Lula está certo sobre Gaza, por Glenn Gleenwald

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Glenn Gleenwald – A Terra é Redonda, 25/02/2024.

A quem pertence a memória do nazismo e da Segunda Guerra? As sentenças proferidas em Nuremberg não podem dar a qualquer país, incluindo Israel, uma justificativa para suas próprias ações

Desde que Lula evocou o Holocausto para denunciar a destruição de Gaza por Israel, a grande mídia brasileira se uniu, com raras exceções, para condená-lo. Na segunda-feira (19) à noite, o jornalista William Waack afirmou na CNN Brasil que a declaração de Lula “ofende judeus no mundo inteiro”.

Deixando de lado a incongruência que é ver William Waack se colocar como vigilante da intolerância e fiscal do que se pode dizer no discurso público, a pergunta que faço é: com base no que ele se coloca como porta-voz dos “judeus no mundo inteiro”?

É verdade que a declaração de Lula enfureceu o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que declarou Lula “persona non grata” em Israel. Mas equiparar o governo de Israel a “judeus no mundo inteiro” não é só falso, é também antissemitismo.

Como todos os grupos, os judeus não são um monolito. Qualquer pessoa que, como eu, tenha crescido numa família judaica e imersa nessas tradições sabe que o grupo passa longe de ser homogêneo. Há dentre os judeus discussões e divergências sobre os mais diversos assuntos, inclusive o Estado de Israel, o tratamento desumano dispensado aos palestinos e a abjeta imoralidade da destruição de Gaza.

Um mês antes do ataque do Hamas de 7 de outubro, o ex-chefe do Mossad, agência de inteligência israelense, Tamir Pardo – indicado por Benjamin Netanyahu – afirmou que Israel impõe “uma forma de apartheid aos palestinos”. Muitos líderes Israelenses, incluindo o ex-primeiro ministro Ehud Barak, já disseram o mesmo.

O jornalista judeu brasileiro Breno Altman vem repetidamente comparando as ações de Israel em Gaza ao nazismo, ao ponto de estar sendo investigado pela Polícia Federal por expressar sua visão. Um grupo de judeus brasileiros, conforme relatado pelo jornal Folha de S. Paulo, emitiu uma nota para defender as declarações de Lula.

Nesta semana, a escritora judia russa Masha Gessen recebeu o Award, o segundo prêmio mais importante no jornalismo dos EUA, por seu brilhante ensaio na revista New Yorker intitulado “Na Sombra do Holocausto”. No texto, Masha Gessen aponta como o Holocausto é frequentemente evocado para silenciar as críticas aos crimes de guerra de Israel.

Masha Gessen cita a filósofa Hannah Arendt, judia que em 1948 comparou grupos sionistas extremistas ao Partido Nazista, tanto em sua mentalidade quando em suas táticas – isso tudo menos de três anos depois do fim da Segunda Guerra.

No mesmo ano, o físico judeu Albert Einstein e outros importantes intelectuais judeus publicaram uma carta comparando os métodos de atuação de Menachem Begin, o terrorista sionista que se tornaria depois primeiro-ministro de Israel, aos dos nazistas.

Em seu artigo, Masha Gessen documenta como os intelectuais judeus mais importantes do pós-guerra insistiam que as lições do Holocausto deveriam ser aplicadas universalmente, e que nenhum país ou grupo, sionistas inclusive, deveria se furtar de absorver esse aprendizado.

Masha Gessen então descreve como, visitando os museus do Holocausto pelo mundo, se lembrava do sofrimento da população de Gaza nas mãos de Israel.

Sabendo então dessa enorme pluralidade no seio da comunidade judaica, como explicar a pretensão de uma pessoa como William Waack, que, como a grande maioria da mídia brasileira, se sente no direito falar em nome dos judeus e de impor limites às discussões sobre o Holocausto? E os judeus que rejeitam os ditames dos Netanyahu do mundo, quem falará por nós?

Equiparar as ações do governo de Israel à totalidade dos judeus do mundo é ofensivo. Todas as pesquisas mostram que o público israelense se voltou fortemente contra Benjamin Netanyahu e espera ansiosamente para depô-lo. Há protestos contra ele, liderados por judeus israelenses, toda semana. São judeus muitos dos líderes mais vocais em suas denúncias de que a guerra em Gaza é um genocídio.

Mas há ainda um tema muito mais importante trazido à tona pela controvérsia: a quem pertence a memória do nazismo e da Segunda Guerra? Existe alguém com legitimidade para ditar como o Holocausto pode ser discutido, por quem, e com que agenda política? Existem países específicos cujas ações estão imunes, por algum motivo, às comparações com os piores abusos da Segunda Guerra? Se sim, essa imunidade se baseia em quê?

Quando a Segunda Guerra terminou e a real dimensão do Holocausto foi revelada, os países aliados, uma vez vencedores, decidiram não executar imediatamente os líderes nazistas. Em vez disso, foi realizado um processo jurídico transparente, conhecido como o julgamento de Nuremberg.

O objetivo era publicizar e legitimar o veredito –, mais que isso, mostrar ao mundo as evidências das atrocidades cometidas pelos nazistas para, acima de tudo, estabelecer os princípios pelos quais os países deveriam se guiar no futuro.

O procurador-chefe dos EUA no julgamento, Robert Jackson, enfatizou em suas colocações iniciais que a maldade nazista se repetiria no futuro. “Esses prisioneiros nazistas representam uma influência sinistra que continuará no mundo mesmo depois que seus corpos retornarem ao pó.”

Referindo-se às sentenças contra criminosos nazistas específicos, Robert Jackson disse: “Se esse julgamento for ter alguma utilidade no futuro, deverá servir para condenar também a agressão de outras nações, inclusive as que aqui estão na posição de julgadoras”.

Os horrores do Holocausto não foram uma lição sobre a maldade dos alemães ou a vulnerabilidade dos judeus. Foram uma lição sobre a natureza humana e a nossa capacidade para o mal, e como sociedades sofisticadas e educadas podem sucumbir a impulsos genocidas. Por isso, as sentenças proferidas em Nuremberg não podem dar a qualquer país, incluindo Israel, uma justificativa para suas próprias ações. Pelo contrário: os crimes do Holocausto não podem ser repetidos por nenhum país, nunca mais.

Os horrores da destruição de Gaza por Israel já estão visíveis para todos que quiserem ver. O ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, prometeu no início da guerra: “Estamos impondo um cerco total a Gaza. Nem eletricidade, nem comida, nem água, nem combustível. Tudo bloqueado”. O motivo: “Estamos lutando contra animais e agimos em conformidade”.

Hoje podemos ver que essa promessa, bem como a ideia de que os palestinos são sub-humanos, não era blefe. Segundo relatório da ONU, de todas as pessoas do mundo que enfrentam a fome extrema, 80% estão em Gaza. Trata-de se uma crise humanitária sem paralelo, diz o texto. Há inúmeros casos, incontroversos e amplamente documentados, de crianças à beira da morte por fome.

Ao menos 29 mil pessoas foram mortas em Gaza desde que Israel começou a retaliação aos ataques do Hamas de 7 de outubro: 70% são mulheres e crianças. A destruição da vida civil em Gaza é pior do que qualquer guerra que o mundo tenha visto no século XXI.

Mais bombas foram lançadas por Israel em Gaza, um território pequeno e densamente povoado, na primeira semana do conflito armado (cerca de 6.000) do que foram jogadas anualmente pelos EUA no Afeganistão, de 2013 a 2018 (nesse período, nenhum ano registrou mais de 4.400 bombas), segundo dados da Força Aérea israelense e da Central das Forças Aéreas dos EUA.

Ninguém, nem mesmo Lula, está sugerindo que a escala das mortes em Gaza seja comparável ao Holocausto. O que muitas pessoas estão dizendo – inclusive alguns dos intelectuais judeus mais proeminentes do mundo, como Masha Gessen – é que os mesmos princípios de desprezo pela vida e desumanização coletiva que culminaram no Holocausto estão também por trás da destruição de Gaza.

*Glenn Greenwald é jornalista, escritor, advogado especialista em direito constitucional dos Estados Unidos, Autor, entre outros livros, de Sem lugar para se esconder (Primeira Pessoa).

Publicado originalmente no suplemento Ilustríssima do jornal Folha de S. Paulo.

Para onde estamos indo? Leonardo Boff

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Leonardo Boff, A Terra é Redonda – 24/02/2024

Não precisamos mais que Deus intervenha para pôr fim à sua criação; coube a nossa geração assistir à possibilidade de sua própria destruição

Há a convergência de inúmeras crises que estão afligindo a humanidade inteira. Sem precisar citá-las me limito a duas, extremamente perigosas e até letais: uma guerra nuclear entre as potências militaristas, disputando a hegemonia na condução do mundo.

Como a segurança nunca é total, aí funcionaria a fórmula 1+1=0. Quer dizer, uma destruiria a outra e levaria junto todo o sistema-vida humana. A Terra continuaria empobrecida, cheia de chagas, mas giraria ainda ao redor do sol por não sabermos quantos milhões de anos, mas ser esse Satã da vida que é o ser humano demente que perdeu sua dimensão de sapiente.

A outra é a mudança climática crescente que não sabemos em que grau Celsius vai se estabilizar. Um fato é inegável, afirmado pelos próprios cientistas céticos: a ciência e a técnica chegaram atrasadas. Passamos o ponto crítico em que elas poderiam ainda nos ajudar. Agora apenas podem nos advertir dos eventos extremos que virão e minorar os efeitos danosos. Climatólogos sugerem que, nos muito próximos anos, possivelmente o clima se estabeleceria, em termos globais, em torno de 38-40 graus Celsius. Em outras regiões pode chegar por volta de 50oC. Haverá milhões de vítimas, especialmente entre crianças e idosos que não conseguirão se adaptar à situação mudada da Terra.

Estes mesmos cientistas têm advertido os Estados para o fato de milhões de migrantes que deixarão suas terras queridas pelo excesso de calor e pela frustração das safras de alimentos. Possivelmente, e é o desejável, que haja, obrigatoriamente, uma governança planetária global e plural, constituída por representantes dos povos e das classes sociais para pensar a situação da Terra mudada, não respeitando os obsoletos limites entre as nações. Trata-se de salvar não este ou aquele país, mas a humanidade inteira. Realisticamente disse várias vezes o Papa Francisco: desta vez não há uma arca de Noé que salva alguns e deixa perecer os demais: “ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”.

Como se depreende, estamos diante de uma situação limite. A consciência desta urgência é muito fraca na maioria da população, entorpecida pela progapaganda capitalista de um consumo sem freios e dos próprios Estados, em grande parte controlados pelas classes dominantes. Estas só olham para um horizonte à frente, crédulas de um progresso ilimitado em direção ao futuro, sem tomar a sério que o planeta é limitado e não aguenta e que precisamos de 1,7 planetas Terra para satisfazer seu consumo suntuoso.

Há uma saída para este acúmulo de crises, das quais nos restringimos a duas? Creio que nem o Papa nem o Dalai Lama, nenhum sábio privilegiado pode predizer qual seja o nosso futuro. Se olharmos as maldades do mundo temos que dar razão a José Saramago que dizia: “Não sou pessimista; a situação é que é péssima”. Lembro o encantador São Francisco de Assis que, encantado, via o lado luminoso da criação. Pedia, no entanto, a seus confrades: não considerem demasiadamente os males do mundo para não terem razões de reclamar de Deus.

De certa maneira todos somos um pouco Jó que reclamava, pacientemente, de todos os males que o afligiam. Nós também reclamamos porque não entendemos o porquê de tanta maldade e especialmente porque Deus se cala e permite que, muitas vezes, o mal triunfe como agora face ao genocídio de crianças inocentes na Faixa de Gaza. Por que não intervém para salvar seus filhos e filhas? Não é Ele “o apaixonante amante da vida” (Sabedoria 11,26)? Atribui-se a Freud, que não se considerava um homem de fé, a seguinte frase: se aparecer diante de Deus, tenho mais perguntas a fazer a ele do que ele a mim, pois há tantas coisas que nunca entendi quando estava na Terra.

Nem a filosofia nem a teologia conseguiram até hoje oferecer uma resposta convincente ao problema do mal. No máximo é afirmar que Deus ao aproximar-se de nós pela encarnação – não para divinizar o ser humano – mas para humanizar Deus – foi dizer que esse Deus vai conosco para o exílio, assume a nossa dor e até o desespero na cruz. Isso é grandioso, mas não responde o porquê do mal. Por que o Deus humanado teve que sofrer também ele,”embora fosse Filho de Deus, aprendeu a obediência por meio dos sofrimentos que teve” (Hebreus,5,8). Essa proposta não faz desaparecer o mal. Ele continua como um espinho na carne.

Talvez tenhamos que nos contentar com a afirmação de São Tomás de Aquino que escreveu, reconhecidamente, um dos mais brilhantes tratados “Sobre o Mal” (De Malo).No fim ele se rende à impossibilidade da razão de dar conta do mal e conclui:”Deus é tão poderoso que pode tirar um bem do mal”. Isso é fé confiante, não razão raciocinante.

O que podemos dizer com certa certeza: se a humanidade, especialmente, o sistema do capital com suas grandes corporações globalizadas continuar com sua lógica de explorar até a exaustão os bens e serviços naturais em função de sua acumulação ilimitada, aí sim podemos dizer, na expressão de Zigmunt Bauman: “vamos engrossar o cortejo daqueles que estão rumando na direção de sua própria sepultura”.

Depois termos cometido o pior crime já perpetrado na história: o assassinato judicial do Filho de Deus, pregando-o na cruz, nada mais é impossível. Como disse Jean-Paul Sartre após as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki: o ser humano se apropriou da própria morte. E Arnold Toynbee, o grande historiador, comentou: não precisamos mais que Deus intervenha para pôr fim à sua criação; coube a nossa geração assistir à possibilidade de sua própria destruição.

Pessimismo? Não. Realismo. Mas, pertence também à nossa possibilidade de dar o salto da fé que se inscreve como uma possível emergência do processo cosmogênico: cremos que o verdadeiro senhor da história e de seu destino não é o ser humano, mas o Criador que das ruínas e das cinzas pode criar um homem novo e uma mulher nova, um novo céu e uma nova Terra. Lá a vida é eterna e reinará o amor, a festa, a alegria e a comunhão de todos com todos e com a Suprema Realidade. Et tunc erit finis.

*Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Habitar a Terra: qual o caminho para a fraternidade universal (Vozes)

“Ideia sobre ensinar a pescar não faz sentido”. Entrevista com Marcelo Medeiros.

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Entrevista com Marcelo Medeiros, Instituto Humanitas Unisinos – 20/10/2023

Para Marcelo Medeiros, há muito preconceito contra a assistência social no Brasil. Em entrevista, economista e sociólogo fala sobre seu novo livro que aborda a desigualdade do país.

Logo na introdução de seu novo livro Os ricos e os pobres: o Brasil e a desigualdade, o sociólogo e economista Marcelo Medeiros enfatiza que “há limites claros para algumas medidas de combate à desigualdade que, com grande frequência, são alçadas quase à condição de panaceia, como é a educação”.

Lançada pela Companhia das Letras, a obra, que chegou às livrarias nesta quarta-feira (18/10), não só escancara a, conforme o próprio autor, “absurda” desigualdade social brasileira, como explica que não existe uma solução mágica para o problema. “Resolver isso vai exigir um esforço gigantesco, custar muito caro e consumir um capital político imenso, porque isso, no fundo, implica em enfrentar diretamente os conflitos distributivos e grupos inteiros vão resistir pesadamente a isso, no campo da política e da economia, em tudo aquilo que puderem, porque os grupos sempre defendem seus interesses”, diz Medeiros, professor visitante na Universidade de Columbia, em Nova York, em entrevista a Edison Veiga, publicada por Deutsche Welle, 19-10-2023.

Eis a entrevista.

E ser rico, o que significa?

Existe muita discussão sobre se ser rico é estar nos 10% mais ricos da população, ou 1%, ou 0,5%. Argumento que definir isso é um pouco perda de tempo. O Brasil é um país extremamente desigual, mas há uma característica: a desigualdade brasileira está altamente concentrada no topo. Se o Brasil fosse composto só pelos 90% mais pobres, seria um país extremamente igualitário.

Existe uma desigualdade gigantesca entre o 1% mais rico e os 10% mais ricos. Para desenhar políticas, não é necessário ter uma divisão exata dos ricos, mas sim entender que essa desigualdade está concentrada no topo. Portanto, nossas políticas, em particular a tributária, têm de ser muito progressivas. É preciso tributar mais quem tem mais capacidade de pagar.

Nos últimos anos, o Brasil voltou ao famigerado mapa da fome. De que forma combater a desigualdade pode ajudar a resolver o problema?

Combater a pobreza vai reduzir a desigualdade? Não. Pobreza tem a ver com pobres, desigualdade tem a ver com ricos. É extremamente importante acabar com a pobreza no Brasil, mas isso não teria efeitos sobre a desigualdade. Se você dobrasse a renda da metade mais pobre do Brasil, a desigualdade não iria cair mais do que 10%.

Não é que reduzir a desigualdade vai acabar com a pobreza, é que as medidas que vão acabar com a pobreza vão se beneficiar do fato de a renda ser menos concentrada. Uma pequena redução da desigualdade seria suficiente para provocar uma grande redução da fome no país. Se a gente conseguisse tributar mais as pessoas mais ricas, a gente conseguiria levantar mais recursos para gastar com mais assistência social, por exemplo, o que é algo importante para a fome.

Seu livro defende que tudo o que se faz em termos de políticas públicas, das taxas de juros aos subsídios para as empresas, passando por programas sociais, deve ser pensando no sentido do combate à desigualdade. Como isso pode ser feito?

Respondo com uma outra pergunta, uma brincadeira: você está me perguntando como eu faço para transformar o Brasil em uma Dinamarca em termos de desigualdade.

Eu pergunto como é que eu faço para transformar o Brasil em uma Dinamarca em termos de PIB per capita. E a resposta para as duas questões eu não sei, não conheço ninguém que tenha qualquer noção de fato sobre como isso pode ser feito na prática.

Não é um problema simples combater a desigualdade ou fazer o Brasil crescer. Vai exigir um esforço gigantesco, custar muito caro e consumir um capital político imenso, porque isso, no fundo, implica em enfrentar diretamente os conflitos distributivos e grupos inteiros vão resistir pesadamente a isso, no campo da política e da economia, em tudo aquilo que puderem, porque os grupos sempre defendem seus interesses.

Uma sociedade mais igualitária é necessariamente melhor?

O que justifica a desigualdade? Vem de uma situação justa, porque há pessoas se esforçando mais do que as outras? Essa seria a resposta para a desigualdade racial no Brasil? Ou isso vem de uma série de estruturas muito maiores que são injustas? Toda sociedade tem alguma desigualdade e alguma desigualdade é tolerável e pode ser até funcional.

Para você ter uma enfermeira trabalhando de madrugada no hospital, você tem de pagar a ela mais do que a que trabalha durante o dia. É uma desigualdade funcional, totalmente aceitável. O que não é aceitável é o nível de desigualdade do Brasil, que é difícil demais de justificar.

Uma sociedade mais igualitária é, muito provavelmente, mais justa.

Alguma microdesigualdade sempre vai existir e vai ser tolerável e aceitável. O que estamos discutindo não é isso: é o nível extremamente elevado da desigualdade na sociedade brasileira.

Uma das ideias centrais do livro é que não existe solução mágica para combater a desigualdade. Há esperança, então?

Há esperança, sim. Eu poderia argumentar que vai ser muito difícil o mundo manter o crescimento sob as restrições imensas que vão ser impostas pelas crises ambientais. A gente deve ter esperança? Sim. A gente vai enfrentar crises e dificuldades. Vai dar muito trabalho, vai levar muito tempo e haverá um preço político gigantesco. Digo isso para acabar com a ilusão das soluções fáceis, de que basta fazer uma reforma educacional ou tributar os ricos e a desigualdade vai diminuir. Não é só isso. A desigualdade está em tudo. E, portanto, dá muito trabalho mexer, tem de mexer muito.

Os desafios da esquerda, por Paulo Nogueira Batista Júnior

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Paulo Nogueira Batista Júnior – A Terra é Redonda, 23/02/2024

Os desafios se avolumam e esquerda se debate sem sucesso contra eles. O Brasil, com Lula, até constitui uma exceção, mas apenas parcial
“Decifra-me ou te devoro” (Esfinge de Tebas)

Em vários países do Ocidente e do Sul Global, inclusive no Brasil, a esquerda se defronta nas décadas recentes com desafios talvez sem precedentes – e não está se saindo bem, de uma forma geral. Com o passar do tempo, os desafios se avolumam e esquerda se debate sem sucesso contra eles. O Brasil, com Lula, até constitui uma exceção, mas apenas parcial.

Estou me referindo, na verdade, à centro-esquerda, à esquerda moderada. A extrema esquerda não desempenha papel relevante. Em contraste, no campo da direita, os extremistas, apesar de alguns reveses importantes (notadamente as derrotas eleitorais de Donald Trump e Jair Bolsonaro), continuam fortes, ameaçando os partidos tradicionais de centro-direita e centro-esquerda.

O pano de fundo desses movimentos políticos é a crise da globalização neoliberal, iniciada ou agravada com o quase-colapso dos sistemas financeiros dos EUA e da Europa em 2008-2009. Essa crise financeira trouxe à tona um mal-estar generalizado da população dos países desenvolvidos com a economia e o sistema político. Os bancos privados foram socorridos com grande mobilização de recursos públicos enquanto a população endividada foi basicamente deixada à própria sorte. Cresceu o ressentimento, alimentando a eleição de Donald Trump em 2016 e de outros políticos do mesmo naipe na Europa.

Esse mal-estar com a globalização é mais antigo e mais amplo do que a crise financeira de 2008.

O que aconteceu nos últimos 30 ou 40 anos nos EUA e na Europa foi uma dissociação crescente entre as elites e o resto da população. A renda e a riqueza se concentraram nas mãos de poucos, os ricos ficaram mais ricos, ao passo que o grosso da população viu a sua renda estagnar ou retroceder.

A confiança no sistema político desabou. Espalhou-se a percepção de que não há democracia, mas plutocracia – o governo dos endinheirados. Pior: ficou patente que o que prevalece é uma caquistocracia – o governo dos piores. A baixa qualidade da maioria dos líderes políticos ocidentais está aí, à vista de todos.

Esse declínio das lideranças do Ocidente reflete algo maior: o declínio do establishment dessas nações, crescentemente dominado pelo rentismo e pelo capitalismo predatório. Especulação financeira, privatizações destrutivas, fusões e aquisições, manobras de mercado de todo tipo substituem a produção e a geração de empregos de qualidade. A decadência parece bem evidente.

Versões anteriores do establishment dos EUA teriam permitido que o eleitorado ficasse reduzido a escolher em 2024, como tudo indica, entre um presidente senil e um bufão irresponsável?

Não por acaso, a China, que nunca seguiu o modelo neoliberal, tornou-se “a fábrica do mundo” às expensas das indústrias do Ocidente. O Brasil, infelizmente, também caiu na armadilha da globalização e ainda não conseguimos dela escapar. Era inteiramente previsível. As elites locais, em geral servis e medíocres, mimetizam as elites estado-unidenses, trazendo para cá o que há de pior.

No plano político-partidário, quem foi prejudicado e quem foi beneficiado pela crise da globalização neoliberal? Entre os prejudicados se destacam, merecidamente, os partidos tradicionais de direita, identificados com a defesa do modelo concentrador. Note-se, entretanto, que o prejuízo recai não só sobre eles, como também sobre os da esquerda moderada – a social-democracia, os socialistas e outros semelhantes.

Previsível: afinal, a centro-esquerda foi sócia das políticas econômicas excludentes. Em muitos países, governou em coalizões com a direita tradicional. Quando chegou ao poder como força hegemônica, pouco ou nada fez para mudar o rumo da economia e da sociedade. Assim, passaram a ser vistos, junto com a centro-direita, como parte de um mesmo “sistema”.

Contra esse “sistema”, a extrema direita se insurge, mesmo que muitas vezes apenas da boca para fora. Comandada por líderes carismáticos e espalhafatosos, como Donald Trump, Jair Bolsonaro e Javier Milei, conseguiu vencer diversas eleições importantes. Despreparada e primitiva, contudo, a extrema direita não governa de modo eficaz e promove mais confusão do que reformas.
Mantém ou aprofunda a orientação conservadora em economia, disfarçando essa concessão com atitudes extremadas na pauta de costumes. Não passou no teste de fogo da pandemia da Covid-19, o que contribuiu de modo importante, como se sabe, para a não-reeleição de Donald Trump e Jair Bolsonaro. Recuperou-se, contudo, dessas derrotas, como se nota pela vitória de Javier Milei, o prestígio de Donald Trump e Jair Bolsonaro, sobretudo do primeiro, e a ascensão de radicais de direita em alguns países da Europa.

O que aconteceu com a centro-esquerda em outros países, talvez seja relevante para o governo Lula e os partidos que o apoiam. Parece intrigante, à primeira vista, que a centro-esquerda dos países desenvolvidos não tenha conseguido capitalizar para si a crise da globalização. Parte da explicação já foi mencionada acima: o condomínio de poder formado com a direita tradicional. Mas vamos tentar aprofundar a questão um pouco mais. O fato é que a centro-esquerda também se tornou tradicional e elitista, acomodou-se, perdeu contato com a população e mostra não compreender os seus problemas reais. Corre o risco de definhar por não entender as mudanças em curso. Como na mitologia, a esfinge de Tebas adverte: “Decifra-me ou te devoro”.

Um exemplo de uma estratégia problemática: abraçar a agenda identitária, que é uma agenda liberal, contribui para o isolamento da esquerda. Vamos nos entender: defender as mulheres, os negros, os indígenas, os homossexuais e outros grupos discriminados é indispensável. Porém, essa defesa não pode ser a plataforma central da esquerda. De um modo geral, o identitarismo não conta com a atenção ou a simpatia da grande maioria dos trabalhadores e dos setores de menor renda, geralmente às voltas com a luta pela sobrevivência.

Os temas econômicos e sociais – emprego, renda, injustiça social – continuam prioritários para eles. A extrema direita tenta desviar a atenção desses temas com discursos religiosos e conservadores. A centro-esquerda acaba esquecendo-os ao focar nos temas identitários.

Uma questão crucial na Europa e nos EUA, ainda não presente no Brasil, é a imigração. A extrema direita vem se beneficiando amplamente da sua oposição virulenta à entrada de imigrantes – oriundos da África e do Oriente Médio na Europa; da América Latina nos EUA. A centro-esquerda não sabe o que fazer com o tema. As suas tradições iluministas e internacionalistas levam-na a rejeitar a resistência à imigração. Não percebe que ela tem fundamentos reais. A rejeição do imigrante não é apena diversionismo, como muitos imaginam.

Os imigrantes trazem problemas significativos, não para as elites por suposto, que vivem à parte no seu mundo privilegiado, mas para os cidadãos comuns. A imigração em larga escala afeta o mercado de trabalho, pressionando para baixo os salários e levando à substituição de empregados locais por imigrantes. As firmas veem com bons olhos, claro, o barateamento da “mão-de-obra”, mas os trabalhadores sentem na pele e sofrem. Note-se que a imigração vem sobrecarregar um mercado de trabalho já adverso, em razão dos deslocamentos produzidos pelo rápido progresso tecnológico.

Mas a questão não é só econômica. A imigração massiva do século XXI é muito diferente, por exemplo, da imigração europeia para as Américas em épocas anteriores. O imigrante hoje é essencialmente diverso das populações do país hospedeiro, em termos raciais ou étnicos, assim como em termos culturais ou religiosos. A sua presença numerosa ameaça descaracterizar as sociedades dos países desenvolvidos, trazendo insegurança e reações xenófobas. Em outras palavras, a questão é também nacional – tema com o qual grande parte da esquerda sempre lidou mal.

Como reagirá a centro-esquerda a esses problemas? Continuará no rumo atual ou tentará se conectar com as novas realidades e as preocupações da maioria? Se ela optar por apegar-se às suas tradições, só nos resta desejar-lhe boa sorte.

Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém(Leya).

Versão ampliada de artigo publicado na revista Carta Capital, em 22 de fevereiro de 2024.

Cessar-fogo na Baixada Santista, por Djamila Ribeiro

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Temos que seguir alertas para a realidade sangrenta do nosso país

Djamila Ribeiro, Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

Folha de São Paulo, 23/02/2024

A diplomacia brasileira trabalha pelo cessar-fogo na Palestina desde o início da guerra. A morte em massa de crianças, mulheres e homens civis e a destruição de comunidades inteiras vêm intensificando os apelos.

Contudo, o confronto desigual e massacrante prossegue, fundado em um suposto direito de defesa ilimitado que vem sendo exercido pelo extermínio de civis, em nome da famigerada “Guerra ao Terror”.

É verdade que muito se tem dito sobre essa guerra. Como brasileira e paulista, gostaria de chamar a atenção para outra guerra mais próxima —para a qual também devemos pensar em um cessar-fogo. Descendo a serra do Mar há um banho de sangue em curso que tem resultado em consequências drásticas para toda a população, em especial a negra.

Refiro-me aos índices recordes de letalidade policial na Baixada Paulista desde a morte de um policial da Rota, no início do mês. Dezenas de pessoas foram mortas por forças policiais, em uma retaliação infinita que ultrapassa os envolvidos no confronto e vitimam comunidades inteiras.
Segundo dados oficiais —os quais, em tempos de cólera, são passíveis de uma ainda maior subnotificação—, em menos de dois meses deste ano já são mais de 50 pessoas mortas pela PM na região. O número representa o triplo do registrado na cidade de São Paulo, que tem quase seis vezes mais habitantes que a Baixada.

Some-se a isso mais de 700 presos, bem como mais de 250 mandados de prisão em aberto, incontáveis feridos e três policiais mortos. E, repito, apenas em janeiro e fevereiro de 2024. Uma verdadeira guerra em curso, que engana parte da população, pois promete segurança e entrega terror para todos os envolvidos.

Fosse uma atuação estatal eficiente, a Polícia Militar não estaria preocupada em vingar-se matando pessoas, independentemente de quem sejam. Não é essa a função da polícia e, além de desumanizante, gera violência que se volta contra os agentes. O Brasil é um dos países em que mais policiais morrem no mundo e a política da bala —histórica em comunidades periféricas— tem sido um enorme fracasso, que produz mortes de agentes do Estado.

Quanto à população, é importante dizer que, embora não haja um alvo oficial definido para pessoas negras por parte do Estado, é esse grupo social que vem sofrendo consequências radicalmente desproporcionais como resultado do confronto. Tanto vêm sendo essas as pessoas sumariamente julgadas e executadas quanto são a maioria absoluta de moradoras das comunidades afetadas pelo ambiente de profunda insegurança e medo.

Sou uma mulher negra santista, tenho irmãos e sobrinhos negros que vivem em bairros periféricos na Baixada. Meu sobrinho é um bom menino, quer ser fotógrafo e modelo; jamais se envolveu com droga, trabalha e estuda. Mas nada disso importa para as balas perdidas e execuções sumárias. As mulheres da família não podem imaginar vê-lo sair de casa sem ficarem com o coração apertado, com medo que lhe aconteça alguma violência em qualquer esquina.

Em conversa com Claudio Silva, o Claudinho, que é ouvidor da Polícia Militar, tomei ciência de casos muito preocupantes. Crescem as mortes de civis denunciadas pela população como execução sumária. Um exemplo foi a morte de José Marcos Nunes da Silva, catador de materiais recicláveis que, segundo sua família, não tinha envolvimento com crime e implorou desarmado para não morrer, sem sucesso.

Uma investigação independente e rigorosa do Ministério Público há de revelar muitos outros casos. Há que se debater ainda o papel de membros do poder público para determinar a interrupção desse morticínio, já que não só se omitem como comandam essas operações. Serão essas pessoas responsabilizadas?

O desenvolvimento social na região começa com um cessar-fogo, acompanhado de políticas públicas de moradia, emprego, educação, saúde, assistência social e saneamento básico, entre outras, que visem a construção da humanidade e do bem-estar da população local. Esta, embora nada tenha a ver com os agentes envolvidos nessa guerra, paga o preço salgado por ser constituída de pessoas negras, pobres e desconsideradas pelas políticas de Estado.

Dito isso, que sigamos com a pressão pela paz na Palestina e alertas para a realidade sangrenta do nosso país, que também precisa de um cessar-fogo.

Presente nebuloso

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Num mundo marcado por grandes transformações estruturais, centrado em uma imensa competição e pelo desenvolvimento tecnológico, as nações que não acordarem para este cenário contemporânea, os indicadores econômicos e sociais tendem a piorar rapidamente, aumentando os desajustes em todas as áreas e setores, aumentando a violência, os conflitos políticos e reduzindo as esperanças de dias melhores.

Vivemos em momentos de grandes modificações estruturais. Os comportamentos humanos estão se alterando, os relacionamentos estão em constantes transformações, os modelos de negócio estão passando por grandes modificações, as organizações familiares estão se reconfigurando rapidamente, as nações hegemônicas estão perdendo poder e influência no cenário internacional, o mundo do trabalho está em franca reestruturação, gerando desempregos, subempregos e informalidades.

As nações estão em guerras variadas, no campo econômico e produtivo, as empresas buscam apoio dos setores políticos e governamentais, rogando por proteção crescente e subsídios variados como forma de sobrevivência, barganhando para evitar a bancarrota e pressionando os orçamentos dos Estados Nacionais. No campo militar, as guerras crescem em todas as regiões, na atualidade encontramos mais de 180 conflitos militares em curso na sociedade mundial, gerando destruição na infraestrutura das nações, mortes generalizadas e um rastro de ódio, rancor e ressentimento, perpetuando novos confrontos e novas devastações.

No campo econômico, as nações estão em situação fiscal e financeira degradantes, seus recursos monetários são limitados para satisfazer as necessidades da população, desta forma, percebemos impactos sobre as estruturas políticas, fragilizando a democracia e estimulando a ascensão de grupos radicais, impulsionando polarizações em todas as regiões do mundo, incrementando fascismos e racismos crescentes.

Vivemos num momento de grandes desafios, as lideranças estão cada vez mais escassas, as discussões econômicas são limitadas, os donos do poder se perpetuam no controle da sociedade e usam seus poderes materiais e imateriais para influenciar os debates da sociedade, fomentando discussões ultrapassadas e de pouca relevância para compreendermos os desafios do mundo contemporâneo.

Em todas as regiões do mundo encontramos um grande contingente de trabalhadores desempregados, na informalidade e subempregados, cujos rendimentos não garantem condições dignas de sobrevivência, estamos criando uma explosão social que não demorará para explodir e seus impactos são desconhecidos. Décadas atrás, esse quadro de desalento era mais evidente em países pobres e subdesenvolvidos, onde a pobreza e a indignidade eram constantes. Na contemporaneidade, essa situação de desalento se espalha para todas as regiões do mundo, afetando países ricos e nações vistas como em desenvolvimento, desta forma, o futuro tende a ser nebuloso para todas as comunidades.

A tecnologia que era vista como instrumento de melhorias sociais, pode ser um complicador deste cenário de devastação social. No século XIX, a tecnologia era vista como uma forma de fazer os indivíduos a trabalharem menos e usar seu tempo ocioso para o lazer e para a convivência familiar. No mundo contemporâneo, dominado por tecnologias variadas, os trabalhadores se sentem pressionados pelas máquinas e pelos instrumentos tecnológicos, obrigando-os a trabalhos intermináveis e degradantes, incrementando os medos, as ansiedades, as depressões e até os suicídios.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Carta Mensal – Janeiro 2024

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O ano de 2024 começou com avanços substanciais na economia nacional e boas perspectivas para o ano novo, mas percebemos que essas modificações positivas estão assentadas em estruturas frágeis, temos um governo fraco, com uma sustentação no Congresso Nacional limitada e com uma oposição muito empoderada que impõe ao governo federal perdas homéricas, levando o presidente a negociar todos os momentos, alterando projetos e cedendo espaços ao centrão como forma de conseguir aprovar projetos estratégicos para que o governo nacional tenha governabilidade.

As negociações entre o governo federal e o Legislativo é sempre complexa e marcada por inúmeros conflitos, afinal, nestes últimos seis anos, os presidentes eram fracos nas negociações políticas. O presidente Temer era visto como um presidente bastando, sua ascensão estava ligada a um golpe parlamentar para retirar do governo uma presidenta legítima, neste período, o Presidente Temer sempre foi refém do legislativo, sua bancada sempre foi reduzida e marcada pela ascensão do Centrão, que passou a controlar grande parte do orçamento, desta forma seu governo e sua legitimidade sempre foram limitados, levando o governo a entregar partes substanciais do governo como forma de governabilidade, perdendo sua capacidade de gestão e sua reduzida capacidade de liderança.

O governo Bolsonaro tentou inicialmente alguma autonomia política, rechaçando o Centrão inicialmente como forma de gestão diferenciada, mas os resultados foram sofríveis, levando seu governo a entregar, por completo, toda e qualquer negociação política nas mãos do Centrão, empoderando o Congresso Nacional, que passou a controlar e manipular grande parte do orçamento, criando a emenda do relator ou orçamento secreto e dando mais poderes aos congressistas, desta forma, o Congresso Nacional que saiu nas eleições de 2022 é visto como o mais conservador e reacionário da história nacional. Tudo contribuiu para o empoderamento do Legislativo e fragilizou o Executivo, reduzindo a capacidade do Presidente Luís Inacio Lula da Silva de gerir com maior autonomia e soberania seu governo.

O ano começou com grandes medos e preocupações no nosso vizinho na América do Sul, com a eleição de Xavier Milei na presidência da Argentina, um ultradireitista radical que, desde a campanha trazia propostas desestabilizantes, tais como o fim do Banco Central Argentino, privatização de todas as empresas estatais, acabar com o Mercosul, alinhamento automático com os Estados Unidos e Israel, além de dolarizar a economia argentina, medidas pouco viáveis economicamente, mas que podem gerar graves constrangimentos nas relações bilaterais com os grandes parceiros da Argentina, Brasil e China.

Nestes primeiros dias de governo, o Presidente Milei enviou ao Congresso Nacional mais de 600 alterações de lei, com a criação de um decreto presidencial respaldando inúmeras medidas liberais ou neoliberais, com alterações de venda de empresas nacionais, abertura econômica, redução da burocracia, diminuindo os poderes dos sindicatos, retirando benefícios sociais e previdenciárias, além de extinguir subsídios, encarecendo o preços dos produtos e as mercadorias, tudo isso, mesmo que esses medidas estejam em conversação no Congresso, os resultados imediatos para a economia da Argentina são preocupantes, com incremento da inflação e graves constrangimentos com os maiores parceiros comerciais da Argentina, Brasil e China. É importante destacar, que o presidente argentino carece de poder no Congresso, sua coalizão abarca menos de 15% de um total de 257 deputados, para conseguir aprovação de suas medidas, são necessárias muita capacidade de negociação.

Internamente, destacamos a adoção de uma política industrial, a Nova Indústria Brasil (NIB), que se baseou no conceito criado pela economista italiana Mariana Mazzucato, que se baseia nas chamadas Missões, centrada na busca crescente de produtividade e competitividade, se afastando das chamadas teorias de substituição de Importação.

No novo modelo de Política Industrial, as Missões estavam diretamente ligado a integração em variadas áreas e setores, onde destacamos setores de sustentabilidade, saúde, cadeias agroindustriais, bioeconomia, energias renováveis, dentre outros, que indicam que o Brasil do século XXI vai buscar, efetivamente, se inserir em um mercado de grande potencial, mostrando ao mundo uma forte capacidade de organizar suas estruturas econômicas e produtivas, se destacando em toda a economia internacional.

A política industrial trazida pelo governo federal deve ser visto como um avanço, pois anteriormente falar essa política era vista como um afronta aos economistas liberais, que detonavam os governos e suas políticas intervencionistas. Mas com o Novo Consenso de Washington que está surgindo na comunidade internacional, as políticas industriais passaram a ser aceitas e são recomendadas, uma mudança estrutural.

Embora percebamos que o mês de janeiro é marcado por férias da classe política, percebemos inúmeras descobertas referentes as questões policiais da Polícia Federal com variadas operações que visam investigar vários malfeitos do governo anterior, malfeitos que estavam ligados a financiadores, religiosos, militares e divulgadores de fake News, levando a prisões, perseguições, delações e conflitos variados. Depois de 13 m3ses do novo governo, as investigações policiais estão gerando graves descobertas, confrontos políticos, narrativas, discursos e confrontos, tudo isso, contribuíram para que o Brasil esteja sendo visto como um exemplo positivo de investigações judiciais contra tentativas de golpes de Estados e da ascensão da extrema direita mas acaba gerando mais incertezas e instabilidades no cenário econômico e produtivo, reduzindo investimentos produtivos.

Outro assunto que precisamos destacar é o incremento do conflito entre Israel e o grupo Hamas, um confronto que passou dos 90 dias, com mortes de quase 30 mil pessoas, sendo que a maior parte são mulheres e crianças, destruições generalizadas na infraestrutura, cortes de energias e alimentos, gerando uma crise humanitária na região, gerando protestos internacionais de todas as regiões que pedem um cessar fogo, retomada das conversações diplomáticas e uma reconfiguração geográfica da região.

O mês de janeiro começou com esperanças reduzidas, a mídia comercial está cada vez mais atrelada aos interesses israelenses e dos norte-americanos, desta fora, as esperanças de acabar com o conflito nos parece cada vez mais distante e a destruição nos parece cada vez mais assustadora e imediata.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Para compreender o paradoxo chinês, por Ladislau Dowbor

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Uma política centralizada para definir grandes rumos e uma filosofia de gestão radicalmente descentralizada. A interação entre o público e o privado. Entender o modelo econômico adotado pela China exige compreender seu povo, sua cultura e sua história

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 16/02/2024

“Nessa nova era conectada em rede, o paradigma tradicional da competição precisa deixar o lugar para a complementariedade, a conectividade e a cooperação.”
Keyu Jin (282)

Era tempo que tivéssemos um livro de primeira linha sobre a China, país sobre o qual todos têm opiniões, ou melhor dizendo, julgamentos, mas poucos compreendem. Keyu Jin é economista, é chinesa, estudou nos Estados Unidos. É professora de economia em Londres e em Beijing. Isso é tão importante não apenas porque a qualifica cientificamente, mas porque a levou a enfrentar os diversos tipos de simplificações que existem sobre o país, bem como as polarizações que resultam. A China não se simplifica, precisa ser compreendida. E Keyu é suficientemente segura nas suas análises para poder apontar tanto os sucessos, como as dificuldades e ameaças no que é hoje a economia mais dinâmica do planeta. Não é cosmética nem ataque, é explicitação dos mecanismos.

A autora tem hoje 42 anos, o que significa que pertence à nova geração chinesa, que viveu os tempos da dificuldade da tigela do arroz dos seus pais, até a prosperidade atual. Ou seja, viveu as transformações que descreve, além de estudá-las dentro e fora da China. Na escrita, sente-se o orgulho de uma nova geração que não precisa pedir desculpa, e Keyu traz com força o fato que uma nova geração está mudando o próprio clima social, político e econômico do país. Não se trata apenas de descrever a China, e sim de captar a complexa dinâmica de transformações que hoje continua. Mais do que presa a simplificações ideológicas, a China busca permanentemente novas formas de organização e gestão. A imagem que utilizam é que, ao atravessar um rio, é preciso ir sentindo com os pés onde estão as pedras.

Isso não significa pragmatismo de “crescimento” a qualquer custo. A China não é apenas uma economia, é um universo cultural. “A tradição de colocar os interesses da comunidade acima dos interesses pessoais representa um contraste forte com a ênfase ocidental no indivíduo.” (291)

Isso tem muito peso. Nas várias vezes que estive na China, me impactou muito esta atitude espontânea das pessoas de naturalmente pensar o interesse individual no contexto do bem-estar da sociedade. Não se sentem “oprimidos” por haver rumos gerais definidos pelo governo e pelo partido: se sentem co-construtores do seu país, e compreendem com naturalidade que o sucesso individual deve se dar dentro de uma visão mais ampla. E vendo o ritmo das transformações, se sentem orgulhosos de participar do processo.

Um segundo eixo importante, em termos de herança cultural, é que a China sempre teve, e o ‘sempre’ envolve muitos séculos, uma tradição de formação e promoção ligada ao mérito, nos diversos sistemas de gestão pública. “Devemos também ter em mente que a China já foi a nação mais rica do mundo, com a tecnologia e infraestruturas mais avançadas, apoiada por uma burocracia que encorajava a seleção dos mais competentes. A herança meritocrática da China tornou a transição para um governo moderno mais fácil, e liberou essa capacidade latente para dinamizar a ciência e a tecnologia modernas na nova era.”(291) A exigência de muita formação e experiência para avançar na hierarquia administrativa não é de hoje.

Os avanços da China espantam: Como ordem de grandeza, em poucas décadas a riqueza da nação foi multiplicada dezenas de vezes. A China emerge como país efetivamente soberano em 1949, destruído por tantas guerras e a exploração colonial. Ou seja, o ponto de partida é trágico. Mas depois de algumas décadas de busca de formas de organização interna, inclusive com políticas desastradas, a partir de 1978, com Deng Xiaoping, a China opta por um sistema que combina de maneira criativa os mecanismos de mercado, o planejamento como eixo organizador, uma política centralizada de fixação de grandes rumos, e uma filosofia de gestão radicalmente descentralizada na aplicação prática dos rumos fixados. O resultado é que permite assegurar a coerência do conjunto ao mesmo tempo que libera a iniciativa local e a criatividade. “Esse modelo de concentração de poder político com descentralização econômica é característica única do Estado chinês.” (121)

A autora chama este sistema de mayor economy, economia de prefeitos, porque a ampla autonomia local permite que as iniciativas sejam radicalmente desburocratizadas. “São funcionários locais nas províncias, nos municípios, nos ‘counties’ e cidades que batalham o desenvolvimento local, atingem objetivos de crescimento, implementam as reformas, e atraem investimentos internacionais. Esses são os quadros locais que transformaram aldeias de pescadores e zonas rurais atrasadas em núcleos modernos de exportação, de manufatura, e em zonas econômicas hightech. Por trás de história de sucesso está um governo local que o apoiou em cada passo na caminhada.”(120) O organograma da hierarquia administrativa, nesta mesma página, ajuda muito na compreensão do funcionamento do conjunto.

Lembrando que se trata de administrar um país de 1,4 bilhão de habitantes, com toda a complexidade da transição, em poucas décadas, de uma era de miséria rural para uma era de urbanização e alta tecnologia. Não há como promover este ritmo e coerência de desenvolvimento de um imenso país, nos mais diversos setores, com uma ditadura centralizada, como até hoje tantos desinformados “opinam”. Lembro que Arthur Kroeber, no seu China’s Economy, (2016) insiste muito nesta dimensão da descentralização, afirmando inclusive que a China é mais descentralizada do que a Suécia, onde cerca de 70% dos recursos públicos são repassados diretamente para as administrações regionais e locais. (1) Nos diversos trabalhos que tenho publicado, insisto muito que no caso brasileiro, com 5.570 municípios, esperar que tantas coisas se resolvam a partir de Brasília é simplesmente um contrassenso de gestão, de elementar lógica de processo decisório. (2)

É uma questão de bom senso, não de ‘ideologias’: “Conforme resultou, dividir o poder no nível local fez sentido de várias maneiras. São os funcionários locais, afinal, que conheciam melhor as condições locais, tinham as mais amplas redes locais, e sabiam como juntar a informação local, e tomavam decisões informadas sobre a alocação de recursos. Isso os colocou numa posição muito melhor do que um governo central distante, para desenvolver a sua economia local. Na realidade, o eterno dilema sobre a centralização política é que enquanto este é bom para estabelecer os objetivos de longo prazo para melhores resultados, isso é frequentemente associado com burocracias distantes pouco sensíveis às necessidades locais. Os funcionários locais na China gozam de autonomia substantiva para desviar das normas, e a aproveitaram bem.”(128)

Grandes rumos do governo central, autonomia de decisão local, mas também os meios financeiros correspondentes, com o LGFV (Local Government Financial Vehicle), sistema descentralizado de financiamento.(p. 179 e ss) As taxas de juros estão na faixa de 4,6% ao ano, para uma inflação da ordem de 2%, o que significa um juro anual real de 2,6%. Um organismo central do governo controla as tentativas de agiotagem. Os poderes locais se endividaram, mas Keyu traz o óbvio: “Quando as taxas de juros são mais baixas do que as taxas de crescimento, o juro sobre a dívida é baixo, e a relação entre a dívida e o PIB irá cair com o tempo.”(187) O problema não está no endividamento, e sim em como se usa os recursos: se promovem o desenvolvimento, o processo se equilibra, gerando mais recursos que o custo da dívida. No Brasil ainda nos debatemos com a “austeridade”, e os prefeitos viajam para Brasília para tentar uma fatia de emenda parlamentar junto a um deputado aliado. É disfuncional tanto para as prefeituras como para os legisladores, atolados em micro negociações.

A China não teria como se reinventar em tão pouco tempo sem aproveitar um conjunto de tecnologias desenvolvidas no resto do mundo. A partir de 1978, com a abertura, soube atrair corporações internacionais, interessadas na mão de obra barata, e também no amplo mercado, mas exigindo que as corporações assegurem participação chinesa na gestão das empresas, e compartilhamento de tecnologia. São negociações caso a caso, cujo mecanismo acompanhei em Shanghai, que permitem equilibrar os interesses, em vez do país simplesmente se submeter às condições das transnacionais. “Quando empresas estrangeiras queriam operar na China e aproveitar os seus custos mais baixos e amplo mercado, era lhes exigido que formassem joint ventures com empresas chinesas, o que frequentemente envolvia compartilhar a própria tecnologia.”198)

Em outros termos, para assegurar o ganha-ganha do processo, foi preciso ter soberania, e uma sólida visão dos interesses nacionais. Lembro que a Coreia do Sul também recorreu a uma forte participação estatal na gestão da economia, e negociando de forma dura os interesses do país frente às multinacionais: aqui também os avanços externos foram utilizados como trampolim para dinâmicas internas. Hoje a China é um gigante tecnológico, “o pêndulo começou a se deslocar para o outro lado”, como comenta Keyu, relativamente ao tempo em que a China tinha mão de obra barata e as corporações tinham a tecnologia. E o próprio peso da economia muda as relações. Em 2023, em dólares PPP (Purchasing Power Parity, tirando deformações por taxas de câmbio, ou seja, em volume efetivo de produção) a China tem um PIB de 33 trilhões, os Estados Unidos de 27 trilhões. (3)

Uma melhor compreensão da economia da China está ligada ao conceito de juguo, ou seja, de missão, visão que lembra o Mission Economics de Mariana Mazzucato. No mais recente plano de desenvolvimento (2021-2025), dado o deslocamento das prioridades da base industrial para a esfera tecnológica, a visão é de dinamizar a nação através da ciência, da tecnologia e da educação: “Quando um objetivo estratégico recebe a designação de juguo, as considerações de custos são deixadas de lado. Desperdícios serão tolerados. A essência do sistema juguo é que toda a nação se mobiliza para atingir um objetivo estratégico.”(218) “A China está construindo uma cadeia completa de incubação ligando os laboratórios nacionais chave, universidades e parques industriais hightech ao redor do país. Já atraiu milhares de pesquisadores e cientistas do exterior, para residirem na China.”(219) Enquanto interessa sim aos cientistas chineses trabalhar em outros países, hoje a tendência se inverteu.

Ao chamar este livro de New China Playbook, Keyu Jin traz com força essa visão de um país que não apenas se transforma, mas transforma as regras de jogo à medida em que o mundo e a China mudam os paradigmas tecnológicos, sociais e políticos. O subtítulo, “além do socialismo e do capitalismo”, ajuda na compreensão dessa dinâmica. A China não está presa às simplificações ideológicas, que por exemplo, no chamado Ocidente global, proíbem de regular os bancos, as plataformas de comunicação, os desmandos da indústria farmacêutica, ou seja, qualquer interferência sobre “os mercados”. Busca o que funciona. Nessas poucas linhas, trouxe um pouco das ideias do livro, mas vale a pena adquirir o texto, alguma editora traduzi-lo, pois não se trata, no caso da China, de um “modelo”, mas de um sistema que aprende. Uma “learning economy” poderia ser uma qualificação adequada.

E recomendo ver no meu site http://dowbor.org alguns documentários de primeira linha sobre a China, em particular em como organizaram o enfrentamento da pobreza, através de políticas radicalmente descentralizadas. Basta colocar “China” na busca no site, há bastante material de apoio.

Ladislau Dowbor, Economista e professor titular de pós-graduação da PUC-SP. Foi consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema“S”. Autor e co-autor de cerca de 45 livros, toda sua produção intelectual está disponível online no website www.dowbor.org.

Aumento da concentração de renda agrava quadro sociopolítico, por André Roncaglia

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Após duas décadas de crescimento real, salários se estagnaram sob Temer e Bolsonaro

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 16/02/2024

Os dados recentes das Contas Nacionais, divulgados pelo IBGE, mostram um acirramento do conflito distributivo no Brasil. Entre 2017 e 2021, os lucros (fonte principal de renda dos mais ricos) cresceram mais do que os salários e benefícios sociais (fonte de renda principal dos mais pobres e da classe média). Esta tendência reflete movimentos estruturais da economia brasileira.

A perda do poder de barganha dos trabalhadores explica a estagnação da renda do trabalho. Depois de duas décadas de crescimento real dos salários (1994-2016), os salários estagnaram sob Temer e Bolsonaro: 0,2% de ganho real entre 2017 e 2022. A reforma trabalhista de 2017 reduziu os custos para o empregador, mas não gerou os milhões de empregos formais prometidos. A reforma piorou o mercado de trabalho, com aumento na proporção de empregos precários no setor de serviços de baixa qualificação.

Além disso, a queda da fatia dos salários na renda também se deve à lógica antiestatal de Temer e Bolsonaro, que implicou arrocho dos salários do funcionalismo público civil e a não reposição de 7,3 mil servidores aposentados, segundo dados do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI).

A crítica genérica aos “privilégios” do funcionalismo ignora desigualdades internas ao setor público. Por exemplo, segundo dados do Tesouro Nacional, entre 2017 e 2022, os ganhos reais da renda de militares ativos (2%) e inativos (7%) contrastam com as perdas reais de servidores civis ativos (11%) e inativos (8%).

Ademais, um setor público com menos empregos e menor remuneração enfraquece as demandas salariais da economia (FMI, 1991) e normaliza a anemia sistêmica do mercado de trabalho, onde o prêmio salarial pela escolaridade vem caindo pela escassez de oferta de bons empregos, fruto da perda de sofisticação tecnológica da economia e das nossas exportações.

No lado dos lucros, concentração de poder de mercado, isenções tributárias, digitalização e automação se unem ao avanço da “pejotização”, pela qual trabalhadores são contratados como pessoa jurídica, transformando o rendimento do trabalho em lucro de empresa.

Essa metamorfose quantitativa implica mudanças qualitativas. Excluído da desidratada rede de proteção do emprego formal, o trabalhador convertido em “empresário de si mesmo” muda de lado na luta distributiva e amplia o racha na unidade já precária dos interesses do trabalho.

Seja por meio de salários, seja por meio de lucros, as melhores remunerações correm para os mais ricos, impulsionadas pela desigualdade de acesso às oportunidades, ligada à estrutura e ao patrimônio familiares, às conexões sociais e à propriedade concentrada do capital empresarial e o acesso a crédito e benefícios tributários. Vejamos o caso do agronegócio.

No período 2017-2022, o rendimento da atividade rural —isento de tributação na sua maior parte— teve ganho real de 140% e beneficiou principalmente os estratos mais ricos. Nota técnica de Sérgio Gobetti (Ibre-FGV) mostrou que, em estados dominados pelo agronegócio, o crescimento real da renda do 0,1% mais rico chegou a 117% em Mato Grosso, a 99% em Mato Grosso do Sul e a 78% no Tocantins —ante 42% na média nacional para o mesmo estrato de renda.

No mesmo período, o agronegócio adicionou apenas 4% do total de vagas criadas no Brasil e o ganho salarial real de empregados no agronegócio foi de 0,5%, na média (Cepea,Esalq/USP). Ou seja, a recente bonança das commodities não beneficiou a base da distribuição de renda.

A tática de dividir para conquistar os trabalhadores protege os privilégios das elites, pouco interessadas em gerar empregos de alta qualidade. Reindustrialização e maior justiça tributária ajudam a reequilibrar esse jogo.

Capitalismo é incompatível com democracia, diz italiana que pesquisa austeridade

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Clara Mattei afirma que políticas de redução do Estado são espinha dorsal das economias modernas contra trabalhadores

Uira Machado – Folha de São Paulo, 16/02/2024

Celebrado por figurões como Thomas Piketty e Martin Wolf, o livro “A Ordem do Capital” propõe uma nova maneira de enxergar as políticas de austeridade adotadas por diferentes países.

Não como uma exceção impopular e dolorosa usada só para reduzir o déficit orçamentário em momentos de maior desequilíbrio nas contas públicas, mas como “o sustentáculo do capitalismo moderno”, segundo a italiana Clara Mattei.

No livro, a pesquisadora volta à década de 1920 para mostrar como a austeridade surgiu depois da Primeira Guerra Mundial em países como Inglaterra e Itália, quando trabalhadores organizados cobravam mais direitos sociais.

Para Mattei, a austeridade foi naquela época —e continua sendo hoje— “uma reação antidemocrática às ameaças de mudança social vindas de baixo para cima”. Daí o subtítulo da obra: “Como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo”.

Em entrevista à Folha, ela diz que “as decisões econômicas são em grande parte decisões políticas”, mas que o “capitalismo é incompatível com a democracia no sentido de participação das pessoas nas decisões econômicas”.

Em seu livro, a sra. afirma que os programas de austeridade devem ser vistos não como exceção, mas como o sustentáculo do capitalismo moderno. Qual o ganho analítico dessa perspectiva?

Minha definição tem a vantagem de ser uma definição política, na qual fica claro quem ganha e quem perde com as políticas de austeridade. Essa definição tenta ir além da ideia de que a austeridade seja apenas a redução do tamanho do Estado.

Falar em “menos Estado” é uma maneira muito ideológica de entender a história do capitalismo e nossa situação econômica atual. O ponto não é ver se o Estado gasta menos, mas onde o Estado gasta. Porque austeridade não significa menos Estado, mas Estado gastando a favor das elites em detrimento da maioria da população.

A trindade de políticas de austeridade —fiscal, monetária e industrial— tem o objetivo de enfraquecer os sindicatos e manter os trabalhadores sob controle. E isso enquanto o Estado gasta muito dinheiro no complexo industrial militar, por exemplo, ou subsidiando e desonerando investimentos privados em energia verde, ou resgatando bancos.

Sua pesquisa volta aos anos 1920 para detectar as origens da austeridade na Inglaterra e na Itália. O que explica o surgimento desse receituário?

A austeridade não é um produto da exceção do sistema neoliberal. O que tento mostrar é como, na verdade, a austeridade é funcional e estrutural para o capitalismo. Ela é particularmente útil quando as pessoas querem um sistema econômico alternativo, querem mais direitos sociais. Aí a austeridade é muito importante para a elite, a fim de preservar o status quo.

Após a Primeira Guerra Mundial [1914-1918], isso ficou muito claro, porque foi um momento em que, no coração do capitalismo, os cidadãos estavam exigindo sociedades pós-capitalistas, rompendo com as relações salariais, rompendo com a propriedade privada dos meios de produção em favor da democracia econômica. Ou seja, as pessoas queriam a participação dos trabalhadores no processo de produção e distribuição. Foi aí que a austeridade nasceu.

O subtítulo do livro faz uma ligação forte entre austeridade e fascismo, mas a Inglaterra não teve um governo fascista. É possível generalizar a conexão?

A questão é mostrar que Mussolini se tornou tão poderoso porque ele era muito bom em implementar a austeridade, exatamente as mesmas políticas que os liberais na Itália, nos Estados Unidos e no Reino Unido estavam patrocinando.

A capacidade de subjugar os trabalhadores, de fazê-los aceitar salários mais baixos e parar com as greves; a capacidade de privatizar, de cortar gastos sociais e revalorizar a lira: tudo isso fez de Mussolini quem ele se tornou, um ditador fascista que permaneceu no governo por mais de 20 anos.

O capitalismo é bastante incompatível com a democracia no sentido de participação das pessoas nas decisões econômicas e na distribuição de recursos.

Claro que o capitalismo é compatível com a democracia eleitoral, mas isso é superficial. No capitalismo contemporâneo, você pode se tornar fascista para apoiar as prioridades da economia.

Foi o que aconteceu na Itália sob Mussolini, no Chile sob Pinochet e é o que está acontecendo agora na Argentina com Milei.

Em outros países não é tão diferente, se você olhar para a necessidade de proteger as decisões econômicas da interferência das pessoas. E isso é feito com a independência do Banco Central, com a ideia de colocar orçamentos equilibrados na Constituição, com mecanismos técnicos que têm o mesmo efeito de desdemocratizar a economia.

Há uma tensão entre capitalismo e democracia. Os governos fascistas, obviamente, são antidemocráticos. Mas o que é generalizável é que as supostas democracias liberais também têm tendências antidemocráticas que se associam muito mais ao fascismo do que se costumava pensar.

Que lições podem ser tiradas em relação à extrema direita hoje?

Os governos de extrema direita são muito bons em implementar a austeridade e, por esse motivo, ganham a confiança do mercado e são vistos com bons olhos pelos tecnocratas internacionalmente.

Mas o contexto agora é muito diferente. Quando Mussolini chegou ao poder, ele estava lá explicitamente para esmagar quem estava se mobilizando. Hoje, as pessoas votam em governos de extrema direita porque foram desempoderadas por um século de políticas de austeridade.

O sucesso da austeridade está em nos individualizar, nos tornar muito precários, nos tornar muito inseguros, para que não sintamos que estamos unidos como trabalhadores. A razão pela qual esses governos de extrema direita chegam ao poder é porque, em última instância, representam a expressão da insatisfação com o atual sistema econômico, que as pessoas entendem como um sistema a favor dos ricos e poderosos.

O problema é que as pessoas votam na direita, mas a direita é melhor em implementar a austeridade.

No Brasil, políticas de austeridade não são exclusivas de governos de direita. Por que isso acontece?

Essa é outra lição muito importante que podemos tirar do estudo histórico: infelizmente, a austeridade atravessa as linhas partidárias. É a expressão do falso pluralismo na economia que nossas democracias eleitorais apresentam. Elas nos dão a impressão de que, se votarmos em Lula em vez de Bolsonaro, teremos uma completa mudança nas políticas econômicas, mas é mais complicado doque isso.

Sob o capitalismo, a prioridade de qualquer governo, de direita ou de esquerda, é garantir os fundamentos para a acumulação de capital, o que significa não perturbar os investidores privados.

Então não podemos pensar que votamos uma vez a cada quatro anos e nosso trabalho está feito, porque existem pressões muito fortes vindas do mercado. Se o povo brasileiro, como qualquer outro povo, quiser uma mudança social séria, precisa lutar por isso.

Se você olhar historicamente, perceberá que há muito mais potencial para sistemas econômicos alternativos do que estamos acostumados a pensar, porque o objetivo principal dos economistas no poder é nos dizer que não há alternativa possível.

As alternativas existem, mas, para obtê-las, não basta eleger alguém que diga que fará algo diferente. Precisamos de uma participação maior do povo na economia.

Mas como escapar da lógica que comanda a economia em escala global hoje em dia?

A mensagem principal que emerge do livro é que as decisões econômicas são em grande parte decisões políticas, no sentido de que não há nada que seja uma necessidade técnica. São decisões políticas que acontecem dentro de um sistema que funciona sob pressões específicas.

Você pode ir contra essas pressões, mas terá de arcar com as consequências. Essa mudança não acontecerá suavemente. Se você quiser realmente subverter o Estado capitalista de dentro, você precisa entender que não vai ser fácil.

Clara E. Mattei, 35
Formada em filosofia, mestre na mesma disciplina e doutora em economia, é professora associada do Departamento de Economia da New School for Social Research (Nova York)

Missões

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O governo federal apresentou no mês passado uma política industrial objetivando a construção de novas bases para a indústria nacional, num mundo marcado pelo crescimento da concorrência global e o desenvolvimento tecnológico, onde os atores econômicos são, cada vez mais dotados de grande poder financeiro, com estruturas organizacionais complexas, com grande capacidade produtiva e geopolítica, onde as nações que ficarem para trás terão suas autonomias e soberanias diminuídas.

Vivemos momentos de grandes transformações geopolíticas e geoeconômicas, nações que eram vistas como hegemônicas perderam espaço na geopolítica global, desta forma, estes países estão tendo de dividir os poderes globais com outras nações. Discursos vistos como liberais, defensores da abertura econômica e da concorrência generalizada, que defenestravam constantemente a atuação dos Estados Nacionais vem perdendo espaço no debate internacional e desta forma, as políticas industriais vêm ganhando espaço na agenda das economias desenvolvidas e em desenvolvimento.

A política industrial sempre foi vista com desdém pelos economistas liberais, que acreditavam que o mercado deveria ser o grande estruturador e indutor das escolhas econômicas e produtivas, visto que este era o grande formulador da sociedade, dotado de grandes flexibilidades, agilidades e eficiências. Ao Estado, na visão liberal ou neoliberal deveria se restringir a uma atuação secundária, garantindo um ambiente de negócio salutar, estimulando a concorrência e a competição, atuando nas defesas interna e externa e com fortes investimentos em capital humano.

Neste cenário, nações que pregavam a concorrência generalizada como forma de crescimento econômico e produtivo estão se rendendo ao charme das políticas industriais, como os Estados Unidos e a Europa, que foram árduos defensores do pensamento liberal. Estas nações estão despejando trilhões de dólares e euros para protegerem suas estruturas econômicas e como forma de evitar sucumbir na concorrência com as nações asiáticas, que se utilizam fartamente de políticas industriais, protecionismos, subsídios etc.

O Brasil, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI) foi a nação que mais se desindustrializou nos últimos trinta anos, diante disso, faz-se necessário que a sociedade estruture uma estratégia para a reconstrução do setor industrial. Neste cenário, nasce o programa Nova Indústria Brasil (NIB) que está centrada nas chamadas Missões, que nos parece inovador e com uma concepção moderna ao dialogar com experiências internacionais, um conceito criado pela economista italiana Mariana Mazzucato, que defende uma estrutura integrada e interdependente para reconstruirmos a indústria nacional. Neste novo programa, percebemos uma preocupação central no aumento da produtividade e da competividade, enfatizando uma melhor inserção internacional da indústria, se distanciando da velha lógica de substituição das importações.

Dentre as Missões elencadas, destacamos as cadeias agroindustriais, saúde, bem-estar nas cidades, transformação digital, bioeconomia, descarbonização, transição e segurança energéticas e defesa que, se bem-sucedidas, transformarão a estrutura econômica e produtiva nacional. Os programas existem e podem ser positivos, mas antes de mais nada precisamos compreender o que queremos para o futuro, se continuaremos como um grande fazendão ou vamos alçar novos voos num mundo marcado por grandes transformações e incertezas.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Carta Mensal – Dezembro 2023

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O mês dezembro de 2023 foi caracterizado por grandes movimentações da sociedade brasileira, de um lado, ao olharmos as questões econômicas encontramos um grande discussão sobre as questões fiscais do Estado Nacional, uns defendendo a possibilidade de buscarmos o déficit zero, mesmo sabendo que está meta seja improvável e fortemente desafiador, onde teríamos que impor um arrocho fiscal violento, incrementando graves desequilíbrios sociais com impactos imediatos sobre a popularidade do governo Lula.

Depois destas discussões o governo destacou a necessidade de, em 2024, encontramos o déficit zero, alegrando os setores ligados ao mercado financeiro, recebendo aplausos dos setores bancários e gestores de fortunas em detrimento de setores mais ligados aos trabalhadores, que são os grandes prejudicados pelo arrocho do Estado Nacional.

Desta forma, percebemos que o governo federal está acenando para os donos dos recursos financeiros e as lideranças dos setores financeiros, adotando políticas que alegram esses setores, desta forma, acreditam que vão conseguir o apoio deste setor, sabendo que não conseguem governar sem o apoio destes setores da economia. Sabendo que estes são os grupos que foram os agentes que estiveram na linha de frente do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, desta forma, o governo Lula três está buscando agradar os donos do poder como forma de evitar de desagradar esse setor e evitando as represálias dos donos do poder, uma estratégia arriscada que podem levar o governo a perder o apoio dos grupos mais fragilizados economicamente.

No mês de dezembro, o governo se utilizou de instrumentos para mostrar todas as políticas que foram implementadas no decorrer do ano, um período marcado pela adoção de uma estratégia de reconstrução de muitos setores da sociedade que foram esquecidos no governo anterior e retomando políticas sociais, tais como projetos que foram reduzidos e renomeados pelo governo de Jair Bolsonaro. Neste ano de 2023, o governo retomou o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), visto como um projeto fortemente gerador de empregos, responsável pela movimentação de variados setores da economia, com injeção de investimentos, movimentação do mercado de trabalho, financiamentos subsidiados, estimulando os setores bancários, além de seguro, logística, construção civil, dentre outros.

Destacamos ainda a retomada de recursos financeiros para os setores de educação, segurança pública, saúde e cultura, setores que seus recursos foram arrochados, gerando forte degradação para variados setores da economia, além de destacarmos programas de reindustrialização, todos setores que foram muito degradados e o presidente se comprometeu com a retomada dos investimentos para a recuperação.

No mês de dezembro foi marcado por uma grande discussão sobre a segurança pública, uma área que os governos progressistas não apresentaram índices positivos, desta forma surge novamente uma discussão se era prudente separar o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, criando o Ministério de Segurança Pública para atacar uma das maiores feridas da sociedade contemporânea brasileira, os índices elevados de violência que crassa as cidades nacionais.

Essa discussão aparece com maior força com a indicação do Ministro da Justiça Flávio Dino para o cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e de Paulo Gonet para Procurador Geral da República (PGR). Ambos foram sabatinados no Senado Federal e foram conduzidos aos cargos indicados pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva.

Um dos grandes feitos do governo federal em 2023 foi a reforma tributária, medida que estava parada desde décadas anteriores, que geravam grandes constrangimentos para todos os setores econômicos e produtivos, essa medida foi aprovada e promulgada em dezembro pelo presidente da República, movimentando o Congresso Nacional.

Embora percebamos que essa reforma tributária está distante de uma reforma mais abrangente e com impactos generalizados para a economia nacional, a adoção desta nos traz algum alento de melhoras tributárias, com medidas mais progressivas para os setores sociais, reduzindo as medidas esdrúxulas que permanecem em todo o arcabouço tributário nacional. Um dos grandes avanços trazidos pela Reforma foi taxação de fundos exclusivos, além do IVA nacional, desta forma o Brasil entra no rol das nações que atuem essa forma de tributação.

Percebemos ainda, internamente, uma economia que já nos dá sinais claros de desaceleração econômica, onde os estímulos do primeiro semestre estão se enfraquecendo e deixando mostras de incertezas fiscais para o final do ano. Muitos defendem um maior gasto público como forma de estimular o crescimento dos investimentos, fomentando os setores produtivos, aumentando o emprego, incrementando a renda agregada e retomando o crescimento da economia. De outro lado, percebemos que os indicadores fiscais estão preocupantes e precisamos criar uma nova estratégia para melhorarmos os indicadores fiscais, sem isso, o fiscal pode se espalhar para a economia e gerar graves constrangimentos para todo o sistema econômico, gerando incertezas crescente e redução dos investimentos, levando a Autoridade Monetária a elevar as taxas de juros e reduzindo as atividades econômicas e com impactos para a economia nacional.

No campo internacional, os conflitos militares entre Ucrânia e Rússia, percebemos poucas movimentações, onde os ucranianos estão cotidianamente passando a sacolinha para arrecadar recursos para financiar a guerra, onde os governos europeus e os Estados Unidos estão menos afeitos aos investimentos do conflito. No campo da guerra, percebemos que os russos estão mais na frente, ganhando novos territórios e avançando mais efetivamente, mesmo sabendo que o presidente Putin sente que a vitória deste conflito está cada dia mais próximo.

Neste cenário, percebemos as movimentações da Otan, Organização do Tratado do Atlântico Norte, que geram preocupações para os rumos do conflito, isto porque a organização está dando sinais claros de estar se preparando para entrar nesta guerra, com custos altíssimos financeiros e graves constrangimentos para todas as nações, será que estamos visualizando a proximidade de uma terceira guerra mundial? Só o tempo pode nos responder.

Outro grave conflito em curso na sociedade internacional, a guerra entre Israel e Hamas, cujo conflito já deixou mais de 25 mil pessoas mortas, com devastação em todas as regiões da Palestina, com destruição da infraestrutura, matanças generalizadas e críticas internacionais de todas as regiões do mundo.

Esse conflito pode gerar graves constrangimentos para a sociedade mundial, a guerra pode se espalhar por todo Oriente Médio, levando muitas nações a adentrar ao conflito e podendo gerar uma verdadeira guerra mundial, arrastando os países mais desenvolvidos, como os europeus e os Estados Unidos e toda a comunidade árabe e chegando a Rússia, a China e outras nações, desta forma arrastando o mundo a uma terceira guerra mundial, com destruição generalizada.

O mês de dezembro nos mostra as grandes dificuldades para encontrarmos o comportamento correto econômico e necessário para retomarmos o crescimento da economia, no campo político percebemos grandes incertezas e instabilidades, fortalecimento de grupos de extrema direita com posições fortemente fascistas, crescimento de ideias e pensamentos que defendem retrocessos da democracia, estimulando intervenções militares e disseminando fake news como forma de gerar graves constrangimentos, cancelamentos e violências crescentes, gerando uma nação dividida e fortemente degradada.

Neste cenário, percebemos que depois de mais de 12 meses de um governo dito progressista ainda patinamos para reduzir as polarizações que alimentam a degradação e um ambiente de hostilidade e agressividade, sem reduzirmos essas polarizações dificilmente encontraremos o caminha para a reconstrução e o caminho correto para retomarmos o crescimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Mudanças climáticas e a economia, por Cecília Machado

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Eventos climáticos extremos impõem custos substanciais para o crescimento e desenvolvimento dos países

Cecília Machado, Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

Folha de São Paulo, 13/02/2024

O clima é uma variável fundamental para promover diversas atividades. Considerando sua relevância para o funcionamento das economias, espera-se que mudanças climáticas —como o aumento de temperatura, o aumento do nível do mar e a maior frequência na ocorrência de eventos climáticos extremos— possam impor custos substanciais para o crescimento e desenvolvimento dos países mais adversamente impactados por elas. O que se sabe até o momento sobre os impactos das mudanças climáticas sobre a economia?

São muitas as formas pelas quais as alterações climáticas operam na atividade econômica. De maneira direta, elas podem afetar componentes básicos de produção, como danos à infraestrutura construída ou prejuízos à produção física de bens, com efeitos que também se estendem a recursos humanos, já que as mudanças climáticas também trazem deterioração da saúde —física e mental— das pessoas.

Os efeitos indiretos, por sua vez, são decorrentes das ações de mercados, governos e outras instituições, que se ajustam para absorver os impactos do clima na economia e para direcionar mudanças. Por exemplo, variações nos padrões de precipitação e a subida do nível do mar colocam as edificações existentes em risco de inundações, provocando queda de preço ou mesmo aumento no custo de seguros contra inundação.

Pensando nisto, o Congresso americano promulgou, em 1990, uma lei que institui um programa para coordenar pesquisa e investimento relacionados a mudanças no ambiente global, que tem, entre seus objetivos, a produção de uma avaliação sobre os efeitos das mudanças climáticas em diversos assuntos, incluindo a economia. Elaborado em um intervalo máximo de quatro anos por uma comissão de especialistas, ele é o alicerce científico para que decisões políticas sejam tomadas de maneira informada.

O último relatório, de 2023, traz vários números alarmantes. No caso do aumento da temperatura, alguns estudos já são capazes de mostrar que ele reduz o aprendizado dos alunos, amplia a chance de acidentes no trabalho, reduz salários e aumenta a mortalidade.

Em termos de impactos para o futuro, há estimativas que apontam para prejuízos na produção agrícola, para a queda do crescimento e para a redução da renda per capita.

Ainda que as estimativas dos impactos econômicos futuros estejam sujeitas a algum grau de incerteza —já que o resultado depende de uma complexa interação entre forças naturais e humanas—, as projeções têm alto grau de confiança.

O relatório também estabelece que seus impactos serão distribuídos de forma desigual, afetando justamente regiões e grupos socioeconomicamente mais vulneráveis. Por exemplo, pessoas mais velhas ou com problemas de saúde são mais sensíveis a mudanças de temperatura e de qualidade do ar.

No Brasil, a sensibilidade à temperatura, à disponibilidade de água e aos eventos climáticos extremos coloca em risco os rendimentos e os ganhos históricos de produtividade do setor agropecuário. Já seria muito se fosse apenas isso. Mas nosso ponto de partida traz preocupações adicionais: ainda temos 12,7 milhões de pessoas em extrema pobreza, 4 milhões vivendo em áreas de risco, e um contingente de trabalhadores pouco capacitados para se adaptar a mudanças que também acontecem no mercado de trabalho, na direção de setores da economia verde.

São justamente estas pessoas que mais sofrem com perdas materiais decorrentes das mudanças climáticas, que têm menos recursos para se adaptar ou de se recuperar das perdas causadas por elas, e menor capacidade para se realocar em setores que passarão ser mais demandados pela sociedade na transição para uma economia de baixo carbono.

Os efeitos das mudanças climáticas sobre a economia não se restringem apenas ao crescimento.

Eles também são amplificadores de desigualdades, constituindo um motivo adicional —se não o mais importante— para que também no Brasil se pratique uma avaliação criteriosa de políticas que fortaleçam a preparação do país para as alterações climáticas.

Priorizar a educação exige mais investimentos, por Alves e Cardoso do Amaral

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País possui riqueza para aplicar 10% do PIB em ensino público de qualidade

Miriam Fábia Alves, Presidenta da ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação)

Nelson Cardoso do Amaral, Presidente da Fineduca (Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação)

Folha de São Paulo, 13/02/2024

No editorial “Educação a sério” (1º/2), esta Folha avaliou que a Conferência Nacional de Educação (Conae) “desperdiça tempo” e é pautada por “bandeiras demagógicas”.

O texto aponta o pedido de revogação do ensino médio como “revanchismo”. Em 2023, a ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) demonstrou em cinco seminários regionais e documento para o MEC resultados de pesquisas que indicam que o novo ensino médio amplia desigualdades, prejudica a formação humana pela redução de carga horária e retirada de disciplinas e se ampara em itinerários pouco claros e inexequíveis. Portanto, uma política frágil, com graves prejuízos aos estudantes, que não dá para ser remendada.

O editorial também cita o aumento doinvestimento em educação para 10% do PIB (Produto Interno Bruto) como “meta farsesca” e afirma que o dispêndio atual é compatível com o padrão global.

Vejamos: o Education at a Glance de 2023, da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), mostra que o Brasil investe bem menos que a média dos países-membros, segundo o Dólar por Poder de Paridade de Compra (US$-PPC), que permite a comparação. Em 2020, a média da OCDE foi de US$-PPC 11 mil contra US$-PPC 3.300 no Brasil —ou seja, 30% do montante aplicado nos “países desenvolvidos”.

A leitura atenta do documento-base da Conae 2024 evidencia de onde “sairiam tais recursos”. Além de novos impostos, o Brasil possui riqueza para aplicar 10% do PIB em educação pública, como já expôs a Fineduca (Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação) em nota técnica.

Além disso, medidas adotadas em “países desenvolvidos” mostram, por exemplo, que a Noruega mantém um fundo soberano com sua riqueza natural. E a Coreia do Sul saltou o investimento por aluno de US$ 151 para US$ 8.230 (1970 a 2018).

Já o argumento falacioso de que “a educação brasileira precisa antes de gestão do que de mais verbas” ignora a falta de recursos estruturais em milhares de escolas e condições mínimas de carreira a docentes e profissionais.

O editorial também cita metas não alcançadas do atual Plano Nacional de Educação (PNE), como matrículas em creches e oferta de escola em tempo integral, para justificar que o novo plano necessita de “metas mais palpáveis”.Com isso, ignora que o último decênio foi marcado pela lei do teto de gastos (que ceifou a viabilização de metas), pela pandemia e por um governo que de 2019 a 2022 trabalhou pelo desmonte da educação.

O que está em jogo na Conae é a construção de um projeto de país com propostas robustas e ambiciosas que coloquem a educação como protagonista no desenvolvimento social e político brasileiro, com justiça social, ambiental e equidade. Assim, o texto-base ao PNE 2024-2034 avança em aspectos como a transição ecológica e o desenvolvimento sustentável.

Contando que este texto subsidiará o projeto de lei do governo a ser apreciado por um Congresso Nacional conservador, é essencial que expresse tudo o que a sociedade brasileira de fato almeja e precisa para o desenvolvimento educacional e democrático do país.

A complexa luta dos agricultores europeus, por Sergio Ferrari

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Protestos espalham-se pelo continente e ultradireita tenta capturá-los. Mas eles rejeitam a concentração de riquezas, financeirização do campo e o endividamento – e querem mercados regulados e transição energética com apoio dos Estados

Sergio Ferrari – OUTRAS PALAVRAS – 05/02/2024

O protesto foi, particularmente, pronunciado na Alemanha e na França, embora também tenha havido grandes manifestações na Bélgica, na Romênia e na Polônia, bem como na Itália, começando pela Sicília, e se espalharam para o norte. Na terça-feira (30), manifestações ocorreram nos arredores de Milão. Quarta e quinta-feira em outras cidades. Para a segunda semana do mês, eles antecipam o “cerco de Roma”, ou seja, uma mobilização maciça de agricultores em direção à capital italiana. O conflito também pode se alastrar, no curtíssimo prazo, para a Espanha e para outros países do continente, nesta primeira quinzena do mês em que o campo volta a estar em pé de guerra em boa parte do continente.

Na segunda-feira (29), organizações do setor rural francês pediram o “cerco de Paris” e bloquearam oito pontos estratégicos de algumas das rodovias que dão acesso à capital. Segundo o jornal Le Monde, a rodovia A4 foi interditada ao início da tarde e em ambos os sentidos a cerca de 30 quilômetros a leste da capital. Os agricultores anunciaram que vão manter a greve até que o governo responda às suas reivindicações. O diário francês citou um dos promotores do protesto: “O cerco a Paris, uma ação simbólica… Tudo está organizado milimetricamente e não aceitaremos nenhum transbordamento. Sabemos quando começa, mas não sabemos quando vai acabar”. Com o passar da semana, a medida continuou e, inclusive, se ampliou.

Ao mesmo tempo em que várias das principais estradas da França estavam paralisadas, os protestos agrícolas voltavam com força para várias regiões da Alemanha, onde agricultores bloquearam estradas que levam a vários portos. Entre eles, o de Hamburgo, o mais importante do país, e o da Baixa Saxônia, o acesso a Jade-Weser-Port, perto da cidade de Wilhelmshaven.

Na quinta-feira, 1º de fevereiro, centenas de agricultores de diferentes países com seus tratores e meios de transporte se reuniram em frente à sede das instituições europeias em Bruxelas, em um dia de grande tensão, violência e total descontrole do trânsito da capital. Os manifestantes conseguiram ser atendidos pelas mais altas autoridades do continente preocupadas com a mobilização continental do campo, particularmente em ano eleitoral, já que, em junho próximo, haverá eleições para o Parlamento Europeu.

Guerra na Europa: os agricultores são os que perdem

Embora as causas da agitação camponesa europeia sejam múltiplas – algumas delas resultado de políticas especificamente nacionais –, um denominador comum que impacta a produção, a distribuição e a venda de produtos agrícolas é uma consequência direta da guerra na Ucrânia.

Como acaba de assinalar a BBC britânica: “O efeito dominó da guerra na Ucrânia provocou protestos em quase todos os cantos da Europa”.

Em resposta ao bloqueio das rotas comerciais através da região do Mar Negro, um resultado inevitável dessa guerra, a União Europeia (UE) levantou temporariamente as restrições às importações da Ucrânia. Mas, a medida significou que certos produtos agrícolas ucranianos inundaram os mercados da UE a preços muito mais baixos, principalmente para os vizinhos Hungria, Polônia e Romênia.

As regras do jogo dificilmente podem ser iguais: uma fazenda orgânica ucraniana média tem cerca de 1.000 hectares. Seus equivalentes europeus, apenas 41. Uma diferença significativa, que praticamente impede os agricultores da UE de poderem competir com a produção em grande escala e com os preços mais baixos dos produtos da Ucrânia. Após a abertura inicial ao mercado ucraniano, a UE não podia ignorar o descontentamento dos seus próprios Estados-membros nem evitar uma política inconsistente. Assim, e de forma mutável, houve aberturas comunitárias, fechamentos temporários e até, em alguns casos, decisões protecionistas nacionais por parte dos países mais afetados.

Por sua vez, os países do Leste Europeu exigem que a UE reveja definitivamente suas medidas de liberalização comercial com a Ucrânia. Na Romênia, por exemplo, agricultores e transportadores têm protestado contra o elevado preço do diesel, o aumento das taxas de seguro e as medidas de “mente aberta” da UE, bem como contra a concorrência desleal da Ucrânia. Em 24 de janeiro, seus colegas poloneses lançaram um protesto nacional contra as importações agrícolas do país devastado pela guerra. Um líder polonês do setor denunciou em poucas palavras o que constitui o principal problema: “O grão ucraniano deve ir para onde corresponde: para os mercados asiáticos ou africanos; não para a Europa”. Como resume a BBC, sentimentos semelhantes também existem na Eslováquia e na Hungria.

Em outros países da UE, como a Alemanha, a guerra russo-ucraniana teve impacto direto no aumento dos preços dos combustíveis. No caso específico do setor agropecuário, a crise foi agravada pela proposta do governo federal de suspender os subsídios ao diesel para o campo.

Os governos devem dar respostas

Para a Coordenação Europeia Via Campesina (CEVC), principal rede de pequenos e médios produtores agropecuários a nível internacional, a rejeição de acordos de livre comércio, bem como a exigência de rendimentos dignos, são as principais causas das recentes mobilizações dos agricultores na Europa.

Na Alemanha, na França, na Polônia, na Romênia e na Bélgica, entre outros países, “estamos vendo um número crescente de agricultores indo às ruas”, disse o CEVC, em um comunicado, em 25 de janeiro. E defendeu que “os baixos rendimentos e a falta de perspectivas de futuro para a grande maioria dos agricultores estão na origem deste descontentamento, que, em grande parte, está ligado às políticas neoliberais que a União Europeia tem seguido há décadas”. O CEVC também exige aos governos do continente que levem a sério os protestos atuais e mudem o rumo das políticas agrícolas e alimentares europeias: “É hora de pôr fim aos acordos de livre comércio e embarcar resolutamente no caminho para a soberania alimentar”.

A Comissão Europeia respondeu que, entre 2014 e 2023, face à crise no setor agropecuário, tomou 63 medidas excecionais a favor dos agricultores e dos criadores de gado, mas as organizações de pequenos e médios produtores consideram-nas insuficientes.

Os manifestantes exigem preços justos. O endividamento e o excesso de trabalho estão disparando, enquanto os rendimentos agrícolas só despencam. “Os nossos rendimentos dependem dos preços agrícolas e é inaceitável que estes estejam sujeitos à especulação financeira”, diz a Via Campesina Europa, que reclama políticas agrícolas “baseadas na regulação do mercado, com preços que cubram os custos de produção”.

E exige que seja definido um orçamento justo “que permita a redistribuição dos subsídios da Política Agrícola Comum (PAC) para apoiar a transição para um modelo agrícola capaz de enfrentar os desafios da crise climática e da biodiversidade”. Segundo a Via Campesina, é inaceitável que, na atual PAC, uma minoria de grandes empresas agrícolas receba centenas de milhares de euros em ajuda pública, enquanto a maioria dos agricultores europeus recebe pouco ou nenhuma ajuda.

A tendência dos últimos 15 anos é particularmente preocupante: entre 2005 e 2020, registou-se uma redução maciça de 37% do número de explorações agrícolas na União Europeia, especialmente entre as fazendas menores.

Já em 2022, o estudo O Futuro do Modelo Econômico Europeu, elaborado por iniciativa do Parlamento Europeu, antecipava que em 2040 haveria quase três vezes menos fazendas agrícolas na União Europeia. Ou seja, um prejuízo de US$ 6,4 milhões – de US$ 10,3 milhões em 2016 para US$ 3,9 milhões. As principais vítimas dessa extinção em massa são e serão as pequenas unidades de produção com menos de 4 hectares, especialmente nos novos Estados-Membros da Europa Oriental e Meridional. A produção está cada vez mais concentrada em grandes estruturas de produção intensiva.

Contra o Tratado Europa-Mercosul

Em sua reflexão no final de janeiro, a Via Campesina Europa incorpora dois elementos analíticos para compreender, a partir de sua perspectiva, a tensão particular vivida pelos pequenos e médios produtores rurais do continente, bem como suas demandas atuais.

Por um lado, a VCE exige o cancelamento imediato das negociações do Acordo de Livre Comércio (TLC) com os países do Mercosul, bem como uma moratória sobre todos os outros TLCs em andamento por considerar que eles ameaçam pequenos e médios produtores, tanto europeus quanto dos países do Sul. “Os agricultores europeus precisam de respostas reais para os seus problemas, não de fumaça e de espelhos”, enfatiza a Via Campesina.

Por outro lado, pede a desarticulação das tentativas da “extrema direita de explorar e usar essa raiva [dos movimentos rurais] e as mobilizações atuais para impulsionar sua própria agenda, que inclui a negação das mudanças climáticas, propondo padrões ambientais mais baixos e a culpabilização dos trabalhadores imigrantes nas zonas rurais”. Nenhuma dessas posições coincide com os interesses dos agricultores ou contribui para melhorar suas perspectivas futuras, acrescenta a Via Campesina.

A Coordenação dessa organização aprofunda a sua leitura da realidade agrária continental: “Negar a realidade da crise climática poderia aprisionar os agricultores numa sucessão de desastres cada vez mais intensos, desde ondas de calor e secas até inundações e tempestades”. A CVCE defende que é preciso tomar medidas – e os agricultores estão dispostos a fazer as mudanças necessárias – para abordar as questões ambientais, climáticas e alimentares. No entanto, essa mudança de direção “não será possível enquanto formos forçados a produzir a preços baixos em um mercado globalizado e desregulado”.

Ao mesmo tempo, defende que, hoje, os trabalhadores migrantes desempenham um papel fundamental tanto na produção agrícola como na indústria agroalimentar: “Sem estes trabalhadores, nós, na Europa, teríamos falta de mão de obra para produzir e processar alimentos. Seus direitos devem ser plenamente respeitados”.

E conclui exigindo “aos responsáveis políticos do continente que ajam rapidamente para responder à raiva e às preocupações dos agricultores. Precisamos de uma mudança real na política agrícola que coloque os agricultores no centro da formulação de políticas e nos dê perspectivas para o futuro”.

O sector agrícola está ameaçado pela dinâmica estrutural vigente, como demonstrou o estudo encomendado pelo Parlamento Europeu; daí a urgência de que as reformulações a ser feitas sejam de fundo e decisivas; essencialmente, para evitar a todo o custo que a hemorragia agrícola se torne um bumerangue contra o esforço a favor da autossuficiência e da soberania alimentar europeia.

Política industrial de volta à cena, por Ana Paula Avellar

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Plena execução exigirá amadurecimento institucional, diálogo e liderança

Ana Paula Avellar, Professora titular do Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

Folha de São Paulo, 12/12/2024

Em 22 de janeiro último, o governo federal anunciou a política industrial “Nova Indústria Brasil “ (NIB), constituída por seis missões, que englobam os seguintes temas: cadeias agroindustriais, saúde, bem-estar nas cidades, transformação digital, bioeconomia, descarbonização, transição e segurança energéticas e defesa. A iniciativa prevê R$ 300 bilhões para a custear até 2026, entre financiamento com recursos orçamentários do BNDES e desembolsos do FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da Finep (Financiadora de Estudos e projetos).

Ao relembrar as últimas políticas industriais do Brasil – a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (2003-2007), a Política de Desenvolvimento Produtivo (2008-2010), o Plano Brasil Maior (2011-2014) e o Programa Inova Empresa (2011)—, observa-se que há praticamente dez anos não se executa política industrial. Essa opção pela “não política industrial” aprofundou o processo de desindustrialização, de queda da produtividade e da inovação industrial.

Ponto positivo para o governo, que colocou a política industrial de volta ao debate e em sintonia com a prática de países como EUA, membros da União Europeia e China.

Ainda que algumas críticas considerem que a proposta seja um conjunto “requentado” de experiências passadas, é possível observar pontos de pioneirismo.

O conjunto de princípios da NIB é inédito e ultrapassa os aspectos relacionados ao desenvolvimento produtivo e tecnológico ao preocupar-se com o aumento da produtividade e competividade e ter orientação voltada à melhor inserção internacional da indústria —distante, portanto, da velha lógica de substituição de importações.

O conjunto de princípios ainda se orienta por elementos relacionados ao desenvolvimento econômico, como a busca pela equidade de gênero, cor e etnia, a redução das desigualdades e a inclusão socioeconômica, a distribuição regional, a promoção do trabalho com qualidade e a sustentabilidade.

O recorte por missões é inovador e se apresenta com uma concepção moderna ao dialogar com experiências internacionais. O formato orientado por missões, proposto por Mariana Mazzucato, da University College London, estrutura-se por objetivos a serem alcançados, que definem a forma como as ações da política se efetivarão. Muda-se, assim, o eixo lógico do plano dos antigos recortes por setores industriais ou mesmo de empresas “campeãs nacionais”.

Ademais, alguns temas que compõem as missões merecem destaque pela atualidade e pela relevância no debate mundial, como os relacionados às cadeias agroindustriais sustentáveis, ao bem-estar nas cidades inteligentes, à transformação digital e à transição energética.

Ainda que críticos afirmem que os instrumentos são os mesmos “de sempre”, como incentivos fiscais e créditos subsidiados, o menu disponível é mais abrangente e conta com instrumentos que são comumente (e historicamente) utilizados no mundo, como empréstimos, créditos tributários, compras públicas, conteúdo local, margem de preferência, infraestrutura de qualidade e regulação.

Dado seu complexo desenho institucional, será essencial que haja uma boa coordenação das ações com escolha das prioridades e sua distribuição ao longo do tempo. Dada a forma democrática como foi construída e institucionalizada pelo CNDI (Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial), a plena execução da NIB exigirá amadurecimento institucional, manutenção do diálogo entre as esferas envolvidas e liderança para o enfrentamento das adversidades. Conforme afirma Dani Rodrik, da Universidade Harvard (EUA), o sucesso da política industrial depende de um ambiente institucional forte e de decisões tomadas com transparência.

É eminente a necessidade de um constante monitoramento dessa nova experiência para que sejam possíveis correções em curso. Desse modo, será fortalecida a capacidade de execução bem como de atuação das instituições participantes.

Com novos desafios e pioneirismo, a NIB traz novamente luz ao debate sobre o papel da indústria e a construção de uma estratégia de desenvolvimento econômico sustentável para o país.

Ensino sem celular, por Editorial FSP.

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Aumenta a restrição aos aparelhos em escolas, mas deve-se evitar radicalismo

Editorial Folha de São Paulo – 11/02/2024

Cresce o número de países, cidades e escolas que estão restringindo, ou até proibindo, a utilização de telefones celulares por alunos.

Relatório da Unesco, publicado em julho do ano passado, mostra que esses aparelhos podem prejudicar o aprendizado. O impacto negativo mais óbvio é a distração —jogos e redes sociais são mais atraentes do que aulas expositivas.

Segundo o Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes (Pisa), 65% dos alunos de 15 anos nos países pesquisados em 2023 disseram que se distraem nas aulas de matemática com o celular; no Brasil, a média atinge 80%.

Mas não só. Mesmo quando o apetrecho fica na mochila, o toque da mensagem que o aluno não poderá conferir tende a deixá-lo ansioso, numa reação similar à síndrome de abstinência de drogas.

Até tecnologias supostamente mais benignas, como e-readers, que servem quase exclusivamente para ler livros e textos, apresentam problemas. Estudos mostram que a leitura em tela gera menos retenção do que em papel.

Com base nessas evidências, um em cada quatro países monitorados pela Unesco —como Espanha, Portugal, Finlândia, Holanda, Suíça e México— já baniu ou restringiu o uso de celulares e tablets.

No Brasil não há norma federal sobre o tema, mas, no Rio de Janeiro, a prefeitura proibiu celulares nas escolas da rede até durante o recreio. E não são poucos os colégios particulares em todo o país que caminham na mesma direção.

Contudo, se há razoável consenso de que a utilização de celulares e tablets em instituições de ensino deve ser restringida, a forma de fazê-lo permanece em aberto.

É apenas por tentativa e erro que se chegará a protocolos adequados, que não serão os mesmos em contextos diversos. O nível de restrição depende muito da faixa etária, por exemplo, e é preciso cuidado para não pecar por radicalismo.

A chamada educação midiática é fundamental, principalmente em tempos de desinformação e bullying virtual. O celular pode ser usado de forma guiada para que os alunos aprendam como obter aquilo que a internet tem de melhor e se protejam daquilo que nela há de pior.

Anatomia golpista remete à Comissão da Verdade, por Marcos Augusto Gonçalves

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Insatisfação militar com apurações e voto de Bolsonaro no impeachment prenunciavam golpismo

Marcos Augusto Gonçalves, Editor da Ilustríssima, formado em administração de empresas com mestrado em comunicação pela UFRJ. Foi editor de Opinião da Folha.

Folha de São Paulo, 09/02/2024

Os primeiros sinais mais enfáticos de politização e insatisfação de setores das Forças Armadas, em especial do Exército, começaram a ser notados após a instalarão da Comissão da Verdade durante o governo de Dilma Rousseff.

No dia 16 de maio de 2012, com a presença dos ex-presidentes José Sarney, Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, uma cerimônia no Palácio do Planalto, presidida pela então presidente, que tinha um passado de militância em organização de esquerda da luta armada, deu início aos trabalhos, embasados em lei aprovada no ano anterior.

Tratava-se, nas palavras de Dilma, de reconhecer que “o Brasil merece a verdade, as novas gerações merecem a verdade e, sobretudo, merecem a verdade factual aqueles que perderam amigos e parentes e que continuam sofrendo”. O principal objetivo seria apurar episódios de desaparecimento de mais de uma centena de opositores da ditadura, sem registro de prisão, que teriam sido sequestrados por agentes da repressão.

Em que pesem as ressalvas de que não haveria ódio ou revanchismo, a comissão, que apresentou relatório em 2014, foi muito mal recebida por militares, que viam na iniciativa a quebra de um pacto estabelecido em torno da anistia.

A contrariedade com as apurações e com as pressões que se avolumavam para levar militares a julgamento espalhou-se e chegou à cólera, notadamente entre os mais radicais, ligados aos chamados porões da ditadura, os subterrâneos da tortura e da eliminação de oponentes.
Na votação do impeachment, ao se formalizar a conspiração que derrotou e depôs a petista, as manifestações de exasperação eram gritantes.

A mais escabrosa veio no voto contra Dilma proferido pelo então deputado Jair Bolsonaro, ex-militar afastado da caserna: “Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve. Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff. Pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim”.

A saudação ao notório torturador e demais considerações eram uma síntese do projeto de governo do futuro presidente. Antes de chegar ao poder, porém, o maior beneficiário da deposição da mandatária, Michel Temer, deu vazão à movimentação militar ao nomear um general para o Ministério da Defesa pela primeira vez desde que a pasta fora criada por Fernando Henrique Cardoso, em 1999 –além de banalizar as requisições das Forças Armadas para operações de segurança.

Na esteira dos abusos cometidos pela Lava Jato, que culminaram na prisão sem solidez jurídica de Lula, veio um novo anúncio do ânimo intervencionista. Por ocasião do julgamento de um pedido de habeas corpus da defesa do ex-presidente ao STF, no início de abril de 2018, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, foi ao Twitter proferir uma ameaça – que de velada de fato nada tinha – às instituições, caso os ministros do tribunal concedessem o pedido.

Ao vencer o pleito, Bolsonaro, como se sabe, entulhou o governo de militares, com direito a general da ativa até na Saúde, cooptou instituições policiais, manipulou a Abin, confrontou o sistema eleitoral, ameaçou o Supremo e tentou articular um golpe de Estado, como agora novas evidências vão reiterando.

Muitos anos (quase oito completos) e muitos panos se passaram desde que o populista celerado da ultradireita anunciou suas intenções na votação do impeachment. Só não viu quem não quis. Felizmente, a democracia venceu.

As Forças Armadas e a preservação das corporações, por Manuel Domingos

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Elas podem aceitar a queda de alguns generais, para conservar a capacidade de interferir na vida política do país, e uma concepção de Defesa voltada contra o “inimigo interno”. Mas Augusto Heleno, Braga Netto e Bolsonaro aceitarão o sacrifício?

Manuel Domingos – OUTRAS PALAVRAS – 09/02/2024

As operações de busca e apreensão na residência de generais próximos de Bolsonaro e a prisão de dois oficiais superiores deixou confiantes os que prezam a democracia. Quem grita, “sem anistia”, sentiu-se contemplado. Muitos salientaram tratar-se de momento histórico sem precedentes e aplaudem a coragem do ministro Alexandre de Moraes. A maioria aceita a ideia de que a democracia venceu. Nestes tempos obscuros, é bom demais ter algo de relevante a comemorar.

Mas, caberia pensar… ao acatar decisões judiciais desta monta, as corporações, profundamente envolvidas em manobras antidemocráticas nos últimos anos, não passam a falsa noção de que, repentinamente, em lance histórico inédito, assumem seriamente a institucionalidade do jogo democrático?

Uma ação da Justiça, por contundente que seja, teria o condão de alterar a velha tendência castrense de interferir no jogo político?

Mais sensato seria imaginar que a postura dos comandantes revela a satisfação diante da prevalência dos desígnios das fileiras.

O atual governo não mostrou disposição para alterar as orientações da Defesa Nacional e, consequentemente, reformar instituições militares ineptas para dizer não ao estrangeiro hostil e aptas ao controle da sociedade.

O militar continua pautando o governo em matéria de Defesa. O ministro José Múcio assume com todas as letras sua condição de “representante” das Forças, abdicando da condição de integrante da corrente política sufragada nas urnas.

Como se sabe, a condução da política de Defesa guarda implicações diretas com os mais variados domínios da atuação do Estado, em particular com as relações externas, a Segurança Pública, o desenvolvimento técnico- científico e industrial. A política de Defesa é uma peça-chave da
integração sul-americana. Ao ditar a política de Defesa o militar se imiscui como quer nas entranhas do Estado e da sociedade. Em outras palavras, persiste exercendo a tutela configurada ao longo do regime republicano.

O atual governo assegura a continuidade de práticas corporativas ancestrais que garantem a priorização do combate ao “inimigo interno” em detrimento da capacidade de dizer não ao potencial agressor estrangeiro. O Brasil continua sustentando extensas fileiras terrestres e evitando priorizar sua capacidade aeronaval; persiste sem instrumentos de força para respaldar decisões soberanas em política externa. As Forças Armadas brasileiras continuam integrando oficiosamente o vasto esquema militar comandado pelo Pentágono.

Vitoriosos no embate político principal, os comandos militares acatam o sacrifício de alguns dos seus em troca da preservação da capacidade de ingerir nos negócios públicos e na vida social.

Hoje, em essência, ao tempo em que a institucionalidade democrática mostra vigor, foi dado um passo importante para conter a corrosão da imagem das Forças Armadas. Talvez seja esse o significado mais relevante da operação comandada pelo Polícia Federal: o acatamento da decisão judicial ocorre como ato de proteção corporativa.

Os comandantes sabiam da impossibilidade de sair incólumes depois da aventura em que se meteram ao apadrinhar Bolsonaro e respaldar seus desmandos. Afinal, atuaram em favor da prisão de Lula e confraternizaram com baderneiros reunidos diante dos quartéis. Em sua trágica aventura, envolveram o conjunto das corporações.

O preço a pagar pela preservação das instituições militares seria o sacrifício de alguns camaradas, os mais notoriamente associados ao ex-presidente.

Mas nada garante que o jogo de cena em curso se desenvolva de forma exitosa. Os oficiais hoje investigados se comportarão altivamente na defesa de suas corporações? Aceitarão ser punidos solitariamente preservando a imagem das fileiras?

Eis uma hipótese remota, se considerarmos a conduta do coronel Mauro Cid, que forneceu elementos preciosos aos investigadores. Difícil imaginar homens arrogantes e truculentos, como os generais Augusto Heleno e Braga Netto resignando-se ao cárcere. Mais fácil é imaginá-los atirando, inclusive em seus desafetos fardados. A caserna cultiva camaradagem e desafeições.

Quanto ao ex-presidente, pior ainda. Quem aposta no padrão moral de Bolsonaro? Na cadeia, esse homem, com arrobas de crimes nas costas, poderá bater com a língua nos dentes e desmontar o imaginário coletivo tão cultivado pelas fileiras. Não seria surpresa caso seja silenciado.

Qualquer que seja o rumo dos acontecimentos, o fato é que estamos longe do final de um triste e trágico capítulo da história brasileira.

Que mundo estamos criando? por José Domingos Godoi Filho

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José Domingos de Godói Filho – A Terra é Redonda, 08/02/2024

O mundo chegou a uma situação sem volta, com a sociedade humana contaminada pelo apartheid, a guetificação e o extermínio

“Em minha parede há uma escultura de madeira japonesa \ Máscara de um demônio mau, coberta de esmalte dourado. \ Compreensivo observo \ As veias dilatadas da fronte, indicando \ Como é cansativo ser mau”

(Bertolt Brecht, A máscara do mal).

Guerra contra a vida é a herança que 2023 deixou para 2024. Pode-se avaliar que o mundo chegou a uma situação sem volta, com a sociedade humana contaminada pelo apartheid, a guetificação e o extermínio. Guerra contra a natureza, apesar das alterações climáticas, das COP, da transição energética global, das dimensões da exploração dos recursos naturais e da mercantilização da natureza em nome da “economia verde” e demais propostas de “greenwashing”.

A herança mais aterrorizadora é o genocídio, mostrado em tempo real, em Gaza, repetindo o que foi denunciado por Edgar Morin,1 em 2002, como “Israél-Palestine: le Câncer”: “Os judeus de Israel, descendentes das vítimas de um apartheid denominado ghetto, guetificam os palestinos. Os judeus que foram humilhados, desprezados, perseguidos, humilham, desprezam e perseguem os palestinos. Os judeus, que foram vítimas de uma ordem impiedosa, impõem sua ordem impiedosa aos palestinos. Os judeus, vítimas da desumanidade, mostram uma terrível desumanidade.”

Na Faixa de Gaza está ocorrendo um dos piores crimes deste século, um genocídio generalizado (sem com isso isentar crimes cometidos pelo Hamas) que já atingiu, até o final de janeiro 2024, cerca de 25 mil mortes na Palestina, das quais mais de 8600 crianças,310 profissionais de saúde, 35 funcionários da defesa civil ,97 jornalistas e, aproximadamente 2 milhões de pessoas deslocadas, segundo dados levantados pela BBC Verify(2) e considerados confiáveis pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Somam-se, escondidos ou pouco informados pela “grande mídia”, dentre outros, os massacres que ocorrem na África (Sudão e Sudão do Sul, Nigéria, Ruanda, Mali, Burundi, República Democrática do Congo e Angola); o apoio dado pelos Estados Unidos e seus aliados ao genocídio em Gaza; o financiamento do governo neonazista da Ucrânia para provocar a Rússia; as escaramuças com o Hezbollah na fronteira com o Líbano; os ataques dos Houthis do Iêmen contra navios militares americanos no Mar Vermelho; os bombardeios no enclave separatista Nagorno-Karabakh , que significou o rompimento do cessar-fogo entre a Armênia e Azerbaijão complicando o complexo jogo de interesses geopolíticos no Cáucaso, além de colocar sob risco humanitário a população civil de Karabakh, controlada pelo Azerbaijão.

No final de 2023, ficou registrado o maior número de conflitos armados desde o final da Segunda Guerra Mundial. E, inquestionavelmente, como herança, também ficou evidenciada a farsa das potências ocidentais, especialmente dos Estados Unidos e seus aliados para atender os seus interesses e não o de construir a paz.

A hipocrisia e a fraudulência desses países, frente ao cenário de beligerância mundial, atingiram níveis sem precedentes de perda de credibilidade; comprometendo gravemente os princípios do direito internacional, o respeito aos direitos humanos e à ordem mundial.

No texto 1984, George Orwell, que merece ser reproduzido, retrata bem a conjuntura dos conflitos atuais e permite refletir sobre a necessidade de resistir e alterar a herança deixada pelo ano de 2023: “O poder reside em infligir dor e humilhação. O poder está em despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender. Começas a distinguir que tipo de mundo estamos criando? É exatamente o contrário das utopias hedonísticas que os antigos reformadores imaginavam. Um mundo de medo, traição e tormento, um mundo que se tornará cada vez mais impiedoso, à medida que se refina. O progresso em nosso mundo será o progresso no sentido de maior dor. As velhas civilizações proclamavam-se fundadas no amor ou na justiça. A nossa funda-se no ódio. Em nosso mundo não haverá outras emoções além do medo, fúria, triunfo e auto degradação. Destruiremos tudo mais – tudo… Não haverá amor, exceto amor ao Grande Irmão. Não haverá riso, exceto riso de vitória sobre o inimigo derrotado. Não haverá nem arte, nem literatura, nem ciência. Quando formos onipotentes, não teremos mais necessidade de ciência. Não haverá mais distinção entre beleza e feiura. Não haverá curiosidade, nem fruição do processo de vida……Se queres uma imagem do futuro, pensa numa bota pisando um rosto humano – para sempre”.3

A parcialidade da “grande mídia”, inclusive no Brasil, extrapola a veiculação da notícia, se comportando de modo parcial e tendencioso aos interesses dos Estados Unidos e de seus aliados e asseclas. Assim, temos, entre nós, “um Grande Irmão que nos vigia, que vela por nós. Dia a dia, ao ligarmos a televisão (precursora das teletelas?), ao lermos os jornais, ao nos conectarmos com a internet, percebemos a ação de um invisível Ministério da Verdade que acaba por nos convencer de que guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força.4

Samuel Huntington5, no seu instigante Choque das civilizações, apresentou uma premonitória “interpretação da evolução da política mundial depois da Guerra fria” que auxilia na compreensão da política mundial no século atual. Questionou, “se as melhorias no nível material de civilização em todo mundo, foi acompanhada da melhora das dimensões moral e cultural de civilização?”

Analisando os anos 90, do século passado, indicou existirem muitos indícios “da relevância do paradigma do ‘puro caos’ dos assuntos mundiais: uma quebra no mundo inteiro da lei e da ordem, Estados fracassados e anarquia crescente em muitas partes do mundo, uma onda global de criminalidade, máfias transnacionais e cartéis de drogas, crescente número de viciados em drogas em muitas sociedades, um debilitamento generalizado da família, um declínio na confiança e na solidariedade social em muitos países, violência étnica, religiosa e civilizacional e a lei do revolver predominam em grande parte do mundo. Numa cidade atrás da outra – Moscou, Rio de Janeiro, Bangcoc, Xangai, Londres, Roma, Varsóvia, Tóquio, Johannesburgo, Délhi, Karachi, Cairo, Bogotá, Washington –, a criminalidade parece estar subindo vertiginosamente, e os elementos básicos da Civilização estão se esvanecendo”.

E concluiu: “A ascensão das corporações transnacionais que produzem bens econômicos está cada vez mais sendo igualada pela ascensão de máfias criminosas transnacionais, cartéis de drogas e gangues terroristas que estão atacando violentamente a Civilização. A lei e a ordem são o primeiro pré-requisito da Civilização e em grande parte do mundo – na África, na América Latina, na antiga União Soviética, na Ásia Meridional, no Oriente Médio – elas parecem estar evaporando, estando sob séria ameaça na China, no Japão e no Ocidente. Numa base mundial parece, em muitos aspectos, estar cedendo diante da barbárie, gerando a imagem de um fenômeno sem precedente, uma idade das trevas mundial, que se abate sobre a humanidade”.

Os organizadores do Fórum Econômico de Davos-2024, implicitamente se alinharam às análises de Huntington, ao avaliarem que a herança de 2023 mostra a “fragilidade do estado de paz, segurança e cooperação globais”. Apontaram que “o aumento da divisão, o aumento da hostilidade e o aumento dos conflitos estão criando um cenário global desafiador. Que a humanidade está lidando com várias questões simultaneamente, incluindo como revigorar as economias, responder à ameaça das mudanças climáticas e garantir que a Inteligência Artificial seja usada como uma força para o bem. Os conflitos e a sua superação estão esgotando a energia humana, que, de outra forma, poderia ser canalizada para moldar um futuro mais otimista”.

O Fórum Econômico concordou que “a atual onda de pessimismo é sem precedentes”. E faz um alerta para a mídia global: – “o poder e a presença da mídia global e da tecnologia de comunicação hoje significam que cada desafio e retrocesso é amplificado, ampliando ainda a sensação de desgraça e melancolia.”

E conclui os organizadores do Fórum Econômico: – “é primordial reconstruir a confiança no nosso futuro. A questão é por onde começar, dadas as circunstâncias complexas de hoje…. Devemos primeiro identificar e abordar as causas profundas do nosso mal-estar. Estamos em um momento crucial da história, mas ainda apegamos a soluções ultrapassadas. Para complicar, estamos lidando com muitas questões simultaneamente, todas profundamente interconectadas e que se reforçam mutuamente. Não há solução rápida ou solução única. Trata-se de abordar todos os sintomas de forma holística.”

Resistir é preciso, para vencer a herança pessimista deixada ao final de 2023. E, Ortega y Gasset6 pode auxiliar com suas reflexões: “É natural: a vida se fez ela mesma equívoca e são tempos de inautenticidade. Recorde-se que a origem da crise é precisamente haver-se o homem perdido porque perdeu contato consigo mesmo. Daí que pulule em tais épocas uma fauna humana sumamente equívoca e abundem os farsantes, os histriões; e, o que é mais doloroso, que não se possa estar certo de se um homem é ou não sincero. São tempos turvos”.

Ao mesmo tempo assinala que: “Todo o extremismo fracassa inevitavelmente, porque consiste em excluir, em negar – menos um ponto – todo o resto da realidade vital. Mas esse resto, volta, volta sempre e impõe-se nos, queiramos ou não. A história de todo o extremismo é de uma monotonia verdadeiramente triste: consiste em ter de ir pactuando com tudo o que havia pretendido eliminar… Qual é a perspectiva em que o homem sói viver? Faz um momento, como em todos os momentos de todos os dias, inexoravelmente, encontraram-se os senhores com que tinham de fazer algo de fazer algo, porque isso é viver. Ante os senhores se abriam diversas possibilidades de fazer, portanto, de ser no futuro”.

Retomando 1984, de George Orwell, “é impossível fundar uma civilização sobre medo, ódio e crueldade. Nunca poderia durar… Não teria vitalidade. Desintegrar-se-ia. Suicidar-se-ia”.

Para não deixar que o cenário pessimista saia vencedor, que a resistência sobreviva e fortaleça a generosidade humana, uma provocação, a partir de uma das mais belas fábulas de Giono,7 para queo difícil caminho de “por onde começar” seja encontrado o mais breve possível: “Quando considero que um único homem, reduzido a seus meros recursos físicos e morais, foi capaz de transformar um deserto em uma terra de Canaã, penso que, apesar de tudo, a condição humana é admirável. Mas quando faço a conta de quanta constância na grandeza de alma e de persistência na generosidade foram necessárias para obter esse resultado…”.

Resistir é imprescindível.

*José Domingues de Godoi Filho é professor da Faculdade de Geociências da UFMT.

(1) Morin, E. Israel-Palestina:câncer.

(2) Thomas, M. 20 mil mortos em Gaza: o que número de vítimas revela sobre o conflito.

(3) Orwel, G. 1984. São Paulo: Ed. Nacional, 1984.

(4) More, T. Utopia, Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

(5) Huntington, S. P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 1997.

(¨6) Ortega y Gasset, J. Em torno a Galileu. Petrópolis: Ed. Vozes,1989.

(7) Giono, J. O homem que plantava árvores. São Paulo: Ed. 34, 2018.