Gustavo Hasselmann – A Terra é Redonda – 11/10/2025
O mesmo sistema que prometeu liberdade através das plataformas entregou o controle algorítmico total, transformando o sonho do empreendedorismo no pesadelo da jornada interminável sem direitos ou horizonte coletivo
1.
O trabalho é inerente à condição humana. Ele é vital para o homem na vida em sociedade. Ele opera transformações na natureza e na sociedade. Para muitos, impera o adágio popular: o trabalho “dignifica o homem”.
Ao longo de mais de cinco séculos, o trabalho, no ocidente, conviveu com as várias formas de capitalismo: comercial, industrial e financeiro, este último a partir dos anos 70 do século passado.
No capitalismo que vigeu nos 30 anos dourados do ocidente, em que o trabalho se dava, preponderantemente, no chão da fábrica, imperavam os sistemas fordista e taylorista. Principalmente a partir do pós segunda guerra mundial, o trabalho visava a produção em massa de mercadorias, como automóveis, máquinas, eletrodomésticos etc.
Para Michel Foucault, era a época da sociedade disciplinar, em que, nos hospitais, nas escolas, nos presídios, nas fábricas etc., as regras e valores eram impostos de forma cogente em prol do sistema capitalista.
Nesse diapasão, vale citar e transcrever excerto da lavra de Ricardo Antunes: “Se no apogeu do taylorismo -fordismo a força de uma fábrica mensurava-se pelo número de operários – o operário – massa magistralmente representado por Charles Chaplin em tempos modernos – , podemos dizer que, na era da acumulação flexível e da “empresa enxuta”, as empresas que se destacam são aquelas que empregam o menor contingente de força de trabalho, pois com o avanço tecnológico, elas podem aumentar fortemente os seus índices de produtividade”.[1]
Com efeito, nesse período áureo do capitalismo objetivava-se a produção. O sistema financeiro, majoritariamente, estava voltado para financiar a produção em massa. Vigia a regulação do capital e as regras estabelecidas nos acordos de Bretton Woods. O câmbio era fixo e lastreado no dólar e no ouro, o que veio a desaparecer a partir dos anos 70 do século passado, quando o câmbio passou a ser flutuante, com arrimo exclusivamente no dólar.
O filósofo germânico – coreano, Byng Chul Han, em A sociedade do cansaço, assim descreve a passagem da sociedade da produção\disciplinar (período fordista-taylorista ) para a sociedade do desempenho: “A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade do desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais sujeitos da obediência, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos”.[2]
2.
Efetivamente, o trabalho prioritariamente na indústria – com a desregulamentação do capital e o advento das tecnologias, no trabalho e nas fábricas, que geraram um grande desemprego – foi transferido para o setor de serviços e financeiro. Houve um grande processo de desindustrialização, que no Brasil começou a partir dos anos 80 do passado e dura até hoje. O capitalismo produtivo cede espaço à financeirização, leia-se, rentismo, que campeia sob a doutrina neoliberal.
Antonio Negri e Michel Hart – com a saída da hegemonia fabril e o ingresso da predominância do setor de serviços, inclusive digitalizados e plataformizados – empregam o conceito de “fábrica social” para designar estes últimos, onde a produção se entrelaça com as formas de vida no tecido social: “A fim de restabelecer margens de lucro que não podiam mais ser extraídas das fábricas, o capital teve de colocar o terreno social para trabalhar, e o modo de produção teve de ser ainda mais entrelaçado às formas de vida. Enquanto processos industriais automatizados produziam maior número de bens materiais, desenvolveram-se, do lado de fora das fábricas robotizadas, “serviços” produtivos cada vez mais sofisticados e integrados que combinavam tecnologias complexas com ciência fundamental, serviços industriais e serviços humanos. Nessa segunda fase a digitalização tornou-se mais importante que a automação. Com efeito, é essa característica que dissemina por toda a sociedade uma transformação técnica da força de trabalho que já havia se dado na fábrica. Aqui, então, ao fim dessa marcha selvagem, temos a entrada triunfal dos computadores e das redes sociais, que unem a automação das fábricas à digitalização da sociedade, dos modos de produção e das formas de vida: o autômato administra e controla a sociedade por meio de algoritmos”.[3]
Efetivamente, emerge, a partir dos anos 80 do século passado, o trabalho uberizado ou plataformizado, ou melhor, melhor o trabalho na era digital.
Ricardo Antunes, a respeito do trabalho digital, assinala o seguinte: “Uma de suas formulações centrais talvez possa assim ser resumida: em plena era da informatização do trabalho, do mundo maquinal e digital, estamos presenciando o nascimento e ampliação do “cibertariado”, o proletariado que trabalha com informática, com o mundo digital, e que, paralelamente, vivencia uma pragmática moldada cada vez mais pela precarização que muda profundamente a forma de ser do trabalho”.
Com efeito, nesse particular, há que se realçar que o trabalho dos motoristas por aplicativo é por demais precarizado. Eles ganham pouco, trabalham horas intermináveis, sob a direção do aplicativo, têm que custear as despesas de manutenção dos veículos etc. Não têm direitos trabalhistas e previdenciários assegurados.
O governo Lula, para minorar o problema vivenciado por eles, editou o PLP 12\2024, que é muito pífio e inexpressivo no combate a essa exploração, tendo estabelecido, pasmem, o limite de 12 horas para a jornada de trabalho.
De outro lado, nesse diapasão, o STF, contrariando orientação firmada no TST, não vem reconhecendo a relação de emprego entre os motoristas por aplicativo e as empresas de plataforma.
Ademais, esperava-se que o governo Lula 3 revogasse, como ele prometeu em campanha, a reforma trabalhista de Michel Temer, primeiramente, aprofundada no governo Bolsonaro depois. Ela mudou completamente as relações de trabalho no Brasil, aviltando os diretos dos trabalhadores. Criou o trabalho intermitente, em que o trabalhador só recebe o salário quando trabalha e é chamado para tanto, não tendo direitos trabalhistas e previdenciários assegurados.
Concebeu também o trabalho terceirizado, tanto para a atividade meio como para a atividade fim, o que foi chancelado pelo STF. Fez prevalecer o acordado sobre o legislado, em detrimento de direitos anteriormente conquistado, com muito suor, sangue e luta, pela classe trabalhadora. Reduziu a importância tanto do Ministério do Trabalho, como da Justiça do trabalho. Neste último caso, visando reduzir o número de demandas trabalhistas, impôs pesados custos judiciais para os trabalhadores, tais como pagamento de honorários de advogado, custos com perícia etc, etc. De outro lado, dita reforma não baixou o índice de desemprego no país, como prometido pelos Presidentes da República da época, parlamentares de direita e empresários.
3.
Outro aspecto a ser destacado, na esteira do pensamento de Byng Chul Han, é que, na sociedade do desempenho em que vivemos na atualidade reina absoluto o individualismo na vida e no trabalho. O trabalhador, empresário de si mesmo, quer sempre superar o seu concorrente, trabalhando horas intermináveis por dia. Ele também procura “bater metas”.
Com a era digital, ele não tem jornada de trabalho fixa, pois trabalha de forma extenuante dia e noite, através do celular e do computador. Ao mais das vezes, até mesmo nas atividades de entretenimento, ele presta um trabalho adicional e não remunerado para os empresários de plataformas digitais e para as empresas que comercializam produtos e serviços.
Outra forma de trabalho atual, cujo desfecho sobre a sua legalidade ou constitucionalidade pende de julgamento do STF, é a pejotização. Nesta relação laboral os trabalhadores são tratados como empresas, tendo CNPJ e tudo mais. Ao que tudo indica, se o STF reconhecer a validade desse tipo de contratação, assistiremos ao fim do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho.
Desse modo, para arrematar, como o capital precisa do trabalho, e sempre vai precisar, para sobreviver, embora a precarização deste, fazemos votos de que um trabalho mais humanizado, num futuro bem próximo, venha a existir no país e no sul global.
Só que vejo isso não acontecer, nem mesmo nas sociais democracias fortes do ocidente, muito menos no sul global. Antevejo, pois, como utopia, o advento do socialismo como solução para esses e outros problemas vivenciados pela humanidade nessa quadra.
Gustavo Hasselmann é procurador do município de Salvador.
Notas
[1] Ricardo Antunes. Capitalismo pandêmico, editora Boitempo, pag. 94.
[2] Byng Chul Han. A sociedade do cansaço, editora Vozes, pag. 23.
[3] Antonio Negri e Michel Hart. A organização multitudinária do comum. São Paulo, Politeia, 2018, p. 152.
[4] Ricardo Antunes, Capitalismo pandêmico, pag. 125.