Ricardo Abramovay – Valor 09 de maio de 2019
Relatórios globais mostram papel crescente das humanidades nas avaliações de impacto.
Não são apenas intrínsecas as razões do crescente prestígio da pesquisa e do ensino de sociologia e filosofia nas principais universidades do mundo. Elas são também instrumentais no enfrentamento daqueles que o Future of Humanity Institute, da Universidade de Oxford considera os três maiores riscos enfrentados pelas sociedades contemporâneas: uma guerra atômica, as mudanças climáticas e a inteligência artificial.
À primeira vista são temas em que físicos, climatologistas e programadores seriam os únicos legitimamente credenciados a oferecer conselhos aos tomadores de decisões. Mas esta é uma falsa impressão. Por maiores que sejam os problemas e os limites da pesquisa e do ensino das ciências do homem e da sociedade (e não só no Brasil) elas são chamadas a desempenhar um papel decisivo na civilização tecnológica: o de saber por que razão fazemos ou devemos fazer o que fazemos. Renunciar ou minimizar este papel impede que a sociedade tenha opções refletidas sobre o rumo de suas relações com a natureza e sobre a maneira como nos relacionamos uns com os outros, ou seja, sobre nossa própria sociabilidade.
Um dos mais férteis caminhos pelos quais avançam o conhecimento destes riscos e a elaboração de políticas para evita-los são os relatórios de impacto global. No que se refere a temas socioambientais, o primeiro trabalho neste sentido, de 1977, foi elaborado pela OCDE. Trata-se da Avaliação de Longo Alcance sobre o Transporte de Poluentes Atmosféricos. Desde então já foram publicadas nada menos que cento e quarenta Avaliações Ambientais Globais, como as que deram lugar, em 1987, ao Protocolo de Montreal (que formulou políticas que reduziram o risco de destruição da camada de ozônio), o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), fundamental no estabelecimento de limites para o aumento da temperatura global média ou o Global Environment Outloock, do qual a sexta edição foi divulgada recentemente em Nairóbi.
Para que se tenha ideia da magnitude do empreendimento científico contido nestes relatórios, é importante saber que o primeiro relatório do IPCC, de 1990, envolveu 607 autores. Já o quinto relatório, publicado em 2014, contou com a contribuição de nada menos que 2.330 autores. Além destes, chegam a 143 mil os pesquisadores que fizeram leitura crítica e emitiram pareceres quanto a seu conteúdo.
Como mostra o importante programa de pesquisa voltado ao estudo destas avaliações, elas passaram por transformações fundamentais.
O reconhecimento do desenvolvimento sustentável como o mais importante valor do Século XXI, a partir do relatório Brundtland, de 1987, abriu caminho a mudanças decisivas no formato, nos atores e no conteúdo das avaliações ambientais globais. Antes disso, os relatórios preconizavam políticas de comando e controle, apoiavam-se fortemente no setor governamental, convocavam especialistas vindos quase exclusivamente das ciências naturais, voltavam-se a temas tópicos, como lixo ou poluição e silenciavam sobre temas de equidade socioambiental
A partir dos anos 1990 as políticas preconizadas passam a apoiar-se fortemente em mecanismos de mercado e na participação de organizações da sociedade civil. A diversidade de atores se amplia, com papel de destaque para Organizações Não Governamentais, que adquirem competência técnica e científica para esta participação. Os temas tratados vão além de assuntos tópicos e envolvem os modelos de produção e consumo. A ênfase em desigualdades e justiça é crescente. Com isso os relatórios passam a ter como foco não mais problemas “ambientais”, mas voltam-se ao estudo das dinâmicas resultantes das relações complexas entre sociedade e natureza. As ciências do homem e da sociedade ganham assim papel de destaque.
Na Avaliação do Ozônio Atmosférico, de 1985, liderada pela NASA e pela Organização Meteorológica Mundial todos os autores provinham das ciências naturais. Na Avaliação Global da Biodiversidade, de 1995, sob responsabilidade do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, 14% dos autores vêm das ciências sociais. Já em 2008. na Avaliação Internacional da Ciência e da Tecnologia Agrícola para o Desenvolvimento, coordenada pelo Banco Mundial e pelas Nações Unidas já eram 47% os pesquisadores das ciências sociais.
Claro que falta muito para atender ao apelo de Edward Wilson, certamente o maior cientista vivo da atualidade, para que ciências sociais e ciências naturais ampliem sua integração com o intuito de contribuir para “salvar a criação”, expressão por ele usada em “A Criação”, traduzido para o português em 2008. Mas é fundamental reconhecer o avanço importante desta relação sem a qual não há chance de se compreenderem os fenômenos complexos que marcam nossa vida e elaborar políticas voltadas a sua solução.
Não é por outra razão que, quando se trata dos riscos referentes à inteligência artificial, Tim Berners-Lee, o inventor da WEB, vem insistindo tanto na ideia de que não precisamos apenas de engenheiros para ampliar o alcance da internet. Precisamos sim de engenheiros-filósofos, diz ele, sem os quais perderemos o sentido de nossas ações, o que nos fará encarar as ameaças à privacidade e à democracia, que vêm marcando a revolução digital como fatalidade incontornável.
Um país que despreza as humanidades desperdiça a oportunidade de se tornar protagonista na fronteira da inovação tecnológica contemporânea. É uma forma de se perenizar na vanguarda do atraso.