como decrescimento e pós-extrativismo em países que ainda não podem ser considerados desenvolvidos, como os países latino americanos?

O ponto de partida é reconhecer que os governos neoliberais e os governos progressistas colocaram suas expectativas de desenvolvimento em uma expansão acelerada do extrativismo. Em nenhum caso ocorreu a transformação da matriz produtiva. O Brasil é o melhor exemplo: o país se “reprimarizou” e se desindustrializou de maneira notável.

Países com governos progressistas sequer tentaram afetar a lógica de acumulação de capital. Trataram apenas de modernizar o capitalismo. É por isso que, embora tenham reduzido a pobreza, graças ao enorme rendimento das exportações de matérias-primas, os ricos enriqueceram ainda mais. Em suma, é preciso diferenciar governos progressistas do que poderiam ter sido governos de esquerda.

Para responder a pergunta, é preciso entender que o desenvolvimento é um fantasma. A questão de quantos países conseguiram se desenvolver nos últimos 70 anos (período decorrido desde o apelo global para superar o subdesenvolvimento, do discurso do presidente americano Harry Truman) se complica ao se descobrir que os chamados países desenvolvidos não o são. Na realidade, estes são países mal desenvolvidos.

Portanto, a discussão do pós-extrativismo e do decrescimento é importante para o Sul global a fim de encontrarmos nossas próprias alternativas que nos permitam simultaneamente reconciliar a justiça social com a justiça ecológica. Uma não é possível sem a outra, superando a armadilha do desenvolvimento e sua referência ideológica dominante: o progresso.

Você vê espaço para a difusão das ideias pós-extrativistas e de decrescimento no mundo diante da conjuntura política atual? Como você enxerga medidas adotadas por diversos governos no mundo que tem como objetivo aumentar os índices de felicidade das suas populações, como reduzir jornadas de trabalho e aumentar salários?

Se analisarmos o mundo a partir das grandes manchetes, das notícias da grande mídia, uma profunda depressão pode chegar até nós. Parece que marchamos no sentido contrário a uma história de emancipação humana, de construção de relações harmônicas com a natureza. Mas se prestamos atenção e silenciamos em termos metafóricos, podemos ouvir a respiração de um futuro de profundas e múltiplas transformações… em diferentes cantos do planeta, no Sul e no Norte, emergem alternativas muito concretas de todos os tipos e que vão muito além da redução da jornada de trabalho e do aumento de salários.

Deve-se notar que a redução das jornadas de trabalho deve vir de mãos dadas com outros padrões de consumo e outras maneiras de organizar a vida longe do individualismo, consumismo e produtivismo. É hora de ficar claro que precisamos recuperar e assumir o controle de nossas próprias vidas, do nosso trabalho e do nosso lazer.

Não se trata apenas de defender a força de trabalho e recuperar o tempo de trabalho excedente para os trabalhadores, mas opor-se à exploração da força de trabalho, recuperando o direito ao ócio como um direito humano. Em jogo está, além disso, a defesa da vida contra esquemas antropocêntricos de organização socioeconômica que destroem o planeta via degradação e depredação ambiental.

Você foi aliado de Rafael Correa e presidiu a Assembleia Constituinte do Equador, que incluiu conceitos inovadores como ter a Pacha Mama (“Mãe Terra”) como sujeito de direitos. No entanto, durante este processo da Constituinte, o senhor tornou-se crítico do governo Correa. O que motivou esta mudança de postura?

Quem mudou de postura foi Correa. Ao se tornar o caudilho do século XXI, ele enterrou as propostas iniciais de ceder a processos apoiados por uma democracia radical. Ao expandir o extrativismo, consolidou a economia primária de exportação, essencialmente subdesenvolvida e dependente. Ele fechou a porta para mudanças civilizacionais como a proposta pelo “Bem Viver” ou “sumak kawsay”. O fato de não dar lugar a uma mudança na matriz de acumulação de capital deu apenas alguns passos para modernizar o capitalismo.

Portanto, considerando todos os elementos — econômicos, políticos, constitucionais, internacionais — que ele tinha a seu favor, podemos dizer que sua gestão se tornou uma década desperdiçada. E o que é mais grave, ao enfraquecer sistematicamente os movimentos sociais e ao ter dado passos concretos para voltar ao neoliberalismo desde 2014, Correa deixou a mesa para o retorno da direita neoliberal e oligárquica.

Os ideais presentes na Constituição chegaram a serem implementados de fato? O que mudou nas políticas públicas do Equador após a homologação da Constituição?

A Constituição de Montecristi foi retardada em sua cristalização especialmente pela ação de Correa. Para o caudilho Correa, a Constituição tornou-se uma camisa de força e por isso foi o primeiro e principal violador da Constituição ao atropelar direitos e garantias. Por exemplo: ele impediu o Equador de ter uma justiça autônoma e independente pela primeira vez. Ele “meteu a mão na justiça”.

Correa, como modernizador do capitalismo, não entendeu a Constituição e, portanto, não fez nada para cristalizá-la. O caso dos Direitos da Natureza, entre muitos outros, é um forte exemplo.

A própria sociedade, especialmente os movimentos sociais que encorajaram as grandes mudanças constitucionais, não se empoderou da Carta Magna e não a transformou em uma ferramenta revolucionária. Essa é uma tarefa ainda pendente.

Em 2013, você candidatou-se à Presidência da República por uma coalizão de movimentos políticos, sociais e indígenas (Unidade Plurinacional das Esquerdas), mas obteve pouco apoio popular, acabando em sexto lugar nas eleições. A que atribui este resultado?


Isso é explicado por vários fatores. Além de saber se o candidato era adequado, não tínhamos a capacidade de nos sintonizar com as exigências de uma sociedade que vivia uma euforia consumista em meio a um regime cada vez mais autoritário. “A cenoura na vara” sustentava o poder do caudilho do século XXI (Rafael Correa).

Nosso esforço visava resgatar os elementos-chave da Constituição; incorporar novos tópicos na vida nacional, tais como os plenos direitos das mulheres e a liberdade das opções sexuais; e consolidar uma grande frente: a Unidade Plurinacional de Esquerda. Para além do fracasso eleitoral, a grande derrota política que encontro neste último ponto foi uma tentativa orientada para consolidar a unidade de uma nova esquerda que tem que ser simultaneamente socialista, feminista, ambientalista e anticolonial, como também portadora de transformações democráticas radical.

Como você enxerga o atual governo de Lenín Moreno? Pode-se afirmar que ele segue os princípios presentes na Constituição?

O governo de Moreno, que surgiu por desígnio de Correa, acelerou os passos neoliberais e extrativistas de seu antecessor e mentor. Enfatizo, porém, que com Moreno se recuperaram espaços de liberdade e tranquilidade política. Mas ele, como Correa, é outro tijolo na parede da dominação burguesa e transnacional no Equador.

Você assinou um manifesto internacional de intelectuais contra o agora presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL). Qual a sua opinião sobre a vitória e um futuro governo dele?

As ameaças que este político, de passado obscuro, representa para o Brasil e toda a região são enormes. Ele tem o apoio de enormes poderes, além de um segmento majoritário da sociedade brasileira. Porém, no Brasil, existe um arcabouço legal e institucional que estabelece alguns limites que podem impedir arroubos excessivos. Também entendo que nesse grande país existem setores da sociedade que estarão dispostos a defender a democracia. Tenho muita fé na força democrática do povo brasileiro.

Eu entendo de alguma forma as razões para o fracasso do PT e o triunfo de Bolsonaro. Sem ser a única explicação, fica claro que o fracasso dos progressistas, caracterizado por seu extrativismo exacerbado, cria as condições para o surgimento de governos ultraconservadores com traços fascistas. A esquerda é obrigada a aprender com o que aconteceu no Brasil. Ela tem que assumir um enorme desafio, porque para uma grande parte da sociedade o fracasso do progressismo — que sintetiza até mesmo uma derrota cultural e simbólica de muitas ilusões e promessas de mudança — é também uma frustração atribuível à esquerda.

Em toda a América Latina, os vários grupos políticos conservadores realizam uma interação ativa de eventos para desacreditar qualquer opção à esquerda, insistindo que elas são impossíveis, fatalmente tingidas de corrupção e até mesmo de sangue, e assim por diante. As graves crises democráticas — não apenas econômicas — da Venezuela e da Nicarágua se misturam com a crise do PT no Brasil.

Entretanto, a crise brasileira mostra a urgência de insistir nas diferenças entre progressistas e esquerdas. É que muitos dos problemas do Brasil — não todos — resultam da gestão confusa e contraditória do governo do PT e seus aliados que, pouco a pouco, se esqueceram de seus objetivos esquerdistas iniciais para se transformarem em progressistas. Eles nunca esconderam isso e fizeram disso um dos seus atributos. Portanto, uma primeira lição crucial é que esquerdas e progressistas não são a mesma coisa.

Você considera viável a eleição de mais representantes da extrema-direita em países da América do Sul ou considera que este é um fenômeno que ficará restrito ao Brasil?

O ambiente na América Latina e em outros lugares, como vemos na Europa, está repleto de elementos propícios ao surgimento e consolidação de governos de ultradireita. O mau exemplo que o Brasil dá nesse sentido alimenta ainda mais essas tendências. Porém, também confio no povo que, mais cedo ou mais tarde, encontrarão novos rumos de dignidade e democracia.

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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