Trinta anos depois do Plano Real por Biderman, Cozac & Rego

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Ciro Biderman, Luis Felipe Cozac e José Márcio Rego – A Terra é Redonda – 20/06/2024

Menos de 20 anos depois do Plano Real, o governo voltou a tentar controlar a inflação segurando tarifas públicas de energia e combustíveis

Quando começamos a pensar nesse projeto que virou o livro Conversas com economistas brasileiros (Ed. 34), há cerca de 30 anos, acreditávamos estar no início de uma nova fase no Brasil. Parecia que teríamos um novo modelo econômico depois de décadas de um modelo esgotado. A inflação crônica estava em seu ato final e uma nova e saudável visão da política pública parecia se firmar. Podemos dizer que os 15 anos que se seguiram ao Plano Real confirmaram nossa percepção.

Os governos FHC 1 e 2, bem como os governos Lula 1 e 2, trouxeram nova perspectiva ao país. O Plano Real, que de fato resolve a inflação inercial no país, partiu de um mecanismo teórico que se verificou bem-sucedido na prática – a ancoragem dos preços em uma moeda indexada e virtual. A famosa proposta “Larida”, termo cunhado por Dornbusch em alusão aos seus dois criadores (André Lara Resende e Pérsio Arida) partia de princípios teórico-econômicos estabelecidos aplicados ao mundo real.

Mas há outra contribuição teórica original e pouco intuitiva, que cumpriu um papel relevante na compreensão do contexto econômico do período inflacionário: a ideia de que, no Brasil, o aumento da inflação faria diminuir, e não aumentar, o déficit do setor público. Seria um “efeito Tanzi às avessas”, ou seja, no Brasil a alta da inflação faria diminuir o déficit, visto que as despesas estavam menos protegidas que as receitas, indexadas pela correção monetária desde a sexagenária ditadura militar.

Este efeito ficou conhecido por “Efeito Bacha”, uma vez que foi disseminado por um dos pais do Plano Real, Edmar Bacha, e embasou a Emenda Constitucional que criou o Fundo Social de Emergência, e promoveu uma desvinculação de cerca de 20% das despesas, conferindo maior liberdade orçamentária e possibilitando gestão fiscal, o que foi crucial para controlar a inflação. O próprio Edmar Bacha dá os créditos da ideia original, sustentando que o nome justo seria “Efeito Guardia”, em alusão ao saudoso ex-Ministro da Fazenda Eduardo Guardia.

Importante é lembrar que voltamos a uma posição de aperto fiscal, onde a desvinculação de parte dos gastos é de novo necessária. Hoje, estamos no caminho oposto: da parca parcela “discricionária” dos gastos, cerca de um quarto está vinculada às emendas parlamentares (era apenas 7% em 2018).

Com otimismo juvenil, pensamos que não veríamos mais o uso de preços controlados para segurar a inflação. Essa estratégia, sistematicamente utilizada pelos governos anteriores ao Plano Real, apenas postergava o problema, gerando distorções de preços relativos que tornavam o problema ainda maior no futuro. Menos de 20 anos depois do Plano Real, o governo voltou a tentar controlar a inflação segurando tarifas públicas de energia e combustíveis. Novamente, o mesmo fantasma nos espreita hoje – e os resultados são conhecidos.

Uma variação dessa estratégia pseudo anti-inflacionária é segurar o aumento do salário-mínimo com o mesmo objetivo. Esse expediente foi utilizado inúmeras vezes pelos governos antes de 1994. Mas, a partir do Plano Real, os aumentos consistentes do salário-mínimo com seus efeitos distributivos foram a marca desses 15 anos de boa política econômica que assistimos. Para nossa surpresa, o aumento do salário mínimo e dos salários do funcionalismo público abaixo da inflação (juntamente com a ausência de concursos públicos) foi recentemente utilizado como estratégia de controle do déficit primário, no governo anterior.

Hoje assistimos a grupos autodenominados de esquerda novamente aplaudindo os movimentos deficitários e as reduções de juros sem fundamentos econômicos, sem se preocupar com a qualidade do gasto e seu financiamento. Assistimos aos grupos conservadores aplaudindo o controle do déficit às custas do salário-mínimo e do funcionalismo, sem se preocupar com a insustentabilidade e o “curto prazismo” dessa e de outras estratégias.

Assim seguimos, esquecendo o que aprendemos, cada grupo com sua irracionalidade para aplaudir. O debate técnico construtivo é asfixiado e se perde a boa gestão da política pública e do orçamento. A Reforma Tributária, que deve ser regulamentada neste ano, nos dá alguma esperança de que a racionalidade possa voltar a reinar.

Seguindo a tradição de esquecer a cada 15 anos o que ocorreu nos 15 anos anteriores, o que mais assusta é não lembrarmos sequer do valor da democracia. Desde a luta das “Diretas Já” há 40 anos, nunca imaginamos que a democracia seria questionada. Assistimos com tristeza a existência de grupos desprezando esse valor básico. Sabemos que é mais fácil fazer política econômica com ditadura, assim como é mais fácil ser veterinário do que médico (pois neste caso o paciente reclama!).

Mas havia o aparente consenso de que essa vantagem não compensava todos os males de uma ditadura. Ainda acreditamos que a democracia é o pior sistema fora todos os outros, como disse Churchill. Só que parte da população brasileira se esqueceu disso também.

*Ciro Biderman é professor nos cursos de Administração pública e de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP).
*Luis Felipe Cozac é doutor em Economia de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas – SP.
*José Marcio Rego é professor da Fundação Getulio Vargas – SP e professor titular aposentado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Hegemonias

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A ascensão da China na economia internacional está gerando grandes alterações na lógica do poder mundial, transformando a geopolítica global, movimentando parcerias estratégicas entre nações, construindo novos cenários externos, além de conflitos comerciais, protecionismos variados e medidas emergenciais para defender seus setores econômicos e produtivos nacionais.

Desde os anos 1990, com a desintegração da União Soviética, os Estados Unidos da América se tornaram a grande economia mundial, detentora da hegemonia global e responsável pelos rumos da sociedade internacional, suas empresas ganharam novos espaços nos setores produtivos mundiais, estimulando a concorrência no cenário global, além de fomentar grandes conflitos militares, alterando regiões inteiras, agitando culturas milenares e transformando as geopolíticas regional e global.

Nestas últimas décadas encontramos situações interessantes e diferenciadas na busca pela hegemonia internacional, onde os Estados Unidos competiram com uma nação forte militarmente, União Soviética, mas frágil e degradada do ponto de vista econômico e produtivo. Posteriormente, seu próximo rival, o Japão, era visto como uma potência econômica, dotada de grande tecnologia e organizações estruturadas, mas frágil do ponto de vista militar. Atualmente, percebemos que a busca pela hegemonia global nos traz grandes desafios para os Estados Unidos, na verdade, nos parece o grande desafio norte-americano do século XXI, afinal, seu competidor, a China, se caracteriza por grande força econômica e produtiva, dotada de grande potencial tecnológico e de inovação, além de grande força militar.

Estamos vislumbrando um conflito demorado pela hegemonia internacional, onde as estratégias são imprescindíveis para o sucesso das próximas décadas, exigindo de todos os contendores, grandes investimentos em capital humano, além de grande potencial de inovação para competir neste cenário marcado por grandes concorrências, incertezas e instabilidades crescentes.

Nesta busca pela hegemonia mundial, seus governos estão usando seus poderes políticos e financeiros para alavancar seus setores econômicos e produtivos, proibindo a entrada de produtos de seu concorrente direto, além de proibir que empresas locais transfiram tecnologias aos grandes competidores, além de pressionar seus parceiros comerciais para que se alinhem diretamente neste conflito global que tende a se estender por muitas décadas, gerando constrangimentos e preocupações de uma guerra militar em todas as regiões do mundo.

Países como o Brasil estão sendo cobrados internacionalmente para escolher um lado deste conflito entre hegemonias, diante disso, é importante construirmos consensos internos para compreender os cenários que estão sendo abertos neste conflito global, deixando de lado visões ideológicas e buscando os interesses nacionais, garantindo que a economia nacional se consolide, cresça e ganhe espaços no cenário internacional, consolidando uma neoindustrialização, fortalecendo setores vinculados as energias alternativas, reconstruindo e fortalecendo o setor da economia da saúde, fomentando a capacidade tecnológica para agregar valores aos produtos agrícolas produzidos internamente e melhorando os termos de troca da agricultura nacional, desta forma, garantindo recursos adicionais para melhorar os salários dos trabalhadores e fortalecendo um mercado de consumo de massa e contribuindo para alavancar o crescimento da economia nacional, deixando de lado décadas de estagnação econômica e arrocho salarial de grande parte dos trabalhadores nacionais.

Estamos num momento de escolhas difíceis e estratégicas, exigindo maturidade e sabedoria, além de liderança e ousadia, as escolhas repercutirão durante décadas e é fundamental compreendermos que não existe almoço grátis, como lembrou o economista norte-americano Milton Friedman.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

A militarização das escolas, por Erik Chiconelli Gomes.

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Erik Chiconelli Gomes – A Terra é Redonda – 12/06/2024

A implementação das escolas cívico-militares está inserida em um contexto político específico, marcado por uma agenda conservadora que busca reforçar valores tradicionais e hierárquicos

Como historiador, não posso deixar de refletir sobre as implicações históricas e sociais das escolas cívico-militares no Brasil, especialmente em um contexto de crescente militarização da educação.

A história da militarização na educação brasileira não é um fenômeno recente. Desde a Ditadura militar (1964-1985), temos visto tentativas de inserir valores militares na formação educacional dos jovens. A Constituição de 1988, em seu espírito democrático, não menciona a atuação dos militares na política educacional, uma escolha deliberada para afastar resquícios autoritários.

No entanto, as recentes movimentações políticas buscam reviver práticas que deveriam estar relegadas ao passado.

O Plano Nacional de Educação e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que são marcos da educação democrática no Brasil, também não contemplam essa abordagem militar. Isso evidencia que a inclusão das escolas cívico-militares é uma anomalia, uma tentativa de inserir um modelo ultrapassado e autoritário em um sistema que deveria prezar pela liberdade e pelo pensamento crítico.

Custos elevados e ineficiência

As escolas cívico-militares têm um custo por aluno três vezes maior do que as escolas públicas convencionais. Para embasar a afirmação de que as escolas cívico-militares têm um custo por aluno significativamente maior do que as escolas públicas convencionais, podemos citar algumas fontes oficiais.

Segundo informações apresentadas pelo Ministério da Educação (MEC), o custo das escolas cívico-militares é, de fato, elevado. O programa que institui essas escolas, chamado Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), foi detalhado em diversos documentos e reportagens. Por exemplo, a reportagem da Agência Brasília destaca que o investimento necessário para manter essas escolas é consideravelmente maior devido à necessidade de pagar pelos serviços adicionais dos militares da reserva, além dos custos comuns das escolas regulares.

Além disso, o levantamento realizado pela Secretaria de Educação do Distrito Federal mostra que o modelo cívico-militar envolve custos adicionais com a infraestrutura necessária para acomodar as atividades militares e o pagamento de gratificações aos militares que atuam nessas instituições.

Em um país com enormes desigualdades sociais e educacionais, essa escolha parece mais um desperdício de recursos do que um investimento efetivo na educação. Segundo a deputada Andrea Werner (PSOL), “A escola cívico militar custa o dobro por aluno que as escolas regulares e não entrega o dobro de resultados positivos”.

Além do custo, a eficiência dessas escolas é questionável. O modelo de ensino militar não é necessariamente adequado para a formação integral dos estudantes. A disciplina rígida e o enfoque na obediência podem sufocar a criatividade e o pensamento crítico, habilidades essenciais para o desenvolvimento pessoal e profissional dos jovens em uma sociedade democrática.

Ideologização do ensino

A expansão das escolas cívico-militares é também um movimento ideológico. O governo de Jair Bolsonaro, ao instituir o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares, promoveu uma visão de mundo que privilegia a ordem e a disciplina militares em detrimento da diversidade e da liberdade de pensamento. Esse movimento pode ser interpretado como uma tentativa de doutrinação, buscando formar cidadãos que aceitem passivamente a autoridade e não questionem as estruturas de poder.

Historicamente, regimes autoritários sempre buscaram controlar a educação para moldar as mentes das futuras gerações. As escolas cívico-militares representam um retrocesso nesse sentido, indo contra os princípios democráticos que deveriam nortear a educação pública no Brasil.

O impacto na qualidade da educação

A análise da qualidade da educação em diferentes países revela disparidades significativas no investimento e nos resultados educacionais. Países como Luxemburgo, Suíça e Noruega, que ocupam posições de destaque no cenário educacional global, possuem sistemas educacionais robustos e inclusivos. Nesses países, o foco está no desenvolvimento integral do aluno, promovendo um ambiente que valoriza a diversidade, a criatividade e o pensamento crítico.

Esses investimentos são direcionados para a capacitação contínua dos professores, a melhoria das infraestruturas escolares e a elaboração de currículos que fomentam a inclusão e a inovação pedagógica.

Em Luxemburgo, o investimento por aluno na educação básica ultrapassa os 26.370 dólares, enquanto na Suíça e na Noruega os valores são de 17.333 e 16.008 dólares, respectivamente. Esses investimentos resultam em sistemas educacionais que priorizam o desenvolvimento holístico do estudante, abordando não apenas o desempenho acadêmico, mas também o bem-estar emocional e social dos alunos.

Países como Finlândia, Canadá e Nova Zelândia são exemplos notáveis de sistemas educacionais inclusivos que priorizam o bem-estar dos alunos e o desenvolvimento integral. Na Finlândia, o sistema educacional é amplamente reconhecido por sua abordagem centrada no aluno, onde o foco está na personalização da aprendizagem e no apoio individualizado. Professores altamente qualificados e continuamente capacitados são a pedra angular desse sistema, que também valoriza a igualdade de oportunidades e a inclusão de todos os estudantes.

No Canadá, a diversidade cultural é celebrada dentro das salas de aula, e o currículo é desenhado para refletir as várias comunidades que compõem o país. A inclusão de tecnologias educacionais é uma prática comum, permitindo que os alunos desenvolvam habilidades para o século XXI. Além disso, a participação ativa da comunidade escolar é incentivada, criando um ambiente colaborativo que apoia o crescimento acadêmico e pessoal dos estudantes.

A Nova Zelândia também se destaca pela sua abordagem inclusiva. O sistema educacional neozelandês é conhecido por seu compromisso com a equidade e a justiça social, proporcionando suporte adicional a estudantes de grupos minoritários e com necessidades especiais. A educação na Nova Zelândia promove a participação ativa dos estudantes na tomada de decisões sobre sua própria aprendizagem, fomentando um senso de responsabilidade e autonomia.

A escolha por um modelo militarizado agrava as desigualdades no sistema educacional brasileiro.

Em vez de promover a igualdade de oportunidades, esse modelo tende a criar uma educação dual, onde os recursos são desviados para um segmento específico, deixando a grande maioria das escolas públicas em situação de vulnerabilidade. A falta de investimentos adequados em capacitação de professores, infraestrutura e currículos inclusivos impede que o sistema educacional brasileiro avance em direção a um modelo mais equitativo e de qualidade.

Desafios da política de militarização

A implementação das escolas cívico-militares está inserida em um contexto político específico, marcado por uma agenda conservadora que busca reforçar valores tradicionais e hierárquicos. No entanto, essa abordagem confronta-se com os princípios democráticos estabelecidos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e pela própria Constituição Federal de 1988, que promovem uma educação voltada para a cidadania, a pluralidade e o respeito aos direitos humanos.

Historicamente, os regimes autoritários têm utilizado a educação como ferramenta de controle social e doutrinação. A militarização das escolas, além de aumentar os custos, representa uma tentativa de moldar o pensamento das novas gerações conforme uma ideologia específica, que privilegia a obediência cega e a conformidade em detrimento da autonomia e do pensamento crítico. Este movimento é preocupante, pois pode resultar na formação de cidadãos menos preparados para lidar com as complexidades de uma sociedade plural e democrática.

Enquanto países bem-sucedidos adotam práticas que promovem a inclusão, a diversidade e o pensamento crítico, o Brasil parece retroceder ao implementar um modelo que enfatiza a disciplina rígida e a obediência.

A resistência a esse modelo não vem apenas de setores progressistas da sociedade civil, mas também de especialistas em educação, que defendem a valorização dos profissionais da educação e a adoção de políticas públicas que fortaleçam a educação inclusiva e de qualidade. A exclusão dos militares da educação, defendida por diversos pesquisadores e entidades, baseia-se no entendimento de que a formação cidadã deve ser pautada pela liberdade, pela diversidade e pelo respeito aos direitos humanos.

As experiências internacionais demonstram que os sistemas educacionais mais bem-sucedidos são aqueles que investem na formação contínua dos professores, na inclusão de tecnologias educacionais e na participação ativa da comunidade escolar na gestão das instituições. Portanto, a adoção de um modelo militarizado no Brasil vai na contramão das melhores práticas educacionais observadas ao redor do mundo.

Educadoras como Sueli Carneiro e Bell Hooks têm postulado a importância de uma educação inclusiva que valorize a diversidade e a equidade. Sueli Carneiro, uma renomada intelectual e ativista brasileira, destaca a necessidade de uma educação antirracista e inclusiva que reconheça e valorize as diferenças. Ela argumenta que a educação deve ser um espaço de emancipação e transformação social, onde todos os estudantes, independentemente de sua origem, têm a oportunidade de alcançar seu pleno potencial.

Bell Hooks, por sua vez, enfatiza a pedagogia do amor e da inclusão, defendendo que a educação deve ser uma prática de liberdade que capacite os estudantes a pensar criticamente e a questionar as estruturas opressivas. Para Bell Hooks, a educação deve ser um processo participativo e democrático, onde a voz de cada aluno é ouvida e respeitada.

Estas perspectivas são fundamentais para entender os desafios e as oportunidades do sistema educacional brasileiro. A militarização das escolas não só ignora esses princípios, mas também perpetua um modelo autoritário que sufoca a criatividade e o pensamento crítico. Para avançar, o Brasil precisa adotar políticas educacionais que promovam a inclusão, a diversidade e a igualdade, seguindo os exemplos bem-sucedidos de outros países e as lições de educadoras visionárias.

Conclusão

Diante dos fatos apresentados, é imperativo questionar a real necessidade e eficácia das escolas cívico-militares. Este modelo não só onera os cofres públicos, mas também ameaça os princípios democráticos que devem nortear a educação brasileira. Como historiador, reitero a importância de uma educação que promova a liberdade de pensamento e prepare os cidadãos para participarem ativamente de uma sociedade democrática e plural. A história nos mostra que a educação é um poderoso instrumento de transformação social, e devemos garantir que ela seja utilizada para promover a inclusão, a igualdade e a justiça social.

A militarização da educação brasileira representa um retorno a práticas autoritárias que contrariam os avanços democráticos conquistados nas últimas décadas. Ao observar exemplos internacionais de sucesso, como os sistemas educacionais da Finlândia, Canadá e Nova Zelândia, percebemos que a qualidade da educação está intrinsecamente ligada à promoção de ambientes inclusivos e ao investimento contínuo na formação de professores. Esses países demonstram que a educação de qualidade é alcançada através da valorização da diversidade e da implantação de políticas educacionais que atendem às necessidades de todos os estudantes, independentemente de sua origem socioeconômica.

Além disso, é crucial considerar a perspectiva de educadoras como Sueli Carneiro e Bell Hooks, que defendem uma educação antirracista e inclusiva. Sueli Carneiro ressalta a importância de uma educação que reconheça e valorize a diversidade cultural e étnica do Brasil, promovendo a equidade e combatendo as desigualdades estruturais. Bell Hooks, por sua vez, enfatiza a pedagogia do amor e da inclusão, propondo uma educação que capacite os estudantes a pensar criticamente e a se engajar ativamente na construção de uma sociedade mais justa. Essas visões são fundamentais para redefinir a educação no Brasil, afastando-se de modelos autoritários e adotando práticas que promovam a liberdade, a criatividade e a igualdade.

Portanto, a adoção de um modelo educativo que valorize a inclusão, a diversidade e o pensamento crítico é essencial para o desenvolvimento de uma educação de qualidade no Brasil. Ao direcionar recursos para a capacitação de professores, a melhoria das infraestruturas escolares e o desenvolvimento de currículos inclusivos, o Brasil pode avançar em direção a um sistema educacional que verdadeiramente prepare seus estudantes para enfrentar os desafios de uma sociedade democrática e plural.

Erik Chiconelli Gomes é pós-doutorando na Faculdade de Direito na USP.

Isenções fiscais: Assim o “mercado” drena o Brasil, por José Alvaro de Lima Cardoso

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Especuladores “exigem” cortes na Seguridade e Educação, mas ocultam a conta dos impostos que o Estado não cobra. Quais são eles? Como chegarão a R$ 790 bilhões, sempre beneficiando as elites?

Como somam-se aos juros da dívida para capturar a riqueza social?

José Álvaro de Lima Cardoso- A terra é Redonda – 22/07/2024

Pelas regras da política de benefícios fiscais vigentes no Brasil alguns setores ficam isentos, ou pagam menos impostos, por determinado período, normalmente assumindo em termos genéricos, contrapartidas, como a realização de investimentos. Estes devem produzir benefícios para a região escolhida, gerando empregos, tecnologia, atraindo outros investimentos etc., gerando assim um círculo virtuoso. Ou seja, a ideia da renúncia fiscal é atrair um volume de benefícios socioeconômicos para determinada região, de magnitude superior à perda de arrecadação do ente estatal em função da isenção. A rigor qualquer renúncia fiscal autorizada deveria ser precedida por um estudo econômico que indicasse os seus prováveis efeitos socioeconômicos na região impactada. Mas muitas vezes não é isso que acontece.

Segundo levantamento da Unafisco (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil), que em junho último publicou uma atualização do seu estudo sobre a questão, a renúncia fiscal da União em 2024 chegará a quase R$ 790 bilhões. No estudo esse valor inclui renúncias instituídas ao longo das últimas décadas, além de impostos que, apesar de previstos, não foram regulamentados. Conforme o levantamento, o valor de renúncia fiscal para este ano aumentou 46,9% em relação ao valor das isenções de 2023 (R$ 537,5 bilhões). O total considerado pela Unafisco inclui todas as isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia, conforme os dados do Demonstrativo dos Gastos Tributários (DGT) da União.

No estudo, a entidade qualifica como privilégios tributários, as renúncias fiscais concedidas sem contrapartida adequada e comprovada para o desenvolvimento econômico sustentável ou a redução das desigualdades sociais. Segundo a Unafisco, os principais privilégios tributários no país seriam:

1.Isenção dos Lucros e Dividendos Distribuídos por Pessoa Jurídica. Total renunciado: R$ 160,1 bilhões;

2.Não Instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF). Total renunciado: R$ 76,46 bilhões;

3.Benefícios da Zona Franca de Manaus. Total renunciado: R$ 30,99 bilhões;

4. Programas de Parcelamentos Especiais (Refis). Total renunciado: R$ 29,37 bilhões;

5.Simples Nacional. Total renunciado: R$ 125,36 bilhões. Segundo a Unafisco, embora este valor esteja sendo considerado parcialmente um privilégio, é um incentivo relevante para micros e pequenas empresas. A crítica aqui é a de que algumas empresas com faturamento alto, que não geram empregos, pegam carona no Simples;

6.Desoneração da Cesta Básica. Total renunciado: R$ 38,99 bilhões (parcialmente considerado privilégio). Segundo o estudo, a desoneração da cesta básica é também considerada privilégio, em parte, pois beneficia empresas com maior capacidade contributiva, que se aproveitam da brecha fiscal;

7.Benefícios para Entidades Filantrópicas. Total renunciado: R$ 19,75 bilhões;

8.Benefícios concedidos à SUDENE e SUDAM. Total renunciado: R$ 23,58 bilhões (SUDENE) e R$ 15,42 bilhões (SUDAM). Para a Unafisco, esses benefícios são enquadrados como privilégios porque não existe a comprovação devida de geração de empregos nas localidades atingidas;

9.Benefícios para Produtos Químicos e Farmacêuticos. Total renunciado: R$ 10,80 bilhões. Aqui também, os benefícios fiscais concedidos são tidos como privilégios por falta de comprovação de contrapartidas socioeconômicas adequadas.

Segundo o estudo, entre janeiro de 2012 e dezembro de 2023, as isenções cresceram 212,44%. Como, no que se refere a orçamento público, não existe milagres, o crescimento das isenções tem como contrapartida a redução de investimentos federais em outras áreas chaves. Por exemplo, o investimento do governo federal em “Gestão de Risco e Desastres” reduziu 5,44% no mesmo período apontado, entre 2012 e 2023.

Um dos problemas centrais dessa política de isenções crescentes e pouco debatidas pela sociedade, é que uma boa parte das renúncias corresponde a impostos que financiam a Previdência Social. Informações do Tribunal de Contas da União (TCU) dão conta que em 2023, as isenções subtraíram da previdência nada menos que R$ 274 bilhões em receitas. O TCU observa que, considerando PIS/Cofins e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), a renúncia fiscal chegou a R$ 274 bilhões no ano passado. Esses tributos, mais as contribuições de empresas e trabalhadores ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), são as fontes de receita mais significativas para a Seguridade Social. Essa política representa uma verdadeira brincadeira na beira do abismo, em função da centralidade e da importância da Seguridade Social no Brasil.

A Seguridade Social brasileira acaba impactando a vida de cerca de 150 milhões de brasileiros, ou mais, direta ou indiretamente. Seguridade Social não é só Previdência, mas abrange Saúde e Assistência Social, áreas vitais para a sobrevivência da população, especialmente a mais pobre.

O sistema previdenciário brasileiro paga todo mês cerca de 39,5 milhões de benefícios e representa uma injeção de mais de R$ 70 bilhões mensais na economia do país, o que é fundamental para o mercado consumidor interno. Quase 70% dos municípios brasileiros tem como principal renda, os benefícios pagos pelo INSS.

Essas informações são muito importantes porque já está se falando em realizar nova “reforma” da previdência dentro de dois ou três anos, supostamente para “garantir a sustentabilidade” do sistema. Ou seja, ao mesmo tempo em que quase não se fala da escalada absurda das isenções fiscais no país nos últimos anos, vai se intensificando uma campanha contra o “déficit” da previdência social (com diagnóstico falacioso) e aos gastos sociais em geral. Como já ocorreu em outros períodos, algumas matérias na mídia corporativa comparam a previdência social a uma “bomba relógio”, em função dos benefícios e aposentadorias concedidas. Porém, essa discussão nem menciona o impacto das isenções fiscais sobre a arrecadação da Seguridade Social. Outras análises propõem o fim dos atuais pisos de gastos para a Saúde e a Educação.

Alguns críticos estão questionando inclusive a vinculação do reajuste do salário-mínimo com benefícios como BPC (Benefício de Prestação Continuada), abono salarial e seguro-desemprego, direitos históricos da população brasileira. O debate é realizado fora de contexto e sem levar em conta a importância desses gastos para atenuar a extrema concentração de renda, e para a própria alimentação do mercado consumidor interno, essencial para qualquer país. Uma comprovação de que essa discussão sobre o déficit da previdência, que é realizada de forma superficial e enganosa, tem objetivos inconfessáveis, é que não se menciona o problema dos gastos bilionários a cada ano, com a dívida pública. A “crise fiscal”, que uma parte da grande imprensa tanto alardeia, claramente, está sendo fabricada com objetivos políticos, em um ano em que a previsão de déficit primário, por parte de todos os especialistas, é zero.

A associação dos gastos com saúde, educação e bolsa família, ao déficit público, exerce ainda uma outra função fundamental, que é encobrir o problema central das contas nacionais: os gastos com a dívida pública. A Lei Orçamentária (LOA) de 2024 prevê despesas de R$ 5,5 trilhões. No entanto, a parte do leão é para o refinanciamento da dívida pública. Com esta rubrica, a previsão da LOA é que sejam gastos com a rolagem da dívida R$ 2,4 trilhões neste ano.

Enquanto com a previdência social, segundo maior gasto do governo federal, deverão ser investidos R$ 935 bilhões neste ano, com a rolagem da dívida serão comprometidos nada menos que 44% do orçamento federal. O gasto com juros previsto na LOA é de R$ 436 bilhões (está subestimado), mas a chamada rolagem da dívida, isto é o seu refinanciamento, irá alcançar 44% do orçamento federal. Na rolagem da dívida, o governo emite novos títulos, paga os juros e resgates com o dinheiro captado e assume uma nova dívida com novos prazos e condições. O total dos títulos que continuam em aberto, ou seja, que ainda não foram resgatados, compõem o “estoque” da dívida, formado pelo conjunto de obrigações assumidos ao longo do tempo, inclusive, por governos anteriores.

Os juros nominais do setor público consolidado, no acumulado em doze meses até maio, chegaram a R$781,6 bilhões (7,04% do PIB). Fala-se em pagamento de juros e amortizações, mas, apesar da fábula de dinheiro que é paga todo ano, a dívida só cresce. Ou seja, amortização da dívida não passa de um sonho. A Dívida Bruta – que abrange Governo Federal, INSS e governos estaduais e municipais – atingiu 76,8% do PIB, e equivalente a R$8,5 trilhões.

Os credores preservam esse estoque de dívida porque eles representam uma verdadeira galinha dos ovos de ouro. Não lhes interessa que a dívida seja paga. Os gastos com juros da dívida em 12 meses descritos acima equivalem a mais de 83% dos gastos previstos com a previdência para 2024.

Com uma diferença crucial: os gastos com a previdência social são fundamentais para cerca de 150 milhões de brasileiros (direta e indiretamente); os gastos com a dívida pública é dinheiro jogado fora: vai para o bolso de especuladores que não agregam nada à geração de valor no país.

Com o detalhe nada banal de que boa parte da dívida é ilegal, o seu pagamento é completamente irregular, conforme comprovam os estudos da Auditoria da Dívida Pública.

A dívida pública é um sistema de drenagem de recursos públicos do Brasil, legalizado e com total cobertura da grande imprensa. Uma breve análise do problema evidencia que esse é o nó das contas públicas no país. Super ricos, com bilhões de reais no mercado financeiro, e que se privilegiam da segunda maior taxa de juros reais do planeta (em torno de 8%), são os mesmos que estão propondo o fim da política de reajuste do salário-mínimo vinculado à evolução do PIB. O discurso hipócrita de todos os conservadores da política e da economia é o mesmo: estão muito “preocupados com a situação fiscal do país”.

Economia neoclássica versus keynesiana, por Marcos de Queiroz Grillo.

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Marcos de Queiroz Grillo – A Terra é Redonda- 22/07/2024

Os neoclássicos, no seu intento de desenvolvimento de uma análise precisa, rejeitaram a realidade e verdades óbvias universais, agarrando-se na ficção
Introdução

A ciência econômica anda décadas a reboque da história. Muitos economistas, que se descrevem como cientistas, não conseguem chegar a acordos básicos sobre quase nada em relação às políticas econômicas. Sem uma teoria correta não se consegue uma prática assertiva. Não havendo consenso sobre a teoria econômica, como se poderá levar a cabo políticas econômicas eficazes?

Da economia clássica derivaram, para um lado, a teoria econômica marxista ricardiana e, para outro, a teoria econômica neoclássica. Esta última, dominou completamente o debate econômico até a publicação, em 1936, da Teoria Geral, de John Maynard Keynes.

Os pais da teoria neoclássica foram os economistas clássicos do século XVIII, David Ricardo e Adam Smith. Eles criaram as bases para a rationale do laissez-faire, da não intervenção governamental na economia, da economia de livre mercado, de “pleno emprego” e de “preços de equilíbrio”, propiciado pelo conceito da mão invisível do mercado, com todos os agentes econômicos agindo racionalmente com base nos seus próprios interesses.

A teoria keynesiana questionou o conceito do laissez-faire com base no entendimento de que o mundo não é governado de cima, de forma que os interesses privado e social sempre sejam coincidentes. Segundo John Maynard Keynes, o conceito do laissez-faire teria contribuído para o advento da recessão de 1929, pois o conceito de equilíbrio do emprego e dos preços no longo prazo, propugnado pelo laissez-faire, não era somente enganoso, mas também, muito perigoso.

A crise tinha causais na gestão econômica, não tendo ocorrido por acidente; e a inação diante dos fatos correntes poderia ser desastrosa, já que o longo prazo é um guia enganoso para a realidade concreta dos negócios correntes. No final do século XX perfilavam os monetaristas, os keynesianos neoclássicos e os Pós Keynesianos, num debate interminável sobre os grandes problemas da economia: emprego, inflação e dinheiro.

São descritas aqui as diferenças/similaridades filosóficas e axiomáticas entre as diversas escolas, enfatizada a importância da teoria na prática do dia a dia da política econômica e levantados alertas do perigo, para a sociedade, de conceituações teóricas equivocadas que permeiam a aplicação de políticas econômicas enganosas.

Teoria neoclássica x teoria keynesiana

John Maynard Keynes publicou sua Teoria Geral em 1936. A Europa, diferentemente dos EUA, experimentou de 1922 a 1936 uma taxa de desemprego superior a 10% ao ano. Nos EUA o mesmo não acontecia, sendo que no próprio ano de 1929 o desemprego foi de apenas 3%. Contudo, do final de 1929 a 1933 a economia americana despencou, com uma queda no PIB per capita de 52% no período.

Em 1933 o desemprego foi da ordem de 25%. Tudo isso parecia indicar o completo fracasso do sonho americano e da própria teoria neoclássica de equilíbrio.

Ainda assim, com todas essas evidências, os economistas neoclássicos argumentavam tratar-se de uma aberração temporária numa economia de livre mercado e que o elevado desemprego não poderia persistir no longo prazo, sendo certa a tendência do mercado ao reequilíbrio de preços e ao pleno emprego. Segundo eles, para se governar bem, deve se governar menos. Intervenções econômicas só deteriorariam a situação momentânea de desequilíbrio.

No entendimento de Adam Smith, no livro A Riqueza das Nações, “cada indivíduo está continuamente buscando descobrir o mais vantajoso emprego do seu capital, vantagem para si e não para a sociedade. Ele visa somente seu próprio ganho, mas ele é conduzido por uma mão invisível que promove um fim que não era a intenção do indivíduo. Ele, na busca do seu interesse individual, termina promovendo o interesse da sociedade como um todo, de forma mais eficaz do que se ele quisesse conscientemente fazê-lo”.

A crença neoclássica de que a economia de livre mercado inevitavelmente geraria pleno emprego e prosperidade tem por base um “axioma” criado pelo economista francês Jean Baptiste Say de que “produtos são sempre trocados por produtos”. Este conceito foi refraseado pelo economista inglês James Mill como “a oferta cria a sua própria demanda”, que passou a ser conhecida como a Lei de Say. No fundo, produz-se coisas (oferta) que são colocadas no mercado para auferir-se renda para comprar outros produtos no mercado (demanda).

Nesse sentido, nunca haveria uma depressão pelo fato de a produção criar suficiente renda para comprar tudo o que é produzido. Igualmente, nunca poderia existir desemprego já que os empresários, visando lucro, sempre seriam capazes de encontrar demanda suficiente para a venda dos produtos produzidos pelos trabalhadores. Nesta visão, bens são trocados por bens. O dinheiro seria só um meio de troca para facilitar as transações. Mudanças na oferta de dinheiro não afetariam variáveis macroeconômicas como o nível de emprego e o produto agregado, já que o dinheiro nada mais seria do que um véu atrás do qual funcionaria a economia real.

Posteriormente, esta questão foi reconceituada, enfatizando o axioma técnico de neutralidade do dinheiro, ao não afetar o emprego e a produção dos bens e serviços. Nesse sentido, o aumento da quantidade de dinheiro na economia afetaria somente os preços, causando inflação, já que haveria muito dinheiro tentando comprar poucos bens e serviços.

John Maynard Keynes pensava diferente. Em sua obra, rejeitou o conceito de neutralidade do dinheiro e a Lei de Say, conceitos vigentes sem qualquer questionamento por mais de um século.

Segundo ele, um sistema onde o dinheiro não teria nenhuma outra interferência que não a de apenas meio de troca, teoricamente, seria uma economia real de troca que, na prática, não existe, já que o dinheiro tem implicações próprias na economia, afetando motivações e decisões de curto e de longo prazo, o que caracteriza uma economia monetária, na qual são peculiares os picos e os vales, onde a influência do dinheiro não seria neutra, mas, ao contrário, poderia afetar a produção.

John Maynard Keynes e a crise de 1929

Durante os quatro anos da administração Hoover nos EUA (1929-33) a economia americana sofreu uma significativa deterioração, apesar da “certeza” dos economistas neoclássicos que o aconselhavam de que um sistema de livre mercado, sem interferência governamental, voltaria sozinho ao equilíbrio. Os produtores descobriram que qualquer coisa que produzissem e colocassem no mercado sofreria deflação de preços causando-lhes prejuízos.

Enquanto as pessoas das cidades passavam fome, os fazendeiros das cercanias destinavam sua produção para alimentar os porcos. O desemprego aumentou e a produção continuou em queda. Mesmo assim, o presidente Hoover continuou seguindo seus assessores neoclássicos, acreditando que a melhor solução seria de não intervenção na economia que, no longo prazo, se ajustaria sozinha.

Nas eleições de 1932, predominava o receio da revolução socialista, do anarquismo. O povo começou a se manifestar, exigindo medidas urgentes. Acampados perto do Rio Potomac, em Washington, os hoovervilles, como eram conhecidos, muitos dos quais veteranos da 1ª. Guerra Mundial, foram reprimidos violentamente pelo General Douglas MacArthur, que os dispersou a força.

Em 1933, com a eleição de Franklin Delano Roosevelt Jr., instaurou-se o “New Deal”, que nada mais era do que um conjunto de medidas legislativas de políticas compensatórias. Ele sabia que se não tomasse medidas urgentes, o próprio sistema capitalista americano estaria em risco. Roosevelt descartou os neoclássicos e convocou jovens que ele definiu como o seu “Brain Trust”, dentre os quais, o economista Rexford Tugwell e o advogado Adolf A.Berle, que implantaram algumas ideias keynesianas de estímulo à economia.

O emprego foi estimulado visando a criação de renda. Saiu de 39 milhões em 1933 para 51 milhões em 1941. A renda per capita cresceu 70% neste período. Roosevelt foi reeleito com sobras, em 1940, para um inusitado terceiro mandato. O povo americano estava convencido do sucesso do New Deal e da nova economia política keynesiana.

A principal medida foi o aumento da renda dos trabalhadores (conhecido como “pump-priming”), o que encorajaria o retorno à produção por parte dos empresários, retroalimentando a criação de novos empregos. Tratava-se, portanto, de priorizar o bombeamento do coração da economia através da criação de empregos, o que deu certo.

Os pós-keynesianos e os keynesianos neoclássicos

A lógica pós-keynesiana continuou negando a mais importante assertiva neoclássica de neutralidade do dinheiro e, como consequência, a falsa conclusão de que uma economia de livre mercado, no longo prazo, sempre asseguraria pleno emprego daqueles que querem trabalhar.

Mesmo assim, a economia neoclássica ficou de pé. Isto porque jovens economistas americanos, ganhadores de Prêmios Nobel, como Paul Samuelson, do MIT, James Tobin, da Yale University, além de outros como Hicks, Debreu e Arrow, com domínio da teoria neoclássica e muito afiados no formalismo e rigor dos modelos matemáticos, se desvencilharam da ortodoxia dos economistas neoclássicos tradicionais (Wilfredo Pareto, Leon Walras, James Mill, entre outros), e buscaram amalgamar a análise teórica neoclássica com as políticas keynesianas de incentivo governamental ao emprego, ao investimento agregado e tratamento dos níveis de preços da economia, desenvolvendo uma estrutura analítica, fortemente pautada em complexo simbolismo matemático, que eles denominaram de Síntese neoclássica do keynesianismo.

No fundo, eles reduziram a teoria keynesiana a um manual de cura para os desequilíbrios de curto prazo do sistema econômico que, no longo prazo, continuaria se autorregulando. Segundo eles, as políticas de curto prazo se faziam necessárias somente pela demora na correção dos desequilíbrios pelo próprio mercado, sendo necessárias pequenas doses dos remédios keynesianos.

Assim, no pós-guerra, o keynesianismo ficou voltado para os agregados macroeconômicos e os princípios neoclássicos continuaram dominando a microeconomia dos agentes econômicos. Contudo, na década de 1970, as fundações teóricas da economia neoclássica ampliaram seus domínios, expandindo-se da teoria microeconômica (teoria do comportamento de consumidores e produtores) para a macroeconomia (o estudo do comportamento dos sistemas econômicos). Isto foi possível em função do firme propósito de muitos dos consagrados economistas neoclássicos de transformar a economia em ciência exata, buscando diferenciá-la da sociologia e da ciência política.

O modelo neoclássico ganhou nova roupagem com o artigo do economista inglês John Hicks, de 1937, denominado “Mr.Keynes and the Classics” que consistiu numa tentativa de síntese neoclássica do keynesianismo, com seu famoso Sistema IS-LM, pretendendo sumarizar os quatro pilares básicos da teoria keynesiana: I para Investimento, S para a poupança, L para a demanda pela liquidez e M para a oferta de moeda. Segundo Hicks seu Sistema IS-LM de equações simultâneas fornecia o arcabouço matemático para a integração da teoria keynesiana como a modelagem matemática da economia neoclássica, conhecida como a Teoria Geral do Equilíbrio, ou também, Análise Walrasiana do Equilíbrio, já que foi o economista francês Leon Walras (1834-1910) que desenvolveu a primeira versão matemática da teoria neoclássica. Sir Hicks, posteriormente, foi ganhador do prêmio Nobel de 1972.

O sistema IS-LM passou a ser uma “verdade universal” para a maioria dos economistas americanos, levando o professor Martin Bronfenbrenner, da Duke University, a batizá-la como a religião ISLAMic dos economistas. As Universidades incorporaram na sua literatura os escritos dos keynesianos neoclássicos, desaconselhando a seus estudantes a leitura pesada e tediosa da Teoria Geral de Keynes. Em seu lugar, deviam se aprofundar no sistema Hickisiano IS-LM, que continha todas as ideias importantes de Keynes.

O próprio Hicks, posteriormente, reconverteu-se ao keynesianismo, ao afirmar que não estava satisfeito com as premissas de seu modelo, pois ele violentava a ordem que os eventos ocorriam no mundo real.

O economista neoclássico James Tobin, Prêmio Nobel em Economia, comenta: “na versão moderna da teoria neoclássica, onde ficaria a Mão Invisível?” Segundo ele, a boa notícia é que a intuição de Adam Smith e seus seguidores pode ser rigorosamente formulada e comprovada matematicamente; a má noticia, é que o teorema depende de condições e premissas especiais, dificilmente comprováveis nos dias de hoje.

Já quanto ao princípio de neutralidade do dinheiro, James Tobin o reconhece como falacioso, bastando apenas atentar para a política monetária de expansão ou enxugamento da oferta de dinheiro, tão correntemente aplicada na economia dos dias de hoje.Mas, como ele mesmo diz, a teoria do equilíbrio geral tem sido o maior desafio para os profissionais mais preparados em economia. Elegante, rigorosa, poderosa matematicamente, a teoria vai longe, diferenciando-se das outras ciências sociais e encantando a todos, muito mais pelos desafios do que propriamente pela sua capacidade de equacionar quebra cabeças e problemas do mundo real. E conclui: por isso, “o reconhecido irrealismo das suas premissas não vem ao caso”.

Por seu lado, os Keynesianos ingleses, dentre eles Sir Roy Harrod, da Oxford University, Joan Robinson, Lord Richard Kahn e Lord Nicholas Kaldor, de Cambridge, observaram que a revolução keynesiana alcançava tanto o plano teórico como as políticas econômicas. Alertaram que a Teoria Geral de Keynes mostrava a importância das instituições monetárias e financeiras no funcionamento da economia real, onde o dinheiro é um aspecto necessário de uma economia na qual o futuro é incerto.

Estes e outros muitos ensinamentos keynesianos foram esquecidos, com a volta da predominância da ortodoxia econômica. Nesse sentido, Joan Robinson acusou o Sistema IS-LM de keynesianismo bastardo, já que teriam distorcido os ensinamentos de Keynes ao aceitarem políticas de governo só para intervenções pontuais para aliviar desequilíbrios de curto prazo no emprego e na renda.

Posteriormente, o verdadeiro keynesianismo foi revivido nos EUA pelo economista Sidney Weintraub da Universidade da Pensilvânia e por seu aluno Paul Davidson.

Contudo, a vasta maioria dos economistas abraçaram a economia neoclássica, especialmente em períodos de performance econômica satisfatória. Somente em períodos de crises econômicas é que alguns poucos economistas voltavam a frequentar os princípios keynesianos. Com o advento da inflação na década de 1960 e depois com sua aceleração na década de 1970, houve a caracterização de três linhas de pensamento: a pós- keynesiana, a keynesiana neoclássica e o pensamento neoclássico mais puro e menos híbrido, conhecido como monetarismo, capitaneada pelo contemporâneo de Keynes, Frederick Von Hayek e seu sucessor Milton Friedman.

Nos dias de hoje, o debate ainda continua, com idas e vindas nas políticas econômicas públicas.

Na economia real, o equilíbrio macroeconômico continua sendo vulnerável a muitos tipos de fatores. A estagflação, que ainda continua sem uma explicação adequada, trouxe ao cenário os monetaristas.

Mas uma coisa é certa. Os salários e preços não dispõem da flexibilidade requerida pelos modelos matemáticos neoclássicos. A preferência pela liquidez, ocorrida na crise de 1930, foi e é um fato relevante, e os estímulos monetários e fiscais, no velho estilo keynesiano, estão na ordem do dia em todo o mundo. E isso para não falar da comprovação cabal do fracasso da teoria quantitativa da moeda, após a crise de 2008.

Futuro previsível ou incerto?

A maioria dos economistas reconhece que todas as teorias são abstrações e, portanto, simplificações da realidade. A finalidade das teorias é buscar tornar o mundo real compreensível, e não substituir o mundo real por um mundo ideal e simplificado, somente para poder tratá-lo matematicamente. Milton Friedman, autor da Metodologia da Economia Positiva parece não concordar com isso. Segundo ele, a questão relevante a ser perguntada sobre as premissas de uma teoria não é se elas são realistas, porque elas nunca são; mas, ao contrário, é se elas são aproximações suficientemente boas do objeto em questão.

Esta pergunta só pode ser respondida ao se comprovar se a teoria funciona, ao produzir previsões suficientemente acuradas do futuro. Para Friedman e seus seguidores, a aceitação, sem questionamentos, dos axiomas e simplificações é condição básica para a construção de qualquer teoria econômica de utilidade. O único teste é se o modelo apresenta boas previsões sobre os eventos futuros. E, ainda, segundo ele, os estudos realizados sobre mudanças nas quantidades de dinheiro, no longo prazo, teriam efeito desprezível na renda; portanto, somente as variáveis não monetárias teriam importância para a renda real, o que comprovaria a hipótese da neutralidade do dinheiro sobre o produto.

Milton Friedman não definiu e mensurou o que viria a ser longo prazo no seu modelo, deixando obscuro o volume de evidências que teria de ser coletado para a comprovação da hipótese da neutralidade do dinheiro na economia.

Os economistas neoclássicos argumentam que, se a economia é uma ciência comparável à astronomia (ou à física), ela também deve estar sujeita a regras ou leis imutáveis e, portanto, sua posição futura poderá ser prevista. A pressuposição básica é de que o futuro da economia já estaria predeterminado pela condição existente no primeiro momento. É como se existisse na economia o princípio determinístico do Big Bang de criação da existência, onde a posição do instante inicial é determinante da posição de qualquer estrela ou planeta no futuro. Por analogia, tendo em conta as expectativas racionais das pessoas, também seria possível antecipar o futuro da economia.

O matemático inglês Alan Turing, demonstrou que se a natureza sempre se comporta segundo regras e leis matemáticas imutáveis, então, o futuro pode ser previsto lançando mão da máquina de TURING, um aparato hipotético que funciona para qualquer cálculo matemático em premissas e condições fixas. Os neoclássicos argumentam que descobriram e desenvolveram um conjunto completo de leis econômicas exclusivas e imutáveis e que, portanto, a pesquisa econômica pode e deve se dedicar a análises e previsões à la Turing.

Desenvolveram-se diversas teorias, todas baseadas nos mesmos princípios básicos, como o da neutralidade do dinheiro, entre outros: equilíbrio geral Walrasiano, Sistemas Arrow-Debrew, teoria das expectativas racionais, síntese neoclássica do keynesianismo, monetarismo ou teoria do caos. Como definem Robert Lucas e Thomas Sargent, a teoria neoclássica lida com modelos que constroem inferências estatísticas sobre o comportamento futuro baseadas em séries temporais passadas. A crença na possibilidade de uma economia empírica não experimental fornece as bases para tais inferências, que permitem a construção de um modelo decisório que pode ser confrontado com vários cenários e produzir respostas para cada um.

Esta conceituação pode ser entendida como darwiniana, onde só aqueles que, dispondo de intuições corretas, teriam construído seus modelos decisórios baseados em expectativas racionais. Aqui os empresários tomariam decisões como robôs lançando mão de modelos matemáticos baseados em premissas comportamentais e séries históricas passadas.

Para Keynes, ao contrário, a economia é essencialmente uma ciência social e não uma ciência natural. A crença na possibilidade de se prever condições econômicas futuras como em leis estatísticas de probabilidade, subestima o papel e a importância do erro humano e da ignorância sobre o futuro. Na verdade, o que deve ser enfatizado é a evolução institucional e histórica do desenvolvimento econômico.

Para os keynesianos não existem relações e correlações quantitativas imutáveis que permitam previsões acuradas sobre o futuro. O lapso de tempo entre a decisão e o resultado é um fato de fundamental importância. O lapso de tempo entre a decisão de produzir e a efetiva disponibilidade do produto pode ser de semanas, meses ou até anos. O tempo transcorrido entre a aquisição de um bem de capital ou de consumo durável e seu efeito posterior produzindo lucro ou satisfação é comumente medido em anos, para não dizer décadas.

Os eventos econômicos são assimétricos; a verificação de eventos passados não pode assegurar sua repetição no futuro, que é criado pela ação humana não sendo determinado por qualquer lei econômica imutável e muito menos sendo passível de ser calculada por qualquer máquina TURING.

Aqui, os empresários vivem um cenário econômico de incertezas sobre o futuro, não dispondo de
modelos confiáveis para determinação dos riscos de sucesso ou fracasso dos empreendimentos.

Projetos de investimento criam emprego e, em consequência, renda, ou demanda, para aquisição dos produtos da própria e de outras indústrias. Segundo Keynes, o espírito empresarial, que se caracteriza pela decisão de investir em longo prazo em ambiente de incerteza, é a condição indispensável para a prosperidade numa economia monetária.

Quando o investimento declina, a economia se deteriora, trabalhadores perdem empregos, negócios são fechados, e a produção decresce. Assim, para Keynes, a compreensão dos ciclos econômicos de crescimento e depressão está intimamente ligada aos fatores que levam os empresários a investir ou, alternativamente, postergar suas decisões de investimento, preferindo a liquidez, o que tem a ver com o otimismo ou o pessimismo dos empresários. Segundo Keynes, a postura mais ou menos arrojada dos empresários deriva da emoção e cultura empresarial, denominadas por ele como “espírito animal”, e não de modelagens matemáticas baseadas em medias ponderadas de resultados multiplicadas pelas respectivas probabilidades quantitativas de ocorrência.

Receios de perdas e expectativas de lucro podem se alternar, não existindo nenhuma base real para sua mitigação através de cálculos matemáticos. Portanto, investidores não são máquinas TURING. As decisões de investimento são tomadas com base no espírito animal, sabendo-se que não existem fórmulas para mitigação das incertezas sobre resultados que só ocorrerão no futuro. As expectativas dos investidores são dadas em ambiente de incerteza futura. Nesse contexto, elas podem ser cautelosas, de espera, com clara preferência pela liquidez; ou arrojadas, seguindo suas intuições, de escolha dos investimentos produtivos, ambas não necessariamente plenamente racionais.

John Hicks, já na sua fase final de reconhecimento da teoria keynesiana, diz que a economia se diferencia das ciências naturais já que, em economia, diferentemente daquelas, não se pode estar seguro de que um evento ou uma correlação existente no passado permanecerá no futuro. Segundo ele, a economia está nas fronteiras da ciência e da história.

Este entendimento reforça a necessidade do estudo da evolução ao longo do tempo das instituições e processos econômicos para o efetivo estabelecimento das políticas.

Os neoclássicos keynesianos tentaram pacificar o impasse conceitual entre os neoclássicos e os keynesianos, ao aceitarem as críticas keynesianas ao modelo de equilíbrio reconhecendo a possibilidade de desequilíbrios no curto prazo, com a volta autoajustável da economia ao equilíbrio no longo prazo. Mas isto está longe de ser aceitável para os keynesianos.

De fato, para os neoclássicos, a teoria keynesiana não substitui a teoria neoclássica. Para os keynesianos a teoria neoclássica se baseia em axiomas inaplicáveis, não sendo capaz de poder resolver problemas do mundo real. Mas continua valendo a máxima imbatível keynesiana de que não adianta ficar esperando que a mão invisível traga de volta a economia ao equilíbrio no longo prazo, pois, até lá, “todos já estaremos mortos”.

Que fique bem claro que os neoclássicos, no seu intento de desenvolvimento de uma análise precisa, rejeitaram a realidade e verdades óbvias universais, agarrando-se na ficção, pela fraqueza das premissas utilizadas, torturando os modelos matemáticos para se “alcançar” os resultados por eles desejados.

Marcos de Queiroz Grillo é economista e mestre em administração pela UFRJ.

A Otan quer a guerra, por Jeffrey D. Sachs

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Em Washington, aliança militar liderada pelos EUA assumiu o giro contra a China, a ampliação do conflito na Ucrânia e o sonho hegemonista dos neocons. O que era arrogância, em 1992, converte-se num delírio muito perigoso. Por quê?

Jeffrey D. Sachs – OUTRAS PALAVRAS – 15/07/2024

Em 1992, o excepcionalismo da política externa dos EUA tornou-se ainda mais intenso. Os EUA sempre se consideraram uma nação extraordinária, destinada à liderança, e o fim da União Soviética em dezembro de 1991 convenceu um grupo de ideólogos politicamente comprometidos – que vieram a ser conhecidos como neoconservadores ou neocons – de que o país deveria agora governar o mundo como a única superpotência incontestável. Apesar dos inúmeros desastres da política externa conduzida pelos neoconservadores, a Declaração da OTAN de 2024 continua a promover a agenda desse pequeno grupo, o que leva o mundo para mais perto de uma guerra nuclear.

Os neoconservadores foram originalmente liderados por Richard (“Dick”) Cheney, que era secretário de Defesa em 1992. Todos os presidentes desde então – Clinton, Bush, Obama, Trump e Biden – seguiram a agenda neocon da hegemonia dos EUA, levando Washington a guerras eletivas perpétuas, entre elas as da Sérvia, Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia e Ucrânia, bem como a expansão implacável da OTAN para o leste, apesar de uma promessa clara feita pelos EUA e pela Alemanha ao presidente soviético Mikhail Gorbachev, em 1990, de que a OTAN não se moveria um centímetro nesse rumo.

A ideia central dos neoconservadores é que os EUA devem ter domínio militar, financeiro, econômico e político sobre qualquer rival em potencial, em qualquer parte do mundo. Ela é direcionada especialmente a potências rivais como a China e a Rússia e, portanto, coloca os EUA em confronto direto com elas. A arrogância norte-americana é impressionante: a maior parte do mundo não quer ser liderada pelos EUA, muito menos por um Estado norte-americano claramente movido pelo militarismo, elitismo e ganância.

O plano neocon para o domínio militar dos EUA foi explicitado no Projeto para um Novo Século Americano. Inclui a expansão incessante da OTAN para o leste e sua transformação: de uma aliança defensiva contra a extinta União Soviética em uma aliança ofensiva voltada a promover a hegemonia dos EUA. A indústria armamentista dos EUA é o principal financiador e apoiador político dos neoconservadores. Ela liderou o lobby para a ampliação da OTAN para o leste a partir da década de 1990. Joe Biden tem sido um neocon convicto desde o início – primeiro como senador, depois como vice-presidente e agora como presidente.

Para alcançar a hegemonia, os planos neocon baseiam-se em operações de mudança de regime da CIA; guerras eletivas lideradas pelos EUA; bases militares dos EUA no exterior (atualmente são cerca de 750, em pelo menos 80 países); militarização de tecnologias avançadas (guerra biológica, inteligência artificial, computação quântica etc.); e uso incansável da guerra de informações.

A busca pela hegemonia dos EUA levou a uma guerra aberta na Ucrânia entre as duas maiores potências nucleares do mundo, a Rússia e os Estados Unidos. A guerra na Ucrânia foi provocada pela determinação incontida dos EUA de expandir a OTAN para a Ucrânia, apesar da fervorosa oposição da Rússia, bem como pela participação dos EUA no violento golpe de Maidan (fevereiro de 2014), que derrubou um governo neutro, e pelo enfraquecimento, pelos EUA, do acordo de Minsk II, que garantia autonomia para as regiões etnicamente russas do leste da Ucrânia.

A Declaração de 2024 considera a OTAN uma aliança defensiva, mas os fatos dizem o contrário. A OTAN envolve-se repetidamente em operações ofensivas, inclusive de mudança de regime. A OTAN liderou o bombardeio da Sérvia para dividir essa nação em duas partes, tendo estabelecido uma importante base militar na região separatista de Kosovo. A OTAN tem desempenhado um papel importante em muitas guerras eletivas dos EUA. Os bombardeios da OTAN na Líbia foram usados para derrubar o governo de Moammar Qaddafi.

A busca dos EUA pela hegemonia, que era arrogante e insensata em 1992, é absolutamente ilusória hoje, uma vez que o país claramente enfrenta rivais formidáveis, capazes de competir com os ele no campo de batalha, na implantação de armas nucleares e no desenvolvimento e implantação de tecnologias avançadas. O PIB da China é hoje cerca de 30% maior do que o dos EUA quando medido a preços internacionais, e a China é a produtora e fornecedora mundial de baixo custo de muitas tecnologias verdes essenciais — incluindo 5G, energia fotovoltaica, energia eólica, veículos elétricos, energia nuclear modular e outras. A produtividade da China tornou-se tão grande que os EUA reclamam do “excesso de capacidade” chinês.

Infelizmente, e de forma alarmante, a declaração da OTAN repete as ilusões dos neoconservadores.

A Declaração declara falsamente que “a Rússia é a única responsável por sua guerra de agressão contra a Ucrânia”, apesar das provocações dos EUA que levaram à eclosão da guerra em 2014.

A Declaração da OTAN reafirma o Artigo 10 do Tratado de Washington, segundo o qual a expansão da aliança para o leste não é da conta da Rússia. No entanto, os EUA nunca aceitariam que a Rússia ou a China estabelecessem uma base militar na fronteira dos EUA (por exemplo, no México), como os EUA declararam pela primeira vez na Doutrina Monroe em 1823 e têm reafirmado seguidamente desde então.

A Declaração de 2024 reafirma o compromisso da OTAN com as tecnologias de biodefesa, apesar das crescentes evidências de que os gastos dos EUA com biodefesa nos chamados Institutos Nacionais de Saúde (NIH) financiaram a criação em laboratório do vírus que pode ter causado a pandemia de Covid-19.

A Declaração da OTAN proclama a intenção de continuar a instalar mísseis antibalísticos Aegis (como já se fez na Polônia, Romênia e Turquia), apesar de a retirada dos EUA do Tratado Anti-Mísseis Balísticos (ABM) e a instalação de mísseis Aegis na Polônia e na Romênia terem desestabilizado profundamente a arquitetura de controle de armas nucleares.

A Declaração da OTAN não expressa nenhum interesse em uma paz negociada para a Ucrânia.

A Declaração de 2024 reforça o “caminho irreversível da Ucrânia para a plena integração euro-atlântica, incluindo a adesão à OTAN”. No entanto, a Rússia nunca aceitará a adesão da Ucrânia à OTAN, e portanto trata-se de um compromisso “irreversível” com a guerra.

O Washington Post relata que, na preparação para a cúpula da OTAN, o presidente Joe Biden tinha sérias dúvidas sobre a promessa de um “caminho irreversível” para a adesão da Ucrânia à OTAN, mas seus assessores ignoraram essas preocupações.

Os neoconservadores criaram inúmeros desastres para os EUA e para o mundo, inclusive várias guerras fracassadas, um acúmulo maciço da dívida pública norte-americana impulsionado por trilhões de dólares de gastos militares desnecessários com guerras e o confronto cada vez mais perigoso com a China, a Rússia, o Irã e outros. Os neoconservadores levaram o Relógio do Juízo Final (da guerra nuclear) a apenas 90 segundos para a meia-noite, em comparação com 17 minutos em 1992.

Para o bem da sua segurança e da paz mundial, os EUA devem abandonar imediatamente a busca neocon pela hegemonia em favor da diplomacia e da coexistência pacífica.

O crime organizado não tem fronteiras na Amazônia, por Bram Ebus

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Expansão reflete incapacidade de Estados intensificarem ações conjuntas

Bram Ebus, Pesquisador e jornalista baseado em Bogotá (Colômbia), contribuiu para o recente briefing “Um problema de três fronteiras: restringindo as fronteiras criminosas da Amazônia”, do International Crisis Group

Folha de São Paulo, 22/07/2024

O crime organizado se aninha e se multiplica nas fronteiras da Amazônia, onde os criminosos podem facilmente se esconder das autoridades e forjar alianças lucrativas com grupos de países vizinhos. Um desses pontos críticos é a tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, assolada pela crescente violência e o crime organizado.

Em Tabatinga (AM), na fronteira entre Colômbia e Peru, as paredes marcadas com as siglas do PCC, de São Paulo, do Comando Vermelho, do Rio de Janeiro, da facção criminosa local Os Crias e do agora extinto Família do Norte (FdN) são testemunha da escalada da violência.

“Conquistar tudo para ter paz na cidade” é o objetivo do Comando Vermelho, segundo um membro de gangue em Tabatinga. O CV agora domina o crime local. A facção carioca estendeu-se até a cidade fronteiriça de Letícia, na Colômbia, a mais de 3.500 km, e controla importantes rotas de tráfico e mercados locais de drogas no Amazonas.

Além disso, já domina áreas de produção de cocaína no Peru. Operando anéis de tráfico transfronteiriço, o grupo precisa lidar com dissidentes das Farc colombianas, cada vez mais atuantes no Brasil, especialmente no município de Japurá (AM) devido ao atrativo das operações ilegais de mineração de ouro.

Coexistindo com a crise de segurança na região, estão as crises ambiental e climática, pois o crime organizado representa uma grave ameaça à maior floresta tropical do mundo.

Economias ilícitas, como mineração ilegal de ouro, produção de cocaína e pesca ilegal, administradas por redes criminosas transfronteiriças, têm um impacto devastador sobre o meio ambiente e ameaçam os defensores indígenas da Amazônia. As taxas de homicídio em muitas regiões amazônicas superam a média da América Latina, território mais violento do mundo.

Neste cenário desafiante e violento, as forças estatais dos países vizinhos se veem imersas em uma batalha desigual e perdida contra as organizações criminosas bem articuladas e armadas na disputa pelo controle da região.

“O que acontece lá nos afeta aqui”, diz um oficial de segurança colombiano em Letícia, cidade irmã de Tabatinga. Os orçamentos de segurança para a Amazônia não conseguem competir com as vultosas receitas das facções. Os altos lucros também catalisam a corrupção, com inúmeros casos de informações privilegiadas sendo repassadas a criminosos ou a policiais envolvidos em esquemas. “Não creio que o sistema judicial esteja preparado para perseguir os agentes policiais”, admite um oficial do Estado brasileiro.

A expansão do crime na Amazônia reflete a incapacidade dos Estados de intensificar medidas de proteção, especialmente nas fronteiras.

Expostos à violência crescente e à presença cada vez maior de redes criminosas transnacionais, os povos indígenas têm organizado guardas independentes e desarmadas para patrulhar suas terras ancestrais e detectar invasores violentos —além de comprovarem sua eficácia na gestão da natureza, evidenciada pelos menores índices de desmatamento onde são os donos das terras.

Entretanto, confrontar criminosos com armamentos pesados é inútil sem o apoio estatal. A segurança regional na Amazônia depende, dentre outros fatores, de soluções que atendam às necessidades reais das populações que nela habitam. Além disso, é crucial que sejam estabelecidas relações de confiança entre as forças de segurança e as comunidades locais, além da cooperação transfronteiriça entre as forças de segurança dos países limítrofes para conter a expansão de facções e grupos criminosos.

A vontade política é um elemento primordial para avançar com as estratégias mencionadas. Durante uma cúpula em 2023, oito países amazônicos concordaram em aumentar a cooperação em segurança. As esperanças são consideráveis para um novo impulso no diálogo político e na cooperação durante a COP16 de Biodiversidade deste ano na Colômbia, e, em 2025, na COP30 do clima, sediada na cidade amazônica de Belém do Pará.

O destino dos negros, por Ana Cristina Rosa

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Semana do aniversário do Estatuto da Igualdade Racial atestou que Brasil está longe de garantir equidade de oportunidades a negros

Ana Cristina Rosa, Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública)

Folha de São Paulo, 22/07/2024

A semana em que o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) completou 14 anos foi repleta de notícias que atestam o quanto o Brasil está longe de garantir equidade de oportunidades à população negra.

A despeito das inegáveis conquistas impulsionadas pelo estatuto (como cotas em concursos públicos, políticas afirmativas de inclusão), a origem étnica das pessoas segue alimentando injustiças sociais e determinando o destino dos negros país afora.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontou um verdadeiro massacre racial. Coisa que faz do slogan “na dúvida, mate o negro” a ilustração perfeita da prática das polícias. Afinal, se você não é branco, a chance de ser morto numa operação policial é quatro vezes maior!

Me pergunto quando o Estado assumirá o papel de regular a vida em sociedade com base em critérios antirracistas? Até quando o “monopólio da violência legítima” será usado para punir (e até eliminar) de maneira desproporcional pretos e pardos?

Os novos dados do Censo Demográfico 2022 (IBGE) identificaram a população quilombola como “grupo étnico” pela primeira vez. Foi um avanço, mas também evidenciou que a atenção a essas comunidades é muito desigual quanto a investimentos e políticas públicas.

A discrepância resulta numa taxa de analfabetismo cerca de três vezes maior entre os quilombolas (18,99%) na comparação com a média nacional (7%), por exemplo. São 192,7 mil pessoas com pelo menos 15 anos que não sabem ler ou escrever, em 8.441 localidades. Será que governadores e ministros de Estado estão pensando em fazer algo sobre isso?

Para quem não sabe, quilombolas são “grupos étnico-raciais com trajetória histórica própria (…) e presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão” (decreto 4.887/2003).

O Brasil precisa enfrentar de uma vez por todas as desigualdades calcadas no racismo institucional se quiser crescer e se desenvolver como nação.

Tempos sombrios

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Vivemos momentos interessantes, marcados por grandes transformações em todas as áreas e setores, gerando apreensões, angústias e euforias. Vivemos momentos de grandes desenvolvimentos tecnológicos notadamente em setores de comunicação, informática, saúde, educação, dentre outros, todos impulsionadas pela inteligência artificial, pela robótica e pelas novas ciências que vem ganhando espaço na sociedade contemporânea.

O desenvolvimento científico e tecnológico que vivenciamos na sociedade contemporânea nos traz muitas possibilidades de sobrevivência, as pessoas estão vivendo melhores e mais saudáveis que seus antepassados, as melhoras econômicas e sociais possibilitam mais conforto, transformando o mundo do trabalho, exigindo dos trabalhadores mais habilidades imateriais, ao contrário dos modelos de trabalho anteriores que se assentavam na força física, atualmente o mercado exige habilidades comportamentais, iniciativas, agilidades e flexibilidades.

Mesmo percebendo os avanços sociais e econômicos em curso na sociedade, percebemos ainda, que a desigualdade cresce de forma acelerada, a riqueza está se concentrando nas mãos de poucos grupos, criando mercados oligopolizados e consolidando um modelo econômico e produtivo que coloca no centro da comunidade a busca frenética pelo lucro monetário e pelos interesses financeiros, estimulando a concorrência crescente, o imediatismo e o individualismo.

Destacamos ainda, neste cenário, as grandes transformações climáticas na sociedade global, regiões dotadas de grande potencial agrícola e agroexportador que podem perder suas vantagens comparativas, gerando consequências negativas para muitas nações que se especializaram historicamente em produtos primários de baixo valor agregado. As transformações climáticas estão gerando calafrios para todos os indivíduos na sociedade internacional, ainda mais depois das degradações e as calamidades ocorridas no Rio Grande do Sul, mesmo assim, encontramos muitos grupos políticos poderosos e dotados que grande poder financeiro que rechaçam que as destruições foram causadas pela intervenção dos seres humanos e minimizam as devastações ocorridas no meio ambiente, desta forma, querem legitimar e perpetuar suas formas de atuação degradante e continuar fortalecendo investimentos predatórios e modelos de negócios cujos efeitos negativos sobre a natureza são preocupantes.

Destacamos ainda, que vivemos tempos sombrios na sociedade global, embora encontremos novas tecnologias e novos modelos de negócios que estão revolucionando a comunidade e as relações sociais, percebemos também o incremento da violência urbana que devasta a sociedade, gerando conflitos generalizados entre os cidadãos, fortalecendo as milícias, estimulando o narcotráfico e fomentando uma sociedade cada vez mais individualista, onde cada indivíduo busca seus interesses imediatos e contribuem ativamente para esgarçar o tecido social. O resultado imediato deste cenário é o aumento da desesperança, o incremento do racismo e da xenofobia, além da intolerância, da exclusão social e da degradação dos valores morais.

Uma sociedade que se apresenta desta forma, perpetuando as desigualdades sociais, pagando salários aviltantes, explorando em demasia seus trabalhadores e os chamam de colaboradores, fomentando um modelo de degradação e de precarização do mercado de trabalho, utilizando seu poder financeiro para aumentar suas isenções fiscais e tributárias, além de detentora de uma elite financeira predadora e imediatista que se compraz com juros escorchantes, garantindo ganhos monetários elevados e se afastando de sua responsabilidade na construção de um projeto consistente de nação… O futuro deste país com certeza deve ser visto como nebuloso para uma grande parte desta sociedade.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Escolhas

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Vivemos momentos de grandes escolhas na sociedade internacional, neste cenário, percebemos abertamente que a comunidade mundial vem passando por grandes transformações em todas as áreas e setores nas últimas décadas, mudanças que estão impactando todas as nações, alterando culturas e modificando o comportamento dos indivíduos, gerando incertezas e instabilidades, além de novas indagações, novos questionamentos, riscos e oportunidades.

Nos últimos trinta anos, percebemos o aumento da concentração de renda na sociedade global, poucos cidadãos possuem grandes recursos monetários e financeiros em detrimento de uma grande quantidade de indivíduos que vivem à margem desta riqueza global, gerando pressões políticas, acumulando ressentimentos, impulsionando rancores e violências que se espalham para toda a comunidade, levando os governos nacionais a aumentarem os investimentos na segurança pública como forma de debelar esses conflitos sociais que crescem de forma acelerada.

Neste período, percebemos as transformações climáticas na sociedade internacional, eventos distantes e espaçados no tempo estão acontecendo mais constantemente, alterações no clima tendem a transformar a produção de alimentos, a produtividade do solo e a reduzir as reservas de água potável, desta forma, os grandes especialistas vislumbram grandes conflitos militares num futuro próximo, com custos econômicos e sociais perversos.

Vivemos momentos de escolhas difíceis e contraditórias para todas as nações e para todos os governos, necessitamos de líderes conscientes deste desafio histórico e capacidade de analisar a sociedade contemporânea, as escolhas são difíceis e exigem maturidade política, consensos econômicos e uma grande capacidade de alavancar apoios políticos e institucionais, rechaçando respostas fáceis para problemas estruturais e contribuindo para a geração de novos instrumentos de esperança, um desafio gigantesco numa sociedade que se compraz com o medo e a desesperança.

A concorrência internacional motivada pelo processo de globalização econômica e o incremento da tecnologia vem exigindo dos governos e da sociedade fortes investimentos em capital humano, fortalecimento das pesquisas científicas e tecnológicas como forma de alavancar a soberania nacional e consolidando vantagens comparativas. No caso brasileiro, percebemos a ausência de um projeto nacional que coloque os investimentos em capital humano no centro das discussões políticas estratégicas, valorizando a escola, o conhecimento, as universidades e os professores, o que percebemos, infelizmente, são confrontos de lobbies organizados e interesses imediatos que atravancam um projeto mais consistente e que visam a perpetuação de uma condição de colonização e de subserviência no cenário global.

Numa sociedade como a brasileira é inadmissível manter taxas de juros escorchantes a mais de trinta anos, impactando fortemente os setores econômicos, os investimentos produtivos e a geração de renda. São escolhas como essa que perpetuam as desigualdades e nos mantem numa condição de indignidade social, limitação econômica e fragilidade moral.

Vivemos momentos de grandes escolhas políticas, estamos nos aproximando de eleições municipais, um momento de escolhermos os nossos representantes e o que queremos nos próximos anos. Neste momento, precisamos analisar as propostas e a viabilidade dos candidatos, sua trajetória, seus apoiadores e a sua capacidade de gestão administrativa e organização social, senão vamos continuar defendendo e perpetuando que “o inferno são os outros”, como disse, o grande escritor francês Jean-Paul Sartre.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Educação mecanizada, por Martinez, Gama & Melo

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Vinício Carrilho Martinez, Lucas Gama & Samuel Cerqueira Melo –

A Terra é Redonda – 11/07/2024

Mesmo a educação atendendo aos requisitos da sua época, ela não pode reduzir-se ao discurso mecanicista do desenvolvimento econômico

“A crise da educação no Brasil não é uma crise: é projeto”
(Darcy Ribeiro)

Por ocasião da aprovação da normativa legal sobre o “novo” projeto de ensino médio, na Câmara dos Deputados, construímos uma reflexão partindo-se da frase (sentença realista) de Darcy Ribeiro: “A crise na educação não é uma crise, é projeto”. [i] Ou seja, é um projeto político que torna a educação pública sempre submissa às crises sistêmicas e, praticamente, não consiga se deslocar desse quadro – principalmente se pensarmos numa educação de qualidade, crítica,
laica, emancipatória.

Neste sentido inicial, diremos que há inúmeras formas de se entender a frase do ex-senador Darcy Ribeiro; no entanto, uma abordagem inquestionável nos diz que, no Brasil, o que se faz ou deixa de fazer em educação é, sem sombra de dúvidas, um conjunto de ações (ou inações) que compõe um projeto político. E qual é esse projeto político, dizendo-se cuidar do futuro dos jovens, mas que é incapaz de se livrar do peso do passado que nos limita e embrutece?

Também há uma visão capitalista, reprodutiva, capacitista e desinteressada da sociabilidade – e muitas outras leituras entre um campo e outro, como temos na famosa tese constitucional da “tríplice hélice”. [ii] Em compasso a isto, tem-se uma tentativa de resposta, com base numa tese correta pela metade: essa tese diz que a sociedade está dentro da escola e, logo, a escola não pode mudar muita coisa. Trata-se de uma interpretação que se propõe materialista, mas que é reducionista, mecanicista. Sociologicamente, reproduz o funcionalismo de Émile Durkheim, sem que saibam disso.

Uma simples avaliação binária, maniqueísta, mostraria que há uma possibilidade de engenharia reversa nessa lógica mecanizada. E, assim, a escola poderia ir à sociedade, com a formação crítica dos jovens e não mais “passivos”.

Também é possível entender essa tese a partir de relações orgânicas (como ocorre com o próprio metabolismo “capital x Estado x sociedade”) – e essas relações se mostrariam reveladoras. Ou seja, organicamente, a escola (educação pública) tanto reflete o atraso empoeirado, o rancor do passado, o Fascismo e a luta de classes, quanto é um entreposto empoderado de resistência.

A relação entre sociedade (Estado) e educação é uma via de muitas mãos, não se trata apenas de uma “mão dupla”: há avanços em direção ao Processo Civilizatório e há retrocessos; porém, mesmo nos avanços podem correr distúrbios, bem como nos retrocessos as ações de resistência podem criar enfrentamentos e rupturas.

Então, a educação pública (a escola pública) pode e deve ser pensada como resistência e mudança, e não apenas, sob o reducionismo, como “resistência à mudança”. 2015, em São Paulo, é um dado histórico, concreto e preciso dessa análise orgânica.

Aliás, se a tese mecanizada fosse correta (afinal, uma rodinha puxa a outra), neste exato momento nós estaríamos ensinando coisas estranhas da sociedade brasileira: (i) O que fazer para ser um populista tirânico? (ii) como surrupiar o Estado e “lavar dinheiro”? (iii) o fascismo é top; (iv) o racismo é massa; (v) o futuro depende do macho tóxico; (vi) fique milionário com drogas.

Ou, simplesmente, estaríamos mantendo disciplinas no ensino médio alertando para fatos surpreendentes da realidade, ciosas da capacidade crítica que merecemos ver em quem se propõe ao conhecimento – como é o caso de uma que se chama “O que rola por aí?”. Em especial, essa disciplina fez ou faz parte ativa dos chamados “itinerários formativos” do “Novo ensino médio”. [iii]

Por fim – e não menos importante –, outra conclusão, bem diferente da educação de rodinhas, nos diz que: se a escola pública é militarizada, impregnada de religião, reprodutora dos crimes sociais, é porque isso se deve a um projeto político; se a escola pública – combatendo os crimes sociais – é de qualidade (integral), laica, libertária, é porque se deve a um projeto político.

Se há educação financeira – notadamente para jovens que não tem o que comer, a não ser a merenda –, ao invés de educação sexual, isso é um projeto político. Tanto quanto é um projeto político não abdicar do kit de robótica, mas implementar o ensino da sociologia e da filosofia, com destaque para os clássicos e a formação social brasileira. Por que não ensinar espanhol?

No outro extremo, temos a Inteligência Artificial (IA) do ChatGPT produzindo um texto sobre o “novo” ensino médio que, numa leitura rápida, em tudo se assemelha ao próprio descritivo do dispositivo legal – ou se assemelharia a uma peça publicitária.

Produção da IA do ChatGPT

O Novo Ensino Médio no Brasil é uma reforma educacional implantada com o objetivo de modernizar e flexibilizar a estrutura do ensino para melhor atender às necessidades e interesses dos estudantes. Instituído pela Lei nº 13.415/2017, essa mudança visa promover um ensino mais integrado e dinâmico, preparando os jovens para os desafios do século XXI.

Principais características do Novo Ensino Médio:

(a) Flexibilização do currículo – uma das principais mudanças é a flexibilização do currículo. O novo modelo permite que os estudantes escolham áreas de conhecimento ou formação técnica e profissional de acordo com suas preferências e aspirações futuras. Isso é possível graças à criação dos itinerários formativos, que são conjuntos de disciplinas agrupadas por áreas de interesse, como linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional.

(b) Ampliação da carga horária – A carga horária total do Ensino Médio também foi ampliada. Anteriormente, a carga mínima era de 2.400 horas ao longo dos três anos. Com o Novo Ensino Médio, essa carga passa para 3.000 horas, sendo 1.800 horas destinadas à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as 1.200 horas restantes distribuídas entre os itinerários formativos escolhidos pelos estudantes.

(c) Integração com o mercado de trabalho – O Novo Ensino Médio também busca aproximar os jovens do mercado de trabalho, oferecendo a possibilidade de formação técnica e profissional durante o período escolar. Isso é feito por meio de parcerias com instituições de ensino técnico e empresas, permitindo que os alunos adquiram competências práticas e específicas que facilitem sua inserção no mundo profissional.

(d) Desenvolvimento de competências e habilidades – A reforma prioriza o desenvolvimento de competências e habilidades essenciais para a vida em sociedade e para o exercício da cidadania.

A BNCC estabelece as competências gerais que todos os estudantes devem desenvolver, tais como o pensamento crítico, a comunicação, a resolução de problemas, a criatividade, o trabalho em equipe e a responsabilidade socioambiental.

(e) Implantação e desafios – a implantação do Novo Ensino Médio é gradual e enfrenta diversos desafios, incluindo a adaptação das escolas, a capacitação dos professores e a adequação dos materiais didáticos. Além disso, é necessário garantir que todas as regiões do país tenham condições de oferecer as diferentes opções de itinerários formativos, o que exige investimentos em infraestrutura e recursos humanos.

Conclusão da IA do ChatGPT

O Novo Ensino Médio no Brasil representa um passo importante na busca por uma educação mais relevante e conectada com as demandas contemporâneas. Ao oferecer maior flexibilidade curricular, ampliar a carga horária e integrar o ensino ao mercado de trabalho, a reforma tem o potencial de proporcionar uma formação mais completa e alinhada com os interesses dos jovens. No entanto, para que seus objetivos sejam plenamente alcançados, é fundamental enfrentar os desafios de implementação e assegurar que todos os estudantes, independentemente de sua localização ou condição socioeconômica, tenham acesso a uma educação de qualidade.

Nossa conclusão

A conclusão geral, inicial, indica o fato de que o “novo” ensino médio – assim como os anteriores – é um projeto político, de sociedade, que se baseia na crise sistêmica, envolto por essa(s) crise(s) sem se pautar pelo interesse de sua mínima resolução. A negação da cidadania, da formação crítica, participativa, propositiva, não se desfez – ao contrário, em certo sentido, agravou-se, se pensarmos que o Kit de robótica é um placebo de modernidade, sobretudo, quando refletirmos na profundidade que uma disciplina, um conjunto de disciplinas (vocacionadas ao século XXI), traria sob a forma, por exemplo, de uma Educação digital/ambiental. Afinal, essas sim são as questões sérias que “rolam por aí”.

Neste contexto, compreende-se que mesmo a educação atendendo aos requisitos da sua época, ela não pode reduzir-se ao discurso mecanicista do desenvolvimento econômico. Isso significa que a educação critica precisa ser enfrentada como um dos pilares fundadores desse ecossistema – ampliando-se a dimensão social, cultural e política dos participantes, engendrando-se possibilidades de modificar a si mesmo e o mundo que se constitui a sua volta.

*Vinício Carrilho Martinez é professor do Departamento de Educação da UFSCar. Autor, entre outros livros, de Bolsonarismo. Alguns Aspectos Político-Jurídico e Psicossociais (APGIQ).
*Lucas Gama é doutorado do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Química da UFSCar.
*Samuel Cerqueira Melo é mestrando em Ciência, Tecnologia e Sociedade na UFSCar.

Referência
DURKHEIM, Émile. A educação como processo socializador: função homogeneizadora e função diferenciadora. In: Foracchi, Marialice M. (org). Educação e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979.

O militar e a fé religiosa, por Manuel Domingos Neto

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Manuel Domingos Neto – A Terra é Redonda – 07/07/2024

Como um Estado proclamado laico deve lidar com o ativismo religioso em suas entranhas?
Um vídeo circulou essa semana mostrando um auditório repleto de militares numa celebração religiosa falsamente apresentada como neopentecostal. Na verdade, tratava-se de rotineira celebração da Páscoa dos militares que, desde a Segunda Guerra Mundial, ocorre à margem do calendário da Igreja Católica.

A postagem maldosa inquietou brasileiros preocupados com as ameaças à democracia: de instituições militares e policiais contaminadas por fundamentalismos religiosos só cabe esperar aberrações sem limites.

Até a recente invasão da Faixa de Gaza, eu recorria à descrição da tomada de Jerusalém do bispo francês Raymond d’Agile para exemplificar a santificação do derramamento de sangue: “Coisas admiráveis são vistas… Nas ruas e nas praças da cidade, pedaços de cabeça, de mãos, de pés. Os homens e os cavaleiros marcham por todos os lados através de cadáveres… No Templo e no Pórtico, ia-se a cavalo com o sangue até a brida. Justo e admirável o julgamento de Deus que quis que esse lugar recebesse o sangue dos blasfemos que o haviam emporcalhado. Espetáculos celestes… Na Igreja e por toda a cidade o povo rendia graças ao Eterno”.

Sabemos dos estragos do fanatismo religioso na política: falseia o escrutínio da representação popular e explode a institucionalidade. Sabemos também que a composição do Congresso Nacional não representa o espectro político-ideológico brasileiro. O que não sabemos é a profundidade da penetração do discurso neopentecostal nos instrumentos de força do Estado. Apenas temos consciência de que existe e tem potencial nefasto.

Como um Estado proclamado laico deve lidar com o ativismo religioso em suas entranhas? Eis um problema permanente da modernidade, que se exprime de forma aguda no quartel.

A entidade que justifica a guerra entre civilizados é a nação, também designada pátria. Ao destacar os cenotáfios (túmulos sem restos mortais) na construção desse ente, Benedict Anderson demonstrou como sua legitimação deriva da religiosidade: remete ao passado longínquo e à eternidade. O encarregado de sustentar a nação pelas armas é, sem escapatória, envolvido por sua sacralidade.

O combatente contemporâneo se veste de mandatário do “bem” em luta sagrada contra o “mal”. Presta juramento e reverencia a bandeira nacional feito um cruzado medieval diante da cruz. Não desatualiza a mordacidade de Voltaire: “o maravilhoso, nesta empresa infernal (a guerra), é que todos os chefes de assassinos fazem benzer as bandeiras e invocam solenemente Deus antes de exterminar o próximo”.

Guerreiros, em qualquer tempo e lugar, são levados a cultivar a “bela morte”: amam a vida, gostam de facilidades materiais e projeção social, mas perseguem a glória, algo além daquilo que a existência terrena pode oferecer. Heróis de guerra são reverenciados em todas as sociedades. Fascinam, galvanizam multidões e estimulam processos sociais.

A disposição do moderno de ver a guerra como algo excepcional demanda cortes arbitrários como os estabelecidos entre o “religioso”, o “político”, o “econômico”, o “científico”, o “diplomático” e o “militar”. A rigor, nenhum desses domínios pode ser compreendido como desconexo.

As distinções arbitrárias, bem como os sempre frustrados acordos de desarmamento, as tentativas fracassadas de classificar e regulamentar o comportamento de combatentes de vida e morte ou ainda as quiméricas neutralidades nos conflitos entre Estados nacionais, camuflam o mal-estar provocado pela eliminação dos semelhantes.

Se o Estado laico não pode interditar atividades religiosas no quartel, é fundamental que estabeleça limites. Isso requer garantia da plena liberdade de crença, incompatível com a prevalência formal da Igreja Católica, e a contenção do fanatismo.

É hora de rever a chamada capelania: missionários não podem ser admitidos como funcionários remunerados. Cabe assegurar a presença, no quartel, do mosaico de crenças da sociedade brasileira. Aos comandos, cumpre observar o estrito respeito à diversidade religiosa.

Quanto à pessoa que apresentou falsamente o vídeo sobre a celebração da Páscoa dos militares, saiba que conseguiu angustiar os que gostam da democracia e irritar em vão os que, no quartel, buscavam o agasalho de Cristo. Que tal arranjar outra coisa para fazer?

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Autor, entre outros livros de O que fazer com o militar – Anotações para uma nova Defesa Nacional (Gabinete de Leitura)

A uberização e a crise da previdência, por Pedro Henrique M. Aniceto

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Pedro Henrique M. Aniceto – A Terra é Redonda – 05/07/2024

A desvalorização do trabalho humano é contrária aos cânones de justiça e equidade que fundamentam a lógica da previdência social

Nos últimos anos, a transformação do mercado de trabalho, impulsionada pelo avanço tecnológico e pelo crescimento das plataformas digitais, trouxe à tona um fenômeno denominado “uberização do trabalho”. Esse modelo, caracterizado pela intermediação entre prestadores de serviço e clientes por meio de aplicativos, promete flexibilidade e autonomia aos trabalhadores. No entanto, ao se analisar mais profundamente, especialmente sob a ótica social, torna-se mais que evidente que essa aparente liberdade vem acompanhada de uma série de precariedades e significativos problemas.

A previdência social desempenha um papel importante e necessário na proteção dos trabalhadores, garantindo uma rede de segurança que lhes permite enfrentar momentos de vulnerabilidade, como doença, desemprego ou velhice. O sistema previdenciário foi concebido para assegurar que, após anos de contribuição, os trabalhadores tenham direito a uma aposentadoria digna, proporcionando-lhes estabilidade financeira na terceira idade.

No modelo tradicional de emprego, essa segurança é garantida por contribuições regulares tanto dos empregados quanto dos empregadores, criando uma base sólida para o financiamento dos benefícios sociais e manutenção da seguridade da sociedade. A previdência é um componente essencial do Estado de bem-estar social, promovendo a equidade e a justiça social ao redistribuir renda e oferecer proteção a todos os trabalhadores, independentemente de sua posição econômica.

No contexto da uberização do trabalho, essa estrutura de proteção é significativamente enfraquecida. Os trabalhadores de plataformas digitais, muitas vezes classificados como autônomos, não têm acesso aos mesmos direitos e benefícios dos empregados formais. A ausência de contribuições previdenciárias regulares por parte desses trabalhadores compromete não apenas sua própria segurança futura, mas também a sustentabilidade do sistema previdenciário como um todo.

Sem a garantia de um contrato formal e das contribuições correspondentes, esses trabalhadores ficam desprotegidos e enfrentam uma maior incerteza econômica. Esse modelo de trabalho exacerba a vulnerabilidade dos trabalhadores, que são frequentemente sujeitos a jornadas de trabalho extenuantes e a uma instabilidade financeira crônica, sem o amparo de uma rede de proteção social.

A precarização das condições de trabalho decorrente da uberização também afeta diretamente a arrecadação fiscal. Com menos trabalhadores contribuindo regularmente para a previdência, a capacidade do sistema de fornecer benefícios adequados é severamente reduzida.

Isso não apenas coloca em risco a aposentadoria de milhões de pessoas, mas também a viabilidade de outros benefícios sociais, como o seguro-desemprego e o auxílio-doença, que são essenciais para a estabilidade econômica dos trabalhadores em momentos de crise. A redução na arrecadação fiscal também limita a capacidade do governo de investir em outras áreas críticas, como saúde e educação, exacerbando ainda mais as desigualdades sociais.

Além disso, a importância da previdência se torna ainda mais evidente quando consideramos o envelhecimento da população. À medida que a expectativa de vida aumenta, mais pessoas dependem dos benefícios previdenciários para manter um padrão de vida digno após a aposentadoria. A uberização, ao promover relações de trabalho mais flexíveis e menos regulamentadas, ameaça agravar o desequilíbrio financeiro dos sistemas previdenciários.

Sem uma base ampla e estável de contribuições, a capacidade de atender às necessidades de uma população envelhecida é comprometida, colocando em risco o bem-estar de futuras gerações. A ausência de contribuições contínuas e regulares pode resultar em um déficit previdenciário extremamente significativo, forçando o Estado a adotar medidas de austeridade que podem prejudicar ainda mais os trabalhadores e a economia como um todo.

O processo de uberização também levanta questões sobre a dignidade e a valorização do trabalho.

Em muitos casos, os trabalhadores de plataformas digitais recebem remuneração abaixo do salário-mínimo, não têm acesso a benefícios básicos e são expostos a condições de trabalho perigosas e insalubres.

Essa desvalorização do trabalho humano é contrária aos cânones de justiça e equidade que fundamentam a lógica da previdência social. A falta de regulamentação adequada e a exploração dos trabalhadores pela lógica do lucro máximo das plataformas criam um ambiente de trabalho hostil e insustentável, onde os direitos humanos básicos são frequentemente violados.

Portanto, a previdência social é um pilar essencial para a segurança e a dignidade dos trabalhadores, oferecendo uma rede de proteção contra as incertezas econômicas e os riscos da vida. A uberização do trabalho, ao afastar-se dos modelos tradicionais de emprego formal, impõe sérios desafios a essa estrutura, enfraquecendo a rede de segurança que sustenta milhões de trabalhadores.

Reconhecer a importância da previdência social e enfrentar as implicações desse novo modelo de trabalho é crucial para garantir uma proteção social justa e eficaz em um mundo cada vez mais digitalizado.

*Pedro Henrique M. Aniceto é graduando em ciências econômicas na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Novo desenvolvimentismo, por Luiz Carlos Bresser Pereira

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Luiz Carlos Bresser Pereira – A Terra é Redonda – 07/07/2024

Por ocasião do lançamento do meu mais recente livro Novo desenvolvimentismo – introduzindo uma nova teoria econômica e economia política, um repórter perguntou-me o que é o Novo Desenvolvimentismo.

E aproveitou para perguntar se não seria melhor que ‘o presidente trabalhasse mais’ e deixasse de dar entrevistas e criticar o presidente do Banco Central, que faziam o preço do dólar aumentar. Eis minha resposta.
2.
Sobre o Novo Desenvolvimentismo: Um artigo fundador da Teoria Novo-Desenvolvimentista, de 2001, fazia uma crítica cerrada à alta taxa de juros, mostrando que seu nível era mais alto do que o necessário para controlar a inflação e que a despesa fiscal envolvida era enorme.

A Teoria Novo-desenvolvimentista é uma macroeconomia do desenvolvimento que oferece políticas focadas na taxa de juros, na taxa de câmbio, e na crítica aos déficits em conta corrente. Mostra que a taxa de juros deve e pode ser razoavelmente baixa.

A taxa de câmbio deve ser competitiva, ou seja, deve garantir que as empresas que usam a melhor tecnologia sejam internacionalmente competitivas. E a conta corrente (balança comercial mais serviços) deve ser equilibrada; não ser deficitária e, assim, apreciar a taxa de câmbio.

É uma teoria heterodoxa que defende o equilíbrio fiscal, mas defende mais ainda o equilíbrio da conta corrente, que a ortodoxia liberal ignora, não se importando com déficits na conta corrente recorrentes.

Além de uma teoria econômica e uma economia política que foi inicialmente pensada para o Brasil, mas interessa a todos os países, principalmente dos de renda média.

O livro Novo desenvolvimentismo – introduzindo uma nova teoria econômica e economia política foi inicialmente escrito por encomenda de uma editora inglesa e foi publicado em janeiro no Reino Unido. A versão brasileira é uma versão melhorada da inglesa.

Sobre o equilíbrio fiscal: O Brasil precisa cortar gastos para interromper o crescimento da dívida pública, mas concordo com o presidente Lula: o ajuste não deve ser pago pelos mais pobres.

Entendo que rentistas e os financistas também deviam pagar a sua parte concordando em baixar os juros ao invés de fazerem uma guerra para não deixar que a taxa de juros caia. Discordo, porém, do presidente em um ponto: é preciso vincular as aposentadorias à inflação, não ao salário-mínimo.

Sobre o senhor Roberto Campos Neto: O presidente trabalha muito, e tem razão em criticar o presidente do Banco Central, que hoje é o líder da coalizão financeiro-rentista que domina o país e captura o patrimônio público. O aumento do preço do dólar é pura especulação, é parte dessa guerra contra o Brasil.

Sobre o Plano Real: Ele foi uma maravilha porque, de um dia para o outro, acabou com a alta inflação que assolou o país por 14 anos. Foi um plano rigorosamente heterodoxo baseado na teoria da inflação inercial que eu ajudei a desenvolver no início dos anos 1980. É um engano, porém, supor que ele não teve custo.

Seus economistas, ao assumiram o governo, tornaram-se ortodoxos e estabeleceram juros reais absurdos. Desde então, eles baixaram um pouco mas, com sua ‘bênção’, continuam hoje escandalosamente altos. Por isso eu tenho dito que a herança maldita do Plano Real foram os juros altos.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e ex-ministro da Fazenda. Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Editora FGV).

Referência
Luiz Carlos Bresser-Pereira. Novo desenvolvimentismo – introduzindo uma nova teoria econômica e economia política. São Paulo, Editora contracorrente, 2024, 348 págs.

O privatismo sem critério de Tarcísio de Freitas, por André Roncaglia

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É imperativo evitar privatização da empresa de saneamento do estado mais rico do Brasil

André Roncaglia, Professor da Unifesp, pesquisador associado do Ibre-FGV e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 06/07/2024

Depois do escândalo da privatização da Eletrobras, a Sabesp é a bola da vez.

A venda de participação acionária da empresa teve a ampla concorrência… de uma empresa interessada. Indagado a este respeito, o governo Tarcísio reagiu com a novilíngua privatista:

“Não é falta de concorrência, é uma aderência ao que a gente vem colocando desde o início”.

Especializada em energia elétrica, a Equatorial conta com uma “vasta experiência” de dois anos no setor de saneamento, “conquistada” com a privatização do serviço no Amapá, feita pelo governo Bolsonaro em 2021, sob a batuta do atual governador carioca de São Paulo.

Se efetivada a operação, a Equatorial deterá 15% das ações da Sabesp, adquiridas a preços abaixo dos vigentes no mercado (R$ 67 contra R$ 75). Sim, a privatização do ativo público, subsidiada com o dinheiro do contribuinte, é vista com naturalidade pela patrulha liberal.

Reportagens da Folha fizeram uma radiografia picotada da privataria tarcisiana. Deixe-me organizar os dados para o leitor. Ao se tornar “acionista de referência”, a empresa terá participação acionária de 15% e o poder desproporcional de indicar o CEO da Sabesp, o presidente e três membros do conselho de administração.

Os principais acionistas da Equatorial são “o Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas, as gestoras Atmos, Capital World Investors, Squadra Capital e o fundo americano de investimentos Blackrock”. Com efeito, o “futuro plano de eficiência” da Sabesp prevê “redefinir a relação com sindicatos, otimizar benefícios e políticas de remuneração”. E, claro, a governança da Sabesp seguirá a “cultura de dono”, isto é, o “alinhamento de incentivos por performance”. Traduzindo: corte no quadro de funcionários e elevação da remuneração da diretoria executiva. Este arranjo tem dado certo com a Enel em São Paulo, não?

A otimização de custos operacionais e da estrutura de capital da Sabesp visa aumentar o endividamento da empresa para fazer caixa e, assim, aumentar a distribuição de lucros aos acionistas. Com este nível da taxa de juros brasileira, o acionista ganha o retorno hoje e o usuário paulista paga os juros com tarifa mais alta no futuro.

Neste ponto, a racionalidade técnica do exterminador de estatais tem uma solução: utilizar os ganhos com a privatização para subsidiar, nos primeiros anos, as tarifas pagas pelo consumidor paulista. Sim, o governo vai usar o ganho com a venda da casa para financiar o aluguel da casa. “Imprecionante”!

Diferentemente do Amapá, onde a cobertura de serviços de saneamento é muito baixa —apenas metade da população tinha acesso a água tratada e meros 4,5% da população contava com coleta de esgoto—, a situação da cobertura no estado de São Paulo é próxima de total. Em 2022, os índices de cobertura de água (98%), de esgoto (92%) e de tratamento de esgoto coletado (85%) deixam nítido que o contribuinte paulistano já amortizou o investimento na estatal paulista desde 1973, quando foi fundada.

A Sabesp é uma empresa altamente lucrativa e com capital aberto em Bolsa. Mesmo assim, o governo Tarcísio não conseguiu gerar concorrência para privatizar a maior empresa de saneamento do país.

É um feito e tanto!

Com controle da Sabesp, a Equatorial se consolidará como “empresa multiutilidades”; em 2023, sua margem de lucro foi de 77%. A ironia desta história é que um governo bolsonarista está subsidiando, à custa do contribuinte paulista, uma nova campeã nacional.

A reestatização do saneamento em Paris e Berlim —dentre dezenas de cidades mundo afora— questiona a fé inabalável na gestão privada dos recursos hídricos. É imperativo evitar este retrocesso no estado mais rico do Brasil.

Guerras, guerras e mais guerras

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Na sociedade contemporânea, percebemos o crescimento acelerado de conflitos econômicos e produtivos, além de mais confrontos bélicos e militares, que contribuem fortemente para o incremento das incertezas e das instabilidades, que somados aos desequilíbrios emocionais, afetivos e as instabilidades financeiras, estamos vivenciando momentos marcados por grandes volatilidades.

As guerras econômicas crescem de forma generalizada em todas as regiões do globo. As nações desenvolvidas estão aumentando as políticas protecionistas, criando barreiras para a entrada de concorrentes externos, desta forma, buscam proteger suas estruturas produtivas, defendendo a geração de empregos, garantindo a manutenção da renda e dos salários dos trabalhadores domésticos, evitando um processo constante de desnacionalização de seus setores econômicos e a dependência de outras economias.

Destacamos ainda os conflitos financeiros que crescem todos os dias, nações buscam defender suas moedas e seus interesses imediatos, cada país tenta fortalecer seus setores financeiros e garantindo maiores ganhos nas finanças, desta forma, percebemos o crescimento de novos padrões monetários para fragilizar o modelo centrado no dólar americano, criado no período posterior a segunda guerra mundial e foi o responsável pelo fortalecimento da economia dos Estados Unidos no cenário internacional.

Vivemos num momento de grandes conflitos militares, elevando os dispêndios em armas, máquinas e tecnologias bélicas. No momento, percebemos a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, cujos gastos militares estão na casa dos quatrocentos bilhões de dólares, gerando fortes constrangimentos para a sociedade internacional, impactando fortemente sobre a Europa, região que sente na pele os custos deste conflito militar, com aumento generalizado de combustíveis e de alimentos. Isso sem falar das guerras no Oriente Médio, cujas destruições crescentes tendem a ter um potencial muito elevado, impactando fortemente sobre a sociedade internacional, gerando conflitos regionais, aumento da imigração e desequilíbrios econômicos e produtivos.

As guerras e os conflitos militares impulsionam as tecnologias bélicas, novos investimentos em pesquisa científica impactam fortemente sobre a sociedade, grande parte das novas tecnologias que utilizamos no cotidiano foram desenvolvidas dentro das pesquisas militares. De outro lado, os investimentos militares tendem a gerar grandes destruições e alimentam a economia das guerras, aumentando os lucros e os dividendos dos detentores destes conglomerados, somente os custos militares de mais de duas décadas de ocupação das forças norte-americanas no Iraque e no Afeganistão são calculados em mais de 1 trilhão de dólares.

As guerras econômicas, financeiras e militares, além da degradação do Meio Ambiente, do desemprego crescente e da precarização do mundo do trabalho, tudo somado contribuem fortemente para o desenho do novo cenário internacional, gerando mais desesperança na sociedade global, mais medo, rancores e ressentimentos e ajudando a compreender as grandes transformações no ambiente político global, onde destacamos a ascensão da extrema direita em todos os quadrantes da sociedade mundial, defendendo xenofobia, racismo e a intolerância.

A história nos mostra claramente que a sociedade internacional já passou por momentos parecidos e os resultados não foram auspiciosos, muito pelo contrário, os resultados foram a degradação, a violência, os rancores e os ressentimentos que perduram a muitas décadas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Brasil – sociedade autoritária, por Fernando Lionel Quiroga.

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Fernando Lionel Quiroga – A Terra é Redonda – 01/07/2024

O que constitui e reproduz uma sociedade altamente autoritária é a imagem cada vez mais distante da noção de democracia — uma sociedade em que a liberdade é cada vez mais parte da publicidade de mercado do que da vida propriamente dita

Cabe uma paráfrase sociológica à pergunta feita por Nietzsche em Ecce Homo, “Como alguém se torna o que é” que, reformulada, consistiria na questão: como uma sociedade se torna o que é? A esta questão, segue-se outra: Por quê, no Brasil, resiste uma tradição intensamente autoritária?

Tais questões não oferecem respostas prontas, conhecimentos acabados e embalados, prontos para o uso. E a dificuldade reside no caráter ambíguo de conceitos-chave para a construção das
respostas: o modo pelo qual nos colocamos diante de noções abertas como “democracia”, “direitos humanos”, “sociedade”, “justiça”, “respeito” etc. direciona nosso olhar, ora para um lado, ora para outro.

Embora possa-se admitir algo de imanente na ideia de democracia, de justiça etc. restam os usos sociais e o corpus representacional acerca delas, impedindo que concepções objetivadas coincidam com as formas sociais que elas adquirem nos diversos campos onde se inserem. Assim: a justiça entre irmãos não é a mesma que a justiça entre um casal de namorados. Os múltiplos detalhes da vida cotidiana, uma vez que se acumulam ao longo do tempo, produzem códigos sutis que dão forma à noção de justiça posta entre eles. É na noção de “meio”, desse “entre nós” que termina por ampliar e modelar, como puxando o fluxo temporal da ideia original; e o estrangulando como uma massa colorida, o instrumental de conceitos que utilizamos para explicar a realidade.

Anunciamos, no título deste ensaio, a autoridade reinante na sociedade brasileira. Mas, o que ela é e o que a torna durável, reproduzível? Vamos às pistas. Dizemos que a sociedade é autoritária, e não exclusivamente este ou aquele governo. Eis o ponto: a democracia, no contexto cultural brasileiro, precisa ser reescrita — o que não significa apagar da memória os exemplos daqueles que pelejaram pela sua construção e expansão.

Adianto: a reescrita da democracia não pede um novo texto constitucional. O marco constitucional de 1988 já é o redesenho da democracia após mais de duas décadas de regime militar. Ocorre que, mal a redemocratização havia começado, logo o neoliberalismo vampiresco já presente nas veias abertas da América Latina, especialmente no Chile sob Pinochet, chegava ao Brasil de modo incisivo, dando as caras por meio da hiperinflação que acompanhou todo o governo Sarney (1985-1990), seguido de sucessivos e fracassados planos econômicos.

A ele, seguiu-se, nada mais, nada menos, que Fernando Collor de Mello (1990-1992) – um protótipo neoliberal do que, anos mais tarde, se converteria no estereótipo da extrema direita representada, aqui, por Jair Bolsonaro (2019-2022), nos EUA, por Donald Trump (2017-2021), na Hungria, Viktor Orbán (desde 2010), na Turquia, Recep Tayyip Erdoğan (Primeiro-ministro, 2003-2014; Presidente desde 2014), na Polônia, Andrzej Duda (desde 2015), nas Filipinas, Rodrigo Duterte (2016-2022), na Itália, Matteo Salvini (Líder da Liga Norte, ex-Vice Primeiro-Ministro e Ministro do Interior, 2018-2019).

Descontado o período em que o Brasil foi governado pelo PT, primeiro por Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e, depois, por Dilma Rousseff (2011-2016), os quais merecem um olhar de maior profundidade em face dos efeitos reais produzidos na sociedade, como o surgimento da nova classe média, a expansão da universidade pública, a redução da pobreza e da desigualdade social, dentre outros, de resto, segue-se que, no Brasil, o neoliberalismo coincidente com o processo de redemocratização, dizia respeito à construção de uma nova mentalidade, cujo ponto de partida consistia na satisfação das expectativas mais profundas da população: a da passagem da sociedade controlada – marcada pelos anos da ditadura – para a sociedade livre, inclusiva e plural.

E, então, o corolário dos novos tempos trazia em seu bojo a noção da diversidade e, consequentemente, das pautas identitárias como maiores expressões dessa nova democracia com ares de liberdade. Eis aí um primeiro sinal das engrenagens que perpetuam o funcionamento da sociedade autoritária: a substituição da pauta historicamente legítima da tensão exploração-trabalho por pautas fragmentadas em bolhas reivindicatórias. É o caráter do especialismo introjetado no coração da luta de classes.

Outro sinal é a distribuição de autoridade (e, por extensão, de discurso) por meio do que Pierre Bourdieu chamou de “Inflação de diplomas”, cujas consequências sociais, além do aumento da competitividade em benefício exclusivo do mercado, implica na desvalorização relativa em razão da substituição da noção de distinção por requisito e, por último, a frustração resultante da “promessa” intrínseca no diploma, em contraste ao “poder” do discurso que ele produz, especialmente se considerarmos a inflação de diplomas em níveis mais elevados de formação, como de mestres e doutores.

Então, juntemos as peças do que constitui e reproduz uma sociedade altamente autoritária: a imagem cada vez mais distante da noção de democracia (uma sociedade em que a liberdade é cada vez mais parte da publicidade de mercado do que da vida propriamente dita); as pautas reivindicatórias fragmentárias, ideologicamente orientadas; a autoridade do discurso chancelada por um diploma opaco, a que se segue um desesperador ressentimento e cinismo. E, finalmente, podemos compreender porque o ódio é a característica central na sociedade brasileira contemporânea — e porque é urgente repensar a democracia.

*Fernando Lionel Quiroga é professor de Fundamentos da Educação na Universidade Estadual de Goiás (UEG).

Necropolítica nacional sentou praça no Congresso, por Marcelo Leite

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Com decisão sobre maconha, STF se curva à amoralidade parlamentar

Marcelo Leite, Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

Folha de São Paulo – 30/06/2024

Após nove anos cozinhando o galo, o STF (Supremo Tribunal Federal) botou um ovo de serpente ao se pronunciar sobre o porte de Cannabis para uso pessoal. Policiais seguirão na função de juízes, decidindo na rua quem é traficante ou usuário.

O STF reconheceu, é verdade, que havia viés racial na prática anterior de quase sempre enquadrar pretos e pobres como traficantes, como bem celebrou Djamila Ribeiro. Talvez o arbítrio dos agentes resulte um pouco dificultado com o limite objetivo que rebaixou de crime para ilícito a posse de até 40 g da maconha. Talvez.

Já o advogado Cristiano Maronna, que representou o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) na ação de 2015 no Supremo, apontou a Mônica Bergamo que a decisão favorece “apenas o playboy” consumidor da droga.

“A pressão que a extrema direita fez sobre o STF funcionou”, disse ele à colunista. “O STF se impôs uma autocontenção exagerada. Ficou aquém das decisões tomadas pelas Supremas Cortes de Argentina, Colômbia, México e África do Sul.”

A premissa dos 40 g pode terminar posta de lado quando houver testemunho policial e provas ancoradas nele. Se PMs se investem do poder de matar jovens pardos a qualquer tempo, o que os impedirá de dar falso testemunho e forjar provas?

Maronna assinalou ainda que muitos dos alvos da violência policial são usuários de outras drogas, como o crack. Por prudência ou pusilanimidade (decida o leitor), o ministro Gilmar Mendes as excluiu de seu voto inicial. Abriu a porteira, e a carneirada passou.

Não existe motivo plausível, jurídico ou científico, para fazer essa distinção entre maconha e outras drogas, como observou Hélio Schwartsman. Ela deriva de puro cálculo político; melhor dizendo, do temor de que a decisão constitucional espicaçasse a húbris parlamentar.

Sobre as supremas cabeças paira a PEC das Drogas, desembainhada em setembro pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), após o STF ousar avançar na pauta. Na mesma terça-feira (25) da decisão tão protelada, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) oficializou a comissão especial que a analisará.

A comissão já havia sido formalizada uma semana antes por Lira, mas ele só a fez publicar quando a corte se pronunciou. Também na mesma data o deputado alagoano completou 55 anos, que comemorou em Portugal durante festa do grupo Esfera Brasil, um “esquenta” do Fórum Jurídico de Lisboa, vulgo “Gilmarpalooza”.

Pela praxe da Câmara, a composição da comissão seguirá a proporcionalidade das bancadas. Em outras palavras, será dominada pela centro-direita com que cinco ministros do Supremo confraternizam sem corar no convescote lisboeta de Gilmar.

Nenhum dos comensais, juiz, empresário ou banqueiro, se incomoda com Pacheco e Lira brandirem a PEC das Drogas não por convicção, mas oportunismo. Para manter controle sobre a própria sucessão, querem adular a bancada da bala e da bíblia, que depende de realimentar pânico moral entre apoiadores para se reeleger.

Pouco importa se meninos e rapazes escuros forem mortos ou encarcerados injustamente, ao arrepio de garantias constitucionais. A necropolítica sentou praça no Congresso –eis o maior legado das trevas bolsonarianas com que o andar de cima e a Faria Lima voltam a flertar.

O que esperar, se não a mais abjeta amoralidade, de gente que propõe tratar como assassinas garotas estupradas que ultrapassam a 22ª semana de gravidez porque profissionais de saúde fundamentalistas se recusam a realizar abortos a que elas têm direito por lei?

O Real não foi só um plano econômico, por Aloizio Mercadante

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Programa teve êxito contra a inflação, mas não garantiu a retomada do crescimento

Aloizio Mercadante, Economista, é presidente do BNDES. Foi ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República e ministro da Educação e da Ciência, Tecnologia e Inovação

Folha de São Paulo – 30/06/2024

O Plano Real teve sucesso em acabar com a alta inflação, diminuindo o grau de indexação da economia brasileira. A Unidade Real de Valor (URV) permitiu a saída de forma criativa e organizada da alta inflação inercial, sem congelamento de preços. Outro elemento crucial foi a renegociação e a securitização da dívida externa pelo Plano Brady.

Na preparação do Real, o governo renegociou a dívida externa velha, abriu a conta de capitais e elevou brutalmente o juro real, para evitar fuga de capitais domésticos e atrair capital de curto prazo, o que viabilizou a transição da URV para o Real.

A valorização inicial do câmbio foi essencial para a rápida redução da inflação, mas trouxe um alto custo: o início da era de elevados juros reais. De 1994 a 1999, a taxa básica média de juro real foi de 22% ao ano.

Para atrair recursos externos e promover o ajuste fiscal, o governo liquidou ativos estatais por preços reduzidos, sem o planejamento de uma política industrial e sem avaliação estratégica dos desdobramentos.

Depois de 30 anos, a história mostra que o Plano Real teve êxito ao reduzir a inflação, mas não em garantir a estabilidade macroeconômica e a retomada do crescimento. Para reeleger FHC, a âncora cambial foi prorrogada, com a apreciação do câmbio e a deterioração das contas externas, empurrando o país para grave crise cambial, econômica e social.

Do lado financeiro, o déficit em transações correntes aumentou de 2,5% do PIB, em 1995, para 4,5% do PIB, em 1999. Do lado social, o arrocho monetário e fiscal produziu alta no desemprego, de 4,6%, em 1995, para 7,6%, entre 1995 e 1999.

O governo FHC expôs o país a um ataque especulativo decorrente do desequilíbrio das contas externas, recorreu ao FMI e se submeteu ao chamado “Consenso de Washington”. Mesmo assim, não evitou nova crise cambial e novo pedido de ajuda ao FMI (2002), selando o destino dos governos do PSDB, que não venceram mais eleições presidenciais e amargaram uma crise partidária, agravada pelo apoio ao golpe de 2016 e pela adesão de lideranças ao bolsonarismo.

A estabilização do Plano Real só se completou no governo Lula, quando o país quitou a dívida com o FMI e começou a acumular reservas internacionais, que até hoje nos dão autonomia de política econômica. Do lado fiscal, a estabilização está incompleta. Esgotaram-se as estratégias de queima de patrimônio público e de metas de resultado primário ambiciosas, que geraram uma política fiscal pró-cíclica que aprofundou as flutuações da economia.

Ao analisar o Plano Real, o PT reconheceu o mérito da desindexação da economia, mas denunciou a manutenção da âncora cambial, com a apreciação do câmbio e a deterioração das contas externas, e o elevado custo econômico e social, que precarizou a vida da população.

É preciso reconhecer a competência e a inovação da equipe técnica que criou o Plano Real, em particular Pérsio Arida e Lara Resende. Eles têm imensa responsabilidade pelas vitórias do PSDB, mas pressões eleitorais no ninho tucano impediram a saída organizada da âncora cambial e empurraram o país para grave crise cambial, desindustrialização, endividamento público elevado e recessão econômica prolongada.

A despeito das nossas divergências, o país sente saudade do tempo em que a polarização se dava entre o PT e o PSDB. Naquele período, havia disputa acirrada, mas qualificada, sem renunciarmos ao compromisso com o Estado democrático de Direito e com a cidadania.

Até quando esperar para começar as mudanças? por João Pedro Stédile

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Só a agricultura familiar pode esfriar o planeta, protegendo a biodiversidade e combatendo a fome

João Pedro Stédile, Economista, é integrante da Direção Nacional do MST

Folha de São Paulo, 01/07/2024

Os crimes e as tragédias ambientais se repetem no Brasil com frequência cada vez maior. Secas na Amazônia, enchentes no Maranhão e em Recife, queimadas no pantanal, desmatamento e rebaixamento do lençol freático no cerrado, a reserva hídrica das três maiores bacias hidrográficas do país…

A tragédia no Rio Grande do Sul é apenas a ponta do iceberg de tantas agressões que atingem milhões de pessoas e obriga a sociedade, e, sobretudo, os governos, nos três níveis, a refletir
sobre a necessidade de mudanças urgentes.

Foi uma tragédia anunciada. Há muito tempo a comunidade científica vinha alertando que o monocultivo de grãos e as pastagens levam a um desequilíbrio na distribuição das chuvas.

As mudanças no Código Florestal, defendidas e aprovadas pela bancada ruralista na década de 2000, diminuíram o tamanho das áreas de cobertura vegetal nas margens dos córregos e rios e desobrigaram a reposição de áreas de desmate. Sem qualquer fiscalização, foi uma festa.

O governo gaúcho ainda mudou centenas de artigos da lei estadual ambiental. Tudo para ajudar o agronegócio, que nem sequer deixa riquezas no estado, porque exporta commodities agrícolas sem pagar um centavo de ICMS, graças à Lei Kandir, do governo FHC.

Somam-se a esse desplante as ações predadoras da mineração, em todos os cantos, desde a retirada de areia até as grandes mineradores de ferro, além dos crimes dos garimpeiros.

Por fim, o uso de agrotóxicos talvez seja a maior agressão à natureza. O Brasil é o país que mais usa agrotóxicos, inclusive produtos proibidos na Europa, que eliminam a biodiversidade, alteram o equilíbrio da natureza e contaminam o lençol freático. Mas quem se importa se isso é controlado por meia dúzia de empresas transnacionais, que não pagam impostos, mas financiam políticos?

Os crimes estão aí, escancarados. E os mais afetados são sempre os pobres, que pagam com suas vidas. São os moradores de locais não adequados, empurrados pela especulação imobiliária das cidades para encostas; são os ribeirinhos; são os agricultores familiares.

O que fazer? Não precisamos mais derrubar nenhuma árvore para plantar ou criar gado. O desmatamento zero precisa ser estendido da amazônia aos demais biomas, como o cerrado, a mata atlântica e o pantanal. Essa política deve ser combinada com um grande plano nacional de reflorestamento nesses biomas, nas cidades, na beira das estradas e nas margens de córregos e rios. Empresas estatais deveriam criar viveiros e distribuir mudas de árvores nativas e frutíferas.

Precisamos colocar limites ao avanço do agronegócio, ao modelo predador que enriquece apenas as empresas transnacionais exportadoras e meia dúzia de fazendeiros.

Somente a agricultura familiar pode “esfriar” o planeta, protegendo a biodiversidade e combatendo a fome.

Para isso, devemos estimular a policultura de alimentos saudáveis, com um grande programa de agroecologia, que distribua insumos necessários aos agricultores familiares, com uma política de reindustrialização que forneça máquinas agrícolas adequadas e fertilizantes orgânicos.

A reforma agrária é uma política fundamental para garantir acesso à terra aos agricultores que não as têm —muitos expulsos pelo avanço do agronegócio— e para realocar os atingidos climáticos.

Nas cidades, é primordial garantir moradia digna em locais com segurança e futuro.

Tudo isso custa muito dinheiro, mas é melhor prevenir e salvar as vidas e a natureza do que chorar depois. O Rio Grande do Sul vai precisar agora de R$ 60 bilhões apenas para repor perdas.

Vamos continuar correndo atrás da reparação ou vamos nos preparar para uma vida melhor para todos?