Banqueiros ostentação, por Marilene Felinto.

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Colunista ostentou arrogância de classe ao defender escolha mais ao centro

Marilene Felinto Escritora e tradutora, autora de “As Mulheres de Tijucopapo”. Mantém o site marilenefelinto.com.br

Folha de São Paulo, 26/08/2021

Não adianta ler jornal a partir da perspectiva da pobreza. Jornal não é feito para pobre (que, de fato, não lê jornal, nem anuncia em jornal). E do que adianta escrever para jornal do ponto de vista da pobreza? Jornal é feito com e para o poder econômico.

Então eis que, com um tema como este, da luta de classes, uma pessoa pode soar como idiota… É provável. Mas eu, idiota, mantenho o tema, como resposta à indignação de uma amiga (que não é pobre, mas está à esquerda em política) que leu nesta Folha um texto de Candido Bracher (em 19/06), que dizia dos “riscos e perspectivas das nossas eleições de 2022”.

Fui ver. Reparei de cara no “nossas”, como se estivéssemos (que leitores?) em pacto social com o banqueiro: com a opulência dos multimilionários, o rentismo improdutivo, a especulação do capital financeiro, o ultraliberalismo econômico que segue esmagando a maioria trabalhadora.

O alerta da amiga era para o desserviço que o colunista prestava ao país —num momento como este, de grave ameaça à democracia—, equiparando Bolsonaro e Lula, embora Bracher não cite esses nomes, e se refira apenas aos “extremos”, comparando a situação política do Brasil com a do Peru, onde saiu vencedor à Presidência, recentemente, o candidato das forças populares, um indígena, contra um direitista.

Bracher falava em “escapar [nas eleições de 2022] à escolha compulsória entre os extremos e defendia adesão a tendências “mais próximas ao centro”. Ora, ninguém mais ao centro do que Lula —que não teria governado sem algum conchavo com a massa parasita e podre do chamado “centrão” político, nascedouro e criadouro da corrupção sistêmica brasileira.

O contorcionismo ideológico do colunista é o modo que ele arranjou para dissimular a verdade (que Lula não é, de forma alguma, igual a Bolsonaro). Num tom algo blasé, com laivos de erudição, ele comemorava no texto sua aposentadoria, após 40 anos de trabalho “gratificante” como executivo de banco.
(Como pode ser gratificante trabalhar para manter o esquema do capital que alimenta a plutocracia concentradora da riqueza do país e eleva exponencialmente a desigualdade?)

Os números há tempos gritam o escândalo: de que 1% da população brasileira detém hoje, sozinha, 50% da riqueza do país. Trata-se do pior nível de concentração de renda desde pelo menos o ano 2000, conforme relatório sobre a riqueza global feito pelo banco Credit Suisse, citado em matéria da CNN: naquele ano, o 1% mais rico era dono de 44,2% das riquezas no Brasil; em 2010 (atenção, governo Lula), esse número havia caído para 40,5%, a menor proporção registrada no período.

Em países de classes dominantes menos indecentes, menos deformadas, como o Japão, por exemplo, o 1% mais rico concentra apenas 18% da riqueza.

A verdade matemática é essa. E a prova dos nove é o lucro dos maiores bancos brasileiros: neste ano, o lucro líquido trimestral desses bancos com ações negociadas em Bolsa, no segundo trimestre, teve alta de 90% em relação ao mesmo período do ano passado.

Ora, o que mais teve aumento tão expressivo no país desde 2020? Os sem-teto, a fome, o gás de cozinha, a carne, a gasolina… Mas, sejamos justos: o colunista não ostentou, em seu texto, as propriedades de luxo que porventura tenha, a ilha, o iate, o helicóptero. Não precisaria ostentar nada disso.

Ostentou a arrogância de sua classe ao defender uma “escolha” mais ao centro (na chamada terceira via), o voto em alguém com a mesma cara branca privilegiada, que mantenha intacto (ou maior) seu capital, seu patrimônio familiar herdado: um tipo João Dória, quem sabe, esse mascarado, esse “Bolsonaro de sapatênis e camisa polo de marca”, como disse um amigo.

Ora, essa tal “terceira via”, como se sabe, não tem interesse em nenhuma reordenação social efetiva, que opere na estrutura mesmo da desigualdade, com redistribuição de riqueza, que elimine a exclusão galopante.

A turma da Faria Lima certamente endossou com entusiasmo o artigo de Bracher. A Faria Lima é uma avenida ostentação de São Paulo, que concentra grandes empreendimentos empresariais e financeiros em prédios inteligentes. Essa turma assinou um “manifesto”, divulgado no dia 5/8 último, em defesa das eleições, pelo fim do “confronto” e pela volta “à normalidade”.

Uma porção de nomes brutais, que dizem compor o “PIB” nacional, alinhou-se na assinatura da tal “carta”. E depois foram dormir tranquilos, com a sensação de dever cumprido, já que também costumam doar uns trocados filantrópicos a uma ou outra fundaçãozinha ou organização da sociedade civil. Mas este é apenas meu ponto de vista, o da pobreza. Não é normal.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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