Milagre asiático

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A economia internacional passou por grandes processos de integração, de interdependência e de uma forte competição entre os atores econômicos e produtivos, gerando oportunidades crescentes, novos mercados, novos hábitos, novas culturas e novos comportamentos, todos motivados pelo incremento da globalização da economia.

Neste período de fortes transformações econômicas e produtivas em curso na sociedade mundial, com países perdendo espaço na estrutura global, onde nações que dominavam o cenário internacional estão se fragilizando e o surgimento de novas potências hegemônicas, motivando novos modelos de negócios e novas estratégias de desenvolvimento. Neste cenário, faz-se necessário, destacar o milagre asiático, cujo modelo de crescimento econômico e desenvolvimento tirou mais de 1 bilhão de pessoas da miséria em 20 anos, um verdadeiro milagre.

A Revolução Industrial impulsionou a renda per capital global, aumentou a riqueza das nações e reduziu a pobreza e a miséria, mesmo assim, uma parcela significativa da população mundial continuava a viver na miséria e na indignidade. Nos últimos 30 anos, embora muitos não perceberam, a pobreza extrema passou por uma redução extraordinária no mundo, sendo que grande parte deste resultado positivo se deve ao desempenho asiático, região que concentra 60% dos habitantes e cerca de 40% do PIB global.

Ao destacarmos a experiência asiática na redução da pobreza, as pessoas pensam rapidamente na ascensão da China, do Japão e da Índia, essas nações apresentaram grandes avanços nos últimos 30 anos, mas devemos destacar ainda os exemplos de Bangladesh, a Indonésia e Vietnã, países que reduziram fortemente a pobreza e a indigência, criando novas formas de crescimento econômico, melhorando os ambientes de negócios, aumentando os investimentos em capital humano, despejando recursos em pesquisa, ciência e tecnologia e, com isso, reduzindo a miséria que assolava grande parte destas nações.

Dados de agências especializadas nos mostram indicadores excepcionais, no período entre 1982 e 2011, a Ásia Meridional teve um crescimento econômico médio de 5,6%, ultrapassando todas as regiões do mundo, desta forma, o crescimento impulsionou a geração de riquezas, aumentando investimentos produtivos e maiores oportunidades econômicas.

A ascensão asiática pode servir como exemplo para todas as regiões, a redução da pobreza está ligada aos novos contornos econômicos e produtivos da economia chinesa, cuja expansão impulsionou outras nações, com incremento do comércio, novos modelos de negócios e novos investimentos que contribuíram para a construção de uma classe média, dotada de recursos monetários para alavancar os setores econômicos internos, reduzindo a dependência externo e angariando novos espaços no comércio internacional.

O crescimento econômico contribuiu ativamente para a melhora das condições de vida da população asiática e contribuiu para a criação de uma economia pujante e diversificada, além de gerar emprego e crescimento da renda, alavancando o desenvolvimento humano, permitindo que as pessoas cuidem melhor de sua saúde, comam melhor e possam viver mais, melhorando o bem-estar de toda a comunidade. Passou da hora de buscarmos novos modelos, novos exemplos e novos significados para o desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário,

Clara Mattei: Brasil precisa de outro rumo

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Economista que estudou a fundo a relação entre ajustes fiscais e fascismo adverte, na edição brasileira de seu livro: “arcabouço” de Haddad é “vergonhosamente austero” e compromete o futuro, ao fazer concessões tolas ao mercado

Clara Mattei e Mariella Pittari – Outras Palavras, 30/01/2024

É uma verdadeira conquista ver A ordem do capital publicado em português. Afinal, ainda que narre algo que teve lugar na Europa de um século atrás, seguindo uma linha que revisita e revê os fundamentos da economia a fim de relacionar os efeitos das políticas econômicas de austeridade do início do século XX à ascensão do fascismo, neste livro há elementos analíticos que podem contribuir para compreender a natureza e a lógica da austeridade no Brasil atual. Não obstante se concentre nas relações de classe em contextos europeus nos quais a austeridade foi usada como instrumento político para esmagar as reivindicações de democracia econômica, transporta essa dinâmica à compreensão de como as relações de classe foram forjadas em países cujo histórico é de escravidão e colonialismo. Entender as relações de classe da Europa do século XIX serve para calibrar como o discurso da austeridade vem acompanhado de uma pauta argumentativa que cancela o aspecto de classe das políticas adotadas, como se estas atingissem a todos de maneira equânime.

Os eventos ocorridos entre Europa ocidental e Norte global no início do século passado reverberaram no eixo centro-periferia e orientaram como os subalternos pautariam a própria política. Economistas do Sul global buscaram validação nas vertentes econômicas que disseminaram a austeridade e assumiriam os contornos neoliberais que testemunhamos hoje.

Outra chave que a história nos ensina consiste na inseparabilidade da austeridade fiscal e monetária, por meio do comprometimento orçamentário com o constante aumento das taxas de juros, afetando diretamente o mundo do trabalho. A escassez de crédito em razão da política rentista de juros altos faz que o trabalhador seja impactado em duas frentes: de um lado, pela redução do emprego e, por conseguinte, pela sujeição ao trabalho precarizado; de outro, por uma política salarial baixa que comprime o poder de compra entre as inúmeras necessidades a serem satisfeitas no vácuo deixado pela ausência do serviço público. Não por outra razão, uma das primeiras medidas recentes na implementação da austeridade no Brasil consistiu em eliminar leis trabalhistas.

Também as privatizações para atrair investidores nas famigeradas parcerias público-privadas, acompanhadas da desregulamentação do mercado, desempenham um papel fundamental na dinâmica da austeridade. Boa parte do discurso gira em torno de justificar a redução dos gastos públicos ao comprometer o orçamento com o pagamento dos juros e amortização da dívida. Tal ideia, ainda que equivocada, permitiu, como veremos, que a autoridade máxima no Banco Central se tornasse imune à política de juros sugerida pelo chefe do Executivo. Após a promulgação da Lei complementar n. 179, de 2019, as necessidades orçamentárias do presidente da República são completamente irrelevantes para o presidente do Banco Central, uma vez que seu mandato é dotado de garantias a exigir um dificultoso processo de exoneração, dependente da maioria absoluta do Senado. O aprofundamento da austeridade alcançada por diversos estratagemas durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro, sob o disfarce de conferir plena autonomia ao Banco Central, retirou do poder político as alianças, tão caras à construção de um programa orçamentário harmônico e consentâneo, com as indispensáveis políticas sociais de um país de modernidade tardia. Dado o presente cenário, vale ressaltar que o Brasil já conta com a maior taxa de juro real do mundo, superando países que agonizam com a inflação, como a Argentina. Ao mesmo tempo, o comprometimento do PIB brasileiro com a dívida pública é inferior ao de países desenvolvidos, de maneira a inviabilizar o argumento de que o país deve reduzir gastos, de que o país gasta descontroladamente.

Enquanto a Itália, objeto central de estudo desta obra, apresenta uma relação entre o PIB e a dívida pública que supera os 150%, a proporção do Brasil é inferior a 80%. Países como o Japão e a Grécia superam os 200%, e os Estados Unidos atingem 120%. Portanto, o argumento de que o Brasil não possui alternativa senão implementar políticas de austeridade não se sustenta. O ponto nodal do orçamento nacional reside no importe destinado ao pagamento dos juros da dívida pública, injustificável e propagador das mazelas sociais das quais o país padece.

O ano 2022 encerrou-se com a aprovação de uma emenda de transição do então futuro governo Lula, a Emenda constitucional n. 126, que ampliou o orçamento público para permitir que despesas correntes na ordem de R$ 145 bilhões não fossem limitadas ao teto de gastos. A emenda também balizou outro teto de gastos, que viria a se chamar “novo arcabouço fiscal”. As balizas estabelecidas pelas novas regras mostraram-se tímidas, senão covardes, sobretudo em abolir o nefasto teto de gastos estabelecido pela Emenda constitucional n. 95/2016, impedindo o país de austeridade que ignora a facção política que ocupa o poder. O regime de austeridade, apesar de não alcançar os resultados de estabilização econômica almejados, não falha em atingir seu verdadeiro intuito: assegurar que a tríade de políticas fiscais, políticas monetárias e erosão da capacidade da classe trabalhadora de reagir a elas silenciem a dissidência.

Ademais, por compor o Sul global, o Brasil é mais suscetível às pressões das elites internas e globais. Portanto, a imposição de medidas de austeridade pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para a concessão de empréstimos internacionais não foi acaso. A ingerência do FMI a afetar diretamente assuntos ínsitos à soberania do país culminou na aprovação da lei de responsabilidade fiscal, em 2000, como parte de uma pauta de “recomendações” que asseguraria o pagamento da dívida. Contudo, para além de estabelecer garantias desse pagamento, o verdadeiro intuito era ditar como a política deveria orientar-se, a prescindir do governante no poder.

Antes de assumir seu primeiro mandato, em 2003, Lula entregou uma carta de compromissos para “tranquilizar o mercado”, prometendo manter a “estabilidade” de seu predecessor Fernando Henrique Cardoso. Em 2023, retornando à Presidência após o período de convulsão que o país atravessou, Lula comprometeu-se a “colocar o pobre no orçamento”; no entanto, até o momento, impera o continuísmo em relação a Temer e Bolsonaro. Uma maior incursão na história política do país revela que o período da ditadura militar e as mudanças de poder pouco alteraram a forma como o capital é extraído da classe trabalhadora. Em alusão ao ex-ministro da Fazenda do
“milagre econômico”, Delfim Netto, seria necessário “fazer o bolo crescer para depois dividi-lo” – só que o momento da divisão jamais alcança os desfavorecidos do sistema.

A austeridade não consiste em remédio amargo administrado para brecar a “gastança desenfreada” e “retomar o crescimento”, jargões já tão conhecidos quanto desgastados. A austeridade tampouco é um erro de percurso na política para desfazer o “agigantamento do Estado” e proporcionar “menos Estado, mais mercado”. A lente através da qual o economista enxerga as variáveis de mercado distorce o modo como a realidade opera, vislumbrando o agregado (a unidade nacional) a despeito do bem-estar social e apresentando uma acentuada miopia às distinções de classe.

Como bem evidenciado, a definição comum de austeridade enquanto corte nos gastos e aumento de impostos mascara a escolha da alocação de recursos, que são abundantes para financiar guerras, arcar com juros da dívida pública, mas ínfimos na expansão do gasto social. No Brasil, os cortes foram significativos em setores que não comportavam ulterior achatamento. O salário mínimo carece de aumento real comparado à inflação, as reformas da previdência passaram a estabelecer critérios mais rígidos para concessão de benefícios, e as privatizações encareceram o preço dos serviços públicos ao longo dos anos. A austeridade que se delineia nos países desenvolvidos continua admitindo um elevado comprometimento do PIB com a dívida pública, porém segue o preceito de eliminar prestações sociais, condicionando-as ao recrutamento de trabalho mal remunerado, ao corte de gastos em saúde, educação e moradia e à eliminação da tributação dos mais ricos, transferindo o ônus aos mais pobres por meio da taxação regressiva do consumo e dos serviços. O capital sai ainda mais privilegiado das equações de austeridade, mercantilizando as prestações sociais como barganha em detrimento da sociedade.

No caso brasileiro, os juros elevados agradam o especulador internacional, ávido por retornos substanciais em um país que não investe e, portanto, jamais se liberta da situação de dependência. Ao mesmo tempo, optando pela constituição em pessoa jurídica, o capital conta com a benesse sem precedentes – afora na Estônia e na Letônia – de não incidência de imposto de renda em lucros e dividendos.

A austeridade fiscal, inseparável da monetária, atua junto à imposição de um incremento artificial dos juros sob o argumento de conter a inflação, comprometendo, assim, o orçamento público com o pagamento de juros injustificáveis. O valor do salário – outro fator relevante –, a despeito do que se possa pensar, possui correlação direta com a política de austeridade.

Existe uma relação inversamente proporcional entre a privatização dos serviços públicos e a estabilidade da remuneração proveniente desse setor. Esse fenômeno ocorre em paralelo à revogação das proteções trabalhistas, previdenciárias e assistenciais e à supressão das prestações públicas, enfraquecendo o poder de negociação de sindicatos e trabalhadores. Quanto mais escassos são os recursos disponíveis para satisfazer as próprias necessidades de subsistência, mais suscetível estará o trabalhador a sujeitar-se a relações de trabalho opressivas. Não por coincidência, as políticas de austeridade no Brasil vêm acompanhadas de precarização das relações de trabalho e de uma disseminada incapacidade de mobilização sindical e reinvindicação política dos direitos trabalhistas e, mais amplamente, dos direitos sociais.

O presente contexto político é bastante desfavorável à realização de direitos sociais e econômicos dos contingentes mais vulneráveis da sociedade brasileira. Desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff – sob a falsa acusação de violação das leis orçamentárias, as chamadas “pedaladas fiscais”, indispensáveis para conciliar o gasto com o não atingimento das receitas diante da crise econômica que assolou o país, providências que nada mais eram que instrumentos para a execução de despesas públicas inadiáveis –, o cenário de desfazimento do Estado social ganhou fôlego com o rompimento do pacto social por meio da forjada Emenda constitucional n. 95/2016, resultado da aprovação da “PEC da morte”. Tal reforma elevou ao status constitucional um estado de coisas que subverte os primados estabelecidos na própria Constituição.

Não bastasse, a “austeridade expansionista” do então ministro Paulo Guedes aprofundou o processo de empobrecimento social, acompanhada das reformas trabalhistas previdenciárias e de uma desenfreada busca pela privatização de setores pertencentes ao poder público. Tal programa mostrou-se, desde o princípio, um fracasso, pois, assim que a pandemia de covid-19 interrompeu o funcionamento da economia, tornou-se impossível manter a força de trabalho, refém do ambiente doméstico, sem qualquer alternativa para mitigar a crise. A pandemia expôs a fragilidade do sistema em lidar com o excepcional, e algumas das medidas de contenção de gastos essenciais precisaram ser abrandadas para fazer frente à aprovação de auxílios emergenciais, que teria vigência provisória e, portanto, transformaram um então direito em faculdade do exercente de poder. Nos capítulos a seguir, Clara Mattei nos atenta a outro pilar da austeridade: a importância dos bancos centrais como meio de usurpar a democracia da esfera econômica. Tal qual em outros países, no Brasil a deflação monetária possui efeitos devassantes nas taxas de ocupação, eliminando empregos ao oferecer qualquer contrapartida afora o discurso apolítico que tais medidas draconianas impõem.

A autonomia sem análogos, conferindo um mandato de quatro anos ao presidente do Banco Central por meio da Lei complementar n. 179/2019, mostrou-se das mais nocivas à discussão política sobre os rumos do país. Sempre sob a tônica da neutralidade econômica, vincularam-se os governos vindouros a uma política monetária-fiscal não conforme com o programa eleito para a Presidência da República. O debate político, agora permeado por um confronto nítido entre o presidente do Banco Central indicado por Bolsonaro e o presidente Lula, faz emergir a insustentável coexistência de uma elevadíssima política de juros comprometedora do crescimento do país e um orçamento carente de consecução de prestações sociais, criando um diálogo áspero.

Tal cenário desencadeou a aprovação do “novo arcabouço fiscal”, insuficiente e vergonhosamente austero, sobretudo se consideramos os mandatos anteriores do presidente Lula. O desacordo, por fim, resvala na inevitável erosão do consenso econômico e na retumbante vitória de os “politicamente” mortos governarem os vivos, dado que o ex-presidente se tornou inelegível. A partir das categorias apresentadas neste livro, em retrospecto, não se sabe dizer ao certo em qual ponto da história brasileira a austeridade teve início; o que se sabe é que o país é vítima de esquemas ensaiados ultramares e experimentados de maneira inédita em território nacional.

O Brasil foi e continua a ser cobaia de ensaios perigosos: entre golpes e ditaduras, períodos inflacionários que ultrapassaram os 2.000% (entre as décadas de 1980 e 1990), confisco da poupança dos cidadãos e um plano econômico que reiniciou a economia do zero, não há quem se ressinta em submeter o povo às estimativas que a poucos beneficiam. Tantas oscilações não surgem sem contrapartida, pois, há muito, o país é refém do mercado, de instituições financeiras internacionais ou de agências de classificação de risco, prontas a projetar o país ao abismo quando ele não atende às almejadas metas que propugna o mercado. Na retaguarda do discurso econômico asséptico, operam os mais autoritários instrumentos de exercício do poder, evidenciando, na linha de Franz Neumann1 e David Abraham2, que a ascensão do nazifascismo foi, sobretudo, um projeto político-econômico.

A austeridade é um movimento carente de realização democrática, pois asfixia as promessas constitucionais de efetivação de direitos fundamentais de segunda dimensão, esvazia o Estado social e reverte a tributação aos detentores do poder. Da contenção inflacionária dos períodos de arrocho salarial à gestão de balanços orçamentários via superávit primário, até a dramática deposição presidencial, ancorada em tecnicismos fiscais, a narrativa econômica brasileira é um Leitmotiv em que austeridade e política tecem seu sinuoso dueto. Nesse contexto, A ordem do capital não apenas critica a mentalité que degrada os países à condição de vassalos da pauta econômica, como pretende contribuir para des- montar narrativas prontas acerca do êxito do capitalismo financeiro que sequestra o futuro e mantém as classes oprimidas imobilizadas e incapazes de oferecer resistência à austeridade por design do sistema.

Se um país como o Brasil obtém reputação internacional por sua economia “sólida” e “virtuosa”, capaz de transmitir confiança aos mercados, tal êxito, longe de beneficiar as classes trabalhadoras, frequentemente opera contra as classes que se pretendeu em primeiro lugar proteger. O verdadeiro fato político, demonstrado pela história, é que a confiança dos mercados é inversamente proporcional ao bem-estar dos cidadãos e ase reflete, sobretudo, na lógica da coerção econômica.

Notas
1 Franz Leopold Neumann, Behemoth (Nova York, Oxford University Press, 1944).
2 David Abraham, Me Collapse of the Weimar Republic: Political Economy and Crisis (Nova Jersey, Princeton University Press, 1981).

O xadrez cambial, por Ana Paula Vescovi

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Melhora nas contas externas não garante que real continuará a se valorizar neste ano, mas sugere menor volatilidade da moeda no longo prazo

Ana Paula Vescovi, Economista-chefe do Santander Brasil

Folha de São Paulo, 04/02/2024

Falar sobre taxa de câmbio e fazer projeções sobre sua trajetória é algo arriscado para os economistas. São muitos os fatores intervenientes, alguns deles imprevisíveis, e o risco de errar é alto. No ano passado, defendemos que haveria alguma depreciação do real em relação ao dólar e o que ocorreu foi uma leve apreciação. Ou seja, erramos.

Nossa estimativa de depreciação vinha de modelos econômicos que expressam os fundamentos técnicos da taxa de câmbio. Assim, como tínhamos um cenário de leve redução dos preços das commodities, de queda de juros no país, com manutenção de juros tanto nos Estados Unidos quanto nas principais economias globais e de aumento de incertezas locais em função de mudanças na política fiscal no Brasil, antevíamos a depreciação do real. O que aconteceu, contudo, foi um enfraquecimento relativo do dólar, especialmente no final do ano, e isso predominou sobre as nossas hipóteses para a economia local.

Diante do desvio, fizemos um “mergulho profundo” no universo das contas externas do país, num esforço de entender o que o saldo do comércio de bens e serviços com outros países, além dos saldos na contratação de serviços e das movimentações de rendas com o exterior, poderiam nos esclarecer sobre a relação desses fluxos e a direção para a taxa de câmbio.

Da mesma forma, procuramos entender como as necessidades de financiamento externo (déficit pouco abaixo de 2% do PIB) poderiam ser providas pelos canais financeiros, seja pela via de investimentos diretos de outros países, seja pelos fluxos de investidores de fora no mercado financeiro local.

Se a soma dos saldos destas duas principais contas (transações correntes de bens, serviços e rendas e a conta financeira) é negativa, ou seja, faltam dólares para pagar credores, o país é obrigado a utilizar parte de suas reservas internacionais para “zerar” o desequilíbrio. Caso contrário, a “sobra” de divisas faz crescer o estoque de reservas internacionais —como parece ter acontecido no ano passado, segundo os dados disponíveis até novembro de 2023.

Para 2024, a dinâmica das contas externas parece indicar nova acumulação de reservas e, recentemente, têm surgido narrativas de que o real poderá se valorizar consideravelmente por conta desta situação. Como as contas externas brasileiras passam por uma mudança estrutural positiva, esses catalisadores favoreceriam o fortalecimento da moeda local frente ao dólar.

De fato, dados recentes indicam tal mudança estrutural especialmente na dinâmica da balança comercial, o que é boa notícia para o real no longo prazo. Ultimamente, o Brasil tem conseguido gerar superávits comerciais vultosos, por conta da firme tendência de crescimento da produção de petróleo e das safras de grãos.

Além disso, os termos de troca (razão entre os níveis de preços de exportações e importações) também parecem seguir trajetória ascendente de longo prazo, tornando o saldo comercial de bens —e de transações correntes— mais estável e menos suscetível a choques nos preços de commodities.

Isso ajuda a reduzir a amplitude dos movimentos realizados pela taxa de câmbio (menor volatilidade, no jargão financeiro).

Vale notar que outras características deverão ajudar a reduzir a volatidade do real à frente, tais como o financiamento contracíclico (e estável) advindo dos investimentos diretos no país (IDP) e a dinâmica anticíclica da decisão de exportadores em internalizar recursos mantidos no exterior.

Assim sendo, pode-se dizer que existem fatores relevantes para que a moeda brasileira se torne mais estável do que no passado e mais blindada contra desvalorizações causadas por outros elementos domésticos ou externos (ou, até mesmo, mais inclinada a se valorizar no longo prazo).

Porém, apesar destas favoráveis mudanças estruturais, movimentos de valorização (ou desvalorização) cambial de curto prazo costumam depender do comportamento das contas na margem.

Nesse sentido, existem fatores que sugerem haver pouco espaço no curto prazo para que a balança comercial registre resultados mais robustos neste ano. Por exemplo, condições climáticas adversas deverão causar impacto negativo na safra de soja, ao mesmo tempo em que a desaceleração econômica mundial derivada de condições financeiras mais restritivas deverá provocar acomodação nos preços de commodities.

Além disso, considerando as demais contas do setor externo, seu resultado final não deverá levar a uma acumulação de reservas significativa na margem. Finalmente, cálculos mostram que o real não parece estar consideravelmente desvalorizado no momento, quando comparado a seus principais pares (pesos chileno, colombiano e mexicano, e rand sul-africano).

Em momentos assim, nos quais os riscos idiossincráticos do país, o nível de diferencial de juros e a posição relativa frente às moedas dos pares parecem estar em patamar “normal”, o catalisador mais importante para a taxa de câmbio é a tendência da moeda norte-americana frente às moedas das economias avançadas. Dada a perspectiva de que o Fed não deverá chancelar o início precose do ciclo de redução de juros implícito na curva de juros dos EUA, parece haver espaço para valorização do dólar frente às demais.

A principal conclusão desse “mergulho”, contudo, foi que a melhora estrutural que vem ocorrendo nas contas externas do país —e tende a continuar ocorrendo nos próximos anos— será uma importante defesa contra volatilidade e contra excessiva desvalorização cambial no futuro.

Entretanto, parece haver pouco espaço para melhora pontual no seu resultado em 2024. Assim, a dinâmica de curto prazo não deverá abrir espaço para valorização do real muito além do que já ocorreu em 2023.

Sendo assim, mantivemos nossa aposta para uma leve depreciação do real até o final de 2024.

Anotem aí para verificarmos os resultados no próximo ano!

Nosso capitalismo de compadres é o oposto do capitalismo comunista chinês, por Rodrigo Zeidan

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Que pelo menos os subsídios aqui sejam dados com mais cuidado

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 03/02/2024

Capitalismo de compadres é a norma em países de renda média. No Brasil, quase sempre que uma grande empresa vai à bancarrota pode contar com a mãozinha do Estado, que é especialista em transferir renda dos mais pobres para os mais ricos.

Mas não precisa ser assim. Um exemplo vem da China, onde as autoridades ficam olhando sem fazer nada enquanto a Evergrande, empresa com US$ 300 bilhões em dívidas, está sendo liquidada na Justiça. Por incrível que pareça, a China teve seu choque de capitalismo, e sua política industrial revela isso.

Enquanto o Brasil continua a insistir na furada política de substituição de importações, a política industrial chinesa é orientada para exportações. E, mais ainda, não interessa quem vai sobreviver. O processo chinês é feito para que empresas sigam competindo até sobrarem só as mais eficientes.

A ideia é simples: se um setor é considerado estratégico, subsídios são jogados ao mar, e os tubarões avançam. Depois que a indústria começa a exportar, os subsídios são retirados. Quem sobrar sobrou. Foi assim, por exemplo, que a China se tornou o país que mais exporta painéis solares. Em 2021, qualquer subsídio ao setor foi retirado do orçamento federal.

É por isso que os investidores que foram com sede ao pote comprar títulos da empresa Evergrande, que tinha acabado de dar um calote, apostando que o governo a salvaria, deram com os burros n’água. Esses investidores compraram grande parte da dívida da empresa, que totaliza mais de US$ 300 bilhões, com grande desconto, achando que iam receber o valor completo. Agora que a empresa está para ser liquidada, podem perder tudo. Apostar que o governo chinês vai salvar grandes empresas se revelou, nesse caso, uma furada.

A diferença entre o modelo de industrialização chinês e o brasileiro é simples: a China acredita na disciplina do mercado capitalista. Se o setor não ficar eficiente, que morram todas as empresas. Os poucos setores estratégicos de verdade, separados para empresas estatais, acabam tendo o mesmo problema do Brasil: empresas ineficientes que muitas vezes perdem mercado para empresas privadas.

Por exemplo, os bancos estatais são incompetentes e, por isso, surgiu todo um setor financeiro não bancário que roubou os clientes dos bancos estatais. Alipay e Wechat processam mais de US$ 30 trilhões em pagamentos por ano, e pessoas fazem empréstimos e investem através dos apps. Os bancos estatais continuam perdendo mercado, e o governo não faz quase nada.

Essa ideia de que competição é o que importa foi o que levou ao crescimento chinês dos últimos 40 anos. Essa é a grande lição que deveríamos aprender. Mas não parece que o faremos. O governo Lula vai insistir em subsídios que fazem o contrário: limitam competição, com a ideia de que as empresas locais cresçam. Mas, sem a disciplina da competição internacional, o que as empresas fazem é tornar os produtos caros, sem incentivos para inovar.

E, quando a competição vem, as empresas vão para Brasília pedir mais proteção; capitalismo de compadres em escala nacional. O oposto dos comunistas chineses, muito mais capitalistas do que a gente imagina.

Vamos continuar insistindo em políticas que nos jogaram em crise econômica? Lula podia fazer muito melhor que insistir nos erros do passado. Que pelo menos os subsídios sejam dados com mais cuidado.

Será que um dia vamos aprender? Pelo visto não vai ser desta vez.

Política Industrial

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Vivemos momentos de grandes alterações na estrutura econômica internacional, nações que dominavam todos os espaços do crescimento econômico e produtivo, vem perdendo espaço no cenário global, outros países estão se projetando na nova economia mundial. Estamos visualizando a ascensão de novos atores, novas empresas, novas lideranças e novas corporações, com a fragilização de algumas nações, gerando novos desafios, novas oportunidades e grandes inquietações.

Neste cenário, as nações estão em franca movimentação econômica e geopolítica, buscando reposicionamento na estrutura produtiva global, como forma de alavancar seus setores produtivos, buscando a redução da dependência externa, aumento da soberania nacional, vislumbrando investimentos produtivos, desenvolvimento de tecnologias e a busca crescente de novos espaços no comércio internacional.

Neste momento, as nações estão repensando suas estratégias de inserção no cenário internacional, retomando projetos esquecidos e reestruturando os canais de planejamento econômico e produtivo, reativando as chamadas políticas industriais, utilizadas por todas as nações que conseguiram alavancar suas estruturas econômicas, com fortes investimentos governamentais para fortalecer setores e atividades produtivas, levando muitas nações ao desenvolvimento econômico.

Muitas nações adotaram políticas industriais, mas a adoção destas políticas industriais não garante o tão sonhado desenvolvimento econômico, muitos países tentaram, mas poucas nações conseguiram se desenvolver, transformando suas estruturas produtivas, angariando ganhos econômicos e políticos. O desenvolvimento industrial prescinde de uma visão global de todas as potencialidades da economia, integrando setores, fortalecendo o conhecimento científico e tecnológico, aproximando as universidades e os centros de pesquisas, construindo uma visão sistêmica que abarque todos os setores da sociedade, melhorando os indicadores econômicos e sociais em benefício da comunidade nacional.

No começo do século XX, as estratégias de desenvolvimento industrial eram vistas como um caminho natural para que as nações conseguissem se desenvolver economicamente, desta forma, a indústria era uma forma de melhorar a produtividade do trabalho, incrementando a renda dos trabalhadores, movimentando o mercado de consumo e, desta forma, alavancando fortes investimentos produtivos para impulsionar a economia, diversificando os setores produtivos e melhorando os indicadores econômicos e sociais.

Nos últimos anos as políticas industriais foram criticadas pelos economistas liberais, pelas instituições multilaterais, como o FMI e Banco Mundial, e pelos representantes do setor financeiro, defendendo uma maior liberdade dos mercados e o crescente estímulo da concorrência como forma de alocar investimentos no sistema econômico e produtivo. Com estas transformações econômicas internacionais muitas nações desenvolvidas, que rechaçavam as políticas indústriais, passaram a alterar seu entendimento e estão fomentando estas políticas como forma de defender suas estruturas produtivas e receio de perder espaço das nações asiáticas, países que recorreram fortemente as políticas industriais, com fortes incentivos internos e medidas intervencionistas.

Neste cenário, as nações ocidentais estão retomando as políticas públicas e o Brasil começa esboçar uma nova política de reindustrialização, como forma de alavancar a indústria nacional e melhorar as condições de competitividade, diminuindo as importações de produtos industrializados. A nova política de reindustrialização brasileira está canalizando 300 bilhões de reais para o setor industrial e está escolhendo setores vistos como estratégicos para a economia brasileira, tais como a digitalização da indústria e das médias e pequenas empresas, fomento da cadeia agroindústrial e da bioeconomia, a mobilidade urbana, a internalização da produção de insumos da saúde e das tecnologias críticas de defesa nacional.

O retorno de discussões econômicas mais heterodoxas no cenário internacional, como as políticas industriais é salutar e quando percebemos que instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI), revistas como The Economist e a prestigiada Harvard Business Review estão defendendo fortemente estas políticas, percebemos que estamos voltando para o lado certa da história.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Carta Mensal – Novembro 2023

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O mês de novembro de 2023 foi marcado por grandes discussões referentes ao crescimento do poder do Congresso Nacional, o crescimento do conflito entre o Hamas e o Estado Israelense, além de questões econômicas internas, as brigas entre o governo federal e a oposição, onde percebemos que o embate é mais ideológico entre grupos com visões de vida diferente.

No front econômico, percebemos que a economia nacional vem passando por grandes modificações, pela primeira vez percebemos que o governo federal se esforça pra efetivar uma reforma tributária, com o objetivo de rever medidas que impactam sobre o consumo das famílias, com o intuito de simplificar o sistema tributário, visto como um dos mais detalhista do mundo, responsável por grandes imbróglios jurídicos e graves constrangimentos para todos os grupos que tentam empreender na economia brasileira. Depois de grandes embates, os grupos econômicos e políticos conseguiram chegar a um acordo prévio, quase consensual e marcar a votação para o mês seguinte. Se isso acontecer e a reforma for aprovada, a sociedade será beneficiada, com pontos positivos para a economia nacional.

Neste embate entre o governo e a oposição, percebemos grandes confrontos no centro do poder, com ameaças de todos os lados, onde cada um deste grupo tentam mostrar seu poder e aumentar a sua capacidade de controlar o outro. Neste embate constante, percebemos que o maior prejudicado é a população, postergando medidas imprescindíveis para alavancar o crescimento econômico e produtivo, atrasando investimentos estratégicos para a economia brasileira e para a melhora dos indicadores econômicos gerais.

Mostra ainda, que o governo não possui condições de governabilidade total, sua força política no Legislativo é limitada, não conseguindo passar políticas públicas e mudanças constitucionais que acreditam ser importantes para seu governo e seu projeto político. Contrariamente, percebemos que os grupos oposicionistas são mais fortes do que acreditavam, com força política para fragilizar o governo federal e gerar graves constrangimentos na gestão política.

Atualmente, o governo federal vem perdendo espaço em detrimento do fortalecimento do Legislativo, este último está numa posição cômoda, não tem o ônus da gestão pública e fica com todos os bônus das propostas. Destacamos ainda, que o crescimento do Legislativo federal está diretamente ligado o surgimento de governos fracos, tais como os governos Temer e Bolsonaro, este último delegou ao legislativo papeis importantes que deveriam ser feitos pelo Executivo.

No front externo, percebemos variados problemas que podem levar a economia a uma retração produtiva. De um lado, o conflito entre Ucrânia e a Rússia, que muitos especialistas acreditavam que levaria os russos a graves constrangimentos internos e seria atropelado pela junção da Ucrânia e os exércitos da Otan (Organização do Tratado do Atlântica Norte), mas a realidade está se mostrando diferente, onde os ucranianos estão destruídos economicamente, com sua infraestrutura massacrada e com a morte de milhares de combatentes, gerando uma verdadeira degradação da nação.

No campo russo, os embargos que foram feitos para destruir a Rússia, mas na realidade, aconteceu o inverso. Muitas empresas ocidentais foram absorvidas por empresas russas, muitas empresas foram vendidas a preços módicos e fortaleceu o setor produtivo russo.

A guerra levou os países europeus a apoiar a Ucrânia e levou os russos a aumentarem o preço da energia, impactando fortemente os preços dos combustíveis, gerando aumento de preços internos e o incremento da inflação, obrigando os governos, como o alemão, a subsidiar a energia interna e, para isso, reduziu os repasses para as políticas públicas governamentais, gerando graves constrangimentos internos, queda da renda da população, redução dos investimentos produtivos e um maior desemprego, um verdadeiro constrangimento político que está contribuindo para p fortalecimento dos grupos políticos de extrema direita.

No outro front externo, é fundamental destacar que o conflito entre Hamas e Israel vem gerando constrangimentos para a sociedade internacional, motivando variados grupos políticos a confrontos generalizados, uns defendendo as políticas de Israel, destacando que como o país judeu foi atacado por Hamas com mais de 1,2 mil mortes sangrentas, tem o direito de se defender e partir para cima do Hamas como forma de retaliar os ataques recebidos. De outro lado, destacamos que a retaliação de Israel foi muito agressiva e desproporcional, atacando toda a região, matando milhares de civis, principalmente mulheres e crianças, destruindo a região da Faixa de Gaza e levando a morte de mais de 20 mil palestinos, uma desproporção pouco vista na história militar da humanidade.

Esse conflito vem gerando graves constrangimentos para toda a comunidade, motivando todos os setores, todas as nações a se posicionarem de um lado ou outro, levando a África do Sul representar contra o governo de Israel, onde o país africano defende que o Tratado Penal Internacional puna Israel pelo genocídio dos palestinos. O Brasil adotou uma posição a favor da representação da África do Sul, motivando críticas imensas entre os judeus e a posição do governo brasileiro.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

‘Quem não sabe controlar dinheiro precisa de terapeuta, não de consultor financeiro’, diz autor

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Morgan Housel, autor especializado em economia comportamental, foca o que nunca muda em nova obra

JÚLIA MOURA, FOLHA DE SÃO PAULO, 27/01/2024

SÃO PAULO Se alguém pudesse prever o futuro, essa pessoa certamente seria rica. Apesar de ser impossível, tentar antecipar o que está por vir está por trás de muitas decisões cotidianas, especialmente as relacionadas a investimentos.

Mas, e se, em vez de tentar prever as mudanças do futuro, identificássemos o que nunca muda? Essa é a premissa do novo livro de Morgan Housel, 37.

Por meio de diversas anedotas, o autor americano introduz conceitos-chave da economia comportamental em “O Mesmo de Sempre – Um Guia para o que Não Muda Nunca”, lançado pela editora Objetiva no Brasil, no fim de 2023.

Com essas lições, que envolvem histórias sobre Martin Luther King e Bill Gates e evocam reflexões pessoais, Housel espera melhorar a capacidade de tomar decisões dos leitores.

“O Mesmo de Sempre” funciona como uma continuidade do seu best-seller, “A Psicologia Financeira: Lições Atemporais sobre Fortuna, Ganância e Felicidade”, que vendeu mais de 3 milhões de cópias e foi traduzido para 53 idiomas.

Segundo Housel, o propósito do seu novo livro é instilar um pouco de humildade em todos. “Reconhecer que não sabemos o que vai mudar no futuro e focar o que sabemos que não vai mudar”, disse em entrevista à Folha.

Como obter independência financeira? Como controlar melhor as finanças?

Não há regras que sirvam para todos. Há pessoas que vão viver sua melhor e mais feliz vida se estiverem gastando a maior parte do seu dinheiro e também há as pessoas que só vão viver felizes se estiverem economizando muito dinheiro.

Eu acho que nasci com a mentalidade de ser poupador. [Guardar dinheiro] nunca foi um desafio para mim, mesmo quando eu ganhava pouco, sempre foi algo muito natural para mim. Nunca exigiu muito esforço. Mas acho que isso acontece porque é assim que meu cérebro é programado. Há pessoas que, se tentassem fazer isso, ficariam infelizes.

Então, acho que uma das primeiras regras [para ter independência financeira] é se descobrir. Se você sempre teve dificuldade para economizar, talvez isso faça parte de sua personalidade.

Também há as pessoas que genuinamente querem economizar e têm dificuldade para fazer isso. A partir daí, eu olharia internamente e perguntaria: “Qual é a causa de todos os gastos que você está fazendo?”. É porque está apenas tentando acompanhar as necessidades básicas de aluguel e comida? Ou porque está tentando mostrar às pessoas que tem roupas muito boas, um carro legal, um bom apartamento?

Isso pode ser o reflexo de algo mais profundo, que é o fato de você estar tentando ganhar respeito e admiração das outras pessoas por meio dos seus gastos, não por meio da sua amizade ou capacidade de amar, ser empático ou seu senso de humor.

Que dica você daria para alguém que não tem controle sobre o dinheiro?

Nessa situação, você não precisa de um consultor financeiro. Você precisa de um terapeuta que vá
um pouco mais fundo.

Se você é o tipo de pessoa controlada pelo dinheiro, isso é um indicativo de uma ferida mais profunda que você está tentando preencher. Em nove de cada dez vezes essa ferida o leva a tentar fazer com que outras pessoas o admirem e o respeitem, e você pensa que ter mais dinheiro é a única maneira de fazer isso. Reconhecer isso é algo muito importante.

O dinheiro é apenas uma ferramenta para, esperançosamente, dar a si mesmo uma vida melhor. Mas, para muitas pessoas, é mais como uma droga, que você pensa ser a solução para seus problemas, a chave para sua felicidade. Mas, se você é viciado nisso, não é. Na verdade, pode ser a fonte de seus problemas, a fonte de sua dor. E você precisa cavar um pouco mais fundo para descobrir de onde vem essa dor.

No que você investe?

Invisto quase exclusivamente em ETFs (fundos de índice) muito amplos, que contam com ações do mercado dos EUA e internacionais.

Em vez de tentar escolher uma determinada ação ou setor, eu quero possuir toda a economia. Essa é a aposta que estou fazendo porque, se eu mantiver as coisas simples assim, aumenta a probabilidade de eu poder seguir nessa estratégia pelos próximos 50 anos, e deixar que se acumule.

Historicamente, é aí que a maior riqueza foi encontrada.

Na sua visão, o debate em torno do dinheiro e educação financeira melhorou ao longo dos anos?

Melhorou por causa da internet. Antes, na década de 1990, a menos que você fosse rico, não poderia falar com um consultor financeiro. Eles eram restritos a pessoas ricas. Ninguém mais tinha informações, educação, visão do que estava acontecendo.

Hoje, qualquer pessoa com um telefone, não importa quanto dinheiro você ganhe, quanto dinheiro você tenha, tem acesso à informação. Essa democratização da informação tem sido enorme.

Agora, isso também abriu a porta para ver como pessoas ricas vivem, o que pode causar um sentimento de inveja e angústia social que alimenta preocupações com dinheiro. Antes disso, as pessoas de baixa renda socializavam principalmente com outras pessoas de baixa renda e não se sentiam tão pobres.

Qual o seu conselho para que as pessoas não caiam em golpes ou façam investimentos inadequados?

Qualquer pessoa que esteja prometendo a capacidade de ficar rico rapidamente, é certo que estão te enganando. A única maneira de ficar rico é empreender a sua própria ideia, ou acumular capital lentamente ao longo do tempo. Essas são as únicas maneiras de fazer isso.

Qualquer coisa intermediária, como “posso ficar rico com bitcoin rapidamente”, simplesmente não funciona. O mundo não é tão generoso com as pessoas a ponto de permitir que você fique rico da noite para o dia sem esforço.

Todo mundo tem que abrir mão de algo por sua riqueza, seja paciência, sejam os riscos que você assume como empreendedor. Não há caminhos fáceis para fazer isso.

Você se considera rico?

Eu me considero satisfeito, o que significa que tenho o suficiente para cuidar da minha família e dar a eles tudo o que precisam e muito do que querem.

Não usaria a palavra riqueza. Não acho que algo bom venha dessa palavra. Estar satisfeito com o que você tem é o melhor que você pode fazer.

O movimento das marés, por Oscar Vilhena Vieira

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Tudo indica que nos EUA a onda de populismo autoritário voltará com mais força e fúria

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023).

Folha de São Paulo, 27/01/2024

É um equívoco achar que as marés simplesmente passam. Elas vêm e voltam. E tudo indica que nos Estados Unidos a onda de populismo autoritário, encabeçada por Donald Trump, retornará com mais força e fúria. Ressentido, Trump não poupará esforços para romper as amarras estabelecidas pela Constituição para que possa exercer o poder sem embaraços.

Se há uma característica comum às diversas vertentes do populismo autoritário é o seu anti-institucionalismo. As instituições liberais, criadas para estabilizar relações e conter o exercício arbitrário do poder, devem ser subjugadas ou capturadas, para atender os desígnios do líder populista.

O emprego da Abin para investigar opositores e autoridades vistas como inimigas por Bolsonaro, além de proteger familiares, se comprovado, é uma amostra de como populistas autoritários instrumentalizam as instituições para atender seus objetivos.

Distintamente dos Estados Unidos, as instituições constitucionais brasileiras se demonstraram mais habilitadas a enfrentar este último ciclo de ascensão de um populista autoritário. Certamente nossa acidentada história política, marcada por golpes, regime autoritários e também por marés populistas, levaram o constituinte de 1988 a ser mais cuidadoso ao dispersar o poder e fortalecer as instituições de controle, especialmente os tribunais, de maneira que a captura e subordinação dessas instituições por um aventureiro de plantão se tornasse mais difícil.

Somado a isso, estabelecemos regras duras para aqueles que são desleais à democracia. No campo eleitoral, o abuso de poder político e o ataque às regras e instituições eleitorais pode levar a inelegibilidade, como aconteceu com Bolsonaro. Da mesma forma, o direito penal foi mobilizado para a defesa do Estado democrático de Direito, com a sanção da lei 14.197, em setembro de 2021, que substituiu a velha Lei de Segurança Nacional.

Necessário anotar que a aplicação da lei penal contra aqueles que conspiraram contra a democracia em 8 de janeiro ainda tem se demonstrado muito seletiva. Mandantes, financiadores, incitadores e aqueles que criaram uma cerca de proteção ao baixo clero golpista continuam impunes.

O sistema de defesa da democracia montado a partir de 1988 demonstrou, no entanto, outras fissuras. O exercício monocrático do poder conferido ao presidente da Câmara dos Deputados, para dar início ao processo de impeachment, e ao procurador-geral da República, para investigar e processar crimes comuns eventualmente praticados pelo presidente da República, aponta para problemas a serem corrigidos. Numa República não deve haver poder pessoal incontrastável.

Mais do que isso, essa falha no sistema, levou à necessidade de um engrandecimento do poder do Supremo, para suprir a omissão de outras esferas de proteção da democracia. Passada a crise aguda, que justificou uma conduta mais ativa da corte na contenção dos ataques autoritários, é fundamental que se busque desescalar o emprego dos mecanismos da “democracia defensiva”. Especial atenção deve ser conferida à questão da imparcialidade do Supremo. É da imparcialidade que deriva a principal fonte de autoridade de qualquer tribunal. Ministros que se tornaram alvos preferenciais das investidas antidemocráticas não podem permanecer responsáveis pela apuração de condutas de que foram vítimas.

Como alertava Benjamin Cardozo, histórico juiz da Suprema Corte norte americana, os juízes não estão a salvo das grande marés e correntes que engolfam as demais pessoas. E elas vêm e voltam.

Futuro e Confiança

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Todos os indivíduos no mundo contemporâneo estão percebendo que a sociedade vem passado por grandes transformações nas últimas décadas, com impactos generalizados para todos os cidadãos e comunidades, mexendo nos comportamentos, alterando valores e exigindo investimentos crescentes na qualificação e na capacitação individual, como forma de encontrar empregos e recursos para a sobrevivência.

Nesta sociedade, marcada por grandes incertezas e instabilidades, estamos vislumbrando novas formas de organizações social, política e produtiva, alterando todas as bases constituídas na sociedade industrial e, destas modificações, percebemos o nascimento de uma nova comunidade, centrada nas tecnologias, no mundo digital, no imediatismo, no individualismo e na busca crescente pelo lucro e pela acumulação.

A velocidade destas transformações é assustadora, novas tecnologias surgem todos os dias, novos modelos de negócios nascem diariamente motivados pela intensa competição entre os agentes econômicos e produtivos, levando os seres humanos a buscarem qualificações diárias, numa constante concorrência que não é mais local, nem nacional, mas estamos presenciando uma competição global. Nesta nova sociedade, todas as bases que sustentavam as relações sociais da sociedade industrial, tais como a família, a escola, os relacionamentos e a religião vêm sentindo na pele as grandes modificações, gerando medos, ansiedades e depressões, desta forma, percebemos o incremento das preocupações com a saúde mental dos indivíduos, onde o desequilíbrio emocional cresce de forma acelerada, exigindo políticas públicas e intervenções governamentais direcionadas para amainar estes desajustes.

Neste mundo centrado nas incertezas e nas instabilidades, o medo ganha relevância, as certezas estão cada vez mais reduzidas e os ressentimentos ganharam espaço na comunidade, motivando extremismos, violências, polarizações e desagregações, que levam as nações a conflitos sangrentos, confrontos bélicos, gastos estrondosos em equipamentos militares e repressões seletivas. Neste cenário, grupos que difundem o caos generalizado, notícias negativas, degradações, cancelamentos e as violências crescentes se transformaram num grande negócio, garantindo lucros estratosféricos e negócios rentosos, fazendo a alegria dos acionistas destas corporações.

A confiança, historicamente, deveria ser vista como o cimento da consolidação da convivência social na comunidade, onde os agentes econômicos, políticos e sociais deveriam acreditar nas instituições, fortalecendo as decisões democráticas e estimulando a cooperação social como forma de aprofundar as instituições, melhorando as condições sociais, reduzindo as desigualdades e garantindo oportunidades para todos os seus cidadãos.

O sonho democrático vem perdendo espaço na civilização ocidental e, neste cenário, os extremismos crescem, políticos autoritários ganham relevância e fragilizam os ideais de convivência social democrática e, desta forma, o futuro da sociedade contemporânea está sempre em suspeição, os medos aumentam, as ansiedades crescem e os lucros disparam para uma pequena parcela da comunidade, setores que ganham com os extremismos, a balbúrdia, a degradação humana e a violência urbana.

As pesquisas recentes demonstram que a concentração da renda cresceu fortemente nos últimos anos, garantindo privilégios para poucos grupos sociais e condições degradantes e abjetas para uma grande parte da população. Muitas pessoas acreditam que essa desigualdade crescente se apresenta apenas na sociedade brasileira, ledo engano, o crescimento da desigualdade é um fenômeno global, impacta sobre todas as nações, gerando incertezas e instabilidades, contribuindo para a degradação da vida em comunidade, com o incremento da violência e um medo generalizado do futuro.

A confiança no futuro é fundamental para consolidarmos os ideais democráticos, deixando de lado medidas imediatistas, individualistas e centradas nos ganhos monetários e crucial para reconstruir a convivência social, garantindo educação de qualidade para todos, novas oportunidades, acabando com privilégios de poucos, combatendo injustiças cotidianas, reduzindo violência e vislumbrando horizontes melhores e mais consistentes.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário

Narcogarimpo, política e genocídio yanomami, por Camila Rocha

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Atividade ilegal é motor econômico em Roraima, e população local continuará a rejeitar pautas ambientais

Camila Rocha, Doutora em ciência política pela USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

Folha de São Paulo, 22/01/2024

As trágicas imagens do genocídio yanomami em Roraima muitas vezes vêm acompanhadas da figura do garimpeiro. Tidos por parte da imprensa e dos movimentos sociais como “maus elementos”, os garimpeiros são, em sua maioria, pessoas pobres, descendentes de migrantes nordestinos, que passaram a ocupar a região amazônica a partir das décadas de 1960 e 1970 com incentivo de governos militares.

Na época, o apoio estatal ao garimpo era explícito, tanto que, em 1969, foi construído em Boa Vista (RR) o Monumento ao Garimpeiro. Porém, com a demarcação de terras indígenas prevista pela Constituição de 1988, o garimpo se tornou ilegal em tais territórios, o que possibilitou o surgimento do narcogarimpo.

De acordo com o sociólogo Rodrigo Chagas, professor da UFRR (Universidade Federal de Roraima), o termo narcogarimpo é utilizado para enfatizar afinidades eletivas entre as atividades do narcotráfico e do garimpo. Segundo Chagas, há uma complexa rede de aeroportos e portos ilegais por onde trafegam drogas e minérios, e é comum que o ouro extraído dos territórios indígenas seja utilizado para lavagem de dinheiro proveniente do tráfico de drogas. Hoje, 59% da população da Amazônia Legal vive em municípios com forte presença de facções criminosas.

Vários jovens de Boa Vista, sem maiores perspectivas de futuro, são atraídos por promessas de aventura, poder e riqueza de forma análoga aos jovens de São Paulo e do Rio de Janeiro cooptados pelo crime. Exemplar nesse sentido é Antônio, garimpeiro de 20 anos, encontrado escondido na mata após uma ação do Ibama. Confrontados por repórteres da Folha, o jovem, que garimpa desde os 16 em terras indígenas, indaga: “Como eu vou viver com R$ 3.000 na cidade? Aqui eu posso ganhar R$ 20 mil por mês”.

A despeito dos inúmeros desastres causados pela extração de minérios na região amazônica, se tornou comum que políticos “defendam” os interesses de garimpeiros. Esse é o caso de Jair Bolsonaro, contumaz defensor dos garimpeiros. Nas eleições de 2022, 76% dos eleitores de Roraima votaram no capitão reformado. Lula saiu vitoriosos apenas no município indígena de Uiramutã, onde angariou 68% dos votos.

Além de conquistar eleitores, Bolsonaro procurou atrair o apoio de empresários. Roberto Katsuda, um dos principais revendedores de retroescavadeiras usadas em garimpos no Pará e em Roraima, recebeu das mãos do ex-presidente uma medalha de “imbrochável”. Logo após a “honraria”, Katsuda seria investigado pela CPI do 8 de janeiro por ter financiado atos golpistas, com base em relatórios da Abin.

A agência classifica Katsuda como “notório defensor de garimpos em áreas protegidas e um dos maiores articuladores políticos” do tema. Além dele, Enric Lauriano, outro empresário do garimpo, também foi listado pela Abin como financiador de manifestações golpistas no Pará e em Brasília e participou presencialmente do ato no dia 8 de janeiro.

Como bem aponta o sociólogo Rodrigo Chagas, não há solução de curto prazo para a tragédia em Roraima. Enquanto o narcogarimpo figurar como o principal motor econômico da região, a população local continuará a rejeitar pautas ambientais, celebrar empresários como Katsuda e Lauriano, apoiar políticos pró-garimpo e invisibilizar o genocídio yanomami.

Ódio e violência: o perverso legado do bolsonarismo, por Leonardo Boff

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Leonardo Boff – A Terra é Redonda, 13/04/2023

O legado pior e mais perverso deixado pelo presidente fujão e ladrão de presentes oficiais foi o de atiçar o ódio e a violência nas relações sociais

Quem durante quatro anos nos governou não foi bem um presidente mas um cappo com sua família, cuja característica principal, utilizando as redes sociais, a linguagem chula, os comportamentos grosseiros, a mentira como método, a vontade de destruir biografias, a distorção consciente da realidade, a ironia e a satisfação desumana sobre a doença do Presidente Lula e da Presidenta Dilma, a omissão consciente no trato do coronavírus que sacrificou pelo menos 300 mil pessoas, o genocídio consentido do yanomami, a aquisição praticamente ilimitada de armas letais, a difusão do ódio e da violência, geraram o que ultimamente assistimos: alguém invade uma creche e assassina quatro inocentes crianças e deixa outras feridas.

Há outros casos de alunos que esfaquearam uma professora e um estudante, outro que mata seu colega de escola e outros tantos crimes desse jaez praticados no âmbito escolar, sem referir a violência policial nas periferias das cidades onde jovens negros e outros pobres são abatidos impunemente. Mata-se por motivos fúteis como a disputa por um pedaço de pizza.

O legado pior e mais perverso deixado pelo presidente fujão e ladrão de presentes oficiais, doados por autoridades de outros Estados, além de inúmeros outros crimes políticos, foi este: atiçar o ódio e a violência desbragada nas relações sociais.

Nem chorar nem só lamentar, mas procurar entender: donde nos vem a violência bárbara que tantas vítimas fez em nosso pais? Observemos um pouco a história: Alfred Weber,i rmão de Max Weber, em seu resumo da história universal, nos relata que dos 3.400 anos de história documentada, 3.166 foram de guerra. Os restantes 234 anos não foram certamente de paz, mas de trégua e preparação para outra guerra. As guerras do século passado, ao todo, mataram 200 milhões de pessoas. Como se depreende, a violência e seus derivados estão enraizados em nossa história. Ele levanta uma interrogação, expressa na troca de cartas entre Albert Einstein e Sigmund Freud em 30 de julho de 1932.

Einstein pergunta ao fundador da psicanálise, Freud: “há um modo de libertar os seres humanos da fatalidade da guerra…é possível tornar os seres humanos mais capazes de resistir à psicose do ódio e da destruição?”. Freud realisticamente responde: “não existe a esperança de poder suprimir de modo direto a agressividade dos seres humanos. Contudo podem-se percorrer vias indiretas, reforçando o Eros (princípio de vida) contra o Tánatos (princípio de morte). Tudo o que faz surgir laços afetivos entre os seres humanos, age contra a guerra. Tudo o que civiliza o ser humano trabalha contra a guerra”.

A cultura, a religião, a filosofia, a ética e a arte foram sempre expedientes para frear ou sublimar o impulso de morte. Mas mostraram-se insuficientes. Por isso entendemos a resposta resignada de Freud a Einstein: “esfaimados, pensamos no moinho que tão lentamente mói que podemos morrer de fome antes de receber a farinha”.

Na verdade das coisas, os sábios da humanidade nos fizeram entender que somos seres ambíguos. No dialeto religioso dizia Santo Agostinho: “somos simultaneamente Adão e simultaneamente Cristo”.

Não dizia outra coisa Lutero quando afirmava: “somos simultaneamente justos e pecadores”. Nos tempos atuais foi um sábio de 103 anos, Edgar Morin que continuamente nos recorda: pertence à condição humana, sermos ao mesmo tempo sapiens e demens. Isso não é defeito de criação, mas a nossa constituição enquanto humanos. Em outras palavras, somos seres portadores da dimensão de amor e de ódio, de luz e de sombra, da pulsão de vida e da pulsão de morte, do sim-bólico (que une) e do dia-bólico (que desune). Somos a unidade dialética destas contradições.

A opção de base que tomarmos, se o amor, se a luz, se a vida, se o sim-bólico funda nossa ética humanitária. Se assumirmos o contrário instauramos a ética desumana e cruel. Embora ambos os polos convivam e sem podemos eliminá-los nem recalcá-los, é a centralidade que conferimos a uma destas polarizações que define nosso percurso de vida, vital ou letal e nossos comportamentos éticos.

Se o que dissemos é verdade, então importa sermos realistas e sinceros e reconhecer que a violência que se aninha dentro de nós, irrompeu na figura sinistra do presidente anterior. Ele conseguiu que seguidores tirassem a dimensão de ódio que estava neles e deu-lhe franco curso. Utilizou todos os modos possíveis, desde a calúnia, a mentira, as fake news, a violência verbal através dos vários meios digitais, a violência direta, ameaçando de morte pessoas e efetivamente matá-las.

O humano “demasiadamente humano” vale dizer, a porção sombria e dia-bólica ganhou visibilidade e exercício impune sob o regime bolsonarista e com seu incentivador.

O mais grave do bolsonarismo e de seu cappo é ter deseducado os jovens, promovido a linguagem de baixo calão, os comportamentos agressivos, os preconceitos contra os mais vulneráveis, os pobres, os negros, os quilombolas, os indígenas, as mulheres, vítimas de incontáveis feminicídios e pessoas de outra opção sexual. Todos estes foram difamados, perseguidos, violentados e não poucos assassinados, especialmente estes últimos.

Basta esta história de horrores vividos durante quatro anos. Mas o povo deu-se conta de que assim não se pode viver e conviver. Elegeram, pela terceira vez, alguém, um representante da senzala social: Luiz Inácio Lula da Silva. Seu governo se confronta com uma tarefa ingente: reconstruir uma nação devastada no seu corpo e no seu espírito. As raízes desse desumanismo estão ainda aí e estarão sempre, pois, são parte de nossa condição. Mas as mantemos sob controle. O povo e a nação optou pela luz contra a sombra, pelo amor contra o ódio, pelo sim-bólico contra a dia-bólicos.

Devemos nos manter sempre vigilantes, para que os demônios (que junto com os anjos) que nos habitam, inundem a consciência dos bolsonaristas e destruam sistematicamente o que gerações e gerações com suor e sangue construíram. Eles não passarão. Como não passaram outros chefes de estado criminosos e inimigos da vida.

*Leonardo Boff, é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Brasil: concluir a refundação o prolongar a dependência? (Vozes).

A economia brasileira continuará a crescer? por Paulo Nogueira Batista Júnior

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Paulo Nogueira Batista Júnior – A Terra é Redonda, 12/01/2024

Baixar os juros favorece o crescimento e afeta favoravelmente a distribuição da renda nacional e as contas públicas, mas o BC precisa manter juros altos para agradar a Patifaria Lima

A economia brasileira continuará a crescer? É a pergunta que muitos fazem e que alguns economistas, temerários, se animam a responder. Fato é que a economia cresceu algo como 3% ao ano em 2022 e 2023, o que configura certa recuperação. Nada de espetacular, verdade, mas já é um começo. O que interessa, entretanto, é saber se o crescimento continuará nos próximos anos. O que esperar de 2024 e 2025?

Depende, em grande medida, da política econômica do governo, em especial da política fiscal e da política monetária. Os economistas dedicados a fazer projeções regularmente não estão muito otimistas. Entraram o ano prevendo um prevendo um aumento do PIB de apenas 1,6 % em 2024 e de 2% em 2025. Resultados medíocres, se as previsões se confirmarem.

Felizmente, podemos dizer que essas projeções não têm grande valia – como vimos em 2022 e 2023, quando as taxas de expansão econômica previstas no início do ano foram largamente superadas pelos resultados observados. Nenhuma novidade. Os economistas sempre demonstraram uma crônica incapacidade de identificar relações funcionais estáveis e, portanto, de antecipar minimamente o futuro. Como dizia Galbraith, a única função das previsões econômicas é conferir certa respeitabilidade à astrologia.

E, no entanto, cabe reconhecer que o pessimismo atual dos economistas não é de todo descabido. Ressalte-se, primeiramente, que uma acentuada desaceleração da economia brasileira está em curso desde o terceiro trimestre de 2023. O crescimento do ano passado apresentou pontos vulneráveis.

Dependeu muito do setor primário-exportador e do consumo das famílias. A indústria de transformação estagnou e a formação bruta de capital fixo caiu. A taxa agregada de investimento, que já era insuficiente, diminuiu mais, ficando abaixo de 17%. Com um rimo tão modesto de investimento e de criação de capacidade produtiva, fica difícil sustentar taxas adequadas de crescimento econômico.

O que explica essa performance sofrível? Uma razão, bem conhecida nossa, é a política de juros altos praticada sistematicamente pelo Banco Central. A autoridade monetária demonstra uma aversão instintiva e profundamente arraigada a tudo que possa parecer crescimento econômico. Ao menor sinal de reativação da economia, acendem-se sinais de preocupação no BC, que logo passa a remar em direção contrária. E tem praticado, como se sabe, as maiores taxas de juro reais do planeta Terra. Quando não são as maiores, estão sempre entre as maiores. Houve, é verdade, certa diminuição dos juros básicos desde meados de 2023, mas foi em ritmo lento, deixando as taxas reais nas alturas.

Pode ser que isso mude. O Comitê Política Monetária do BC, o famigerado Copom, conta agora com quatro integrantes nomeados pelo governo Lula. É verdade que são nove ao todo e o presidente continua a ser aquele foi nomeado pelo governo de Jair Bolsonaro, em razão da lei de autonomia do Banco Central conferir ao comando da instituição mandatos fixos não coincidentes com o do
Presidente da República. De todo modo, quatro em nove já é suficiente para fazer alguma diferença – a menos que os novos membros do Copom se contentem em ser meras vacas de presépio, aceitando bovinamente a linha definida pelo presidente do Banco Central. Não acredito e por isso arrisco dizer que há esperanças.

Até porque são tantos e tão evidentes os malefícios dos juros estratosféricos que podemos supor que, cedo ou tarde, haverá de baixar uma luz providencial lá no Banco Central. O leitor já deve ter escutado, provavelmente mais de uma vez, os argumentos contra a política de juros altos. Mas vale a pena insistir uma vez mais, dado que os juros brasileiros continuam na lua.

São três os malefícios principais. Primeiro, o já referido impacto adverso sobre o crescimento econômico. Com juros altos e crédito escasso, cai a demanda por bens duráveis de consumo e, mais importante, o nível de investimento em capacidade nova de produção. Para que correr o risco de aventurar-se em novos empreendimentos ou na ampliação dos existentes, se o dinheiro pode ficar aplicado em segurança, liquidez e rendendo juros confortáveis? Neste paraíso do rentista chamado Brasil, não compensa ser empresário.

Segundo malefício: a política de juros altos concentra a renda nacional, pois o que ela faz é transferir renda para aqueles que detém patrimônio financeiro, ou seja, para as minorias aquinhoadas. Eis um argumento que deveria sensibilizar os corações e mentes num país como o nosso, que apresenta, desde sempre, uma das piores distribuições de renda do planeta. Deveria, mas não faz nem cócegas nos círculos ilustres da Patifaria Lima. Ali, a preocupação principal, quase exclusiva, repetida ad nauseam, é com o risco fiscal e o desequilíbrio das contas públicas.

E, com isso, chegamos ao terceiro grande malefício dos juros altos e, ao mesmo tempo, a uma notável contradição no discurso da turma (ou turba) da bufunfa. Veja, leitor, que coisa curiosa.

O que é o risco fiscal? Basicamente, o fato de o déficit público gerar uma expansão da dívida que pode ser revelar insustentável. Recomenda-se, portanto, zerar o déficit primário das contas do governo, em linha com o que promete o arcabouço fiscal do ministro Fernando Haddad.

O curioso é que os que alardeiam as suas preocupações com o risco fiscal, raramente, quase nunca, se referem ao componente financeiro do déficit público. É uma omissão sintomática, que reflete os interesses da Patifaria Lima. O assunto omitido nada tem de misterioso. O déficit público reflete menos o déficit primário do que a despesa líquida de juros do governo. Esta por sua vez decorre da política monetária. Em 2023, por exemplo, estima-se que o déficit total tenha representado cerca de 8,3% do PIB, correspondendo a um déficit primário de 1,5% e a uma despesa líquida de juros mais de quatro vezes maior, de 6,8% do PIB.

Não perder de vista que o crescimento da dívida pública, que tanto preocupa os economistas do mercado, está associado ao déficit total e não somente ao primário. Não se justifica, assim, o foco exclusivo ou quase exclusivo no resultado primário, isto é, nas contas exclusive a carga de juros.

No Brasil, a dívida pública é sobretudo interna e o seu custo depende diretamente das taxas básicas fixadas pelo Copom. Para ser considerado monetariamente responsável pela Patifaria Lima, o Banco Central precisa manter juros altos. Pouco importa se essa suposta responsabilidade monetária conflita com as declaradas preocupações com a responsabilidade fiscal.

Em resumo, baixar os juros favoreceria o crescimento e, de quebra, afetaria favoravelmente a distribuição da renda nacional e as contas públicas. Resta saber se juros menores seriam suficientes para garantir a manutenção de um crescimento razoável da economia nos próximos dois anos. Talvez não. A experiência sugere que a política fiscal joga um papel tão ou mais importante que a monetária. O investimento privado depende do investimento público; o consumo, das transferências sociais.

A função mais importante da política monetária na atual conjuntura talvez seja a de abrir espaço para uma política fiscal mais flexível sem que isso se reflita em crescimento preocupante da dívida pública. Aqui entram o arcabouço fiscal e as suas metas ambiciosas de resultado primário para os próximos dois anos: déficit zero em 2024 e superávit em 2025. Metas fixadas, recorde-se, para tranquilizar a Patifaria Lima e aplacar as suas desconfianças em relação ao governo Lula.

Nessa situação estamos. Precisamos de uma política fiscal flexível para reverter a estagnação.

Mas as metas vigentes correm o risco de levar a uma política contracionista, exatamente o contrário do que se necessita. Ave Patifaria Lima, morituri te salutant – os que estão prestes a morrer te saúdam.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém (LeYa).

Versão ampliada de artigo publicado na revista Carta Capital, em 12 de janeiro de 2024.

O que realmente sabemos sobre a economia global, por Martin Wolf

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Da demografia à tecnologia, devemos prestar atenção nas forças que certamente moldarão nosso futuro

MARTIN WOLF, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo, 16/01/2024

FINANCIAL TIMES

O que vai acontecer com a economia mundial? Nunca saberemos a resposta para essa pergunta.

Década após década, algo grande e em grande parte inesperado ocorreu —a grande inflação e os choques do petróleo na década de 1970, a desinflação no início da década de 1980, a queda da União Soviética e o surgimento da China na década de 1990, as crises financeiras nas economias de alta renda na década de 2000 e a pandemia, inflação pós-pandemia e guerras na Ucrânia e no Oriente Médio nesta década de 2020.

Vivemos em um mundo de riscos concebíveis e obviamente importantes. Alguns —guerra entre grandes potências nucleares— poderiam ser devastadores. A dificuldade é que eventos de baixa probabilidade e alto impacto são quase impossíveis de prever.

No entanto, também sabemos de algumas características importantes de nossa economia global que não são incertas. Também devemos considerá-las. Aqui estão cinco delas.

A primeira é a demografia. As pessoas que serão adultas daqui a duas décadas já nasceram. As pessoas que terão mais de 60 anos daqui a quatro décadas já são adultas.

A mortalidade pode aumentar, talvez por causa de uma terrível pandemia ou uma guerra mundial.

Mas, a menos que ocorra uma catástrofe desse tipo, temos uma boa ideia de quem estará vivendo daqui a décadas.

Várias características de nossa demografia são bastante claras. Uma delas é que as taxas de fertilidade —o número de filhos nascidos por mulher— têm caído em quase todos os lugares.

Em muitos países, especialmente na China, as taxas de fertilidade estão muito abaixo dos níveis de reposição.

Enquanto isso, as maiores taxas de fertilidade estão na África Subsaariana. Como resultado, sua participação na população global pode aumentar em 10 pontos percentuais até 2060.

Essas mudanças demográficas são resultado do aumento da longevidade, da transformação nos papéis econômicos, sociais e políticos das mulheres, da urbanização, dos altos custos da paternidade, das melhorias na contracepção e das mudanças na forma como as pessoas julgam o que vale a pena em suas vidas.

Apenas grandes choques poderiam concebivelmente mudar qualquer uma dessas coisas.

Uma segunda característica é a mudança climática. Talvez as tendências atuais sejam revertidas a tempo.

Mas as emissões de gases de efeito estufa mal se estabilizaram, enquanto o mundo continua a ficar mais quente à medida que os estoques desses gases na atmosfera continuam a aumentar. É uma aposta segura que isso continuará acontecendo por muito tempo.

Se assim for, as temperaturas certamente subirão muito mais do que 1,5°C acima dos níveis pré-industriais, que nos disseram ser o limite superior de segurança razoável. Teremos que trabalhar mais para mitigar as emissões. Mas também teremos que investir pesadamente em adaptação.

Uma terceira característica é o avanço tecnológico. O progresso em energia renovável, especialmente a queda no custo da energia solar, é um exemplo. Avanços nas ciências da vida são outro exemplo.

Mas, em nossa era, a revolução nas tecnologias da informação e comunicação é o centro desse progresso.

Em “The Rise and Fall of American Growth”, Robert Gordon, da Universidade Northwestern, argumentou de forma convincente que a amplitude e a profundidade da transformação tecnológica diminuíram, quase inevitavelmente, desde a segunda revolução industrial do final do século 19 e início do século 20.

A tecnologia de transporte, por exemplo, mudou muito pouco em meio século. Mas a transformação no processamento de informações e comunicação tem sido surpreendente.

Em 1965, Gordon Moore, que fundou a Intel, argumentou que “com o custo unitário diminuindo à medida que o número de componentes por circuito aumenta, até 1975 a economia pode exigir a compressão de até 65 mil componentes em um único chip de silício”. Isso estava certo.

Mas surpreendentemente, a lei de Moore continua sendo verdadeira quase meio século depois. Em 2021, o número de tais componentes era de 58,2 bilhões. Isso permite maravilhas no processamento de dados.

Além disso, 60% da população mundial usou a internet em 2020. Mais transformações na forma como vivemos e trabalhamos devem seguir a partir disso. O desenvolvimento e uso da inteligência artificial é o exemplo mais recente.

Uma quarta característica é a disseminação do conhecimento pelo mundo. As regiões em desenvolvimento do mundo que se mostraram mais hábeis em absorver, usar e promover esse conhecimento estão no leste, sudeste e sul da Ásia, que contêm aproximadamente metade da população mundial.

A Ásia em desenvolvimento também continua sendo a região de crescimento mais rápido do mundo.

Dada a capacidade —e a oportunidade— de alcançar, é uma aposta segura que isso continuará. O centro de gravidade da economia mundial continuará a se deslocar na direção dessas regiões.

Isso inevitavelmente criará mudanças políticas. Na verdade, já criou. O rápido crescimento econômico da China é o grande fato geopolítico de nossa era. No longo prazo, o crescimento da Índia provavelmente também terá grandes consequências globais.

Uma quinta característica é o próprio crescimento. De acordo com o trabalho atualizado do falecido Angus Maddison, bem como do FMI, a economia mundial cresceu todos os anos desde 1950, exceto em 2009 e 2020. O crescimento é uma característica inerente à nossa economia.

As Perspectivas Econômicas Globais recentes do Banco Mundial observam que o que se avizinha em 2024 é “um marco lamentável: o desempenho de crescimento global mais fraco de qualquer quinquênio desde a década de 1990, com pessoas em uma em cada quatro economias em desenvolvimento mais pobres do que antes da pandemia”.

No entanto, mesmo nesse período afetado pelo choque, a economia mundial cresceu, mesmo que de forma desigual entre países e pessoas, e de maneira desigual ao longo do tempo. Não estamos entrando em uma era de estagnação econômica global.

É fácil ser sobrecarregado por choques de curto prazo. Mas o urgente não deve ser permitido a superar nossa consciência do importante. Em segundo plano, as grandes forças descritas acima remodelarão nosso mundo. Enquanto melhoramos nossa capacidade de responder a choques, devemos prestar muita atenção a eles.

Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista, por José de Souza Martins

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José de Souza Martins – A Terra é Redonda, 13/01/2024

A conquista do Outro

O tema da chamada “escravidão contemporânea”, no Brasil, não significa a mesma coisa em diferentes bocas e em diferentes escritos. Nem mesmo significa sempre propriamente escravidão. E nem sempre é apresentado em perspectiva propriamente científica. Mesmo em estudos acadêmicos, são muitas as incertezas conceituais e são frequentes as tentações do mero denuncismo em si, sem penetrar nas causas, fatores, consequências sociais e funções econômicas de sua ocorrência e persistência no capitalismo subdesenvolvido.

Diferentemente do que pode pressupor o senso comum, mesmo de pessoas e instituições empenhadas, por ímpeto de justiça, em combatê-la, a escravidão contemporânea não é expressão casual de uma maldade, de uma esperteza de quem a pratica, de um desconhecimento do que ela propriamente é – um crime.

Apesar de eventuais incertezas e vacilações na sua definição, desde os anos 1970, pelo menos, em diferentes lugares do mundo organizações humanitárias e os Estados têm se empenhado em combater a escravidão e punir sua prática. Também aqui no Brasil. Aqui tem sido forte a tendência com o objetivo de, com justiça, submeter cada vez mais as empresas e os autores do crime de escravização aos rigores da lei.

Isso apesar de termos ainda uma disseminada e indevida certeza de impunidade e de reiterados casos de ações baseadas no equívoco de suporem os autores que a violência privada de jagunços e pistoleiros, recrutados como aparato repressivo na situação de trabalho, vale também na resistência aos agentes da lei. Casos de assassinatos de militantes da causa antiescravista e até mesmo de funcionários das agências oficiais de repressão ao trabalho forçado não têm sido raros. Apesar de o Brasil ser signatário, desde os anos 1920, de convenções internacionais que obrigam os Estados nacionais à proibição da escravidão e a combatê-la, porque se trata de crime, muitos ainda acham que o proprietário de terra pode legitimamente ser, também, proprietário de gente.

Ainda agora, em 2023, dois fazendeiros do sul do Pará foram condenados a cinco anos de prisão pela submissão de 85 trabalhadores a trabalho análogo ao de escravidão. A ocorrência é de 2002, mas o crime de escravização é imprescritível. O processo vinha se arrastando desde que dois menores de idade conseguiram fugir da fazenda em que eram escravizados e denunciaram a irregularidade às autoridades. O processo chegou a desaparecer, mas foi reconstituído. Foi a julgamento agora em consequência de uma sentença de condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos. O juiz federal substituto da Comarca de Redenção, no sul do Pará, sentenciou os fazendeiros no dia 27 de junho de 2023.[1]

A importância dessa condenação é enorme. A escravidão praticada no Brasil tem peculiaridades que a diferenciam de outras variantes da escravização de seres humanos na atualidade: a de que ela é, em primeiro lugar, expressão de contradições do subcapitalismo que temos. Ela está praticamente inscrita na estrutura lógica desse capitalismo. O restante é dela decorrente e dela componente, como a maldade necessária à sujeição de um ser humano, como se fosse um animal, indício de atraso social e de falta de identificação de quem dela se vale com a condição humana. Mas, sobretudo, indício de um complexo de degradações sociais necessárias à naturalização do cativeiro para que ele cumpra a função iníqua que o motiva.

Na trama de suas relações e de suas causas não há propriamente escolha. Os fatores econômicos se comunicam, seus custos e seus ganhos impõem-se à trama inteira. A própria vítima dela participa não por conivência e impotência, mas por estratégia de sobrevivência em nome da sua diferença social, enquanto alternativa social e histórica. Em nome de um possível que da contradição resulta, que tem visibilidade para ela, mas não tem para quem a explora e oprime. E não tem necessariamente para quem presume defendê-la e em seu nome reivindicar justiça e direitos.

Nesse sentido, este livro não é apenas nem principalmente um livro sobre a atualidade da escravidão. Trata-se de um estudo sobre o modo como o capital organiza empreendimentos econômicos em áreas de condições sociais, econômicas e ambientais de quase ausência do Estado, em face das quais não tem sido incomum o recrutamento de trabalhadores, já de antemão previsto, mas não revelado, que trabalharão como escravos.

Na verdade, essa escravidão é opção inevitável da vítima pela alternativa degradante e não capitalista de trabalho. É para resistir à ameaça e aos efeitos socialmente corrosivos da expansão do capitalismo sobre territórios e comunidades camponesas, de populações originárias, indígenas, caipiras e sertanejas.

Trabalho que, mesmo quando não acarreta ganho, no endividamento do trabalhador, que acaba trabalhando de graça, diminui na família, na entressafra, o número de bocas para a comida insuficiente.[2] E, se houver algum ganho, mesmo aquém do valor criado pelo trabalho cativo em relação ao saldo recebido, será um benefício com base na ideologia camponesa do trabalho de sobrevivência contra a ideologia capitalista do trabalho lucrativo. Essa é a contradição cuja causa a sociologia pode decifrar.

O trabalho escravo é a dolorosa expressão do verdadeiro conflito histórico entre os desvalidos e o capital, um dos conflitos estruturais do capitalismo brasileiro na disputa da terra de trabalho, a terra de sobrevivência, contra a terra de negócio e rentismo, de usurpação, a de um capitalismo subdesenvolvido. É a questão agrária como questão do trabalho que dá sentido a esse conflito e a esse drama. Os autores de digressões sobre a “escravidão contemporânea” omitem-se em relação a essa contradição, sociologicamente explicativa. A do assalto indireto do capital ao mundo camponês, assalto através das mediações de ocultamentos sociais para viabilizar os resultados econômicos de sua reprodução ampliada.

As regiões e as comunidades dessas populações têm sido com frequência os lugares de aliciamento de camponeses para o trabalho sob escravidão por dívida. Não se trata, pois, de uma referência geográfica, mas de uma mediação social datada, pré-capitalista, cujo atraso histórico interessa ao capital, mas cuja resistência e sobrevivência interessa sobretudo à vítima – o camponês e as populações originárias.

Esse atraso lhes é, na verdade, um capital cultural e político, que só se desperdiça porque lhe faltam as mediações políticas e partidárias. O atraso, na verdade, é dos partidos na falta de reconhecimento e compreensão do significado e da função política dos grupos humanos deixados à margem da história por uma opção equivocada em favor de uma concepção de progresso socialmente excludente.

Variam as motivações, muitas vezes extracientíficas, dos estudiosos, que, ao revelar e denunciar ocorrências, desprezam, porque as desconhecem ou minimizam, as contradições explicativas e reveladoras da realidade social problemática. As que sociologicamente compreendem o visível e o não visível, o falso e o verdadeiro. Os fatores revelados e os fatores ocultos do processo histórico. Os fatores de reiteração e os de transformação da realidade, os que criam socialmente o novo e, ao mesmo tempo, recriam o que parece ser o já existente, como interpreta e explica Henri Lefebvre.[3] Os que estão presentes na estruturação das condições sociais do cativeiro, isto é, na disputa e dominação do capital pelos lugares e situações comunitários e tradicionais da sociabilidade e da autonomia camponesas e da economia da produção direta de meios de vida, paralelamente à de excedentes comercializáveis. Os das populações excluídas e originárias.

Ou, então, os que desvendam e expõem as invisibilidades próprias do capitalismo num país subdesenvolvido, como o nosso, e expõem as vulnerabilidades do voluntarismo dos que se dedicam a questioná-lo e a combatê-lo, prisioneiros do superficial e aparente. O que é tão característico da moda política de hoje, mas divorciado das revelações da ciência e das duras verdades e incertezas das contradições sociais. A incômoda constatação científica de Marx, de que “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem…”.[4] E menos ainda como os outros querem fazê-la em nome de todos sem legitimamente representá-los.

Esse desencontro é o cerne explicativo de toda a sociologia marxiana. É um questionamento que define o perfil deste livro na linha da tradição do pensamento sociológico crítico, ou seja, dialético, o de ampliação e aprofundamento do conhecimento sobre a realidade social além do mero agora. O desvendamento e o questionamento da alienação social, que acoberta a realidade, enquanto falsa premissa de ciência que há na militância desinformada e superficial.

A questão da “escravidão contemporânea” é, na sociologia, questão de urgência e é também questão de enfrentamento do poder de minimização dos problemas sociais, cada vez mais intenso da pós-modernidade. Esta é a sociedade da ocultação das verdades profundas e causais da história e da sua própria historicidade.

Muitos querem, altruisticamente, combater a iniquidade de relações de trabalho antissociais e anti-humanas. Outros querem, de modo não tão altruístico, combater as interpretações que podem estar em desacordo com suas opiniões de senso comum, seus interesses e conveniências partidários e ideológicos, seu exibicionismo político.

Um livro como este é uma proposta de desembaralhar, na perspectiva da ciência, essa diversidade opinativa, e desse modo criar as condições para uma interpretação objetiva e crítica da grave questão, no sentido marxiano de conhecimento explicativo, sociológico, de diferentes modalidades de conhecimento: “das representações, das ilusões de classe, dos instrumentos ideológicos”.[5] Único modo de situá-la no marco da possibilidade de sua superação, e iluminar o caminho desse ser solitário, invisível e difuso que intui no dramático da vida o desafio da transformação social libertadora como obra de correção e de superação das injustiças que negam a todos o direito à sua humanização. Se há um único escravo numa sociedade como esta, todos nós estamos atados à sua situação, porque a sociedade é relacional. Somos sujeitos do mesmo sistema de relacionamentos e de minimização da condição humana.

Ao se falar em escravidão atual está se falando, necessariamente, numa anomalia resultante das contradições sociais de um modelo de sociedade que tem nome: a sociedade capitalista mutilada e insuficientemente realizada, como a brasileira, atravessada pelo primado de interesses econômicos e consequentes irracionalidades que negam o capitalismo e crucificam a sociedade.

De uma análise assim, não resulta receita legítima de militância e ativismo indeterminados e desconectados da estrutura social profunda que dá sentido aos movimentos sociais. Resulta a referência para o que Hans Freyer definiu e Florestan Fernandes explicou: a sociologia como consciência científica da realidade social,[6] caso em que o ativismo não é nem pode ser teatro, para que possa ser práxis socialmente transformadora.

Os capítulos deste livro foram escritos com independência uns dos outros, por motivações tópicas, em épocas diferentes, a partir de uma mesma e demorada observação sociológica.

O volume tem, porém, uma unidade interpretativa e de revisão crítica de análises que dela carecem porque, no meu modo de ver, estão distantes de uma problematização científica de investigação do grave problema social do trabalho escravo, apesar dos esforços já feitos por vários pesquisadores, devidamente citados nos lugares adequados.

A unidade do livro está exposta no Capítulo I, e é a da opção por um método de explicação que corresponda à natureza social do problema de investigação. Que é a de uma realidade que por ser social é cambiante, que se transforma mais depressa do que a competência do senso comum para compreendê-la.

Em relação ao método e ao conjunto do texto, há compreensivelmente alguma reiteração de referências a esse núcleo explicativo do livro, nos diferentes capítulos. O que se deve ao requisito de clareza do próprio fluxo expositivo do texto, mas sobretudo à necessidade de explorar os detalhes da interpretação correspondente ao respectivo tópico e suas conexões com a linha teórica da obra.

*José de Souza Martins é professor titular aposentado do Departamento de Sociologia da USP. Autor, entre outros livros, de O cativeiro da terra (Ed. Contexto).

Referência
José de Souza Martins. Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista. São Paulo, Editora Unesp, 2023, 270 págs.

Mudanças econômicas

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A economia internacional vem passando por grandes alterações nas últimas décadas com o crescimento e o fortalecimento do processo de globalização, que impacta fortemente sobre todos os governos, empresas e a sociedade civil. Nestas mudanças, alguns grupos econômicos e sociais ganham com estas constantes transformações, enquanto outros setores perdem espaço neste mundo de constantes alterações, gerando novos desafios e, ao mesmo tempo, novas oportunidades que exigem uma grande capacidade de reinvenção, agilidade e forte flexibilidade sob pena de perderem espaço no mundo do trabalho, centrados nas constantes incertezas e instabilidades.

Neste momento, percebemos que os governos vem adotando políticas para fortalecer suas estruturas econômicas e produtivas, consolidando vantagens comparativas e competitivas, investindo maciçamente para capacitar e qualificar a mão de obra, com fortes incentivos na formação de capital humano, investindo em pesquisa, ciência e tecnologia como forma de antecipar as grandes transformações na tecnologia global, onde o mundo analógico vem perdendo espaço e a consolidação de um mundo digital, fortemente tecnológico, com novos modelos de negócios, com novas instituições, com novos conceitos e uma competição mais acirrada e implacável, onde os ganhadores levam tudo e os perdedoras são relegados ao esquecimento.

Ao analisar os dados macroeconômicos brasileiros, percebemos uma melhora sensível nestes indicadores: inflação em queda, superávit comercial recorde, taxas de juros em redução, aumento dos níveis de emprego, redução do endividamento das famílias, aumento dos investimentos, fortalecimento da moeda nacional, dentre outros motivos que levaram as agências de classificação de risco a elevarem a nota do Brasil no mercado internacional, trazendo ganhos fiscais sensíveis, com diminuição do endividamento externo e melhorando a imagem do Brasil no cenário internacional.

Neste ambiente marcado por grandes transformações econômicas e produtivas motivadas pelo processo de globalização, a melhora da economia nacional nos traz novos horizontes e possibilidades positivas, nos posicionando em uma condição interessante, como somos dotados de grandes riquezas naturais e marcados por uma grande variedade de energias alternativas e renováveis, num mundo carente destas possibilidades, onde encontramos países ricos e desenvolvidos que passam por grandes dificuldades energéticas e custos assustadores ligados a degradação do meio ambiente, levando suas estruturas produtivas a perderem competitividade em decorrência do incremento da inflação e do aumento do custo de vida, vide o caso Alemão, que vem perdendo espaço no mercado internacional, gerando graves constrangimentos internos e fragilizando o bloco europeu, aja vista que a Alemanha é a força motriz da economia europeia.

Os indicadores macroeconômicos brasileiros estão apresentando melhoras consideráveis, mesmo assim, sabemos que precisamos melhorar mais rapidamente para reduzir as dívidas históricas acumuladas para grande parte da população nacional, pessoas que prescindem de políticas públicas para melhorar suas condições de vida, emprego digno e decente e a construção de novos espaços de ascensão econômica e social, atualmente concentradas em poucos grupos sociais, na maioria das vezes a tão sonhada ascensão econômica está relacionada a heranças e vinculados a grandes grupos financeiros, além de grande capacidade de influência política.

As mudanças econômicas estão acontecendo, embora lentamente, as pautas estão sendo modificadas, assuntos vistos como improváveis estão entrando na agenda econômica, a tão sonhada taxação de fundos exclusivos se transformou em realidade, a política industrial que sempre foi endemoniada pelos economistas liberais está sendo retomada no mundo todo e a economia verde vem ganhando espaço no cenário econômico nacional, com discussões acaloradas e políticas efetivas para garantir recursos para capacitar nossa população. Neste momento, quem sabe, possamos eliminar os parasitas econômicos que pouco produzem e sempre ganham divulgando o caos generalizado.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Circular, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Reconstrução da confiança no futuro, por Klaus Schwab

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A atual onda de pessimismo não tem precedentes

Klaus Schwab, Fundador e presidente executivo do Fórum Econômico Mundial

Folha de São Paulo, 15/01/2024

O aumento da divisão, a escalada da hostilidade e o crescimento dos conflitos estão definindo o cenário global atual. A necessidade eterna de gestão de crises está esgotando a fundamental energia do ser humano, que, de outra forma, poderia ser canalizada para moldar um futuro mais otimista.

Apesar ter havido graves crises no passado, a atual onda de pessimismo não tem precedentes. E, ao contrário do que ocorreu no passado, o poder e a presença da mídia global e da tecnologia de comunicação significam atualmente que todos os desafios e contratempos estão ampliados, potencializando ainda mais a sensação de desgraça e tristeza.

Depois de uma era que tirou um bilhão de pessoas da pobreza e melhorou os padrões de vida em todos os lugares, a ansiedade gerada pelo medo de perder o controle sobre o que está por vir tem levado as pessoas a abraçar ideologias extremas e os líderes que as defendem.

É de fundamental importância que se reconstrua a confiança no nosso futuro. A questão é por onde começar, dadas as circunstâncias complexas de hoje.

De modo semelhante a um diagnóstico médico, devemos primeiro identificar e abordar as causas do nosso mal-estar. Estamos em um momento crucial da história, mas ainda nos apegamos a soluções defasadas. Um fator complicador é estarmos lidando com muitos problemas ao mesmo tempo, todos profundamente interconectados e que se reforçam de forma mútua. Não há solução rápida ou desfecho único para todos os problemas. O fato é que devemos abordar todos os sintomas de forma holística.

Em primeiro lugar, não temos mais uma narrativa de como revigorar nossas economias, que hoje estão sobrecarregadas por níveis insustentáveis de dívida e inflação, corroendo o poder de compra das pessoas. As políticas monetárias e fiscais tradicionais perderam força e as políticas relativas às demandas estão agravando ainda mais o fardo das dívidas.

O que é crucialmente necessário neste momento é uma nova abordagem, que promova a transição para uma economia verde, digital e inclusiva, como uma grande oportunidade para a criação de empregos e o aumento do poder de compra e, finalmente, com foco em crescimento econômico sustentável.

Em segundo lugar, as mudanças climáticas são uma clara ameaça para as gerações atuais e, especialmente, para as futuras. Devemos responder a esse desafio aumentando a acessibilidade, a segurança e a sustentabilidade em termos de energia, ao mesmo tempo em que reduzimos as dependências geoeconômicas e geopolíticas. Com o avanço tecnológico,
a energia renovável mais barata está prontamente disponível e pode contribuir substancialmente para um mundo mais equitativo, com impactos de longo alcance no meio ambiente, na qualidade de vida e na longevidade.

Um terceiro ponto a ser considerado é que estamos vivendo uma era de desenvolvimento tecnológico exponencial, particularmente com o advento da inteligência artificial. Essas tecnologias podem ser forças extremamente disruptivas se não forem bem geridas, mas também podem servir como catalisadoras de um renascimento da humanidade, tornando possíveis novas dimensões da criatividade humana e promovendo colaboração e compreensão sem precedentes.

Essas narrativas holísticas exigem cooperação global, nacional e local, especialmente em um mundo que está se tornando mais competitivo e multipolar, marcado por crescentes divisões sociais e incertezas generalizadas.

Conversas abertas e transparentes podem restaurar a confiança mútua entre indivíduos e nações que, por medo do futuro, priorizam seus próprios interesses, diminuindo a esperança de um futuro mais próspero.

Para nos afastarmos das dinâmicas impulsionadas pela crise e promover a cooperação, a confiança e uma visão compartilhada para um futuro melhor, devemos criar uma narrativa positiva que possibilite as oportunidades apresentadas por este ponto de virada histórico.

Hipocrisia global, por Hélio Schwartsman

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Seletividade de governos em relação a direitos humanos reduz confiança em instituições responsáveis por protegê-los

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.
Folha de São Paulo, 13/01/2024

Relatório da ONG Human Rights Watch (HRW) afirma que a seletividade com que governos tratam direitos humanos mina a confiança nas instituições responsáveis por proteger esses direitos. Não vejo como discordar.

Líderes globais são rápidos em denunciar violações cometidas por países com os quais têm diferenças, mas mostram tolerância inesgotável para com abusos perpetrados por nações amigas. “Quando governos condenam veementemente os crimes de guerra do governo de Israel contra civis em Gaza, mas silenciam frente aos crimes contra a humanidade do governo chinês em Xinjiang, ou exigem punições internacionais em relação aos crimes de guerra russos na Ucrânia ao mesmo tempo que minimizam a responsabilização dos EUA pelos abusos no Afeganistão, enfraquecem a crença na universalidade dos direitos humanos e na legitimidade das leis destinadas a protegê-los”, diz a HRW.

Na mosca. O nome disso é hipocrisia e, como já ensinava La Rochefoucauld, hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude. Cabe a ONGs, à mídia independente e a quem mais quiser apontar as contradições dos governantes e cobrar-lhes coerência. Mas não devemos ser ingênuos a ponto de achar que isso muda o jogo. Lidamos aqui com alguns dos mais profundos vieses humanos, que não serão revertidos com lições de moral.

O interessante é que, apesar dessa falha catastrófica, o sistema funciona. A analogia aqui é com a ciência. O ideal seria que cientistas, em nome da autocorreção, procurassem obsessivamente falhas em suas teorias e experimentos. No mundo real, porém, cientistas tendem a defender e não atacar suas próprias ideias. Erros e imprecisões costumam ser descobertos por grupos rivais. E é o que basta. O importante é que os desacertos sejam apontados, não importa tanto por quem.

Continuando com La Rochefoucauld, “a opinião que nosso inimigo tem de nós está mais perto da verdade do que a nossa própria”.

O 8/1 e a lembrança de que o futuro do planeta depende das urnas, por Ilona Szabó de Carvalho

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Defesa do Estado de direito exige sociedades mais justas, inclusivas e sustentáveis

Ilona Szabó de Carvalho, Presidente do Instituto Igarapé, membro do Conselho de Alto Nível sobre Multilateralismo Eficaz, do Secretário-Geral. da ONU, e mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia)

Folha de São Paulo, 10/01/2024

As lembranças e algumas revelações trazidas à tona no aniversário de um ano dos lamentáveis atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023 reforçaram a compreensão, assustadora, do quão perto estivemos de um golpe de Estado, algo que nos últimos 40 anos julgávamos haver sido extirpado do vocabulário político brasileiro.

Nem as ameaças, nada veladas, feitas ao longo do governo anterior, nos prepararam para a fúria golpista de uma militância de extrema-direita mobilizada por uma avalanche de desinformação e teorias da conspiração compartilhadas – e amplificadas – nas redes sociais.

O terreno foi pavimentado por líderes com pretensões autoritárias e narrativas online cada vez mais sofisticadas e abundantes, que minaram a confiança no sistema eleitoral e atacaram instituições democráticas, em especial, o Judiciário.

O problema não é uma jabuticaba brasileira. Mundo afora a cartilha se repete: populistas se elegem sob um verniz de institucionalidade para, uma vez no poder, adotarem práticas de enfraquecimento do sistema de freios e contrapesos, de silenciamento da oposição e de extermínio de instrumentos de controle à expansão de poder. O próprio ataque ao Capitólio americano em 2021 corrobora o fato de que o fechamento do espaço cívico e as ameaças à democracia são um fenômeno global.

Nesse quesito, 2024 será um ano decisivo. Pela primeira vez na história, mais da metade da população mundial será impactada por eleições nacionais: quase 2 bilhões de pessoas em mais de 70 países irão às urnas.

Se podemos esperar este ano avanços significativos em tecnologias digitais e verdes, financiamento climático e em outras agendas relevantes, o aprofundamento da polarização política e dos conflitos que se espalham da Europa ao Oriente Médio, chegando às Américas, nos leva a cenários de alto risco para a democracia.

Não é exagero dizer que o progresso global da sociedade depende do que acontece nas urnas, e de se os resultados dos pleitos irão na direção da busca por oportunidades de convergência e cooperação para enfrentar os desafios comuns à humanidade.

O exemplo mais contundente dessas ameaças potenciais são as eleições presidenciais nos EUA. O ex-presidente Donal Trump, enquanto trava uma batalha na Justiça para definir a sua responsabilidade pelos ataques ao Capitólio, já conseguiu mobilizar seu partido e eleitores, e lidera as pesquisas.

O legado dos ataques golpistas não parece claro nos EUA, mas, no Brasil, a história parece estar sendo escrita com outros contornos. Para além da destruição de patrimônio físico e institucional dos poderes que fundamentam o funcionamento democrático da sociedade brasileira, o 8 de janeiro deixou no rastro duas importantes constatações. A primeira: o Brasil é capaz de defender sua democracia. A segunda é que não basta a eterna vigilância – a defesa do Estado de direito exige alcançarmos sociedades mais justas, inclusivas e sustentáveis.

A sociedade civil tem um papel fundamental para que os governos se mantenham responsáveis, monitorando o cumprimento de suas promessas e cobrando a formulação e implementação de políticas públicas que posicionem o interesse público no centro das prioridades. E as eleições municipais que teremos aqui são um bom começo para trazer no nível local aquilo que gostaríamos de alcançar a nível global.

Em um ano de tantos desafios, o Brasil pode liderar pelo exemplo, construindo e adotando de fato políticas de redução das desigualdades e de combate à tripla crise planetária, traçando estratégias responsáveis para fazer frente aos impactos da transformação digital e erguendo pontes em um mundo multipolar por meio da cooperação, do diálogo e do compromisso com a democracia.

Viciada em combustíveis fósseis, humanidade se acomoda a recordes de temperatura, por Marcelo Leite

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Calor extremo faz de 2023 o Ano do Sapo, quando a Terra chegou à ebulição climática, após décadas a caminho da fervura

Marcelo Leite, Folha de São Paulo, 10/01/2024

Entre os 12 animais que marcam os anos do calendário chinês não há lugar para batráquios, mas 2023 bem poderia ser identificado como o Ano do Sapo: aquele em que a Terra chegou ao ponto de ebulição climática, após décadas a caminho da fervura, por ação e omissão de governos e populações.

Era para ter saltado fora, há muito tempo, do caldeirão aquecido pela queima de combustíveis fósseis. Mas pouco se fez desde 1992, quando se adotou na Rio-92 a Convenção da ONU sobre Mudança Climática. A humanidade segue lançando CO2 na atmosfera como se não houvesse amanhã.

Não cabe alegar surpresa, assim, com a confirmação de que 2023 foi o ano mais quente já registrado desde a era pré-industrial. A temperatura do ar na superfície do planeta esteve 1,48°C acima da média no período 1850-1900, anuncia o relatório Destaques do Clima Global, compilado pelo Serviço Copernicus de Mudança do Clima, da União Europeia.

Tangenciou-se, com esse recorde, o limiar de segurança (1,5°C de aquecimento) traçado pelo Acordo de Paris (2015). Isso não implica, decerto, que essa fronteira prudencial tenha sido cruzada de modo permanente.

O clima terrestre está sujeito a grandes variações interanuais. Nada garante que 2024 venha a ser mais quente que 2023, ou que 2025 se revele mais escaldante que 2024, e assim por diante. Fica cada vez mais claro, porém, que a inação internacional alimenta uma curva ascendente.

O pico anual anterior cabia a 2016. Portanto, nesse intervalo de seis anos entre os recordistas a temperatura desviou-se menos das médias históricas.

Por outro lado, salta aos olhos que se iniciou uma era de alta sustentada nos termômetros e nas observações por satélite. Basta mencionar que todos os dez anos mais ardentes pertencem ao decênio em curso, ainda que numa aparente desordem: 2023, 2016, 2020, 2019, 2015, 2017, 2022, 2021, 2018 e 2014.

Todos os dias do ano passado estiveram, pela primeira vez, pelo menos 1°C acima da média 1850-1900. Metade deles superou 1,5°C; dois dias em novembro ultrapassaram 2°C, uma ocorrência inaudita.

A chaleira atmosférica de 2023 estava sobre duas bocas do fogão climático, o aquecimento global causado pela humanidade com a emissão de CO2 e um El Niño que se patenteou em meados do ano.

Esse aquecimento anormal das águas do Pacífico põe em polvorosa o clima no globo todo, com eventos extremos como as chuvas no Sul e as secas no Norte e no Nordeste do Brasil.

Há mais, como assinala o relatório do Copernicus. Outros oceanos também tiveram suas superfícies incomumente aquecidas, em especial o Atlântico Norte. Durante oito meses de 2023 o gelo marinho em volta da Antártida esteve abaixo das mínimas mensais correspondentes; o recorde geral de encolhimento ocorreu em fevereiro passado.

Não por acaso, a concentração de CO2, principal gás do efeito estufa, seguiu em alta, esta sim linear (a não ser pela variação sazonal observada a cada ano). Alcançou-se a marca de 419 ppm (partes por milhão), a mais alta em 100 mil anos. Em 2005, era da ordem de 375 ppm; na era pré-industrial, 280 ppm.

Uma vez emitido, o dióxido de carbono permanece por séculos na atmosfera, com metade dele absorvido em cerca de 120 anos. Cada tonelada emitida hoje —e são cerca de 37 bilhões delas lançadas a cada ano— continuará perturbando o clima com que terão de se virar nossos netos, bisnetos, tetranetos…

Para cumprir Paris, as emissões de carbono, principalmente devido à queima de combustíveis fósseis (petróleo, carvão mineral e gás natural), precisam ser reduzidas em 43% até 2030 —em seis anos, portanto. E, depois, eliminadas por completo até 2050, ou pelo menos neutralizadas, se até lá decolarem as prometidas tecnologias de retirada de carbono da atmosfera.

Para esquivar-se da redução imperativa, a indústria dos fósseis se apega às quimeras da captura e estocagem de carbono, do gás natural como combustível de transição (emite menos CO2 por unidade de energia produzida do que o petróleo e o carvão) e da renda do petróleo para financiar a revolução energética. Vão fazer de tudo para extrair o máximo do subsolo, antes que as restrições inevitáveis se materializem.

Se o fizerem, como planeja a Petrobrás na margem equatorial brasileira, será o equivalente de empresários que vendem todas as ações da firma quando sua insolvência se torna irrecorrível. No setor dos fósseis, as jazidas que não têm cabimento explorar são chamadas de ativos encalhados (“stranded assets”).

Nações não são empresas, assim como governos não são suas diretorias. Líderes que se pretendem estadistas deveriam enxergar além do horizonte de 4 ou 8 anos dos ciclos eleitorais, resistindo à pressão de investidores, burocratas, corporativistas e chantagistas.

Nesse sentido, é mau sinal que a próxima cúpula do clima, a COP29, em Baku (Azerbaijão), vá ser presidida por Mukhtar Babayev, ministro da Ecologia e Recursos Naturais que fez carreira na estatal petrolífera daquele país. A COP28, em Dubai (Emirados Árabes), foi chefiada por um executivo do petróleo, Sultan Ahmed al-Jaber, e deu no que deu —nada que faça diferença.

A reunião seguinte, COP30, será em Belém (PA). Ali, do lado da foz do rio Amazonas, do outro lado da ilha de Marajó, não tão distante assim, em termos amazônicos, das jazidas de óleo e gás que a Petrobras quer porque quer explorar. Não faltarão sapos nos arredores.

STF e desinformação especializada, por Georges Abboud

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Mídia chama de ativismo toda decisão do STF que lhe desagrade

Georges Abboud, Advogado, livre-docente e professor da PUC-SP.

Folha de São Paulo, 09/01/2024

Há mais de uma década pesquiso o tema ativismo judicial, o que se materializou em um livro, e uma das principais conclusões é a transformação do STF em inimigo ficcional por um projeto político de parcela extremada da sociedade e da política brasileiras.

Infelizmente, criticar e atacar o STF tem se apresentado como técnica eficiente e popular para a obtenção de votos, leitores e cliques. E nisso reside o risco de parte da mídia se pautar por trending topics sob pretexto de realizar uma análise isenta a respeito do Supremo.

Duas são as formas pelas quais a mídia profissional, ainda que involuntariamente, dissemina desinformação com relação ao STF. A primeira é relacionada à Operação Lava Jato.

Parcela da mídia não aceita que a constatação dos abusos gere consequências concretas que lhe são naturais, como a revisão dos julgamentos ou das penas e multas abusivas que foram impostas.

Houvesse verdadeira criteriologia, a mídia teria cobrado maior celeridade e assertividade na contenção e extinção da Lava Jato e se escandalizaria com as fundações privadas bilionárias que a Lava Jato tentou criar com auxílio de organismos internacionais em vez de vivenciar essa síndrome do sofrimento sem fim.

A segunda forma de desinformação decorre de uma avaliação pseudotécnica das decisões do STF que, basicamente, sem qualquer rigor técnico, chama de ativismo toda decisão do STF que desagrade a mídia ou parcela extrema da população brasileira.

Recentemente, o STF, na pessoa do ministro Dias Toffoli, sofreu duras críticas que demonstram as formas de desinformação explicadas acima.

A primeira se deu em razão da suspensão do acordo de leniência de uma companhia brasileira que foi notoriamente vítima da Lava Jato. A decisão apenas aplicou entendimento pacificado do STF em tantos outros casos na mesma situação e não anulou multa alguma, mas tão somente suspendeu seus aspectos patrimoniais para assegurar a uma investigada o direito de acessar as provas da Operação Spoofing para que pudesse verificar a extensão dos abusos sofridos. Ou seja, para a companhia não foi feito nada que já não estivesse consolidado no STF e, por diversas vezes, sido concedido a dezenas de outros réus.

Ocorre que parcela da mídia especializada afirmou que o STF, por meio do ministro atacado da vez, teria “perdoado” a dívida. Inclusive foi o que escreveu um colunista desta Folha, cuja expertise parece ter deixado o direito para se voltar à livre e baixa agressão ao STF, em uma verborragia travestida de crítica.

Ora, houvesse algum cuidado institucional, qualquer pessoa, inclusive o ombudsman, poderia verificar que não houve anulação da multa. Anular e suspender são ações distintas, tanto no direito quanto na língua portuguesa.

A outra decisão que gerou histeria midiática se refere à suspensão da decisão do TCU que havia interrompido a reintegração do pagamento adicional por tempo de serviço à magistratura, igualmente alvo de enfurecidas colunas e editoriais, que esqueceram, contudo, de explicar o real busílis: a decisão apenas reafirma que o TCU não tem competência para controlar decisão do CNJ, apenas o STF. Ou seja, está correta.

O livro de Bernhard Fulda demonstrou como a fragmentação da mídia profissional em comunicações hostis foi um fator chave para a derrocada da República de Weimar e para a ascensão do nacional-socialismo na medida em que constantemente propagava o risco da “violência comunista”. Assim, em sua conclusão, a mídia foi crucial para tornar o nazismo uma alternativa atraente.

A responsabilidade institucional da mídia impõe a ela própria que a divulgação da atuação do STF não pode ser feita de forma irresponsável numa era de extremos, sob pena de se tornar impopular aquilo que a mídia não explica, quando ela própria não explica aquilo que lhe parece impopular.

Para que não haja espaço para um novo 8 de Janeiro, cabe à mídia finalmente compreender que o direito e as decisões judiciais são mais complexos que os trending topics, do contrário, contribuirá, de forma até pueril, para tornar atraente algum projeto fascistoide.