O liberalismo está abalado, mas ainda não quebrado, por Martin Wolf

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Liberais compartilham a confiança de que seres humanos podem decidir as coisas por si mesmos

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo, 09/01/2024

A ideia central da democracia —de que os governos são responsáveis perante os governados— ainda é valorizada em grande parte do mundo. De que outra forma explicar o fato de que mais da metade da população mundial vai votar este ano?

No entanto, o mundo também tem passado por uma “recessão democrática”, como Larry Diamond, da Universidade Stanford, chama, há quase décadas.

O poder da autocrática China tem aumentado. Vladimir Putin sufocou a democracia na Rússia. O autoritarismo está triunfando em muitos países. A reeleição de Donald Trump, após sua tentativa de derrubar o resultado da última eleição presidencial dos Estados Unidos, também seria uma mudança decisiva na democracia mais influente do mundo.

No entanto, o que está acontecendo não é principalmente uma perda de confiança nas eleições em si. Afinal, os autoritários frequentemente usam as eleições para consagrar seu poder.

Como Francis Fukuyama argumenta em seu livro recente, “”Liberalismo e seus Descontentamentos”, “as instituições liberais que estão sob ataque imediato”.

Ele está se referindo aqui às instituições centrais —tribunais, burocracias não partidárias e mídia independente. Estamos vendo uma perda de confiança no liberalismo, o conjunto de crenças que pareciam tão triunfantes após a queda da União Soviética.

Afinal, o que é o liberalismo? Escrevi sobre isso em uma coluna publicada em 2019, em resposta a uma afirmação de Putin de que “a chamada ideia liberal já cumpriu seu propósito”.

O liberalismo, argumentei, não é o que os americanos geralmente pensam que é, porque a história de seu país é única. O que os liberais compartilham é a confiança nos seres humanos para decidir as coisas por si mesmos. Isso implica o direito de fazer seus próprios planos, expressar suas próprias opiniões e participar da vida pública.

Essa capacidade de exercer agência depende da posse de direitos econômicos e políticos. São necessárias instituições para proteger esses direitos.

Mas essa agência também depende de mercados para coordenar os agentes econômicos, mídia livre para debater a verdade e partidos políticos para organizar a política.

Por trás dessas instituições estão valores e normas de comportamento —um senso de cidadania; crença na necessidade de tolerar aqueles que diferem de si mesmo; e a distinção entre ganho privado e propósito público, necessária para conter a corrupção.

O liberalismo é uma atitude, não uma filosofia completa do mundo. Ele reconhece conflitos e escolhas inevitáveis. É ao mesmo tempo universal e particular, idealista e pragmático. Ele reconhece que não pode haver respostas finais para a pergunta de como os seres humanos devem viver juntos. No entanto, ainda existem princípios centrais.

Sociedades baseadas em princípios liberais são as mais bem-sucedidas na história mundial. Mas tanto elas quanto suas ideias estão em disputa.

Como observou o Centre for the Future of Democracy [Centro para o Futuro da Democracia] em um relatório publicado no final de 2022, a invasão da Rússia galvanizou o apoio à Ucrânia entre as democracias liberais ocidentais. Mas o oposto aconteceu em grande parte do resto do mundo.

“Como resultado, China e Rússia estão agora ligeiramente à frente dos EUA em sua popularidade entre os países em desenvolvimento.” Isso certamente é preocupante. Além disso, acrescenta, com base em pesquisas que abrangem 97% da população mundial, isso “não pode ser reduzido a interesses econômicos simples ou conveniência geopolítica”.

“Pelo contrário, segue uma clara divisão política e ideológica. Em todo o mundo, os melhores preditores de como as sociedades se alinham são seus valores e instituições fundamentais —incluindo crenças na liberdade de expressão, escolha pessoal e o grau em que as instituições democráticas são praticadas e percebidas como legítimas”, afirma o relatório.

Uma maneira interessante de analisar isso é fornecida pelo “Mapa Cultural Inglehart-Welzel”, da World Values Survey. Ele mapeia valores em dois eixos: um mostra o foco na “autoexpressão” em relação à “sobrevivência”, o outro mostra o foco em valores “seculares” em relação a valores “tradicionais”.

Notavelmente, diferentes regiões do mundo estão em lugares muito diferentes. O destaque na autoexpressão (um valor liberal central) é relativamente alto na Europa Ocidental e nos países de língua inglesa, com os países africanos-islâmicos no extremo oposto.

Curiosamente, as sociedades “confucianas” têm maior ênfase em valores seculares, em oposição a valores tradicionais, do que os EUA. O ponto principal, no entanto, é que as diferenças de valores são profundas.

Alguns aspectos do Liberalismo —como mercados livres, por exemplo— viajam com bastante facilidade, mas outros —como a mudança de normas de gênero, por exemplo–, não.

No entanto, a resistência ao liberalismo é evidente não apenas no exterior. Também é doméstica. Fukuyama destaca, por exemplo, como a esquerda progressista e a direita reacionária concordam com a centralidade das identidades de grupo na política dos EUA.

Eles concordam também que suas diferenças são sobre quais grupos detêm o poder, em vez de como criar as melhores oportunidades iguais para os indivíduos. Mas os conflitos de poder são um jogo de soma zero.

Além disso, a esquerda “progressista” parece ter esquecido que, em uma guerra de identidades, as minorias quase certamente perderão. Por que esses ativistas não conseguem entender esse ponto óbvio?

Com o liberalismo em xeque não apenas em todo o mundo, mas até mesmo em seus redutos, é fácil acreditar que o futuro está nas políticas autoritárias e nos valores sociais tradicionais. Se assim for, este século pode ecoar o anterior, embora sem o fervor revolucionário daquela época.

O apelo do “grande líder” que assumirá tudo para si mesmo parece eterno. Também são eternos os confortos do tribalismo, das hierarquias tradicionais e das verdades antigas. Também é eterno o carisma do profeta revolucionário que promete transformar a sociedade para melhor. Conflitos sobre poder e modos de vida são inevitáveis.

Além disso, a liberdade sempre significará escolhas difíceis. Ela é necessariamente limitada. Significa responsabilidade, ansiedade e insegurança. No entanto, a liberdade é preciosa. Ela deve ser defendida, por mais difícil que seja essa tarefa.

O que aprendi com Clara Mattei, por Francisco Rohan de Lima

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Pensadora italiana desvenda os perigos da austeridade que, ao despolitizar a economia, isenta tecnocratas do escrutínio democrático – e abre caminhos para o fascismo. Uma pista para entender o “casamento” entre Bolsonaro e Guedes

Francisco Rohan de Lima – Outras Palavras, 23/02/2023

A liberdade é sempre a liberdade para o que pensa diferente.” Rosa Luxemburgo (1871-1919), filósofa polaco-germânica.

Como eu havia prometido no texto que escrevi para Outras Palavras e para o blog de Lúcio Flávio Pinto,1 volto ao tema da austeridade na economia para comentar o livro da professora Clara Mattei, cujo título, em tradução livre, é A ordem do capital – como economistas inventaram a austeridade e prepararam o caminho para o fascismo2. Fiquei curioso porque, como escrevi antes, sempre ouvi e li que austeridade, um princípio de ordem moral indicativo de prudência e moderação, deveria ser aplicado à gestão econômica das nações, evitando endividamento excessivo, descontrole e ineficiência de gastos do governo. Uma frase clichê encapsula esse tipo de abordagem: as contas públicas devem ser administradas com a mesma prudência de uma dona de casa na economia doméstica.

Mas nós sabemos que, com assuntos complexos, nada pode ser assim tão simples. Tive um mestre na minha juventude que, quando eu tentava transformar ideias muito complexas em formulações simplistas, que não podiam ser desenvolvidas e eram incapazes de solucionar um problema difícil, costumava dizer: “Simplificou, morreu”. De fato, na simplificação, o raciocínio paralisa por inanição e morre, incapaz de prosperar. O mestre tinha razão. Mattei sabe disso também. Seu livro foi feito para nos mostrar que seu conceito de austeridade faz sentido.

A simplificação artificial explica por que a gestão da economia doméstica, por exemplo, não pode ser comparada à gestão da economia pública. Assim, o governo pode criar dívida muito facilmente; o governo pode imprimir moeda; o governo pode criar receita. Ora, a dona de casa não pode nada disso. Por que, então, apesar dessas diferenças claras, continuamos a ouvir esse discurso?

O dilema liberal que produz a ideia de austeridade

Uma resposta possível é que a ideia de austeridade está arraigada no pensamento do homem moderno, desde os primórdios das formulações sobre economia, a partir do século XVII. O arquiteto original da austeridade é John Locke (1632-1704), o pai do liberalismo e, na sua concepção fundadora, a instituição do Estado só é admitida para proteger a propriedade. Mas, mesmo apenas com esse objetivo, custa dinheiro. Se custa dinheiro, é preciso que o governo seja moderado e prudente, afirmam os fundadores da Economia.

Eis aí a origem ancestral do dilema liberal que produz a ideia de austeridade. Keynes, com sua ironia habitual, escreveu certa vez que “as ideias de economistas e de filósofos, tanto quando têm razão quanto não a tem, são mais poderosas do que normalmente se pensa.” “Na verdade”, disse ele, “o mundo é governado por homens práticos, que se creem bastante isentos de quaisquer influências intelectuais, e que são normalmente escravos de algum economista defunto.”3

Outro motivo porque continuamos a ouvir esse discurso sobre austeridade e ele tem tanta importância, refere-se ao fato de que, desde o século XVII, o Estado se agigantou formidavelmente, demandando gastos e endividamentos colossais. Um terceiro motivo diz respeito ao sucesso das grandes economias dos países desenvolvidos, que seguiram o princípio de austeridade aplicado às políticas econômicas, ao contrário do fracasso daqueles que não adotaram tais medidas.4 Mas, quanto a essa última razão, de novo, nada pode ser tão simples, pois mesmo em cada economia desenvolvida, há os que estão à margem dos benefícios daquele desenvolvimento.

Estamos falando de quantidades maiores ou menores, cada vez maiores, de marginalizados do trabalho formal, por avanços na tecnologia, e sua face oposta, o obsoletismo tecnológico, por monumentais consolidações empresariais na produção e na circulação de bens e serviços, pela globalização e suas cadeias de produção segmentadas e complementares, pela inteligência artificial e automação, pela busca de menores custos e mais eficiência nos resultados, através de inovações e realimentação das máquinas de conhecimento, consumo e constante mutação, que produzem, além de riquezas numa ponta, excluídos em série na outra.

Estaríamos caminhando para a sociedade beneficente geral, na qual um terço das populações seria simplesmente mantido por uma mesada governamental, embutida na economia dos países mantenedores?

Estaríamos caminhando para a precificação da exclusão? E no sentido de varrer essa preocupação para debaixo do tapete? E para desistir dos desfavorecidos, com bolsas disso e daquilo? Desistir da educação de qualidade para todos, com políticas de cotas? Abandonar os abandonados? Sim, estou criticando as soluções precárias. O que quero dizer é que não podemos ficar apenas na emergência. É preciso trabalhar em soluções sustentáveis e permanentes.

O atrito corrosivo que está no ar

A marcha capitalista é uma guerra em andamento contínuo e constante. A sociedade moderna se caracteriza pela mudança permanente, uma contradição em termos. “Portanto, só os ciclos são eternos”, escreveu Pepetela, o grande escritor angolano5. Como disse outro alguém, referindo-se à sociedade capitalista: um tubarão que deve nadar para não morrer por asfixia. Assim, empresas gigantes se formam, são vendidas, se fundem, e se dissolvem num piscar de olhos. Novas tecnologias surgem para serem superadas no momento seguinte.

Por ironia da história, é o capitalismo que confirma e atualiza a pregação da extinção por atrito na frase genial de Marx & Engels, escrita para o combate: “Tudo que é sólido desmancha no ar”6. Sobre os excluídos, Yuval Noah Harari7, o célebre estudioso israelense, fala do famoso gap (disparidade). De um lado os incluídos, que detêm conhecimento, habilidades tecnológicas, dinheiro e sintonia com as mudanças culturais e científicas; de outro lado os excluídos, que estão expelidos, na bolha da segregação social, marginalizados do sistema, sem meios de sair dessa situação. Harari classifica esse problema como um dos grandes desafios da Humanidade no século XXI.

Há, porém, outro tipo de segregado, atualizado com as ferramentas tecnológicas, mas estagnado no negacionismo, incapaz de superar as rupturas da modernidade e isolado, à mercê de delírios autoritários, sem capacidade e interesse em sair dessa situação. É desse último lugar que surgem as falanges do fascismo atual.

A reação intelectual ao neoliberalismo

A partir de algum momento, pelo que li, durante e após o governo Thatcher no Reino Unido e o governo Reagan, nos EUA, e depois do fracasso do experimento comunista – estamos falando da década de noventa – começaram a ressurgir os pensadores sociais, marxistas ou neomarxistas, forjados no combate ao Consenso de Washington (final dos anos 80), marco da origem do que passou a se chamar de neoliberalismo.

Encontramos, assim, o trabalho monumental de Thomas Piketty8, com seus diversos livros sobre a teoria econômica e social. Devemos mencionar, dentre muitos outros, a combatividade intelectual de Mark Blyth9, e o pensamento original da professora Wendy Brown10. São todos persuasivos e brilhantes em sua formulação de crítica ao establishment controlado pelos economistas do mainstream, sociais-democratas, liberais, ultraliberais ligados a Universidade de Chicago, leia-se Milton Friedman (1912-2006), ou ordoliberais, estes próximos da combinação estatal com o mercado, de origem alemã.

A esse combate de ideias e na trincheira da esquerda, vem juntar-se a jovem professora Clara Mattei e seu livro, cujo título tanto me intrigou por vincular de forma tão expressiva a ideia de austeridade ao fascismo. Não nos enganemos, Clara Mattei é uma pensadora com raízes no diagnóstico marxista do capital, que traz suas ideias ancoradas na luta de classes para denunciar o uso da austeridade nos últimos cem anos e o neoliberalismo mais recente para o esmagamento da força de trabalho, não com a meta de extingui-la, mas para estiolar o seu vigor representativo. Ela resume bem nestas linhas: “As três formas de políticas de austeridade – fiscal, monetária, e industrial – trabalharam em uníssono para desarmar as classes trabalhadoras e exercer a pressão sobre os salários.” Como isso foi feito? Por que esse tema continua atual?

A ordem do capital, austeridade: fascismo

Clara Mattei começa atualizando o conceito de austeridade. Diz ela que austeridade, tal como a conhecemos agora, surgiu após a Primeira Guerra Mundial como um método para evitar o colapso do capitalismo. Ou seja, economistas em posições de poder utilizaram ferramentas políticas para tornar todas as classes da sociedade mais investidas na produção capitalista privada, mesmo quando essas mudanças atingiram profundos (e involuntários) sacrifícios pessoais.

Seu livro, A ordem do capital, é dedicado da seguinte forma: “Para Gianfranco Mattei e revolucionários em todos os lugares – passado, presente e futuro”11 (Não falei para vocês no meu artigo anterior, sobre o seu livro, que ela tinha algo de Rosa Luxemburgo no olhar?). O trabalho busca sustentar que o principal objetivo da adoção da austeridade, como princípio, seria a despolitização da economia ou a reinstalação de um divisor entre política e economia, que o cenário pós-Segunda Guerra teria borrado ou dissolvido.

Essa despolitização incluiria a retirada do Estado da consecução de objetivos econômicos, revertendo o comando para forças impessoais do mercado, permitindo, segundo ela, o sufocamento de qualquer contestação da relação proprietário vs salários ou da propriedade privada. Fique claro, aqui, que a professora se refere à Itália dos anos 1920. Visto que no pós-Segunda Guerra o mundo explodiu na rebeldia: o movimento feminista, o sindicalismo revolucionário, Cuba, o rock, a geração beat, as denúncias de Nikita Khrushcove, o Gulag, a revolta nas Universidades, Maio de 1968, o movimento negro, a revolução sexual, a conquista do coração dos jovens pela revolução cultural marxista, a marcha contra a guerra do Vietnã.

Mattei engata, em seguida, escrevendo que outra medida da despolitização da economia teria sido isentar as decisões econômicas do escrutínio democrático, estabelecendo e protegendo instituições econômicas “independentes”. Finalmente, a professora dispara que a despolitização se completaria com a promoção da teoria econômica como “objetiva” e “neutra”, portanto transcendendo as relações de classe, culminando com a austeridade encontrando seus aliados na tecnocracia e na crença no poder dos economistas como guardiões de uma ciência indisputável (todas as aspas são da autora).

Aqui soa como algo que conhecemos bem e me parece de difícil contestação. A independência de nosso Banco Central, por exemplo, está na ordem do dia. Não vou entrar no erro de seu presidente em se manifestar e tomar partido nas eleições recentes. Sabe-se lá o quanto foi “cobrado” para fazê-lo e o quanto cedeu. Mas, se cedeu, abriu mão do escudo que a independência oferece. Se o fez espontaneamente enfraqueceu a ideia de independência da instituição. De qualquer modo o Banco Central tem metas preestabelecidas em lei. Gostemos ou não, a suspeita dos contribuintes é que pretender interferir na agência só poderia ser para silenciá-la ou dobrá-la à vontade do príncipe, controlando a taxa de juros politiqueiramente para obter aprovação popular imediata e efêmera. Ademais fique claro que, para eliminar a “independência” do Banco Central, não precisa mudar a legislação. Basta fritar o seu presidente todos os dias na mídia.

A pílula goela abaixo

Depois da pausa para respirar, resta saber como, segundo Mattei, a austeridade levaria ao fascismo. Em suma, observando a história pelo ângulo adotado pela professora, o olhar austero sobre o mundo social seria reflexo do suporte dado pelo pensamento econômico liberal ao regime fascista que se originou na Itália de Benito Mussolini, um egresso do partido socialista, é bom não esquecer. Ainda segundo Mattei, o sistema (establishment) liberal internacional estaria convencido, ali no pós-guerra, inicio dos anos 20, de que a ditadura de Mussolini, que assumiu o poder em 1922, seria a única solução para empurrar a pílula da austeridade goela abaixo do “turbulento” povo italiano. Portanto, o método fascista seria tolerado graças (i) à ideia de que política e economia seriam duas coisas separadas e (ii) ao trabalho nada desprezível de economistas liberais na consolidação do governo Mussolini.

Clara Mattei afirma que pode apresentar evidências empíricas dos motivos e objetivos daqueles que conceberam a austeridade como política. Ainda que a ideia de austeridade seja anterior ao advento do fascismo em mais de 200 anos, portanto não tenha sido concebida com essa finalidade.

Segundo a professora, o que teria sido mostrado na época, isto é, nos anos 1920, como agora, seria a reabilitação da acumulação do capital como um meio de alimentar as massas – mas o seu verdadeiro motivo tem sido repetidamente revelado: facilitar a permanente e estrutural extração de recursos de muitos para poucos.

Mattei finaliza a síntese escrevendo que os cem anos cobertos por sua narrativa, rastreariam como os advogados da austeridade continuariam a moldar nossa sociedade e tem, constantemente, protegido o capitalismo de ameaças democráticas em potencial. Sim, a professora extrapola a situação ocorrida na Itália no entre guerras para os dias atuais. Mas quanto ao fascismo, sua presença não está nítida nas situações das crises na Itália, Espanha, Grécia e Portugal, ocorridas nesse início de século.

Mas, afinal, o que é o Fascismo hoje?

Antes de entrarmos na demonstração da teoria da professora Clara Mattei sobre a ligação entre
austeridade e fascismo, e para evitarmos imprecisões e ambiguidades, vale a pena fazer uma rápida digressão para abordar brevemente a definição de fascismo, esta palavra tão mencionada nos anos recentes, não apenas no Brasil, mas igualmente na Europa e nos Estados Unidos, devido – em minha muito modesta opinião – à justamente aquela massiva alienação dos ressentidos, especialmente localizados dentro do que a sociologia e a ciência política chamam de pequena-burguesia, comprimida entre a massa proletária e a alta burguesia. Os excluídos por falta de interesse devem ser mais bem entendidos como autoalienados da modernidade, por insegurança e ressentimento diante das ideias progressistas, que os empurram para fora do círculo de participação. Diante da velocidade das mudanças, não conseguem mais entender o mundo.

Essa pequena-burguesia tem duas opções: (i) foge da alienação e se engaja no trabalho intelectual realimentando os grupos progressistas; ou (ii) tem suas frustrações e ressentimentos canalizados para se tornar massa de manobra e buscar objetivos fictícios (salvar o mundo do comunismo, restaurar a inquisição religiosa ou defender a família, por exemplo) a troco de satisfações simbólicas (não à toa em 8/1, no Brasil, atacaram os símbolos das instituições).

Cito: “Na base de seu [da pequeno-burguesia] comportamento político, em quase todos os países evoluídos do Ocidente, encontram-se hoje atitudes irracionais e extremistas. Essas atitudes evidenciam sua reação diante da sociedade de massas que nada mais concede ao individuo pequeno-burguês, que consequentemente encontra sua segurança e sua maneira de se impor na subversão de direita.” 12

O Dicionário de política, de Bobbio, Matteucci e Pasquino, um trabalho clássico e de indiscutível aceitação, depois de esclarecer que há várias e complexas definições de fascismo, nos diz que este é um sistema autoritário de dominação caracterizado pela monopolização da representação política por parte de um partido único de massa; por uma ideologia fundada no culto ao chefe, na exaltação da coletividade nacional; no desprezo dos valores do individualismo liberal e no ideal da colaboração de classes; pelo aniquilamento das oposições, mediante o uso da violência e do terror; por um aparelho de propaganda baseado no controle das informações e dos meios de comunicação; pela tentativa de integrar nas estruturas de controle do partido ou do Estado a totalidade das relações econômicas, sociais, políticas e culturais.

Umberto Eco (1932-2016), o genial pensador da cultura, escreveu um ensaio com uma lista de 14 características atuais do fascismo13. Diz ele que o fascismo se baseia no apelo à frustração social, na rejeição ao modernismo, no culto a tradição, na alta expectativa quanto à força do adversário, na comparação forçada entre dissidência e traição, no culto à ação pela ação, no medo da diferença, na obsessão pelo golpismo, na consideração do pacifismo como envolvimento com o inimigo, no desprezo pelo fraco, na educação para o heroísmo, no patriarcalismo bélico, um populismo seletivo e no uso de novilíngua.14

Essas indicações do que seria o fascismo atualizado, junto às referências do referido Dicionário de Política, sustentam a opinião sobre as ocorrências eventuais do fascismo no Brasil, nos anos recentes. No mais, basta conferir os vídeos das bizarras figuras manobradas que invadiram e depredaram as sedes dos três poderes da República no dia 8 de janeiro de 2022, num triste espetáculo humano.

De volta à teoria Mattei

Devo confessar que, ao entrar nos capítulos das demonstrações da teoria Mattei, titubeei levemente diante da citação em epígrafe de um trecho do discurso de Francesco Saverio Nitti (1868-1953), que teria sido pronunciado na Conferência de Bruxelas (1920) e/ou de Gênova (1922).

Nesse discurso, Nitti recomenda à sociedade italiana “consumir menos e produzir mais”, expressões que Mattei grifou como se fossem um lema da austeridade imposto às massas trabalhadoras italianas. Eu posso estar errado, mas os adeptos do anticapitalismo em geral apreciariam esse slogan. Afinal, o consumismo é um dos esteios do capitalismo, conforme se lê no texto da própria Mattei: “O capitalismo está em crise quando o seu relacionamento crucial (a venda da produção para lucrar)… é contestada pelo público.”

A própria professora ressalta, no entanto, que a Itália encontrava-se destruída naquele pós-Primeira Guerra, sujeita às pressões da economia internacional e do capital estrangeiro. Assim, segundo ela, a adoção das políticas de austeridade, de certo modo, foi uma escolha soberana e que tais medidas funcionaram bem na acumulação de capital para os poucos virtuosos poupadores e empreendedores (o itálico é meu, mas a ironia é da jovem mestra). Até este ponto não vejo a austeridade pavimentando o caminho do fascismo, mas o contrário, ou seja, o fascismo abrindo passagem na marra para a austeridade na economia.

Afinal, depois da tragédia da Grande Guerra (1917), sabe-se hoje, com certeza, que havia poucas alternativas efetivas à austeridade fiscal. Isso se for excluída a geração de dívida, o aumento da tributação e a impressão de moeda, haja vista a colossal inflação na Europa, que sucedeu à Primeira Guerra e antecedeu a Segunda Guerra. Note-se que o advento de Mussolini no poder na Itália é de 1922. E o de Adolf Hitler, na liderança do Partido Nacional-Socialista alemão, é de 1921. O ovo da serpente está bem situado nos anos 20, portanto. Ambos ascenderam ao poder no bojo da crise inflacionária, que suponho não tenha sido causada por políticas de austeridade.

Francesco Nitti (que chegou a fazer parte do partido Esquerda Independente) e Luigi Einaudi (1864-1971), que presidiu a Itália entre 1948 e 1955 – ambos citados por Mattei – foram notórios antifascistas, que ostensivamente desprezavam tanto Mussolini quanto os bolcheviques. Posso estar enganado, mas achei um tanto equivocado misturar Nitti e Einaudi, com as figuras de Maffeo Pantaleoni (1857-1924), um adepto do fascismo, e Vilfredo Pareto (1848-1923), o famoso polímata, cujas motivações e ligações com o fascismo são bastante controversas, e, ainda Umberto Ricci (1879-1946), cujo mentor era adepto do fascismo. Ricci, todavia, exilou-se na Universidade do Egito durante os anos Mussolini, ainda que tenha produzido escritos defendendo as medidas liberais na área econômica.

Há, sim, um traço em comum entre esses intelectuais na área econômica. Eram, em maior ou menor grau, liberais e sintonizados com o pensamento tradicional do liberalismo inglês, que cultivou – e cultiva – a austeridade como princípio moral aplicável à economia, sem que isso represente necessariamente qualquer inclinação manifesta pelo fascismo, cujas características afrontam o liberalismo. Todavia, Mattei flagrou a diplomacia e a imprensa britânicas dando vivas a Mussolini por ele ter liberado o fluxo de pagamentos aos credores, aplicado a força para impor medidas de austeridade e equilíbrio fiscal, e protegido os investimentos estrangeiros, assegurando novos aportes no país. Mas, vejam, foi preciso primeiro o fascismo chegar e abrir as portas para dona austeridade passar.

Porém, essa inversão não altera os gravames sobre a austeridade segundo a ótica adotada no A ordem do capital. E quem sou eu para duvidar das conclusões da extensa pesquisa que a professora Clara Mattei realizou, entre 2015 e 2017, no Instituto de Economia da Escola Superior Sant’Anna, em Pisa, Itália, cujo título diz tudo, ou quase tudo: “Austerity and Repressive Politics: Italian Economists in the Early Years of the Fascist Government”?15

Um desses economistas liberais que certamente colaborou com Mussolini foi Alberto de Stefani (1879-1969), um neoliberal avant-la-lettre, sucedido por Giuseppe Volpi (1877-1947), um empresário, Antonio Mosconi (1866-1955), advogado, e Guido Jung, financista, de família judia; todos certamente liberais na economia, e fascistas na política, portanto. A bem da verdade, Jung fazia uma distinção marcante entre o Nazismo e o Fascismo. Presumo que com o propósito de colocar-se separado na questão judaica. Parece que estou vendo a triste figura do ministro Paulo Guedes, um suposto liberal, na mimese do seu chefe, falando palavrões e dizendo barbaridades na célebre reunião do ministério do ex-presidente Bolsonaro, em abril de 2021, que mais parecia uma célula subversiva. A minha esperança é que ele tenha vergonha e, em frente ao espelho, se arrependa daquelas cenas. Pelo menos.

A referida pesquisa de Mattei é que oferece sustentação para o ataque aos economistas liberais italianos. Mas o liberalismo está sob ataque, tanto da esquerda quanto da direita, há quase 200 anos. A tolerância política, um esteio do liberalismo – especialmente a liberdade de pensamento e opinião – é usada na era digital pelos extremistas para ferir de morte, pelo abuso, justamente o direito individual. A sociedade atual se vê forçada, como autodefesa, a restringir a capacidade de influência das fake news e seu potencial de manobra e de recrutamento dos subversivos de direita, para usar a expressão do dicionário de Norberto Bobbio. A questão que se impõe, no momento, é estabelecer limites e o controle de quem controla o pensamento e a expressão alheia. Esse dilema mostra, por si só, a regressão do direito individual, quase sempre desconsiderado pelos coletivistas.

No caso da economia, parece mesmo sempre haver uma cisão dos técnicos contra os políticos; dos neutros contra os demagogos; dos sábios contra os ignorantes; dos puros contra os fisiológicos.

A virtude estaria no campo da economia, o vício no campo de política, que resiste a ser moldada, sempre vulnerável ao clientelismo, ao fisiologismo, ao patrimonialismo, e disposta a se vender no orçamento secreto, no mensalão ou nas intermináveis rachadinhas. O desprezo pela política abre as portas para o militarismo, tido como honesto, incorruptível, dedicado a servir desinteressadamente ao país etc. No círculo vicioso, se eu entendi bem a professora, depois dos militares, viriam os economistas de plantão para fazer valer as políticas de austeridade. Notem, por favor, a força sempre precede o remédio e não o contrário.

Clara Mattei, todavia, parece ter razão quando afirma que esta clivagem entre economia e política favorece o autoritarismo. Sabemos que defender a política nesses tempos de perfis tão toscos e corruptos no Congresso é tarefa difícil. Mas a democracia demanda que essa luta se imponha. Haverá de ter uma maioria – ou mesmo uma minoria mais atuante – interessada em expressar o desejo legítimo dos eleitores em receber os serviços do Estado na saúde e educação de qualidade, infraestrutura sólida, cidadania digna, trabalho, remuneração e aposentadoria justa; em fazer valer uma reforma tributária a altura desse nome, com taxação progressiva, fique claro. A economia enfraquecida destrói os empregos e a renda, e desmobiliza os sindicatos. O emprego vira mercadoria rara. Ao contrário, a economia forte aumenta a procura da mão de obra, incrementa o poder dos sindicatos para a negociação coletiva e para a participação dos trabalhadores no lucro das empresas.

Como a austeridade conduz ao fascismo?

Talvez seja óbvio, mas não encontrei a resposta a essa questão, pelo menos de modo expresso, no trabalho da professora Mattei. Seria por dedução? Seria pela mera associação entre as medidas econômicas liberais, dentre elas o princípio de austeridade aplicado à economia, e o regime de força do fascismo? A professora debruçou-se no exame do caso específico da Itália, onde o fascismo surgiu como ideologia e prática do regime Mussolini, e estenderia suas conclusões como uma regra?

Se for assim, devemos ponderar em primeiro lugar que, como já assinalei, o regime fascista é que, historicamente, abriu caminho para a introdução das práticas de austeridade na economia italiana. Segundo, o fenômeno não se repetiu, pelo menos da mesma forma, em outros países e em outras épocas. Ou seja, o regime fascista à Mussolini não foi usado para impor medidas austeras na economia em outros países no pós-Segunda Guerra, salvo registros nas ditaduras sul-americanas, ibéricas e na ditadura grega dos anos 1970.

Mas, sim, foi adotado, inclusive com a aprovação de parlamentares, por pressão de credores ou por ajustes internos e soberanos ou por consenso como solução para o endividamento das nações e recuperação de seu equilíbrio fiscal, em tempos de crise. Sim, para proteção do capital investido no país, como notaram todos os professores críticos do neoliberalismo. Faltaria, talvez, nesse aspecto, uma abordagem sobre a questão da dívida. Esse tema foi dissecado à exaustão no monumental Dívida16, de David Graeber, antropólogo norte-americano, professor na London School of Economics. No livro, Graeber examina a história da dívida e do crédito, além da história do dinheiro. E, mais uma vez, temos a dívida como uma questão – exatamente como no caso da austeridade – transitando da esfera Moral para a esfera do Direito e tornando-se jurídico-obrigacional, inicialmente apenas via contrato.

A professora também tem razão ao afirmar que Mussolini, e seus economistas – especialmente Alberto de Stefani – implantaram com êxito as regras de austeridade que o parlamento italiano recusava-se anteriormente a adotar. Esse ponto está muito bem documentado no seu livro, que inclui o jornalismo e a correspondência diplomática britânica. Podemos deduzir que, a despeito dos meios, o “sucesso” na aplicação da austeridade trouxe a recuperação econômica da Itália e, com ela, o enorme apoio das massas proletárias e da pequeno-burguesia ao regime? Essa popularidade deu impulso ao populismo fascista que, entre muitos fatores, inclusive geopolíticos, conduziu o mundo à Segunda Guerra.

Além dos atos documentados, a arte corrobora a afirmação de Mattei sobre o empenho das classes conservadoras em separar a economia da política e com isso afastar os eleitores das questões econômicas, reservando-as aos “esclarecidos”. Refiro-me àquele filme maravilhoso sobre o período entre guerras, Vestígios do Dia (1993), de James Ivory, baseado no livro do Nobel nipo-britânico Kazuo Ishiguro. Há uma cena que se passa nos meados dos anos 1930, com a elite inglesa simpática ao nazifascismo. Durante o jantar os elegantes convivas germanófilos, para demonstrar que o povo não entende nada – logo não deve ser consultado – convidam o mordomo (Antony Hopkins) que está no serviço de atendê-los, a responder a algumas perguntas sobre política externa, finanças e economia.

O serviçal prontifica-se, mas pede desculpas humildemente e não consegue sequer balbuciar respostas a nenhuma das questões. Um dos aristocratas finaliza: “Vejam cavalheiros, o homem não consegue responder a essas questões. Mas, ainda assim, o Império Britânico insiste com a noção de que as decisões da nação fiquem nas mãos do nosso bom homem e de milhões como ele.” Cai o pano.

Ademais Mattei mostrou, de forma eloquente, que economia é um tema político muito grave. E é um perigo separá-la da política para deixá-la nas mãos exclusivas dos economistas. Há advogados que redigem, na calada da noite, decretos para um golpe contra o estado de direito. Há médicos que receitam cloroquina e ivermectina e que pregam a imunidade de rebanho contra um vírus letal. E há liberais que não têm pudor em admitir e em se adaptar ao fascismo. Os últimos anos têm sido pródigos nesses exemplos.

Como leitor, faço poucas ressalvas ao trabalho de Clara Mattei, pontuais e relativas a algumas premissas que aparecem aqui e ali e que me parecem dogmáticas e, como tal, ultrapassadas. Por exemplo, referir-se à força do trabalho como motor do capitalismo17 como se estivesse no século XIV. A relação entre o capital e o trabalho adquiriu tantas modalidades complexas e variáveis sofisticadas, inclusive com a inserção de tecnologia e mercado de capitais, que a frase fica reduzida a um slogan nostálgico.

No mais, o livro de Clara Mattei tem o encanto radical das melhores produções intelectuais e é impregnado da paixão pelo estudo candente que realizou. As notas e referências tomam mais de um quarto da obra muito bem fundamentada. Isso explica, por si só, o brilho nos seus olhos quando fala do seu livro fascinante. Eu tinha razão quando me enchi de entusiasmo para devorá-lo.

Economia e Educação

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Vivemos momentos de grandes alterações em todos os setores da sociedade, o mundo contemporânea se transforma rapidamente, as tradições estão sendo destruídas, os modelos econômicos estão em movimento, as famílias passam por novas configurações, os relacionamentos estão em alterações constantes, os trabalhadores estão agitados e assustados, as doenças contemporâneas trazem patologias centradas nos desajustes emocionais existenciais, levando os seres humanos a reflexões sobre as condições da vida na sociedade contemporânea, gerando dores na alma, incertezas e instabilidades, incrementando as preocupações com a saúde mental dos indivíduos.

Nesta sociedade, a economia deixou de ser um espaço legítimo de satisfação das necessidades dos seres humanos, onde a ciência econômica foi construída como instrumento para garantir que as demandas e as necessidades dos seres humanos sejam satisfeitas, sabendo ainda, que os recursos existentes na natureza são limitadas, cabendo a economia a construção de um cenário onde todos os indivíduos tenham acesso aos bens, mercadorias e serviços necessários para sua reprodução social, uma vida digna e decente, mesmo sabendo que as incertezas e as instabilidades crescem em todas as sociedades.

Nos últimos anos, a economia se transformou em um espaço de acumulação extraordinária, onde os setores financeiros passaram a comandar a estrutura econômica e produtiva, impondo seus interesses imediatos, garantindo lucros escorchantes, contribuindo para a manutenção e, principalmente, para a perpetuação de uma estrutura social degradada, abduzindo todos os agentes da sociedade, comprando consciências, dominando as redes sociais e impondo uma agenda que consolide seu interesse, cultuando a meritocracia, estimulando o empreendedorismo, o individualismo e o imediatismo.

Nestas andanças profissionais, percebemos que os indivíduos acreditam que a educação é a chave do desenvolvimento econômico da sociedade, acreditamos piamente nesta equação que associa a educação com as grandes transformações da estrutura produtiva, garantindo uma melhora substancial no capital humano, com fortes investimentos em ciência, pesquisa e inovação, afinal estamos na chamada era do conhecimento.

Todas as nações que conseguiram alçar fortes melhorias econômicas, sociais e produtivas e saíram de condições intermediárias para se transformarem em nações desenvolvidas, só conseguiram essa proeza com um projeto de nação, com fortes investimentos educacionais, com forte valorização da educação nacional, elevados investimentos nos professores e profissionais da educação, com melhoras constantes na infraestrutura das escolas, garantindo as condições necessárias para alçar voos elevados e necessários, projetos pedagógicos inovadores, cobranças de resultados e sólidos contatos com setores econômicos e produtivos.

Neste cenário, precisamos recolocar a educação no centro das discussões econômicas, deixando de lado discussões secundárias de indicadores macroeconômicos que servem apenas para perpetuar os ganhos dos rentistas e dos financistas, que adoram discutir seus ganhos imediatos, seus lucros estratosféricos, resultados vistos como a sua capacidade de investir, farejar lucros e compreender os códigos do mundo das finanças, se esquecendo que seus grandes retornos se dão através de taxas de juros elevadas, fraudes empresariais e sua capacidade de controlar seus prepostos na gestão pública e perpetuando suas riquezas em detrimento de uma massa de empobrecidos e marginalizados.

A educação é imprescindível para o desenvolvimento econômico de uma nação, garantindo uma maior complexidade na estrutura econômica e produtiva, incentivando empregos de qualidade, reduzindo as desigualdades sociais e garantindo novos recursos para impulsionar os setores produtivos, com políticas públicas que ataquem as causas das desigualdades que degradam e limitam o crescimento econômico brasileiro, que reduzem as potencialidades da nação e garantindo ganhos vultuosos para poucos. Mas o que me assusta, parafraseando Darcy Ribeiro “a crise da educação no Brasil não é uma crise, mas um projeto”.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira Contemporânea, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Pacto pelo Crescimento

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A economia brasileira vem passando por grandes alterações que tem impactos sobre todos os setores, destacando as potencialidades da nação e os grandes desafios que se abrem para o século XXI. Neste momento, precisamos construir laços efetivos, reduzir as polarizações que atravancam o desenvolvimento brasileiro, impulsando a construção de novas riquezas em um mundo em constante transformação, além de pensar um futuro promissor e inclusivo para todos os indivíduos, criando cidadãos e não se contentando com a construção apenas de consumidores.

Depois de décadas de forte crescimento econômico e fortalecimento produtivo, que colocou o Brasil na liderança do crescimento econômico internacional, depois dos anos 1980 perdemos a vocação para o crescimento econômico e passamos a nos acostumar com taxas pífias de crescimento, perdemos espaço no comércio internacional, mergulhamos num processo de desindustrialização, com perdas crescentes de renda e perdemos o dinamismo produtivo, reduzindo nossa complexidade econômica e, novamente, voltamos a nos destacar apenas como uma nação exportadora de produtos primários de baixo valor agregado e dependentes da importação de produtos industrializados e manufaturados.

Precisamos impulsionar o crescimento da economia, retomando as discussões do nosso potencial econômico e produtivo, precisamos impulsionar as ideias de planejamento econômico sistêmico, usando as estratégicas geopolíticas e geoeconômicas para que o Brasil retome seu papel na sociedade internacional, mostrando nosso potencial de economia verde, construindo energias alternativas e capacitando o meio ambiente para garantir a sustentabilidade, transformando essas potencialidades naturais, desta forma levantaremos poupanças externas para financiar as melhorias sociais, garantindo emprego de qualidade e espaço privilegiado nos círculos políticos globais.

No Brasil contemporâneo, precisamos construir variados pactos para a melhoria econômica, política e social, dentre estes pactos, precisamos pactuar produção, emprego e crescimento econômico, utilizando toda a infraestrutura para angariar melhoras das condições sociais, rechaçando políticas que priorizam os interesses corporativos, que aumentam os subsídios e as desonerações que garantem ganhos imediatos e contribuem ativamente para a perpetuação das desigualdades que perpassam a sociedade nacional.

Embora saibamos que os recursos públicos são limitados e as condições orçamentárias são precárias, precisamos analisar, estrategicamente, os investimentos públicos e seus retornos, impulsionando as melhores formas de gastos privados, criando espaços de confiabilidade e vislumbrando retornos sólidos e consistentes no longo prazo, garantindo melhorias para toda a comunidade. Nestes últimos quarenta anos, a comunidade internacional percebeu que a agenda para os países em desenvolvimento era de austeridade fiscal e restrição econômica e financeira, marcadas por taxas de juros elevadas e gastos públicos reduzidos, diante disso, os resultados destas políticas são claras e conclusivas, empobrecimento da população, aumento de violência urbana, incremento dos conflitos sociais, aumento da xenofobia, incremento da polarização política e o aumento da desigualdade social, guerras generalizadas, poucos indivíduos muito ricos e milionários e uma grande quantidade de pobres, miseráveis e desfavorecidos, gerando um capitalismo instável e cada vez mais desigual, com perspectivas negativas para a maior parte da comunidade internacional.

Vivemos numa sociedade marcada por grandes potencialidades, pouco vistas em outras nações, somos dotados de recursos naturais que nos colocam no centro da produção global de alimentos, somos dotados de variadas energias alternativas, somos possuidores de uma população criativa e com forte potencial empreendedora e de grande capacidade inovadora, mas precisamos perceber que o desenvolvimento prescinde de políticas integradas e duradouras, instituições sólidas e consistentes, uma democracia pujante e fortemente arraigada para transformar toda a potencialidade brasileira, precisamos nos desvencilhar de uma visão imediatista, individualista e precisamos vislumbrar melhoras para todos os cidadãos, não apenas seus descendentes e seus apaniguados.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Circular, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Ouro brasileiro foi a maior catástrofe econômica e política de Portugal, por João Pereira Coutinho

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Saberá Flávio Dino que a descoberta das minas na antiga colônia foi motivo de atraso para o desenvolvimento do país

João Pereira Coutinho, Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Folha de São Paulo, 02/01/2024

Amigos brasileiros, meio a sério, meio a brincar, costumam pedir de volta “o ouro do Brasil”. De início, ficava pasmo. Ouro? Qual ouro? Não uso joias. Sempre achei que um homem com joias é um erro de casting.

Não, não são joias, Little Couto. Eles querem de volta o ouro que os portugueses levaram do país a partir de finais do século 17.

Tempos atrás, por causa de um lamentável episódio xenófobo com uma brasileira em Portugal, o ministro Flávio Dino até deu cobertura oficial à exigência. Se os portugueses não gostam de brasileiros, podem devolver também o ouro de Minas Gerais!

Calma, ministro. A estupidez de um patrício não define um povo inteiro. E, sobre o ouro, saberá o senhor que a descoberta das minas foi, provavelmente, a maior catástrofe econômica e política de Portugal? E que o atraso do país na era contemporânea se explica, precisamente, pelo ouro que o senhor reclama?

A tese está contida num dos melhores livros de 2023, que merecia uma edição brasileira, até para acalmar os ânimos. O autor é Nuno Palma, historiador português e professor da Universidade de Manchester, que analisa com rigor “As Causas do Atraso Português” (D. Quixote/Leya, 408 págs.).

No século 19, esse atraso consumiu os melhores espíritos e ficou célebre a conferência de Antero de Quental sobre as “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos”.

O atraso dos ibéricos, segundo o filósofo e poeta, era explicado, entre outros fatores, pelo catolicismo obscurantista que impediu o progresso material, institucional e mental.

Nuno Palma não compra essa versão: países católicos, como a Bélgica ou a França, foram casos de sucesso na Europa oitocentista. Se queremos encontrar as raízes do atraso temos de viajar até ao século 18, quando o ouro começou a chegar em quantidades apreciáveis.

Sim, no curto prazo, Portugal enriqueceu. Mas a “maldição” desse recurso distorceu a economia de forma profunda, levando ao abandono das fábricas (a industrialização do país que era promissora no último quartel do século 17), ao favorecimento das importações e ao colapso da competitividade pátria.

Em meados do século 18, quando o ouro ainda chegava, a economia portuguesa estagnou e Portugal perdia o trem da Revolução Industrial. Estavam abertas as portas para o medonho século 19, feito de guerras civis e bancarrotas.

Mas o ouro do Brasil não teve apenas um impacto econômico nocivo. Argumenta Nuno Palma que, politicamente falando, o atraso institucional foi comparável. Quem pensa que o absolutismo régio português emergiu na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, desconhece o papel das cortes na limitação do poder do rei para lá desse período.

Esse elemento “protoliberal”, que em Inglaterra só se afirmou verdadeiramente com a Revolução Gloriosa de 1688-1689, sempre fez parte da cultura institucional portuguesa desde a fundação.

Se o rei queria cobrar impostos, por exemplo, tinha de ouvir os representantes municipais, eleitos pelos seus pares. Para usar um célebre bordão americano, “no taxation without representation”. A convocação das cortes era a expressão institucional desse princípio.

No século 18, com o ouro brasileiro, as cortes não se reuniram uma única vez. Para quê? A liquidez de que a Coroa dispunha permitia-lhe atuar sem prestar contas a ninguém.

No fundo, permitia-lhe atuar sem freios e contrapesos, cultivando antes as suas clientelas parasitárias e venais. O Marquês de Pombal e seus sucessores representaram bem essa nova cultura despótica e “iluminada”.

Moral da história?

O iliberalismo português, que obviamente contagiou o Brasil, não começa com Salazar e a ditadura do Estado Novo no século 20. Começa antes, muito antes, na experiência absolutista de 700, que se espraiou até aos nossos dias.

Devolver o ouro?

Ó, meus amigos, ó meus irmãos: pudesse eu viajar no tempo para influenciar as cabeças dos meus antepassados e o ouro ficaria escondido nas entranhas de Minas Gerais.

Pelo menos, até que portugueses ou brasileiros tivessem atingido um patamar de desenvolvimento político e econômico a partir do qual o ouro seria uma benesse, e não uma ruína.

Jovens da periferia são potenciais desperdiçados, por Nayara Bazzeli

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Empresas precisam despertar para esse potencial negligenciado

Nayara Bazzoli, Gerente do Juventudes Potentes, organização liderada pelo Instituto Aspen e articulado pela United Way Brasil

Folha de São Paulo, 02/01/2024

Certa vez, um jovem que atendemos na organização teve a oportunidade de participar de processo seletivo em uma grande empresa. Para ele, essa representava a chance de finalmente ter um emprego formal, digno, que poderia mudar sua vida, marcada por uma série de vulnerabilidades sociais.

Ele morava no extremo leste da cidade de São Paulo, se arrumou para a ocasião, fez todo o longo
trajeto até a empresa e, ao chegar ao edifício, deparou com um obstáculo até então inimaginável: acessar o elevador.

Sem nunca ter visto um modelo tão sofisticado, em que a tecnologia te direciona para qual caminho seguir, ele não soube pegar o elevador e, envergonhado, decidiu voltar para casa, sem realizar aquela que poderia ter sido sua porta de entrada para um mundo de perspectivas profissionais.

Essa é uma história verdadeira que, infelizmente, faz um pequeno recorte da série de dificuldades que milhares de jovens das periferias brasileiras enfrentam no mundo do trabalho e que está fora do radar das empresas.

São lacunas de vivências pessoais, como essa, que impedem muitas vezes as potências de ocuparem espaços e se desenvolver. Na situação relatada, teria sido suficiente esse jovem ser recepcionado por uma liderança da empresa em que ele se reconhecesse, que lhe desse segurança para seguir naquele momento inicial. A grande maioria das empresas não sabe quem são esses jovens, quais suas inseguranças, dificuldades e anseios, o que poderia ajudá-los a se inserirem no mundo corporativo.

Temos na cidade de São Paulo 765 mil jovens entre 15 e 29 anos que têm suas vidas atravessadas por uma série de injustiças estruturais, as quais os impedem de permanecer na escola, conseguir empregos formais e se desenvolver. São os chamados jovens-potência, que, com políticas públicas direcionadas, ações intersetoriais e engajamento empresarial poderiam mudar suas vidas e gerar um retorno médio de R$ 2 bilhões para o Produto Interno Bruto (PIB) da capital paulista, segundo cálculo do Juventudes Potentes e da Accenture, em 2020.

A pesquisa recente “Injustiças estruturais entre jovens na cidade de São Paulo” ouviu 600 desses jovens e trouxe um retrato de suas vidas e obstáculos. Quase 40% já têm filhos, 71% são negros, 21% interromperam os estudos e 68% já ficaram sem dinheiro para pegar transporte público. São vidas atravessadas por múltiplas adversidades e imposições sociais, agravadas por outros fatores que dificultam uma inserção adequada no mundo do trabalho. Eles dizem, por exemplo, que se veem em desvantagem por haver poucas vagas de emprego formal perto de onde moram, por terem baixa qualificação profissional e devido à concorrência injusta e discriminação das empresas. O preconceito é outro fator: eles se sentem subestimados por conta do lugar onde vivem e estudaram. São questões que ainda passam à margem da preocupação de muitas empresas.

Os próprios jovens-potência têm clareza do que poderia ajudá-los: formação para o trabalho, políticas públicas de incentivo à inclusão produtiva, mudança de cultura das empresas para que acolham o jovem trabalhador desde o processo seletivo e garantam, posteriormente, condições favoráveis ao seu desenvolvimento, novas dinâmicas de trabalho pensadas em jovens periféricos, entre outras ações que contemplem a diversidade de vivências sociais dessa população.

O caminho está dado. Falta ainda às empresas despertarem para esse potencial negligenciado, revendo suas práticas e políticas para abrir portas e sustentar a permanência desse jovem no mundo do trabalho. Não podemos continuar normalizando as injustiças estruturais que afastam tantos jovens de um futuro promissor.

Cada jovem é responsabilidade de toda a sociedade. Precisamos elevar toda essa potência hoje desperdiçada.

Por que a população em situação de rua cresce apesar da redução da pobreza? Laura Machado

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Êxodo para as ruas é maior em territórios mais ricos, provável consequência do rompimento de vínculos

Laura Muller Machado, Mestre em Economia Aplicada pela USP, é professora do Insper e foi secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo

Folha de São Paulo, 30/12/2023

A população em situação de rua cresceu 12% ao ano nos últimos 10 anos, triplicou de tamanho, enquanto a pobreza oscilou, mas caiu e voltou ao mesmo patamar de uma década.

A população em situação de rua está onde há riqueza, e não nos territórios mais pobres. Essa evidência quebra alguns paradigmas e pode dar luz ao que precisamos construir, para além das políticas de transferência de renda tradicionais.

Nossa política de proteção social baseada em renda coincidentemente ascendeu muito no mesmo período em que a população em situação de rua triplicou. Algo está faltando.

A Europa, por meio da sua Rede de Política Social Europeia (ESPN), lançou uma série de relatórios com evidências sobre o tema. Os dados mostram que ao longo dos últimos anos, a depender da disponibilidade do dado para cada país, a população em situação de rua na Alemanha aumentou 15% ao ano e, na Inglaterra, 14%. Em outros 12 países passíveis de análise, apenas a Finlândia não registrou alta.

Estamos tratando de um problema mundial. No Brasil, a elevação é de 12% ao ano, um crescimento constante ao longo dos últimos 10 anos, cenário muito diferente da percepção de que o agravo foi exclusivamente devido à pandemia. Antes da crise de Covid-19, tal população já havia crescido 140% em relação a 2012, de acordo com o Cadúnico (Cadastro Único) do governo federal.

Os estados brasileiros com maior número de pessoas em situação de rua por habitantes são também os mais ricos: Mato Grosso, São Paulo, Mato Grosso do Sul, além do Distrito Federal. Os mais pobres, como Alagoas, Amazonas, Maranhão e Pernambuco, estão entre os locais com menor incidência.

Por que em um retrato comum da pobreza, como do interior do Nordeste, com escassez de água e alta vulnerabilidade, não temos índices tão elevados de pessoas em situação de rua?

A cidade de São Paulo fez um censo com essa população e alguns dados chamam a atenção: quando perguntados sobre o motivo de estarem na rua, menos de 5% atribuíram a causa à migração. Na pesquisa, 74% declararam viver sozinhos antes de irem para a rua e 69% declararam viver com familiares. Quando questionados sobre motivações, 50,2% responderam que experimentaram algum tipo de rompimento de vínculo.

Uma das explicações para esse fenômeno, de maior índice de sem-teto em territórios mais ricos, pode ser a força da rede de apoio e de convivência que as regiões mais pobres constroem, até por necessidade.

O entendimento de que precisamos ser solidários e acolhedores (mesmo porque amanhã pode ser você em apuros) é o que mantém muitas comunidades vinculadas, apesar da violação dos direitos que vivenciam. Em uma sociedade com laços e comunidades fortalecidas, há acolhimento e socorro.

Sem rede de apoio, na hipótese de um cotidiano vulnerável a eventos extremos como fome, violência familiar e abusos, a reação humana também pode ser extrema. Com laços comunitários cada vez mais enfraquecidos, a falta de vínculo aguça essa resposta dramática a eventos adversos. Nesse caso, a drogadição é mais consequência do que causa.

A transferência de renda e o combate à pobreza são direitos essenciais, mas não substituem a necessidade de proteção social que só o pertencimento e o vínculo comunitário geram. Se como sociedade, em especial nos locais mais ricos, enfraquecermos o acolhimento, podemos ter um agravamento das reações extremas que a transferência de renda pura não será capaz de reverter.

Não responsabilizo especificamente a população em situação de rua ou envolvidos com esses episódios, mas toda a sociedade. Se parte da nossa pobreza provém da falta de pertencimento, é preciso aprender uma nova forma de abordar os desafios da adversidade à que todos estamos suscetíveis.

Segurança pública: prioridade para 2024, por Oscar Vilhena Vieira

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Reduzir a violência é não apenas um imperativo moral, mas também uma condição para a prosperidade econômica

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023)

Folha de São Paulo, 30/12/2023

Em 2023 a democracia foi salva e a economia parece estar entrando nos eixos. A agenda climática foi retomada, assim como as principais políticas sociais. Feitos nada triviais para um governo minoritário e recebido com grande desconfiança pelo mercado.

O centrão, como era de se esperar, demonstrou-se mais leal aos seus interesses pragmáticos que à agenda obscurantista dos antigos habitantes da Esplanada (com exceções). O governo soube alinhar suas prioridades às ambições da maioria parlamentar. Tudo isso, evidentemente, ao régio custo de emendas. O fato, porém, é que a coisa andou. O governo governou.

O grande desafio para 2024 é estabelecer alguma ordem e racionalidade no campo da segurança pública. A redução da violência e da criminalidade, que brutalizam a vida de milhões de brasileiros todos os dias, constitui não apenas um imperativo moral, mas também uma precondição para a prosperidade econômica e para a sobrevivência do próprio Estado democrático de direito.

Desde a transição para a democracia os diversos governos federais têm se evadido da responsabilidade de coordenar as políticas e modernizar as agências de justiça e segurança, alegando que essa é uma responsabilidade dos estados. Essa omissão levou ao crescimento do crime organizado, à deterioração do sistema de segurança, assim como abriu um enorme mercado eleitoral para a extrema direita, com suas receitas simples, diretas e, sobretudo, erradas no campo da segurança pública. Armar a população, aliviar os controles sobre a atividade policial, promover o encarceramento indiscriminado e fechar os olhos para as milícias pode gerar votos, mas, no final do dia, apenas contribui para o aprofundamento da crise de segurança, levando a mais mortes e degradação do tecido social.

Nas últimas décadas houve um avanço muito grande no campo da segurança pública, com forte impacto sobre a redução da violência em diversas partes do mundo e também no Brasil. Como não se cansava de salientar Paul Chevigny, professor emérito da Universidade de Nova York e autor de dois clássicos estudos sobre polícia, falecido no último mês, múltiplos são os fatores que promovem a criminalidade e a violência. Múltiplas, portanto, devem ser as políticas e instituições envolvidas na contenção da criminalidade. Logo, não é uma tarefa apenas das polícias estaduais, no caso brasileiro.

Isso impõe ao governo federal assumir um protagonismo, ainda que partilhado, na construção de política nacional de segurança pública, com foco na redução dos homicídios e na retomada dos territórios hoje dominados pelo crime e pelas milícias. Perdoem o truísmo, mas estados são constituídos e governos são eleitos para enfrentar os problemas centrais de uma sociedade. E assegurar a paz é o problema primordial de qualquer sociedade.

Se o governo federal não entende ser conveniente criar um Ministério da Segurança Pública para executar políticas de segurança, deveria ao menos criar uma Secretaria de Estado, com mandato e autoridade para articular junto ao parlamento, aos governadores e mesmo às polícias uma ampla reforma das políticas criminais, bem como a modernização das agências de aplicação da lei, além de promover a integração de outras políticas sociais com as políticas de segurança. A indisposição para enfrentar racionalmente os desafios da segurança pública será inevitavelmente punida pelo eleitor. Desnecessário lembrar que as principais vítimas continuarão a ser pretos e pobres.

Desejo às leitoras e aos leitores um bom ano! Lembrando, apenas, que o ano não será melhor se cochilarmos no ponto.

Austeridade econômica pavimenta o caminho para o fascismo. Entrevista por Clara Mattei

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Precisamos saber como a classe dominante opera para preservar um sistema injusto” – Clara Mattei

A professora e escritora Clara Mattei é objetiva: já no título de seu mais recente livro ela fala da conexão direta entre austeridade econômica e o fascismo. Em The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism (ainda sem título em português – em tradução livre: “A ordem do capital: como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo”) ela destrincha essa relação. O livro será lançado no Brasil ainda este ano pela editora Boitempo.

Clara Mattei, autora de livro sobre o tema [austeridade fiscal], foi a convidada da semana no BdF Entrevista.

A entrevista é de José Eduardo Bernardes, publicada por Brasil de Fato, 04-07-2023.

Mattei foi a convidada do Brasil de Fato Entrevista desta semana.

Ela contou sobre o processo para elaboração da obra, que é fruto de dez anos de estudo. Italiana radicada nos Estados Unidos (ela é professora de Economia na The New School for Social Research, em Nova Iorque), a pesquisadora cita personagens como Benito Mussolini, Donald Trump e a atual primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, como frutos políticos de um caminho trilhado com apoio na lógica da austeridade econômica.

“Para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas”, afirma ela, que destaca que a alternativa a esse sistema passa pela organização das pessoas em suas comunidades locais.

Eis a entrevista.

A senhora passou dez anos escrevendo o livro que nasceu da sua tese de doutorado. Como e quando decidiu se aprofundar neste assunto?

Tudo começou quando estava vivendo os anos de grande austeridade de Mario Monti, na Itália. Ele chegou ao poder após a crise da dívida soberana em nosso país e estava estudando e vivendo na pele, assim como a maioria das pessoas no mundo ainda vive hoje, os efeitos da austeridade, a redução de verbas para a educação e saúde pública. Vi as pessoas na Itália ficarem cada vez mais pobres a olhos vistos. Era um país em que não tínhamos pessoas morando na rua e as ruas estavam ficando cheias de gente. Não havia moradia.

Mas você passou dez anos pesquisando e procurando material em arquivos, certo?

Sim, é um trabalho em economia histórica e política. É baseado em fontes primárias e na reconstrução do passado através de uma nova perspectiva, analisando material que ainda não havia sido publicado. O tipo de debate sobre austeridade que estava ocorrendo na mídia, na política pública e até entre movimentos de esquerda era muito insatisfatório porque era muito apolítico.

Transformaram a austeridade em uma ferramenta técnica para gerir a economia e a discussão era se a austeridade estava ou não funcionando para equilibrar o orçamento e promover crescimento. Era um debate sem solução. E não muito útil para entender por que a austeridade continuava emergindo mesmo que claramente não estivesse gerando crescimento, nem ajudando a resolver a questão da dívida.

Então o estudo histórico é muito importante porque nos dá uma análise com perspectiva de classe que estava ausente no debate econômico contemporâneo, que era muito tecnocrático. A tentativa era então olhar para o que aconteceu 100 anos atrás e mostrar como a austeridade tem uma clara lógica política que visa manter todos nós em uma situação de precariedade, de dependência do mercado, desempoderando assim a população para que o sistema se proteja e mantenha a ordem do capital, que é o título do livro: A ordem do capital, para se manter intacto.

Se olharmos para a história, isso só é visível porque aconteceu em um momento em que o capitalismo foi muito contestado depois da Primeira Guerra, e assim realmente vemos como a austeridade operava como uma contraofensiva usada pelas elites para impedir qualquer alternativa ao nosso sistema.

Na apresentação do livro, você fala sobre várias crises econômicas e políticas em países do mundo todo, já que essas crises e essa austeridade são intrínsecas à nossa sociedade moderna.
Nos últimos anos, mais uma vez vimos uma crise do neoliberalismo no mundo todo, algo que já se dizia no início do século passado. Esse modelo econômico não é o mais adequado, certo?

Sim, com certeza. Estamos em outro momento em que as pessoas não acreditam no sistema, penso eu. Aliás, é por isso que a austeridade voltou com força total. Não só no Brasil. Eu moro nos Estados Unidos e o motivo pelo qual o Federal Reserve, o [equivalente ao] Banco Central, está aumentando a taxa de juros é porque a maioria das pessoas não está voltando ao trabalho.

Muitos trabalhadores estadunidenses, 46 milhões, em 2022, largaram seus empregos porque estão cansados da exploração e porque veem que o sistema não trabalha para eles e sim para uns poucos que enriquecem constantemente. Então é nessa situação que a austeridade deve voltar para nos convencer que, na verdade, estamos enganados e não existe outra saída a não ser através do sacrifício dos trabalhadores e, em última instância, do corte de salários para atrair a confiança dos investidores.

E o capital parece tentar se reestabilizar e se preservar o tempo todo.
Mesmo diante de uma crise, os bancos, o sistema inteiro, e até os governos liberais, ainda tentam protegê-lo.

Com certeza. Mas acho que existe aí uma mensagem de esperança que surge quando levamos a História a sério: o capital não é fixo, não é algo dado e não é uma coisa, não é um objeto. É uma relação social e se traduz em uma maioria que aceita sua condição e aceita sua condição de vender sua capacidade por um salário.

A relação social não é de maneira alguma estática. É dinâmica e pode ser subvertida. É dinâmica e pode ser subvertida. Então a realidade é que a ordem do capital é muito frágil. E é por isso que a austeridade é tão cara a ela, porque a protege de todas essas demandas de transformação social que vão surgindo.

A mensagem aqui é que precisamos saber como a classe dominante opera para preservar um sistema injusto. Precisamos parar de idealizar o capitalismo como um sistema que pode ser reformado e que tem flexibilidade para incorporar nossas necessidades, e perceber que o capitalismo tem limites rígidos. É um sistema que só cresce e produz para gerar lucro e isso requer austeridade.

A tese central aqui é que a austeridade não é uma exceção no capitalismo, não é algo que só se vê nas etapas neoliberais, começando nos anos 80. Ela é muito mais intrínseca à longa história do capitalismo. Está no DNA do sistema exatamente porque, para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas.

A pesquisa aborda os primeiros anos do século 20 até a atualidade. E a austeridade esteve sempre presente, como você acaba de dizer, desde o período entreguerras, que é onde começa a pesquisa.

Você disse que a austeridade foi uma ferramenta técnica e despolitizada para a ascensão de lideranças autoritárias. Por que unir Mussolini, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e Giorgia Meloni, por exemplo? A pergunta é: “o que os une?”

É muito importante aqui dar um passo para trás. No livro, faço uma reconstrução da crise do capitalismo após a Primeira Guerra, há exatos 100 anos. Em 1919 e 1920, a população em geral tinha desistido do capitalismo, pensando que haveria um futuro melhor após a reconstrução pós-guerra. E todos esses experimentos que surgem de conselhos de trabalhadores demandam democracia econômica, o que significa que as pessoas estavam se reapropriando da produção e distribuição de recursos. Isso estava acontecendo concretamente.

Meu foco é o movimento de Antonio Gramsci, em Torino, L’Ordine Nuovo, em que é possível ver um esforço real não só para pensar diferente, como também para agir diferente. E só se podia agir diferente realmente pensando diferente e só se podia pensar diferente agindo diferente. Então é a importância da prática, de uma sociedade diferente nascer de experimentos dentro das fábricas e também no campo, em que as pessoas se reapropriaram dos meios de produção e da organização do trabalho.

Nessa situação explosiva, a burguesia ficou muito assustada. Porque, é claro, ela se beneficiava do capitalismo, queriam protegê-lo e qualquer forma de distribuição e democracia econômica teria significado, de certo modo, o fim dos seus privilégios. É nesse momento em que vemos emergir a austeridade como uma contraofensiva e aqui há dois fatores relacionados à sua pergunta. O primeiro é que os economistas participaram muito ativamente na construção de modelos econômicos supostamente “neutros”, teorias “neutras”, conhecimento científico, para dizer às pessoas que elas eram ignorantes, que elas não entendiam e, em suma, que estavam vivendo por conta própria e tinham que aceitar a verdade dura, como diziam, do trabalho duro e abster-se de consumir.

Então esse lema de austeridade, “consuma menos, produza mais”, foi imposto à população italiana e inglesa. Esses dois países são o foco dos meus estudos porque meu interesse é mostrar que a austeridade surge onde a democracia econômica é mais palpável. E naquele momento na
Europa as pessoas tinham ganhado o direito ao voto, por exemplo. Mas o que se vê é uma aliança entre economistas e governos. Os economistas são convocados pelos governos para ajudar a impor à população a austeridade. E a austeridade veio em uma variedade de formas. Não foram só cortes de gastos, foi, em primeiro lugar, cortes de gastos sociais, taxação regressiva. Então houve aumento em impostos sobre o consumo, como ainda vemos no mundo todo hoje, mais impostos para pessoas físicas e corte de impostos para ricos e impostos corporativos ou sobre patrimônio etc.

Também se tratava de aumentar as taxas de juros, que também vemos hoje, ou seja, austeridade monetária, e, por último, aquilo que chamo de medidas industriais, que são ataques diretos a sindicatos, privatização, desregulação do trabalho e arrocho salarial. Então essa tríade da austeridade; fiscal, monetária e industrial; foi imposta à população também graças a economistas que estavam dizendo: “Este é o caminho certo a seguir e somos especialistas e objetivos”. Nesse sentido, fica evidente que os economistas desempenharam um papel bastante classista, participaram nessa guerra de uma classe contra o resto dos cidadãos e isso poderia ter sido feito de outro jeito, como foi na Inglaterra, onde a democracia liberal usou a austeridade contra seu povo e isso aumentou o desemprego e assim disciplinou os trabalhadores.

Eles tiveram que deter as greves, voltar ao trabalho com um salário bem menor e em piores condições. Voltando à pergunta, na Itália, vemos que Benito Mussolini, o fundador do fascismo, foi o mais eficiente implementador e aprendiz da austeridade. Mussolini chegou ao poder através de uma eleição, não um golpe, assim como Giorgio Meloni e Orbán hoje. Mas com uma intenção explícita de impor austeridade, dizendo às pessoas para não se preocuparem porque iriam fazer os cidadãos italianos pararem as greves, as reclamações e voltarem ao trabalho.

Agora, eu acho que hoje vemos muitos desses políticos “autoritários parafascistas” emergirem porque as pessoas estão insatisfeitas com a austeridade. A austeridade venceu a um ponto em que não há mais a noção de classe: as pessoas pensam que são indivíduos [isolados], e é uma típica mensagem de austeridade: “Não há classes, não há antagonismo, só indivíduos. E são os empresários que lideram a máquina econômica, não os trabalhadores.”

Então, no caso da Itália, para mim, Meloni chegou ao poder porque prometeu redistribuição de renda, e é claro que não cumpriu, porque assim que assumiu o poder mais uma vez impôs austeridade, como Mussolini e outros regimes autoritários.

Sobre isso, você diz que a austeridade não teve sucesso em estabilizar a crise econômica, mas teve sucesso em estabilizar as relações de classe. Estamos vendo agora uma mudança global nas relações de trabalho. Os sindicatos estão enfraquecidos, perdendo poder em alguns países. Como poderíamos ver nascer uma nova organização de trabalhadores?

Tenho algumas ideias sobre isso. Em primeiro lugar, mesmo se existe essa ideia de que os trabalhadores estão enfraquecidos, isso se deve à ação da austeridade sobre nossa vida por mais de 100 anos. Ela foi muito bem-sucedida, como você disse. A austeridade não teve sucesso em atingir os objetivos estabelecidos de crescimento econômico e pagamento da dívida, mas teve muito sucesso em atingir seu verdadeiro maior objetivo: garantir que as pessoas não pensem que podem viver em outro tipo de sociedade, aceitem sua condição de trabalhadores assalariados. Mais uma vez, impondo a ordem do capital. E isso também é uma armadilha para a mente porque os modelos econômicos reafirmam que os trabalhadores não importam, só os empresários.

Então é justo e correto afastar os recursos dos preguiçosos e favorecer os supostamente meritórios. Eles oferecem justificativas para essas políticas de extração de todos nós.

Claramente a austeridade teve sucesso e vemos que, historicamente, os trabalhadores perderam poder, o poder de barganha, o poder de imaginar um novo futuro. Dito isso, quero chamar atenção ao fato de que, no capitalismo, a luta de classes nunca para. É uma constante. Nosso sistema está em movimento, é um processo, não há nada fixo, mesmo que os economistas queiram que acreditemos que há algo fixo. Porque acreditar que algo é fixo nos desempodera e aprisiona nossa imaginação.

Então quero dizer que, é claro, existe um motivo por que a coisa não vai tão bem para os trabalhadores neste momento histórico, mas não é à toa que existem muitas mobilizações novas.
Nos Estados Unidos, por exemplo, é o setor de serviços: pessoas em restaurantes, hotéis, em áreas em que normalmente o trabalho é muito precarizado e individualizado, estão agora se sindicalizando. Starbucks, Amazon, Chipotle. E isso está assustando muito as classes dominantes.

Eu diria que estamos em um momento, na verdade, em que existe novamente certa turbulência. Claro, não é o espírito revolucionário de 100 anos atrás, mas há muita demanda por libertação.

Respondendo a sua pergunta, me sinto muito esperançosa. Há pouco estive na África do Sul, apresentando o livro, e me organizei e me encontrei com ativistas das townships [áreas urbanas comparáveis a favelas].

As townships são lugares onde o apartheid ainda existe, em termos de precarização econômica. No entanto, há muita energia no território, muita gente das novas gerações que abandonou as velhas categorias e estão pensando o novo.

Acho que o importante, para avançarmos, é abrir espaço para essas iniciativas que buscam recuperar independência e autossuficiência.

Trata-se de romper a principal armadilha, que é a dependência do mercado. O que quero dizer? Que a maioria de nós, para poder viver, precisa ter dinheiro no bolso. Se quiser comer, tem que comprar algo no supermercado. Se quiser morar, tem que pagar aluguel. Se quiser ser curado, tem que pagar pelos médicos. Se quiser ir à escola, muitas vezes tem que pagar. Este é o resultado da austeridade.

A mercantilização de todos os aspectos da nossa vida para nos desempoderar cada vez mais.

Acho que a primeira missão aqui é ser capaz de recuperar nosso poder através da organização, de conselhos, da vizinhança, de atividades locais, de formas de produzir e distribuir por nossa conta. Assim não dependeremos do salário dos capitalistas e não gastaremos nosso dinheiro em supermercados, para que o dinheiro não vá embora assim que entrar. Precisamos que os recursos permaneçam dentro da comunidade. E acho que esse é um primeiro passo importante para engajar as pessoas na ideia de organizar, colaborar e perceber que não é suficiente só votar nas eleições.

Votar nas eleições é um ato muito superficial. E é algo que mantém viva a servidão econômica.

Então é preciso romper e combater a servidão econômica. E esse seria um primeiro passo em um projeto muito mais ambicioso, que vai além da democracia social. É a derrubada das relações salariais em si. Repito que isso está acontecendo. Está acontecendo nas townships, eu estive lá há pouco. Está acontecendo no Chile, onde os conselhos são fortes.

Acho que está acontecendo no mundo todo, mas a mídia não fala disso.

Mas é suficiente para se envolver, ir para a rua, conhecer sua vizinha, ver que essas realidades existem e a austeridade está aí justamente para parar esses processos. Mas nós precisamos lutar contra isso.

Você mencionou a viagem à África do Sul. Seu livro será publicado no Brasil no segundo semestre, editado pela Boitempo. Está preparada para esse tour ao redor do mundo?

Tenho um filho de 8 meses que está viajando conosco. Seria melhor não ter que me mover tanto, mas faço isso porque acredito no poder do conhecimento, em ajudar a levar processos adiante.

Novamente, a mudança tem que vir de baixo, de quem está mobilizado. Mas acho que as bolsas de estudo de militância podem ajudar a desenvolver ferramentas para afiar a mente e o conhecimento sobre as estratégias inimigas. E é por isto que a História é útil, para abrir espaço a novas maneiras de fazer as coisas, para fomentar a imaginação política porque, no passado, houve muitos esforços para mudar a nossa sociedade. E ainda existem esforços assim e acho que meu papel é fazer a discussão avançar e dar esperança às gerações mais novas.

A ideia de ter um orçamento elevado é o debate central no Brasil hoje.

Esse debate eterno torna impossível avançar em direção a uma agenda positiva para o país. Por outro lado, muita gente, incluindo o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, acredita que os juros altos vão barrar o crescimento econômico e que o controle da inflação não deveria ser o foco principal. Essa ideia sobre o orçamento primário tem a mesma origem que a austeridade?

Com certeza. É exatamente isto que a austeridade faz. Passa a mensagem de que não há alternativa. Equilibrar o orçamento é uma prioridade indiscutível. É uma prioridade neutra e necessária. Agora, sabe que a mensagem do livro não é que esses economistas estão necessariamente errados. Acho que em boa parte dos casos, principalmente em países do Sul, nos quais os limites do capitalismo são reais, é realmente um problema que a inflação esteja alta, que a moeda esteja desvalorizada. Mas isso dialoga com a violência econômica que é muito estrutural no sistema.

Por isso a solução não é só fazer remendos no nosso sistema, com algumas reformas. Porque o estrangulamento é forte.

E é verdade que, sob o capitalismo, dependemos da confiança dos investidores para o crescimento econômico. E como você atrai investidores? Só se mantiver baixas as taxas sobre grandes riquezas e as taxas empresariais. Só se abrir às privatizações. O que ocorre agora é que grandes gestores de ativos estão comprando infraestrutura, imóveis, para tirar o máximo de taxas e renda, para aumentar o máximo possível as nossas necessidades diárias. Mas é exatamente isto que o Estado capitalista deve fazer, em suma, abrir-se a esses investidores privados. Essa é a realidade do sistema. É por isso que é muito idealista pensar que o Estado capitalista pode se opor a essas tendências globais de austeridade. É por isso, repito, que temos que encontrar formas através de processos de libertação da propriedade privada, meios de produção e relações salariais. Porque o capitalismo realmente nos aprisiona. Não sei se isso faz sentido.

Esse debate entre economistas soa, é claro, como se não fosse uma escolha política. E podemos dizer que obviamente é uma escolha política. Mas também é uma escolha restritiva porque são decisões políticas favoráveis à manutenção da estabilidade de certa forma de mercado capitalista, certo? E isso requer nossa subordinação às leis do mercado que nos estrangulam e beneficiam uma minoria muito pequena. Essas escolhas políticas são restritivas. Mas nós podemos pensar grande, querer mais que migalhas para manter o povo controlado. Precisamos pensar grande, pensar em realmente romper com a nossa posição de subordinação ao mercado.

Aqui no Brasil, em 2016, o governo, que aliás não tinha sido eleito pelo povo, criou um marco fiscal conhecido como “teto de gastos”. A ideia era controlar o orçamento e a relação entre gasto público e PIB. Na verdade, vimos uma drástica redução em investimentos sociais, como educação, saúde pública e outros programas sociais. Essa política de austeridade, junto a outros eventos do sistema político brasileiro, pavimentaram o caminho para a eleição de Jair Bolsonaro.

Movimentos como esse poderiam dar lugar ao avanço de partidos de extrema direita?

Sim, esse é outro exemplo de que a austeridade não é um erro. Muita gente na esquerda diz que é fruto de uma economia ruim, que é um erro. Infelizmente, não é um erro. O que você descreveu mostra o sucesso da austeridade. As pessoas foram tão desempoderadas, que perderam seu senso de união de classe. Perderam a noção da luta coletiva contra o inimigo, que é a minoria que se beneficia do sistema, e terminaram votando por essa minoria que se beneficia do sistema. Porque a austeridade nos individualiza, nos convence que todos nós podemos ser empresários se nos esforçarmos e que deveríamos sentir vergonha de ser pobres. O motivo por que as pessoas votam em alguém como Trump é exatamente o sucesso da austeridade. Não acho que podemos culpá-las por votarem em Bolsonaro ou Trump. Deveríamos culpar a elite dominante, incluindo, infelizmente, o Partido Democrata [dos Estados Unidos] e todos os partidos supostamente progressistas que, de forma hipócrita, já vinham praticando a austeridade.

A austeridade atravessa fronteiras partidárias. Infelizmente, aqueles que supostamente representam o povo, incluindo os sindicatos, apoiaram a austeridade, criaram a sensação de falta de esperança e de que deveríamos fazer o possível para nos salvar como indivíduos, sem olhar para o fato de que somos, na verdade, produtores, produtores coletivos que deveriam lutar contra a exploração e contra aqueles que nos exploram. Então é só através da recriação do senso de coesão de classe e da conscientização de classe que podemos nos libertar da armadilha de pensar que regimes autoritários vão nos salvar. Eles não vão. Mas o mesmo vale para partidos democratas, como o de Biden, que estão desfinanciando todos os setores sociais. Por toda parte.

A sorte visita quem arruma a casa!, por André Roncaglia

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Com parcos recursos institucionais e políticos, o governo lidou com numerosas frentes de batalha

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 29/12/2023

Ao avaliar as “Possibilidades econômicas do governo Lula”, destaquei que Lula inaugurara um governo sitiado, enfrentando um Congress arredio e pronto para desidratar suas propostas.

O governo passou pela “ponte do rio que cai”, equilibrando-se na “pinguela para o futuro” deixada por Temer e Bolsonaro, enquanto as forças armadas —e o sindicato do rentismo na imprensa e no Bacen— torpedeavam o governo de uma posição privilegiada e segura.

Com parcos recursos institucionais e políticos, o governo lidou com numerosas frentes de batalha. A priorização da agenda econômica trouxe custos políticos e institucionais, tais como a hipertrofia das emendas parlamentares (R$ 53 bilhões).

Logo após a vitória, o governo Lula, ainda não empossado, aprovação a PEC da Transição, abrindo necessário espaço fiscal para “arrumar a casa” em 2023.

Com efeito, manutenção e reforço do Bolsa Família, elevação real do salário mínimo, dos salários do funcionalismo e do limite de isenção do Imposto de Renda, reativação da Farmácia Popular, reajuste das bolsas de estudo e pesquisa, alívio do endividamento das famílias (Desenrola), dentre outras medidas, produziram efeitos macroeconômicos benignos.

O PIB deve crescer 3%, surpreendendo as previsões —eleitoralmente ressentidas— do mercado (0,8% no início do ano). Haja sorte!

Lula concentrou sua crítica na Selic que subiu a jato até a estratosfera e, agora, cai de paraquedas, asfixiando os investimentos produtivos. Fernando Haddad teve vitórias marcantes contra a vergonhosa injustiça tributária: o fim da isenção de fundos exclusivos e offshore, regularização das importações via e-commerce e a eliminação de distorções tributárias (como o impacto das subvenções do ICMS sobre gastos em custeio nos impostos federais).

O marco fiscal sustentável substituiu o disfuncional teto de gastos, oferecendo uma trajetória dura (e previsível) de ajuste fiscal que acalmou os mercados e viabilizou a queda da Selic a partir de agosto. Com a melhora do cenário externo (e a ajuda do Fed), a bolsa de valores bateu máxima histórica (134 mil pontos e 26% de valorização no ano); os juros longos e a taxa de câmbio despencaram.

A desinflação global da energia e dos alimentos se aliou à apreciação cambial, derrubando a inflação —que deve fechar o ano em 4,7%— e aumentando o apoio a cortes maiores na taxa Selic (hoje em 11,75%).

O saldo recorde da balança comercial (cerca de US$ 90 bilhões) gerou o mais baixo déficit em conta corrente em mais de uma década (US$ 0,2 bilhão). As exportações da agropecuária e do setor extrativo-mineral foram importantes motores do crescimento, mas representam uma fatia irrisória dos quase 2 milhões de empregos criados em 2023.

Foi o setor de serviços que puxou a elevação robusta da renda real do trabalho até o terceiro trimestre deste ano (3,9% na comparação interanual). A manutenção deste ritmo é um dos grandes desafios para 2024, assim como a ampliação dos investimentos públicos.

A reforma tributária aprovada em dezembro coroou o esforço fiscal e consolidou a boa imagem do governo fora do país, aproximando-nos do grau de investimento. Resta avançar na reforma tributária da renda, do patrimônio e da folha de pagamentos.

A neoindustrialização ganha corpo com a restauração do foco industrial e na inovação do BNDES, a folga da política de preços da Petrobras e a reativação da CEITEC (estatal dos chips), medidas de suporte ao Novo PAC. Falta ainda coerência nas políticas externa e energética (ingresso na OPEP+ na COP28 e a paralisia no caso Eletrobras).

Com a melhoria do cenário externo, as reformas de longo prazo efetivadas podem ampliar o horizonte do cálculo econômico e repetir, em 2024, parte desta “sorte” que visita quem deixa a casa arrumada.

Analisarei os desafios no novo ano.

Que venha 2024!

Morre Robert Solow, pioneiro no estudo do crescimento econômico, por Bernardo Guimarães

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Ao avaliarmos políticas públicas, precisamos pensar no que pode gerar um próspero 2044

Bernardo Guimarães, Doutor em economia por Yale, foi professor da London School of Economics (2004-2010) e é professor titular da FGV EESP

Folha de São Paulo, 27/12/2023

Morreu na semana passada, aos 99 anos, Robert Solow, um grande macroeconomista e vencedor do Prêmio Nobel. Solow fez sua carreira como professor do MIT e foi um pioneiro na moderna literatura sobre crescimento econômico.

O que gera desenvolvimento econômico? O que fez com que a renda por habitante da China tenha ido do nível da Etiópia em 1980 para maior que a do Brasil 40 anos depois? E como a China era tão pobre há 50 anos? O que fez Botswana ser 8 vezes mais rica que o vizinho Zimbabwe? Como alguns países do leste asiático que eram muito mais pobres que nós em 1950 são hoje tão desenvolvidos quanto países europeus? E por que a maioria dos países não conseguiu esse feito?

Como disse Robert Lucas, outro grande economista que morreu em 2023, quando começamos a nos perguntar sobre isso, é difícil pensar em outra coisa. Especialmente para países pobres e de renda média, um bom crescimento econômico por algumas décadas faria com que muitas pessoas tivessem vidas mais longas, saudáveis, confortáveis e felizes.
Robert Solow abriu caminhos para pesquisa nesse campo. Nos anos 1950 e 1960, ele mostrou, com modelos teóricos e dados, que acumulação de capital por si só não traria crescimento econômico duradouro.

Teoricamente, essa conclusão segue da ideia de que capital tem retornos decrescentes: mantendo tudo o mais constante, quanto mais capital há numa empresa, menos importante é acrescentar mais capital. Se há muito poucos computadores, um a mais torna a empresa bem mais produtiva. Mas se os computadores são bons e abundantes, investir mais nisso não aumenta significativamente a produtividade.

Empiricamente, Solow mostrou, usando 50 anos de dados dos Estados Unidos, que o crescimento econômico tinha menos a ver com acumulação de capital e mais a ver com fatores tecnológicos, educacionais ou culturais.

Esses seus artigos estimularam muito trabalho na área. Como eu não conseguiria fazer um resumo decente neste espaço, fecho com algumas implicações dessa literatura acadêmica para a nossa realidade.

Como gerar condições para crescimento econômico duradouro?

É lugar-comum dizer que precisamos investir mais em educação —ao mesmo tempo em que se desprezam aulas e livros.

Contudo, o Brasil gasta cerca de 5,5% do PIB com educação, percentual similar ao de outros países. Há muita pesquisa, inclusive de economistas, sobre o que podemos fazer para melhorar o retorno desse investimento.

Nós achamos que entendemos a importância de medidas que possam forjar o crescimento econômico por décadas, mas o jogo político foca sempre na evolução do PIB e a inflação atual.

Parece que esquecemos que o PIB do Brasil em 2023 será por volta de R$ 10 trilhões, não R$ 5 trilhões, nem R$ 20 trilhões, não por causa do que o governo Lula fez em 2023 ou o governo Bolsonaro fez em 2022, mas por tudo o que foi feito no passado.

Claro, isso não quer dizer que nosso destino foi escrito há 500 anos. Em 1950, a renda por habitante da Costa Rica era parecida com a da Guatemala. Hoje é quatro vezes maior. Poucas décadas podem fazer uma baita diferença.

A literatura acadêmica moderna enfatiza a importância de instituições que estimulem o investimento, a produção e a alocação eficiente de recursos. Precisamos de mais reformas nessa direção.

Esse é o momento de nos desejarmos um feliz 2024, mas, ao avaliarmos políticas públicas, precisamos pensar no que pode gerar um próspero 2044.

Pacto pelo Emprego

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Com o avanço da tecnologia em todas as áreas e setores, a sociedade passa por momentos de grandes transformações com impactos sobre o mundo do trabalho. De um lado percebemos o crescimento das tecnologias digitais, o aumento da competição, o crescimento da inteligência artificial, novas estruturas produtivas, novos modelos de negócio e grandes exigências para todos os indivíduos, buscando constante atualização e novos conhecimentos, além de novas habilidades que demandam recursos financeiros, levando muitos trabalhadores a não conseguirem estes recursos para investimentos, privando-os desta qualificação fundamental para sua inserção no mercado contemporâneo.

Vivemos momentos de incertezas, instabilidades e, ao mesmo tempo, grandes desenvolvimentos no mundo da tecnologia, que aumentam a produtividade do trabalho, consolidando novos setores, impulsionando o surgimento de novos modelos de negócios. Como imaginaríamos duas décadas atrás o surgimento de empresas como o Uber, a Netflix, o WhatsApp, dentre outras, com novos modelos, novas dinâmicas e capacidade de transformar as formas de organização social e política.

Diante destas transformações cotidianas, que se caracterizam pela rapidez destas alterações na sociedade, um dos grandes desafios para a economia global é a criação de emprego, fundamental para que os indivíduos consigam sobreviver de forma decente e diminuindo a dependência de políticas públicas desenvolvidas por governos nacionais, garantindo maior autonomia e novas formas de inserção na sociedade contemporânea, tão marcadas por grandes desigualdades, exclusões sociais e violências urbanas que se espalham em todas as regiões do mundo.

Para estimularmos os investimentos produtivos é fundamental que os governos nacionais desenvolvam projetos que auxiliem os setores privados e públicos para incrementarem os investimentos produtivos, sem investimento é impossível aumentar a geração de emprego na sociedade. Vivemos numa comunidade marcada por educação de baixa qualidade, impostos elevados para os setores produtivos e que se acostumou com as taxas escorchantes de juros, que estimulam fortemente o rentismo e a especulação financeira, inibindo os investimentos produtivos e contribuindo maciçamente para o aumento das desigualdades sociais e a degradação econômica que crescem rapidamente, estimulando as exclusões e a violência, que afugentam os investimentos produtivos, a geração de emprego e a melhora das condições sociais.

Numa sociedade marcada por grandes desenvolvimentos tecnológicos, dos negócios digitais, da internet das coisas e com o crescimento da inteligência artificial, as nações desenvolvidas estão aumentando os investimentos das pesquisas científicas, na formação de capital humano, melhorando as condições de trabalho dos profissionais da educação, que devem ser vistos como os profissionais imprescindíveis para a nova sociedade do conhecimento, estimulando a qualificação destes profissionais e deixando de lado discursos ideológicos mesquinhos que atrasam as grandes movimentações em curso na educação mundial.

Vivemos momentos de grandes transformações energéticas na sociedade internacional, neste cenário, somos dotados de grandes ativos estratégicos que precisam ser estimulados, fortalecendo energias alternativas, preservando o meio ambiente, construindo estruturas para a preservação da Amazônia, combatendo garimpos ilegais e fortalecendo a indústria nacional, adotando políticas de reindustrialização produtiva. Todas estas políticas têm forte potencial na geração de emprego e renda, garantindo empregos melhores e qualificados, com novas regulamentações e novas formas de fiscalização.

Todos os dias percebemos o crescimento da insegurança urbana, novas formas de exploração na sociedade, além do incremento do tráfico de drogas, dos conflitos das facções e do incremento das milícias, que crescem numa sociedade que se esfacela todos os dias, marcada por polarizações políticas e a busca constante por interesses imediatos, individualistas e corporativos. Um pacto pelo emprego pode ser o início da reconstrução nacional de uma sociedade que, infelizmente, desaprendeu a capacidade de sonhar.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Dowbor: Assim o rentismo tornou-se doutrina

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Livro apresenta o homem que forjou o receituário corporativo do capitalismo improdutivo: cortar gastos obsessivamente, criar competição tóxica e buscar o lucro máximo, a qualquer custo.

Fórmula inspirou personagens como Lemann

Ladislau Dowbor – Outras Palavras, 21/12/2023

A principal transformação do capitalismo nas últimas décadas é de ter migrado do lucro sobre processos produtivos como eixo central, para a maximização dos rendimentos financeiros, materializados em dividendos para acionistas. Trata-se do rentismo moderno, da maximização de dividendos por meio de sistemas especulativos, recompra de ações, cortes de empregos e de salários, evasão fiscal por meio de paraísos fiscais e outros mecanismos, no que tem sido chamado de financeirização. Há numerosos trabalhos sobre esta nova fase neoliberal do capitalismo, e de primeira linha, como de Joseph Stiglitz, que qualifica esses lucros de “unearned income”, ou seja, rendimentos não merecidos; de Thomas Piketty, que os qualifica de “rentas” (rentes em francês); de Mariana Mazzucato, que se refere ao “extractive capitalism”; de Michael Hudson, que os apresenta como bactérias que matam o hospedeiro (Killing the Host); de Gabriel Zucman (The Triumph of Unjustice), isso sem falar dos que abriram os caminhos, como François Chesnais e David Harvey. É uma visão que está se tornando dominante na economia em geral. Bom senso em construção.

Mas o aporte de David Gelles, no livro The man who broke capitalism: how Jack Welch gutted the heartland and crushed the soul of corporate America – and how to undo his legacy, é contundente, pela análise detalhada de corporações concretas, como a General Electric – como exemplo básico – mas também da Amazon, AT&T, Boeing, BlackRock, Unilever, Paypal, e também, particularmente interessante para nós, da 3G Capital. Esta última é controlada por Lemann, Sicupira e Telles, responsáveis pelas fraudes bilionárias das Lojas Americanas, e que constituem o grupo privado mais poderoso hoje no Brasil, conforme vemos na edição da Forbes sobre bilionários brasileiros.

O trabalho de Gelles alimenta sem dúvida uma visão de conjunto da financeirização, mas construída a partir do comportamento detalhado das grandes corporações, no cotidiano da tomada de decisão dos executivos. Poucas obras são tão ricas em termos de fazer compreender os mecanismos deste bicho novo que ainda chamamos de capitalismo, mas que funciona de maneira diferente e obedece a regras que nos escapam. Ainda se auto-qualificam de “mercados”, mas estão muito mais próximos de uma “aristocracia capitalista”, como as qualifica Michael Sandel.

David Gelles escreve de maneira excepcionalmente clara. Jornalista e colunista do New York Times, e pesquisador sobre o funcionamento concreto de corporações financeiras e tecnológicas, navega com conforto na área, e torna a temática muito acessível. A realidade é que escreve muito bem, o livro “se lê”. E a seriedade da pesquisa, riqueza de fontes e facilidade de consulta faz deste trabalho, a meu ver, uma das melhores ferramentas para entender a dimensão atual dos nossos desafios. Não precisa ser economista, Gelles insiste em que os mecanismos sejam entendidos. Queiramos ou não, esses gigantes corporativos, com seu alcance global, estão definindo os rumos das nossas economias, dos nossos empregos, inclusive Jack Welch é um protagonista central. Executivo da uma das maiores corporações mundiais, a General Electric, ele conseguiu, em 20 anos, entre 1981 e 2001, transformar uma empresa de ponta de produção de utilidades domésticas em um gigante financeiro que compra e revende empresas de qualquer setor da economia, seguindo à risca os conselhos de Milton Friedman, de que se trata de maximizar o retorno dos acionistas, pouco importa como e a que custo. Friedman deu a benção acadêmica para essa economia do vale-tudo corporativo: The business of business is business. Essa fratura entre a busca de lucros e dividendos, e os interesses da sociedade é central. “A lucratividade da corporação já não se traduz em ampla prosperidade econômica”, escreve Gelles, citando William Lazonick. (65).

Eu me familiarizei com Jack Welch ao ler há alguns anos o seu principal livro, Straight from the Gut, título que sugere uma escrita enraizada nos sentimentos mais profundos e sinceros, mas um dos livros de gestão mais cínicos que já tive entre as mãos. E teve impacto planetário, legitimando o vale-tudo, ao mostrar como os acionistas da GE passaram a ganhar muito mais dinheiro, e valorizando a empresa na bolsa. De certa forma, o que Friedman fez para os economistas, liberando-os de qualquer relação com ética e valores em geral, Welch o fez para uma geração de executivos pelo planeta afora, um impacto impressionante, mas que coincide com os interesses de se fazer dinheiro a qualquer custo. Basta olhar o que “os mercados” aprontam no Brasil. Não à toa hoje enfrentamos a “economia desgovernada”.

Uma das técnicas de Welch que ficou famosa e foi muito replicada consiste em organizar a empresa em unidades, cujo chefe é obrigado, a cada fim de ano, a definir quais são os 20% de trabalhadores mais produtivos, os 70% seguintes, e os 10% menos produtivos, que seriam despedidos. Isso gera uma guerra permanente em todos os departamentos, luta pela sobrevivência, em vez de sistemas colaborativos e sentimento de equipe. Acompanhado de despedimentos em massa (downsizing), de liquidação de segmentos menos lucrativos, substituindo-os por terceirizados, e compras dispersas de qualquer empresa que pudesse gerar mais lucro ao ser fragmentada e revendida, o resultado foi um dreno poderoso a favor dos acionistas, na linha, precisamente, da maximização de dividendos. Dos desastres gerados resulta a batalha atual de muitas empresas, de promover o ESG (Environment, Social, Governance), tentando recolocar no horizonte empresarial não só o lucro dos acionistas (shareholders), mas também os impactos sociais e ambientais (stakeholders).

Como exemplo de comportamentos lucrativos mas desastrosos de grandes corporações, o autor aponta a 3G Capital, controlada por Lemann, Sicupira e Telles, os maiores bilionários brasileiros, que drenam recursos não só das Lojas Americanas, por quaisquer meios legais ou ilegais, mas de uma imensa rede de empresas controladas por participações de diversos tipos. “No caminho, escreve Gelles, os brasileiros desenvolveram uma reputação de cortadores selvagens de custos e de demitidores despiedados (merciless downsizers).” Gelles cita o próprio Lemann: “Na realidade, somos copiadores. É o que somos. A maior parte do que aprendemos foi de Jack Welch, de Jim Collins (autor de Good to Great), da GE, da Walmart. De certa maneira juntamos tudo isso” (p. 178). Centrar tudo no lucro financeiro e no curto prazo é hoje a filosofia de inúmeras corporações, e explicam em grande parte o paradoxo de tantos avanços tecnológicos, enquanto as economias estagnam, aumentam a desigualdade, o desemprego e os empregos precários. É uma deformação sistêmica, que no Brasil atingiu dimensões absurdas, inclusive com desindustrialização.

“Considerem, escreve Gelles, o caso da 3G Capital, um grupo privado de acionistas que controla marcas incluindo Budweiser, Burger King, e Kraft Heinz. Fundado por um grupo de financistas brasileiros, os homens por trás da 3G Capital são os Neutron Jacks (apelido dado a Jack Welch por sua capacidade de explodir empresas, LD) do século 21, implacavelmente adquirindo empresas, cortando custos e cabeças, e extraindo lucros para si mesmos e investidores enquanto pareciam ignorar o bem-estar da sua força de trabalho e a necessidade de pesquisa e desenvolvimento” (p. 177). É importante entender que essa maximização de apropriação de dividendos pelos acionistas leva à redução de investimentos produtivos na empresa, fragilizando-a. “As corporações, que outrora compartilhavam generosamente os lucros com os seus trabalhadores no país todo (EUA), agora canalizam a parte do leão da riqueza que criam para investidores institucionais e executivos. Enquanto nos anos 1980 menos de metade dos lucros corporativos voltavam para investidores, durante a última década, este número subiu (soared) para 93%” (p. 183).

Para claro o contraste, David Gelles, descreve a tentativa do grupo 3G Capital de controlar a Unilever, fazendo uma proposta dourada ao seu executivo Paul Polman (anteriormente da Nestlé).

Seria uma aquisição gigantesca, da ordem de US$143 bilhões, o que dá uma ideia da força financeira internacional deste grupo. Polman resistiu, e orientou a Unilever para uma linha que prioriza o desenvolvimento produtivo, com equilíbrio entre dividendos, remuneração dos trabalhadores e reinvestimento na empresa. “Temos de sair desta corrida de ratos” disse Polman.

“Era uma transação puramente financeira que era atraente no papel, mas constituía na realidade dois sistemas econômicos conflitantes” (p. 206). Segundo Gelles, “os brasileiros tinham mal avaliado a sua presa.”

Eu queria muito recomendar a leitura desse livro. Sem frescuras, academicismos ou gráficos complexos, mas com muita documentação de apoio e pesquisa, é a melhor radiografia que li sobre como se deformou o que conhecíamos antigamente como capitalismo industrial, e que hoje conhecemos como “mercados”, aos quais temos de obedecer, se não “ficam nervosos”, e temos pagar obedientemente os juros extorsivos, e acreditar que se eles ficam ricos – sem gerar produtos, pagando mal os poucos empregos que geram, e evitando os impostos – a economia irá prosperar.

Bem, é o que os consultores na mídia comercial nos repetem todo dia.

Não estamos equipados para tanta complexidade, por Suzana Herculano-Houzel

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Precisamos do presente mais valioso de todos: tempo livre

Suzana Herculano-Houzel, Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

Folha de São Paulo, 26/12/2023

O mundo está indo para o ralo. Democracias quebradas, liberalismo econômico que só atende aos mais ricos, extremos de temperatura e clima, cada vez mais desinformação e desigualdade inclusive em como se faz ciência (eu volto a isto na próxima coluna, prometo). Por quê? Eu me atrevo a arriscar uma resposta bastante simples: a complexidade galopante do mundo que estamos criando hoje excede em muito o tempo que temos disponível para aprender a lidar com ela.

Vejo o problema nas portas que deixamos se fecharem a torto e a direito exatamente porque perdemos o controle da velocidade em que geramos aquilo que um dia trouxe novas oportunidades àquela que, olhando para trás, chamamos de nossa espécie: tecnologia. Falo da tecnologia de maneira geral, que colocou em movimento a bola de neve do nosso destino ao transformar em polpa alimentos até então duros e difíceis de comer e nos dar o presente mais valioso de todos: tempo livre.

Por definição, tecnologia é tudo aquilo que gera tempo livre para fazer outras coisas e usar nossos neurônios criativamente. No caso da história humana, a tecnologia tem sido triplamente transformadora porque mamíferos com mais neurônios (cortesia número um da tecnologia) têm cada vez mais capacidade de resolver problemas aqui e enxergar novos ali (cortesia número dois) e vidas cada vez mais longas para continuar enxergando e resolvendo problemas (cortesia número três).

Elefantes têm um monte de neurônios, mas comem grama, então sua realidade é não ter tempo para nada além de comer o dia todo. Humanos, ao contrário, são aqueles primatas que inventaram truques para comer a energia de que precisam mais rápido, e assim foram ficando ao mesmo tempo mais capazes tanto de facilitar sua própria vida quanto de… complicá-la.

A razão é exatamente a mesma que explica nenhum adulto ainda gostar de jogo da velha ou damas: o que era dificuldade, mas a gente aprendeu a resolver rápido, não tem mais graça nenhuma, porque o esforço não vale mais a pena quando não há nada de novo ali para ser aprendido. Por isso, o que todo animal quer é sarna para se coçar.

O problema é que, para o animal humano, a sarna que a gente quer coçar é a própria tecnologia.

Como aprender a usar a da vez é necessário e divertido, usamos o tempo livre de que dispomos graças à tecnologia para criar e usar… ainda mais tecnologia. Nossa história moderna é a bola de neve resultante dessas conquistas que se retroalimentam —e que agora está virando uma avalanche que cada vez menos gente dispõe das habilidades para entender.

Interromper a avalanche, ou ao menos mitigar seu estrago, exige cidadãos que aprendam a fazer bom uso do tempo livre que a tecnologia lhes dá: cidadãos que usem esse tempo para olhar para trás, olhar ao redor e um ao outro, para aprender a lidar com a complexidade de várias verdades contraditórias do mundo moderno e, sobretudo, para se manterem inteligentes. Pois inteligência é a capacidade de agir para manter portas abertas, e nossa incapacidade crescente de lidar com um mundo cada vez mais complexo torna a humanidade burra, tomando decisões que fecham portas para o seu próprio futuro —exatamente como o mau uso da tecnologia que um dia nos tornou humanos hoje apenas nos torna gordos.

A incompetência da extrema direita em segurança, por Thiago Amparo

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A voz grossa do extremismo busca, sem sucesso, esconder sua inépcia

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Folha de São Paulo, 21/12/2023

Precisamos falar sobre o quão incompetente é a extrema direita em segurança pública. Digo isso apesar da eficiência de sua retórica linha-dura no tema: mais armas nas mãos de cidadãos e mais polícia sem controle nas ruas equivaleriam a menos crimes. Nada mais falso. Quando olhamos por baixo do tapete da retórica, o que vemos é descontrole da polícia, o amadorismo em segurança e a precarização do trabalho das polícias.

Isto é o que se percebe em São Paulo e no Rio no momento. Vejamos exemplos apenas deste mês. Cenas de arrastão em carros na rodovia no Guarujá, litoral paulista. Dois ataques a carros-fortes, no interior e no ABC paulista, em apenas 48 horas entre os dias 11 e 13 deste mês. Crescimento de ações de “justiceiros” (eles mesmos criminosos) nas ruas de Copacabana, no Rio. Governo sob Castro e prefeitura sob Paes, juntos, buscando na Justiça apreender adolescentes (sabemos a cor deles), sem flagrante e em violação à lei.

Não são apenas casos isolados. Os oito primeiros meses de 2023 foram os que tiveram mais roubos no centro paulistano em toda a série histórica dos últimos 22 anos. Permitir que policiais adulteram as câmeras corporais em São Paulo, colocar secretário de Segurança condecorado por deputado ligado a miliciano no Rio, aprovar com a bancada da bala o desmonte das ouvidorias, eis a solução da extrema direita que revela sua incompetência no tema.

A verdade é que as melhores políticas de segurança pública no país foram adotadas por governos não extremistas de direita. Estudo do Instituto Sou da Paz, de abril de 2023, faz um balanço de algumas dessas políticas. Iniciativas sérias como Mesa de Situação em Alagoas em 2015, Em Defesa da Vida no Ceará em 2014 e Estado Presente em 2011 no Espírito Santo são alguns exemplos de políticas de segurança baseadas em evidências e com resultado.

A voz grossa da extrema direita em segurança é estridente porque busca, sem sucesso, esconder sua incompetência.

Desigualdade aumenta o gasto social em segurança patrimonial, por André Roncaglia

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Democratização das oportunidades diminui a oferta de mão de obra ao crime e cria ambiente mais seguro

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 22/12/2023

A América Latina é uma região violenta. Responsável por quase metade das vítimas de homicídio no mundo, ela detém pouco mais de 8% da população global. É também uma das regiões mais desiguais do planeta.
Estudo recente do Fundo Monetário Internacional (FMI) mostra que, além das dolorosas perdas familiares, a criminalidade inibe a acumulação de capital. Ao afugentar investidores temerosos de roubo e violência e elevar os custos de vida e de operação das empresas, a insegurança diminui a produtividade ao desviar recursos para investimentos menos produtivos, como a segurança residencial.

O combate ao crime melhora a alocação de recursos, mas é importante atacar as suas causas mais profundas. Estudo de Daniel Hicks e Joan Hicks (2014) trouxe evidências de correlação entre criminalidade e desigualdade: regiões dos EUA em que havia maior consumo conspícuo (carros, joias, restaurantes caros etc.) também sofriam com maior criminalidade.

O Brasil é um dos países com maior desigualdade econômica no mundo. Aqui, R$ 20 de cada R$ 100 gerados correm para o 0,5% mais rico da população. A privação econômica, a concentração de riqueza e a sensação de insegurança impulsionam a necessidade de proteção patrimonial.

Pesquisa do Instituto Datafolha mostrou que a insegurança cresce com o nível de renda. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública justificam o med o: crimes contra o patrimônio, como roubos e furtos, têm aumentado nos últimos anos no Brasil.

A concentração espacial de riqueza também se relaciona a taxas mais altas de crimes contra o patrimônio. Propriedades de alto valor se tornam alvos atrativos para criminosos, o que leva proprietários a investir em sistemas de segurança mais sofisticados. Isso inclui a contratação de seguranças particulares, a instalação de câmeras de vigilância e de sistemas de alarme, com segurança particular, blindagem de automóveis, camadas de segurança cibernética contra golpes e crimes financeiros e, a partir de 2019, com armas, muitas armas.

Um trágico evento recente exemplifica este padrão. Estimulado pela política de violência pública de Bolsonaro, o empresário paranoico com sua segurança residencial disparou suas duas pistolas contra uma policial civil e estimulou seu segurança privado a fazer o mesmo. Os três acabaram mortos.

A plataforma DataViva mostra que, entre 2003 e 2021, a renda mensal neste setor cresceu de R$ 400 milhões para R$ 2 bilhões, tendo o gasto mensal direto em atividades de segurança e vigilância variado de R$ 193 milhões para mais de R$ 1 bilhão, enquanto o número de empregos cresceu de 266 mil para 500 mil.

Para a maioria da população, contudo, esta proteção não é acessível. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua mostrou que, em 2021, cerca de 1,8 milhão de brasileiros foram vítimas de roubo (1,1% da população), dos quais 63,2% eram pretas ou pardas e 38,6% das vítimas tinham até o ensino médio incompleto. A riqueza concentrada no topo gera insegurança generalizada no andar de baixo.

Problemas comuns requerem atuação do Estado. Como na saúde e na educação, a política de segurança pública não pode ser terceirizada ao cidadão comum, sob pena de gerar mais insegurança às forças policiais, tragédias familiares e má alocação de recursos na economia.

O caminho mais efetivo para combater a criminalidade é reduzir a desigualdade de riqueza e ampliar a oferta de bens públicos, via tributação progressiva e crescimento econômico inclusivo.

A democratização das oportunidades diminui a oferta de mão de obra ao crime e cria um ambiente mais seguro e equitativo para todos, não apenas para quem pode pagar.

Pacto pela Produção

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A comunidade econômica internacional está percebendo grandes transformações nas discussões teóricas nos governos, nas universidades e nos construtores das políticas públicas, onde destacamos o retorno das discussões referentes as políticas de intervenção dos governos nacionais retomando momentos de maior intervencionismo. Neste momento, as políticas protecionistas estão sendo adotadas, sempre destacando que estas políticas foram utilizadas por todos os governos nacionais como forma de estimular seus setores produtivos, uns deixando mais claras e efetivas, enquanto outras nações se escondiam em discursos surreais de uma defesa incondicional do livre mercado e da livre competição.

Neste momento, percebemos que estamos vivendo um momento interessante na economia nacional, com indicadores positivos, com melhoras sensíveis nos empregos, com queda das taxas de juros, redução da inflação, melhora nas contas externas, aumento das exportações e perspectivas positivas. Estas melhoras no campo econômico são sempre necessárias e imprescindíveis, mas precisamos entender, que os desafios são imensos e exigem esforços de todos os grupos sociais e políticos para que a sociedade enterre décadas de estagnação e baixo crescimento econômico, que trouxeram um incremento da degradação social, aumento da pobreza e da indignidade, além de facilitar o crescimento das polarizações políticas, aumentando os conflitos sociais, as violências e a desagregação.

Nos últimos quarenta anos, a economia nacional deixou de lado os grandes geradores de emprego em detrimento dos financistas e dos donos do capital financeiro, que passaram a controlar a agenda econômica, os meios de comunicação, impedindo as discussões democráticas e passaram a adotar uma pauta que garantem e perpetuassem de seu poder econômico e financeiro em detrimento da geração de riqueza real para a comunidade, controlando as autoridades monetárias, com taxas de juros escorchantes que garantem lucros e dividendos estratosféricos, com isso, percebemos uma situação surreal, uma economia estagnada, uma população endividada, desemprego nas alturas, empresas em dificuldades e bancos e sistema financeiro garantindo lucros e dividendos elevados.

Precisamos reconstruir um pacto pela produção, pela defesa da dignidade, em defesa do potencial produtivo da sociedade brasileira, estimulando os grupos que impulsionam a economia nacional, os pequenos, médios e grandes empresários, os trabalhadores das cooperativas, dos grupos econômicos vinculados as associações, os grandes produtores do campo, do agronegócio, todos aqueles que estão vinculados com a construção de riquezas nacionais, desta forma, precisamos alavancar investimentos produtivos, gerando empregos de qualidade, fortalecendo a formação e a instrução nas universidades, fomentando a ciência, a pesquisa e o conhecimento, canalizando recursos para a economia real, gerando emprego, taxas de juros condizentes e uma perspectiva de dignidade da população, impedindo um colapso social em curso na sociedade brasileira, um país imensamente rico, dotado de grandes vantagens comparativas, energias alternativas, economia verde e dotado de grande potencial de inclusão social e, infelizmente, convivendo com o crescimento exponencial dos moradores de ruas, das violências urbanas e no crescimento do mercado das drogas, das milícias e dos entorpecentes.

O predomínio da agenda dos grupos financistas e dos setores vinculados ao mercado financeiro fragilizaram uma visão de sociedade, criando uma análise imediatista, reduzindo os investimentos de longo prazo e levando os gestores privados a estimularem os ganhos imediatos e os pagamentos de dividendos elevados em detrimentos de investimentos produtivos, rechaçando o planejamento estratégico, garantindo lucros imediatos para os acionistas e fragilizando os negócios no longo prazo.

Vivemos numa sociedade paradoxal que privilegia setores que pouco contribuem para a geração de riqueza social e nos esquecemos dos verdadeiros geradores de progresso econômico e produtivo, sem estes não conseguiremos construir uma nação de cidadãos, apenas construindo consumidores.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

A lógica do capital, por Alysson Mascaro

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Alysson Leandro Mascaro – A Terra é Redonda -24/12/2023

Ao capitalismo, o Brasil já é o que deve ser. O desenvolvimento será socialista

As posições relativas dos países no desenvolvimento capitalista mundial não são devidas a incapacidades ou omissões ou ausência de vontades e de acordos suficientes para o progresso. São, fundamentalmente, posições materialmente bastantes de exploração, dominação e acumulação. Por isso, não cabe a imagem de um topo geopolítico mundial ao qual alguns países subiram por esforço e mérito, cabendo aos demais chegarem também.

A divisão de classes e as diferenças entre países e formações sociais no plano externo e interno são exatamente o modelo de reprodução social capitalista. O Brasil, mesmo sendo periférico no quadro mundial, é grande o suficiente para não poder se resolver de modo autônomo sem impactar os interesses do capital internacional, que se interpenetra de modo indissolúvel com o capital brasileiro. Nessa dialética de potência e limite, não faltaram meios econômicos, quadros nem ideias que ensejassem um pleno desenvolvimentismo capitalista brasileiro: faltam estruturas de sociabilidade.

A contradição do Brasil é exatamente a mesma contradição do capitalismo no plano mundial. Não será por melhor astúcia, acordo, suavidade, concórdia, boa razão, republicanismo, legalidade e cumprimento dos princípios constitucionais, ou por exaustão das mesmas tentativas, que o desenvolvimento estável e inclusivo então chegará ao Brasil: o erro é na forma da luta, não na arte do empreendimento. Pelo século XX, formações sociais de grande peso no mundo, como é o peso da brasileira, só cambiaram com êxito mediante revoluções socialistas.

Os casos russo e chinês dão demonstrações de refundações da sociabilidade e de suas instituições que se provaram suficientes para uma reescrita pujante de suas próprias histórias. Muito disso se deve à aglutinação social das classes trabalhadoras – via de regra forjada mediante guerras – e, em especial, pela tomada de poder autonomista e progressista que altera estruturalmente instituições como as forças armadas (no caso russo e chinês, reformuladas a partir de novo padrão, de exércitos populares) ou mesmo as funções institucionais executivas, legislativas e judiciárias (também reescritas em tais países mediante o centralismo de partidos comunistas).

Os casos de câmbio progressista dentro do sistema capitalista só se deram sob subordinação aos Estados Unidos e mediante estrito interesse geopolítico deste – Europa sob plano Marshall, Coreia do Sul e Japão como cunhas no oriente soviético-chinês. Mas o Brasil representa aos interesses dos EUA, exatamente, aquilo que já é. Tudo o que caminhar a ser distinto altera posições e sofre imediato bloqueio. E, no que tange às relações sociais internas, as classes capitalistas e os grupos dominantes do Brasil não esperam outro tipo de pujança nem se orientam pela igualdade e pelo progresso de pobres e trabalhadores, igual a qualquer outra classe capitalista e dominante de qualquer outro país capitalista do mundo.

A lógica do capital é a manutenção suficiente e ótima dos próprios padrões de acumulação já dados, ou a modulação apenas para sua ampliação. Por isso, uma transformação social progressista só pode se dar mediante as classes trabalhadoras. Sob condições capitalistas, o capital e suas instituições destroem as lutas inclusivas logo que tal processo comece a se concretizar. Somente a ruptura das formas, com novas coesões e forjas de poder, ação e interesses, conduzindo ao término da dinâmica de acumulação do capital, é capaz de reestruturar a sociedade brasileira, bem como qualquer outra sociedade.

Todas as outras tentativas, operando dentro das formas do capital, são tragadas e bloqueadas pelas próprias formas e instituições já dadas. Avista-se, para as contradições estruturais das lutas sob o capitalismo, apenas uma fresta estreita na história, a revolução que altere o modo de produção. Os câmbios socialistas são difíceis como o foram e têm sido já há quase dois séculos por muitas plagas do mundo, mas, peculiarmente, são ainda assim mais fáceis do que mudar uma sociedade da exploração para a inclusão mantendo o quadro geral das formas e instituições que só operam a acumulação e que bloqueiam o câmbio progressista. A história é aberta. A utopia é concreta. O desenvolvimento é possível. Se existir de modo vitorioso e perene, ele será socialista.

*Alysson Leandro Mascaro é professor da Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Estado e forma política (Boitempo).
“Teses sobre desenvolvimento e capitalismo”, publicado originalmente no livro Utopias para Reconstruir o Brasil, organizado por Gilberto Bercovici, João Sicsú e Renan Aguiar. Rio de Janeiro, Editora Quartier Latin do Brasil, 202

A era da distopia, por Samuel Kilsztajn

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Samuel Kilsztajn – A Terra é Redonda – 11/12/2023

Estamos todos mergulhados no sistema orquestrado pelo despotismo da mercadoria

A população mundial, praticamente estável em 300 milhões de pessoas durante todo o primeiro milênio da Era Cristã, cresceu paulatinamente para atingir um bilhão em 1750, início da Revolução Industrial. Antes da Revolução Industrial, o que se passou a chamar de renda per capita era relativamente constante desde a Antiguidade e também diferia muito pouco entre as diversas sociedades ao redor do mundo, tanto as consideradas pobres como as abastadas.

Adam Smith, que viveu na Inglaterra no bojo da Revolução Industrial, publicou em tempo real, já em 1776, na crista da onda, a obra que marcou o nascimento da economia política, Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações (abreviada para A riqueza das nações).

A Revolução Industrial alavancou a produção de alimentos, bens de consumo e instrumentos de trabalho a patamares nunca antes imaginados. Podia-se antever então uma nova era de fartura, o paraíso terrestre, a utopia realizada, em que a carestia seria completamente eliminada da face da terra.

O ano da publicação de A riqueza das nações, 1776, também marca a independência dos Estados Unidos da América do domínio inglês, a Revolução Americana. Em 1789 caiu a Bastilha e, no início do século XIX, a Revolução Francesa ganhou a Europa Continental (a Inglaterra, já em 1688, havia se livrado da monarquia absolutista, que foi submetida ao parlamento; o Império Russo, por outro lado, tendo derrotado Napoleão, manteve-se refratário às conquistas liberais e aos plenos direitos civis).

No início do século XX a Europa vivia a Belle Époque, oh là là! que não durou muito, porque estourou a Grande Guerra que poria fim à Era dos Impérios. Em meio à guerra, o absolutista Império Russo, com atraso de um século, enfim ruiu; e os impérios centrais Alemão, Austro-Húngaro e Otomano foram dissolvidos. A Inglaterra não cumpriu o ideário marxista e coube à retrógrada Rússia a instauração do socialismo, como uma forma de desenvolver a sua economia arcaica. A Revolução Industrial cunhou A riqueza das nações e a ideologia do progresso e do desenvolvimento das forças produtivas.

Durante a guerra, o exército alemão foi destroçado pela gripe espanhola, o que levou a Alemanha a aceitar o humilhante armistício, mesmo com o seu exército estacionado em território inimigo, sem que o exército dos aliados tivesse adentrado o território alemão (o que deu margem ao mito da “punhalada pelas costas”).

No pós-guerra, enquanto os Estados Unidos viviam os anos dourados da Era do Jazz, a Alemanha, submetida a pagar pesadas reparações de guerra, mergulhou em severa crise, com alto nível de desemprego, pobreza, hiperinflação e desarticulação social. Em 1924, a Alemanha conseguiu se restabelecer e seguiram-se cinco anos de relativa prosperidade, que terminou por força da grande depressão mundial de 1929.

Em 1928 o partido nazista de Hitler contava com 2,6% dos votos na Alemanha; cinco anos depois, em meio à grande depressão, ao alcançar 43,9% dos votos, os nazistas tomaram o poder, inaugurando o Terceiro Reich e se preparando para o novo embate que elevaria Deutschland, Deutschland über alles, über alles in der welt, a Alemanha, Alemanha acima de tudo, acima de tudo no mundo.

Os alemães, que primam pela eficiência, instituíram na prática as teorias racistas que dominaram a ciência e a civilização ocidental na primeira metade do século XX. O Terceiro Reich, que aterrorizou a Alemanha, a Europa e a humanidade, programado para viver por um milênio, sobreviveu por intermináveis doze longos anos, suficientes para mergulhar o planeta na barbárie.

No pós-Segunda Guerra Mundial, o Império Russo, sob a insígnia de União Soviética, reabilitado sobre uma economia planificada e um sistema político extremamente autoritário, ao lado de seus estados satélites do Leste Europeu, dividiu a hegemonia internacional com o liberal império americano e seus aliados do Atlântico Norte (OTAN), período denominado Guerra Fria.

Após o colapso da União Soviética em 1991, o império chinês, sob a insígnia de República Popular da China, igualmente reabilitado sobre uma economia planificada e um sistema político extremamente autoritário, entrou em cena para se vingar da humilhação sofrida nas Guerras do Ópio na metade do século XIX, quando a Inglaterra submeteu o longínquo e milenar império, que foi levado à desarticulação. A OTAN e o império chinês dividem hoje a hegemonia internacional.

Além da OTAN, do império chinês e do império russo, participa do cenário internacional a Organização de Cooperação Islâmica, que representa os dois bilhões de muçulmanos que vivem em países do norte da África, África Ocidental, Oriente Médio, Ásia Central e Sudeste Asiático, países que não necessariamente atuam em bloco.

Apesar da Revolução Industrial, a fantástica riqueza das nações não erradicou a miséria da maior parte da população mundial, nem os bolsões de pobreza no interior das nações mais desenvolvidas do planeta. As faculdades de “ciências econômicas” ensinam que o aumento na produtividade é acompanhado pelo crescimento e diversificação das necessidades humanas. Novos produtos e novas necessidades vão sendo criados, muito além dos básicos produtos alimentícios, vestuário e habitação necessários para a vida.

Em 2023, na Cidade de São Paulo, quando saio às ruas, fico amargurado ao ver os transeuntes passando impassíveis por inúmeras pessoas dormindo ao longo das calçadas, algumas na diagonal, enroladas nos cobertores cinzas de resíduos de fibras sintéticas que a prefeitura anda distribuindo. Plagiando Hobsbawm, penso, essa é a era da distopia.

A Revolução Industrial, que nos levaria à era da utopia, o fim da carestia para a humanidade, engendrou, ao contrário, a atual era da distopia, em que uma parafernália de novos produtos supérfluos é produzida, consumida e descartada, por uma sociedade do espetáculo, do consumo, do desperdício e da produção de lixo que convive com uma população que revira o lixo das grandes cidades em busca de alimentos e de materiais recicláveis para revenda.

Como é que os laboratórios farmacêuticos poderiam sobreviver sem fornecer pastilhas de fibras para as pessoas que enriquecem o lixo doméstico com os bagaços descartados de seu saudável suco matinal de laranja? Como é que alguém pode sobreviver sem acesso a alimentos dietéticos altamente processados e prontos para o consumo, um tênis de marca e um celular de última geração? Como é que a desigualdade no interior das sociedades e entre as nações, que foi acirrada pela Revolução Industrial, pode dispensar a produção de engenhos de segurança e armamentos para proteger os esnobes ricaços dos marginalizados amigos do alheio?

Estamos todos mergulhados no sistema orquestrado pelo despotismo da mercadoria. Quem hoje ousaria se contrapor à mercadoria, ao progresso e ao desenvolvimento econômico? Só não são afetados pela mercadoria os povos que vivem fora do sistema, a exemplo das populações indígenas do Brasil. Mesmo assim, vários indígenas abandonam suas comunidades, fisgados pelas “maravilhas” da sociedade do consumo.

O consumo supérfluo enfeitiça as pessoas com a promessa da felicidade neste lado do paraíso. Não é nem propriamente o consumo que importa, mas a perda da sociabilidade e o consequente impessoal espírito de competição. O que vale mesmo é deixar o seu vizinho de queixo caído ao ver você sair da garagem com o carrão do ano.

Não acho que a questão atinja apenas os pobres. Os ricos também são presas do sistema que faz com que sejam apêndices da mercadoria e de seu consumo; e se percam em valores mundanos em que a solidariedade humana não encontra mais lugar. Apesar da filantropia e das aparências, a artificialidade da vida dos ricos não permite que eles vivam plenamente em lugar algum, nem na estratosfera.

Além disso, não é o consumo das camadas privilegiadas da sociedade que justifica o sistema capitalista, mas sim os investimentos, o progresso e o desenvolvimento econômico. Por que será que a fantástica produção mundial nunca é suficiente para abastecer a humanidade? O destino dos pobres é passar necessidades básicas de forma a justificar os investimentos (que, contudo, ratificam a estratificação social), o progresso e o desenvolvimento econômico orquestrado pelo mundo da mercadoria.

A China, ao que tudo indica, é a herdeira do projeto civilizatório orquestrado pelo mundo da mercadoria. O império chinês, que provê e alimenta seus trabalhadores autômatos despersonalizados a serviço da mercadoria, tem tudo para ser a última fase do capitalismo, que vai arrastar consigo o império americano. O Partido Comunista Chinês, por linhas tortas, vai conseguir cumprir o seu ideal, desestruturar o sistema capitalista e enfim implodir o reino da mercadoria.

Imponentes impérios se sucederam às margens do Mediterrâneo durante a Antiguidade. Após a queda de Roma, seguiu-se a chamada Idade das Trevas, que se estendeu por todo um milênio. O capitalismo industrial, que criou “maravilhas maiores que as pirâmides do Egito”, que vem devastando o planeta e enfim açambarcou o longínquo império chinês, ainda não completou três séculos de vida.

* Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Do socialismo científico ao socialismo utópico.

Transformações globais

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Neste espaço todas as semanas fazemos reflexões sobre questões interessantes para a sociedade internacional, assuntos econômicos relevantes que impactam sobre a sociedade, comentários políticos e análises sociais que repercutem com a comunidade. Diante disso, estamos percebendo o surgimento de novos horizontes econômicos e políticos que estão ganhando relevância na sociedade mundial, como a retomada de políticas protecionistas, subsídios para setores estratégicos e novas formas de atuação dos governos nacionais, que estão crescendo e se tornando visíveis na economia dos Estados Unidos, que antes era visto como um paraíso da globalização e do livre comércio, percebemos alterações evidentes como o incremento das políticas protecionistas, abandando o livre comércio de forma pragmática para defender seus interesses econômicos e financeiros.

Neste cenário, os governos norte-americanos, desde Donald Trump e mais incisivamente o atual presidente Joe Biden, vem adotando políticas fortemente protecionistas, com o despejo de trilhões de dólares para alavancar a produção nacional, com medidas tarifárias para proteger a produção interna, atraindo grandes conglomerados asiáticos para o mercado interno e a geração de emprego local, como forma de reconstruir laços industrializantes que foram perdidos num momento de crescimento das finanças em detrimento da estrutura industrial. Essa política deve ser vista como o reconhecimento da sociedade norte-americana de que sua estrutura econômica e produtiva não é mais hegemônica e dominante no cenário global, sentindo a concorrência da economia chinesa, que como destacou o renomado jornal inglês Financial Times: “Desculpem, EUA, a China tem uma economia maior do que a sua”.

Neste momento, percebemos que a economia norte-americana que liderou a economia internacional, saindo de um cenário unipolar para uma estrutura global descrita, por especialistas, de uma sociedade multipolar, onde encontramos novos eixos que lideram a economia mundial, surgindo novos conceitos, novos valores e novos comportamentos, exigindo das nações novos conceitos, buscando novas formas de autonomia e novas formas de soberania, além de liderança e capacidade de compreender os novos desafios da sociedade contemporânea.

Todas as nações que se desenvolveram buscaram fortalecer seu capital humano, com forte investimento em educação, capacitando e qualificando sua população e criando instrumento para a competição desta nova economia internacional, centrada no mundo digital, de novas tecnologias, de novas inovações e de novas oportunidades para os cidadãos. O mundo criado e estimulado pela globalização pelos Estados Unidos está perdendo espaço para uma nova sociedade, mais protecionista, onde o Estado Nacional está ganhando uma nova centralidade, criando os instrumentos de política econômica e de política públicas para estimular seus atores econômicos e produtivos, melhorando a produtividade, gerando mais e melhores empregos, incrementando a renda dos trabalhadores e melhorando as condições de vida dos cidadãos.

Neste novo horizonte, os mitos econômicos estão sendo repensados, as ideologias perdem espaço para a realidade contemporânea, defendemos liberalismo e a livre concorrência como forma de chegar ao oásis do progresso material quando estamos no pódio maior do crescimento econômico mas, nossas atitudes e comportamentos mudam quando nos vemos ameaçados, desta forma repensamos nossas ciências e retomamos, novamente, nosso histórico de protecionismo e passamos a retomar o pragmatismo e adotamos a expressão: faça o que eu digo mas não faça aquilo que eu faço.

Neste momento, percebemos que as nações desenvolvidas estão retomando políticas estratégicas de desenvolvimento econômico, incrementando investimentos para suas comunidades, retomando empresas estratégicas, melhorando instrumentos de fiscalização e consolidando suas capacidades de regulamentação e, ao mesmo tempo, as nações em eterno subdesenvolvimento se esforçam para entregar suas riquezas para grandes conglomerados internacionais, perpetuando nossa indignidade, nossa exploração e nosso eterno subdesenvolvimento.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.