Alimentos industrializados estão acabando com culturas locais, diz médico

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Um dos mais relevantes pesquisadores brasileiros, Carlos Monteiro critica malefícios da indústria e dos ultraprocessados

Gabriel Alves – Folha de São Paulo 04 demais de 2019

SÃO PAULO 

Se alguma vez você ouviu que deve evitar os alimentos ultraprocessados pelo bem da sua saúde, agradeça ao médico Carlos Augusto Monteiro.

Cunhado por ele, o termo ultraprocessado se refere a alimentos que são feitos essencialmente a partir de matéria-prima barata (farinha, óleo e açúcar, por exemplo) e aditivos que dão cor, sabor, textura e outras características para tornar o alimento mais atraente. Macarrão instantâneo, salgadinhos e refrigerantes fazem parte da lista.

Monteiro, que é professor titular da USP e um dos mais relevantes pesquisadores brasileiros segundo o relatório Highly Cited Researchers, da consultoria Clarivate Analytics, afirma que o mundo está se alimentando de uma forma cada vez mais padronizada e, por isso, a cultura gastronômica está de perdendo. Obesidade, diabetes, hipertensão, câncer e outras doenças associadas ao consumo de alimentos de baixa qualidade nutricional estão aumentando.

E, para ele, a indústria que produz os ultraprocessados tem culpa no cartório.

Apesar de o consumo desses alimentos ter aumentado nas últimas décadas no Brasil, seu nível não se compara ao de países como EUA e Inglaterra, onde mais da metade das calorias diárias ingeridas vem de alimentos processados. Mas ainda há tempo de reverter a tendência no Brasil, diz o professor.

“Em outros países as pessoas não cozinham, têm só um micro-ondas e geladeira em casa. Tudo é pronto, o café é instantâneo. Aqui as pessoas se sentam à mesa para comer. A gente ainda não passou do limite em que recuperar a alimentação tradicional significa voltar a ter um fogão em casa”.

Monteiro participa de discussões na ONU, coordenou a elaboração do “Guia alimentar para a população brasileira” e idealizou o Vigitel, sistema que, por meio de contato telefônico, estima os fatores de risco para doenças crônicas presentes no Brasil. Aos 71 anos, apesar do cenário desfavorável que descreve, ele se diz otimista.

“A nossa relação com a comida é algo bonito, intangível, e está mais perto da que franceses e italianos têm do que a dos americanos. Talvez isso explique o sucesso dos programas de culinária.”

Processamento de alimentos
Nos anos 1980 e 1990, o alimento sai do campo para as fábricas. Da soja, tira-se o óleo, do milho e do trigo, o carboidrato; da cana, o açúcar.

Os alimentos ultraprocessados são feitos juntando um ou mais desses elementos com muita tecnologia e aditivos cosméticos, como corantes, saborizantes, texturizantes.

Hoje já são mais de 2000 aditivos aprovados. Eles permitem que você pegue farinha de trigo e açúcar, coloque uma gota de um saborizante de amêndoa e crie um biscoito que parece ter usado 10% de amêndoas na receita. O lucro é enorme.

Uma fábrica dos EUA pode comprar soja do Brasil, milho do México e açúcar da Jamaica pelo preço mais barato, juntar tudo numa fábrica de alta tecnologia usando esses aditivos e produzir uma linha de produtos de baixíssimo custo e que competem com o que chamamos de alimento de verdade, que não passou por uma reengenharia.

O DNA do queijo é o leite; do pão, o trigo. E no alimento ultraprocessado? Você não sabe. Você olha na lista de ingredientes e não consegue nem entender o que tem ali. Milhares de produtos processados são lançados a cada ano: refrigerantes, snacks, doces, miojo, maionese, caldo de carne.

Riscos à saúde
Se você coloca no seu organismo todo dia 15 ou 20 moléculas estranhas, a chance de todas serem ruins para a saúde é pequena, mas a chance de pelo menos uma criar problemas é grande.  Quem contrata os testes de segurança para liberar os aditivos é a própria indústria.

Ela usa modelos experimentais para saber se esses aditivos causam câncer em algumas semanas ou meses, mas há muitas outras doenças que eles podem gerar. Existe uma preocupação toxicológica. Imagina se eles estão avaliando inflamação crônica? Não há segurança nessa questão.

Gigantismo das indústrias
Em vez de dez indústrias, deveria haver 10 mil e uma lei antitruste — a partir de um número determinado de funcionários, a empresa teria de se dividir ou vender uma parte. Antes não havia esse oligopólio. Um problema desse gigantismo é que essas grandes empresas compram até a ONU.

A ONU é subfinanciada, não há recursos suficientes para as atividades. Quando vão fazer um encontro com especialistas, uma empresa paga por tudo, aluga o local. Isso põe em risco a independência.

No futuro os problemas causados pela indústria de alimentos, como aqueles causados pelo aquecimento global, vão ficar mais evidentes. A economia vai sofrer. Essas dez empresas ganham dinheiro, mas e o restante?

Empresas de seguro saúde podem se tornar inviáveis. Outros setores que não lucram com alimentos estão pagando a conta.

Financiamento de pesquisas
A indústria de alimentos não está preocupada em financiar a pesquisa, mas em cooptar o pesquisador. Isso é péssimo.

O fato de existir uma Fapesp aqui no estado de São Paulo, o CNPq, a Finep, e o Ministério da Saúde, que financiam pesquisas, permite que meu grupo de pesquisa [que tem cerca 30 pessoas] tenha só dinheiro público, o que é uma coisa impagável. A gente não existiria sem esse apoio.

Não temos tido tanta dificuldade para obter financiamento. O difícil é obter recursos humanos. Diferentemente das universidades estrangeiras, aqui ou a pessoa é o professor —vitalício— ou estudante.

Não há posições intermediárias, não se pode contratar uma pessoa para atuar num projeto específico, por dois, três anos, nem com dinheiro da Fapesp.

Ricos X pobres
A teoria que formulamos é que os grandes problemas da alimentação no Brasil e em outros lugares do mundo estão ligados ao consumo de muito açúcar, muito sódio, muita gordura saturada, muita gordura trans, pouca proteína, pouca fibra, poucas vitaminas e minerais. E isso está relacionado à quantidade de ultraprocessados que as pessoas consomem.

Hoje, pessoas ricas se alimentam pior do que as mais pobres do ponto de vista do risco de adquirir doenças crônicas. Curiosamente, no Brasil os produtos ultraprocessados ainda são caros. O agricultor ganha muito pouco, vende barato na feira. Em países como os EUA é tudo mais caro.

As pessoas acham que uma pessoa é gorda porque ela come muita fritura e muito doce feito em casa.

Mas quando você olha as estatísticas, essas pessoas não estão comprando mais óleo, mais açúcar… O que entrou no lugar? Biscoito, guloseimas em geral, salgadinhos, refrigerantes, bebidas lácteas, miojo.

Quantidades
Muita gente se convenceu de que o alimento ultraprocessado não é bom, mas acha que não há muito o que fazer e que temos que nos acostumar. Isso implica em aumentar as cadeiras dos aviões e achar remédios melhores para diabetes, como se fosse um novo padrão. Seria algo semelhante à adaptação às mudanças climáticas que já estão por aí.

A ideia não é fazer as pessoas voltarem a plantar seu próprio alimento. A discussão de política pública não é essa. Na América Latina, o consumo de ultraprocessados não é tão alto. Se a pessoa almoça e janta comida de verdade, a ingestão de ultraprocessados não passa de 20%. Mas se ela troca o almoço por fast food e come uma lasanha congelada no jantar, esse valor passa de 50%.

Aqui a gente ainda está no refrigerante, no salgadinho um dia ou no outro. Nos EUA, quase não se acha quem coma menos de 30%.

Marketing da indústria
As multinacionais sabem que é preciso destruir a cultura alimentar para vender o produto deles. E fazem bons truques de marketing. As misturas para bolos, por exemplo, pedem para colocar ovo, um copo de leite… Não precisaria, mas assim a pessoa tem a sensação de que está realmente fazendo o bolo.

A pessoa diz que é mais prático, que não tem que lavar louça… O cara começa a enunciar o que está ganhando, mas se esquece de que alimentação não é como escolher a gasolina do carro pelo preço e pela rapidez do serviço. Alimentação é muito mais do que isso.

OUTRO LADO

Para João Dornellas, presidente executivo da Abia (Associação Brasileira de Indústria de Alimentos), que congrega gigantes como Nestlé, Pepsico, Ambev, Coca-Cola, Unilever, entre outras, não há respaldo científico para a classificação de um alimento como ultraprocessado.

“Um mesmo tipo de alimento pode ser produzido de diferentes formas, assim como variam as receitas culinárias. É possível fazer um salgadinho em casa, do tipo batata chips, com os mesmos ingredientes que a feita pela indústria: batata, óleo e sal. Por que a industrializada seria “ultraprocessada” e a caseira não?

Os aditivos alimentares, explica, são aprovados pelo JECFA, um comitê conjunto da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).

“Nos primórdios da civilização, os caçadores já salgavam a carne para que ela durasse mais. É o mesmo sódio que hoje é usado pela indústria para diminuir a umidade, que propicia a proliferação de bactérias”, diz Dornellas.

“Os aditivos evoluíram para atender a processos produtivos muito mais complexos, mas isso não os transforma em ingredientes nocivos. Pelo contrário: continuam sendo sistematicamente testados e utilizados para cumprir funções tecnológicas desejadas, tais como conservantes, estabilizantes, gelificantes, espessantes e fermentos químicos.”

Com relação ao aumento de obesidade e de outras doenças crônicas, Dornellas diz que a indústria se vê como parte da solução do problema “no que diz respeito ao papel dos alimentos para a promoção da saúde”. Além de fornecer alimentos de qualidade e saudáveis, diz ele, a indústria está informando melhor os consumidores para que eles consigam de forma consciente equilibrar a dieta de acordo com os alimentos disponíveis.

Entre as iniciativas está a redução de teores de gorduras trans, sódio e açucares em alimentos industrializados. Algumas das vantagens de alimentos processados, diz ele, são a praticidade e a possibilidade de fortificá-los com vitaminas das quais a população necessita ou enriquecê-los com fibras e proteína. Também é possível permitir a adequação a dietas especiais, como as sem lactose ou glúten.

“O alimento industrializado não tem o objetivo de substituir a alimentação tradicional porque faz parte dela. Muitos pratos da culinária brasileira incluem, em sua preparação, ingredientes industrializados. Não só no Brasil, mas no mundo inteiro, comer bem é comer de tudo. As comidas tradicionais ou típicas continuam na mesa dos brasileiros. Isso é uma das riquezas do Brasil, que a indústria reconhece e valoriza”, diz.

Para ele, enxergar a indústria como inimiga da população é um equívoco. O setor emprega 1,6 milhão de pessoas no país e processa quase 60% de tudo que é produzido no campo no país.

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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