Neoliberalismo e criminalização da pobreza, por Marco Mondaini

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MARCO MONDAINI – A Terra é Redonda, 12/10/2023

Prefácio ao livro recém-lançado, organizado por Terçália Suassuna Vaz Lima
O último quarto do século XX assinalou um significativo ponto de inflexão na história do modo de produção capitalista, bem como na trajetória do Estado e do conjunto de instituições criadas por este desde os processos revolucionários ocorridos na Inglaterra, Estados Unidos e França, no decorrer dos séculos XVII e XVIII.

Depois de um breve período de aproximadamente trinta anos em que, no Norte global, o capitalismo foi “organizado” em função da destruição gerada pelas Primeira e Segunda Guerras Mundiais, pela edificação do amedrontador mundo comunista criado ao redor da União Soviética, pelas lutas da classe trabalhadora dentro das suas fronteiras e pelas crises cíclicas do próprio modo de produção, chega-se, em meados da década de 1970, a um ponto de virada no qual o sistema do capital volta a apelar para o uso sistemático da barbárie que sempre o caracterizou dentro dos seus limites geopolíticos e, especialmente, nas suas relações com os países e povos do Sul global, desde o seu processo primitivo de acumulação.

A barbárie nua e crua que retorna à cena histórica de onde nunca havia se ausentado por completo foi – e permanece sendo até os dias de hoje – resultado da implementação de uma fórmula responsável por aumentar exponencialmente os níveis de exploração e opressão do capitalismo, isto é, seus índices de desigualdade, pobreza e violência.

Tal fórmula responde pelo nome de neoliberalismo e pelo sobrenome de Estado Penal. Dela resultaram fenômenos como a criminalização e controle da pobreza, o encarceramento em massa, a desproteção social à infância e adolescência, a preservação e aumento da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes e do trabalho infantil – fenômenos estes abordados no livro que tenho a satisfação de prefaciar num momento de transição da história brasileira, resultante da derrota da extrema direita encabeçada pelo capitão da reserva do exército (de corte neoliberal e punitivista, diga-se de passagem) no último pleito presidencial para a Frente Ampla Democrática que se formou em torno da candidatura de Lula.

Organizado pela doutora em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professora da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Terçália Suassuna Vaz Lima, o livro intitulado Neoliberalismo e Criminalização da Pobreza reúne dez artigos escritos na sua maioria por assistentes sociais com pós-graduação, muitas das quais já exercendo a docência no ensino superior, em universidades públicas e privadas, entre as quais ex-alunas minhas nos cursos de graduação e pós-graduação em Serviço Social da UFPE e colegas de docência e pesquisa no magistério superior – fato que expressa outra vez mais o crescimento quantitativo e qualitativo da produção realizada no âmbito do Serviço Social.

No entanto, para além de critérios meramente acadêmicos, o livro em questão expressa o compromisso de caráter ético-político de um conjunto de profissionais que deslocam seu olhar para (e em defesa de) uma das parcelas da população brasileira que mais sentem no corpo e na alma os impactos do enxugamento dos recursos destinados à área social de um Estado que nunca foi provido de uma ossatura próxima daquela do Estado de Bem-Estar Social dos países do Norte global e que reproduz um passado escravista e patriarcal que insiste em não passar. Um passado de desigualdades sociais e étnico-raciais, entre tantas outras, que é potencializado pelas políticas macroeconômicas e sistemas de valores neoliberais.

Uma parcela da população brasileira que sofre no corpo e na alma as consequências do avanço das práticas punitivistas que, a negar o falso discurso do Brasil como país da impunidade, penalizam seletivamente crianças e adolescentes filhos de uma classe trabalhadora – negra, na sua maioria – cada vez mais precarizada e desprovida de direitos e garantias sociais e, concomitantemente, cada vez mais “administrada” pelas políticas de contenção do Estado Penal e sua cultura necrófila.

Por essas razões, Neoliberalismo e criminalização da pobreza merece ser lido por todas as pessoas interessadas em aguçar seu espírito crítico a fim de intervir nas lutas contrárias ao Estado Penal Neoliberal no Brasil.

*Marco Mondaini, historiador, é professor titular do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e coordenador e apresentador do programa Trilhas da Democracia.

Referência
Terçália Suassuna Vaz Lima (org.). Neoliberalismo e criminalização da pobreza. A (des)proteção social à infância e adolescência no Brasil. Campina Grande, EDUEPB, 2023, 392págs.

Austeridade econômica pavimenta o caminho para o fascismo, diz pesquisadora

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Clara Mattei, autora de livro sobre o tema, foi a convidada da semana no BdF Entrevista

José Eduardo Bernardes – Brasil de Fato – 04 de julho de 2023

A professora e escritora Clara Mattei é objetiva: já no título de seu mais recente livro ela fala da conexão direta entre austeridade econômica e o fascismo. Em The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism (ainda sem título em português – em tradução livre: “a ordem do capital: como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo”) ela destrincha essa relação. O livro será lançado no Brasil ainda este ano pela editora Boitempo.

Mattei foi a convidada do Brasil de Fato Entrevista desta semana. Ela contou sobre o processo para elaboração da obra, que é fruto de dez anos de estudo. Italiana radicada nos Estados Unidos (ela é professora de Economia na The New School for Social Research, em Nova Iorque), a pesquisadora cita personagens como Benito Mussolini, Donald Trump e a atual primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, como frutos políticos de um caminho trilhado com apoio na lógica da austeridade econômica.

“Para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas”, afirma ela, que destaca que a alternativa a esse sistema passa pela organização das pessoas em suas comunidades locais.

Confira abaixo a entrevista.
Brasil de Fato: A senhora passou dez anos escrevendo o livro que nasceu da sua tese de doutorado. Como e quando decidiu se aprofundar neste assunto?

Clara Mattei: Tudo começou quando estava vivendo os anos de grande austeridade de Mario Monti, na Itália. Ele chegou ao poder após a crise da dívida soberana em nosso país e estava estudando e vivendo na pele, assim como a maioria das pessoas no mundo ainda vive hoje, os efeitos da austeridade, a redução de verbas para a educação e saúde pública. Vi as pessoas na Itália ficarem cada vez mais pobres a olhos vistos. Era um país em que não tínhamos pessoas morando na rua e as ruas estavam ficando cheias de gente. Não havia moradia.

Mas você passou dez anos pesquisando e procurando material em arquivos, certo?
Sim, é um trabalho em economia histórica e política. É baseado em fontes primárias e na reconstrução do passado através de uma nova perspectiva, analisando material que ainda não havia sido publicado. O tipo de debate sobre austeridade que estava ocorrendo na mídia, na política pública e até entre movimentos de esquerda era muito insatisfatório porque era muito apolítico.

Transformaram a austeridade em uma ferramenta técnica para gerir a economia e a discussão era se a austeridade estava ou não funcionando para equilibrar o orçamento e promover crescimento. Era um debate sem solução. E não muito útil para entender por que a austeridade continuava emergindo mesmo que claramente não estivesse gerando crescimento, nem ajudando a resolver a questão da dívida.

Então o estudo histórico é muito importante porque nos dá uma análise com perspectiva de classe que estava ausente no debate econômico contemporâneo, que era muito tecnocrático. A tentativa era então olhar para o que aconteceu 100 anos atrás e mostrar como a austeridade tem uma clara lógica política que visa manter todos nós em uma situação de precariedade, de dependência do mercado, desempoderando assim a população para que o sistema se proteja e mantenha a ordem do capital, que é o título do livro: A ordem do capital, para se manter intacto.

Se olharmos para a história, isso só é visível porque aconteceu em um momento em que o capitalismo foi muito contestado depois da Primeira Guerra, e assim realmente vemos como a austeridade operava como uma contraofensiva usada pelas elites para impedir qualquer alternativa ao nosso sistema.

Na apresentação do livro, você fala sobre várias crises econômicas e políticas em países do mundo todo, já que essas crises e essa austeridade são intrínsecas à nossa sociedade moderna. Nos últimos anos, mais uma vez vimos uma crise do neoliberalismo no mundo todo, algo que já se dizia no início do século passado. Esse modelo econômico não é o mais adequado, certo?

Sim, com certeza. Estamos em outro momento em que as pessoas não acreditam no sistema, penso eu. Aliás, é por isso que a austeridade voltou com força total. Não só no Brasil. Eu moro nos Estados Unidos e o motivo pelo qual o Federal Reserve, o [equivalente ao] Banco Central, está aumentando a taxa de juros é porque a maioria das pessoas não está voltando ao trabalho.

Muitos trabalhadores estadunidenses, 46 milhões, em 2022, largaram seus empregos porque estão cansados da exploração e porque veem que o sistema não trabalha para eles e sim para uns poucos que enriquecem constantemente. Então é nessa situação que a austeridade deve voltar para nos convencer que, na verdade, estamos enganados e não existe outra saída a não ser através do sacrifício dos trabalhadores e, em última instância, do corte de salários para atrair a confiança dos investidores.

E o capital parece tentar se reestabilizar e se preservar o tempo todo. Mesmo diante de uma crise, os bancos, o sistema inteiro, e até os governos liberais, ainda tentam protegê-lo.

Com certeza. Mas acho que existe aí uma mensagem de esperança que surge quando levamos a História a sério: o capital não é fixo, não é algo dado e não é uma coisa, não é um objeto. É uma relação social e se traduz em uma maioria que aceita sua condição e aceita sua condição de vender sua capacidade por um salário.

A relação social não é de maneira alguma estática. É dinâmica e pode ser subvertida. É dinâmica e pode ser subvertida. Então a realidade é que a ordem do capital é muito frágil. E é por isso que a austeridade é tão cara a ela, porque a protege de todas essas demandas de transformação social que vão surgindo.

A mensagem aqui é que precisamos saber como a classe dominante opera para preservar um sistema injusto. Precisamos parar de idealizar o capitalismo como um sistema que pode ser reformado e que tem flexibilidade para incorporar nossas necessidades, e perceber que o capitalismo tem limites rígidos. É um sistema que só cresce e produz para gerar lucro e isso requer austeridade.

A tese central aqui é que a austeridade não é uma exceção no capitalismo, não é algo que só se vê nas etapas neoliberais, começando nos anos 80. Ela é muito mais intrínseca à longa história do capitalismo. Está no DNA do sistema exatamente porque, para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas.

A pesquisa aborda os primeiros anos do século 20 até a atualidade. E a austeridade esteve sempre presente, como você acaba de dizer, desde o período entreguerras, que é onde começa a pesquisa.

Você disse que a austeridade foi uma ferramenta técnica e despolitizada para a ascensão de lideranças autoritárias. Por que unir Mussolini, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e Giorgia Meloni, por exemplo? A pergunta é: “o que os une?”

É muito importante aqui dar um passo para trás. No livro, faço uma reconstrução da crise do capitalismo após a Primeira Guerra, há exatos 100 anos. Em 1919 e 1920, a população em geral tinha desistido do capitalismo, pensando que haveria um futuro melhor após a reconstrução pós-guerra. E todos esses experimentos que surgem de conselhos de trabalhadores demandam democracia econômica, o que significa que as pessoas estavam se reapropriando da produção e distribuição de recursos. Isso estava acontecendo concretamente.

Meu foco é o movimento de Antonio Gramsci, em Torino, L’Ordine Nuovo, em que é possível ver um esforço real não só para pensar diferente, como também para agir diferente. E só se podia agir diferente realmente pensando diferente e só se podia pensar diferente agindo diferente. Então é a importância da prática, de uma sociedade diferente nascer de experimentos dentro das fábricas e também no campo, em que as pessoas se reapropriaram dos meios de produção e da organização do trabalho.

Nessa situação explosiva, a burguesia ficou muito assustada. Porque, é claro, ela se beneficiava do capitalismo, queriam protegê-lo e qualquer forma de distribuição e democracia econômica teria significado, de certo modo, o fim dos seus privilégios. É nesse momento em que vemos emergir a austeridade como uma contraofensiva e aqui há dois fatores relacionados à sua pergunta. O primeiro é que os economistas participaram muito ativamente na construção de modelos econômicos supostamente “neutros”, teorias “neutras”, conhecimento científico, para dizer às pessoas que elas eram ignorantes, que elas não entendiam e, em suma, que estavam vivendo por conta própria e tinham que aceitar a verdade dura, como diziam, do trabalho duro e abster-se de consumir.

Então esse lema de austeridade, “consuma menos, produza mais”, foi imposto à população italiana e inglesa. Esses dois países são o foco dos meus estudos porque meu interesse é mostrar que a austeridade surge onde a democracia econômica é mais palpável. E naquele momento na Europa as pessoas tinham ganhado o direito ao voto, por exemplo. Mas o que se vê é uma aliança entre economistas e governos. Os economistas são convocados pelos governos para ajudar a impor à população a austeridade. E a austeridade veio em uma variedade de formas. Não foram só cortes de gastos, foi, em primeiro lugar, cortes de gastos sociais, taxação regressiva. Então houve aumento em impostos sobre o consumo, como ainda vemos no mundo todo hoje, mais impostos para pessoas físicas e corte de impostos para ricos e impostos corporativos ou sobre patrimônio etc.

Também se tratava de aumentar as taxas de juros, que também vemos hoje, ou seja, austeridade monetária, e, por último, aquilo que chamo de medidas industriais, que são ataques diretos a sindicatos, privatização, desregulação do trabalho e arrocho salarial. Então essa tríade da austeridade; fiscal, monetária e industrial; foi imposta à população também graças a economistas que estavam dizendo: “Este é o caminho certo a seguir e somos especialistas e objetivos”. Nesse sentido, fica evidente que os economistas desempenharam um papel bastante classista, participaram nessa guerra de uma classe contra o resto dos cidadãos e isso poderia ter sido feito de outro jeito, como foi na Inglaterra, onde a democracia liberal usou a austeridade contra seu povo e isso aumentou o desemprego e assim disciplinou os trabalhadores.

Eles tiveram que deter as greves, voltar ao trabalho com um salário bem menor e em piores condições. Voltando à pergunta, na Itália, vemos que Benito Mussolini, o fundador do fascismo, foi o mais eficiente implementador e aprendiz da austeridade. Mussolini chegou ao poder através de uma eleição, não um golpe, assim como Giorgia Meloni e Orbán hoje. Mas com uma intenção explícita de impor austeridade, dizendo às pessoas para não se preocuparem porque iriam fazer os cidadãos italianos pararem as greves, as reclamações e voltarem ao trabalho.

Agora, eu acho que hoje vemos muitos desses políticos “autoritários parafascistas” emergirem porque as pessoas estão insatisfeitas com a austeridade. A austeridade venceu a um ponto em que não há mais a noção de classe: as pessoas pensam que são indivíduos [isolados], e é uma típica mensagem de austeridade: “Não há classes, não há antagonismo, só indivíduos. E são os empresários que lideram a máquina econômica, não os trabalhadores.”

Então, no caso da Itália, para mim, Meloni chegou ao poder porque prometeu redistribuição de renda, e é claro que não cumpriu, porque assim que assumiu o poder mais uma vez impôs austeridade, como Mussolini e outros regimes autoritários.

Sobre isso, você diz que a austeridade não teve sucesso em estabilizar a crise econômica, mas teve sucesso em estabilizar as relações de classe. Estamos vendo agora uma mudança global nas relações de trabalho. Os sindicatos estão enfraquecidos, perdendo poder em alguns países. Como poderíamos ver nascer uma nova organização de trabalhadores?

Tenho algumas ideias sobre isso. Em primeiro lugar, mesmo se existe essa ideia de que os trabalhadores estão enfraquecidos, isso se deve à ação da austeridade sobre nossa vida por mais de 100 anos. Ela foi muito bem-sucedida, como você disse. A austeridade não teve sucesso em atingir os objetivos estabelecidos de crescimento econômico e pagamento da dívida, mas teve muito sucesso em atingir seu verdadeiro maior objetivo: garantir que as pessoas não pensem que podem viver em outro tipo de sociedade, aceitem sua condição de trabalhadores assalariados. Mais uma vez, impondo a ordem do capital. E isso também é uma armadilha para a mente porque os modelos econômicos reafirmam que os trabalhadores não importam, só os empresários.

Então é justo e correto afastar os recursos dos preguiçosos e favorecer os supostamente meritórios. Eles oferecem justificativas para essas políticas de extração de todos nós. Claramente a austeridade teve sucesso e vemos que, historicamente, os trabalhadores perderam poder, o poder de barganha, o poder de imaginar um novo futuro. Dito isso, quero chamar atenção ao fato de que, no capitalismo, a luta de classes nunca para. É uma constante. Nosso sistema está em movimento, é um processo, não há nada fixo, mesmo que os economistas queiram que acreditemos que há algo fixo. Porque acreditar que algo é fixo nos desempodera e aprisiona nossa imaginação.

Então quero dizer que, é claro, existe um motivo por que a coisa não vai tão bem para os trabalhadores neste momento histórico, mas não é à toa que existem muitas mobilizações novas.

Nos Estados Unidos, por exemplo, é o setor de serviços: pessoas em restaurantes, hotéis, em áreas em que normalmente o trabalho é muito precarizado e individualizado, estão agora se sindicalizando. Starbucks, Amazon, Chipotle. E isso está assustando muito as classes dominantes.

Eu diria que estamos em um momento, na verdade, em que existe novamente certa turbulência. Claro, não é o espírito revolucionário de 100 anos atrás, mas há muita demanda por libertação.

Respondendo a sua pergunta, me sinto muito esperançosa. Há pouco estive na África do Sul, apresentando o livro, e me organizei e me encontrei com ativistas das townships [áreas urbanas comparáveis a favelas]. As townships são lugares onde o apartheid ainda existe, em termos de precarização econômica. No entanto, há muita energia no território, muita gente das novas gerações que abandonou as velhas categorias e estão pensando o novo.

Acho que o importante, para avançarmos, é abrir espaço para essas iniciativas que buscam recuperar independência e autossuficiência. Trata-se de romper a principal armadilha, que é a dependência do mercado. O que quero dizer? Que a maioria de nós, para poder viver, precisa ter dinheiro no bolso. Se quiser comer, tem que comprar algo no supermercado. Se quiser morar, tem que pagar aluguel. Se quiser ser curado, tem que pagar pelos médicos. Se quiser ir à escola, muitas vezes tem que pagar. Este é o resultado da austeridade. A mercantilização de todos os aspectos da nossa vida para nos desempoderar cada vez mais.

Acho que a primeira missão aqui é ser capaz de recuperar nosso poder através da organização, de conselhos, da vizinhança, de atividades locais, de formas de produzir e distribuir por nossa conta. Assim não dependeremos do salário dos capitalistas e não gastaremos nosso dinheiro em supermercados, para que o dinheiro não vá embora assim que entrar. Precisamos que os recursos permaneçam dentro da comunidade. E acho que esse é um primeiro passo importante para engajar as pessoas na ideia de organizar, colaborar e perceber que não é suficiente só votar nas eleições.

Votar nas eleições é um ato muito superficial. E é algo que mantém viva a servidão econômica.
Então é preciso romper e combater a servidão econômica. E esse seria um primeiro passo em um projeto muito mais ambicioso, que vai além da democracia social. É a derrubada das relações salariais em si. Repito que isso está acontecendo. Está acontecendo nas townships, eu estive lá há pouco. Está acontecendo no Chile, onde os conselhos são fortes. Acho que está acontecendo no mundo todo, mas a mídia não fala disso. Mas é suficiente para se envolver, ir para a rua, conhecer sua vizinha, ver que essas realidades existem e a austeridade está aí justamente para parar esses processos. Mas nós precisamos lutar contra isso.

Você mencionou a viagem à África do Sul. Seu livro será publicado no Brasil no segundo semestre, editado pela Boitempo. Está preparada para esse tour ao redor do mundo?

Tenho um filho de 8 meses que está viajando conosco. Seria melhor não ter que me mover tanto, mas faço isso porque acredito no poder do conhecimento, em ajudar a levar processos adiante. Novamente, a mudança tem que vir de baixo, de quem está mobilizado. Mas acho que as bolsas de estudo de militância podem ajudar a desenvolver ferramentas para afiar a mente e o conhecimento sobre as estratégias inimigas. E é por isto que a História é útil, para abrir espaço a novas maneiras de fazer as coisas, para fomentar a imaginação política porque, no passado, houve muitos esforços para mudar a nossa sociedade. E ainda existem esforços assim e acho que meu papel é fazer a discussão avançar e dar esperança às gerações mais novas.

A ideia de ter um orçamento elevado é o debate central no Brasil hoje. Esse debate eterno torna impossível avançar em direção a uma agenda positiva para o país. Por outro lado, muita gente, incluindo o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, acredita que os juros altos vão barrar o crescimento econômico e que o controle da inflação não deveria ser o foco principal. Essa ideia sobre o orçamento primário tem a mesma origem que a austeridade?

Com certeza. É exatamente isto que a austeridade faz. Passa a mensagem de que não há alternativa. Equilibrar o orçamento é uma prioridade indiscutível. É uma prioridade neutra e necessária. Agora, sabe que a mensagem do livro não é que esses economistas estão necessariamente errados. Acho que em boa parte dos casos, principalmente em países do Sul, nos quais os limites do capitalismo são reais, é realmente um problema que a inflação esteja alta, que a moeda esteja desvalorizada. Mas isso dialoga com a violência econômica que é muito estrutural no sistema. Por isso a solução não é só fazer remendos no nosso sistema, com algumas reformas. Porque o estrangulamento é forte.

E é verdade que, sob o capitalismo, dependemos da confiança dos investidores para o crescimento econômico. E como você atrai investidores? Só se mantiver baixas as taxas sobre grandes riquezas e as taxas empresariais. Só se abrir às privatizações. O que ocorre agora é que grandes gestores de ativos estão comprando infraestrutura, imóveis, para tirar o máximo de taxas e renda, para aumentar o máximo possível as nossas necessidades diárias. Mas é exatamente isto que o Estado capitalista deve fazer, em suma, abrir-se a esses investidores privados. Essa é a realidade do sistema. É por isso que é muito idealista pensar que o Estado capitalista pode se opor a essas tendências globais de austeridade. É por isso, repito, que temos que encontrar formas através de processos de libertação da propriedade privada, meios de produção e relações salariais. Porque o capitalismo realmente nos aprisiona. Não sei se isso faz sentido.

Esse debate entre economistas soa, é claro, como se não fosse uma escolha política. E podemos dizer que obviamente é uma escolha política. Mas também é uma escolha restritiva porque são decisões políticas favoráveis à manutenção da estabilidade de certa forma de mercado capitalista, certo? E isso requer nossa subordinação às leis do mercado que nos estrangulam e beneficiam uma minoria muito pequena. Essas escolhas políticas são restritivas. Mas nós podemos pensar grande, querer mais que migalhas para manter o povo controlado. Precisamos pensar grande, pensar em realmente romper com a nossa posição de subordinação ao mercado.

Aqui no Brasil, em 2016, o governo, que aliás não tinha sido eleito pelo povo, criou um marco fiscal conhecido como “teto de gastos”. A ideia era controlar o orçamento e a relação entre gasto público e PIB. Na verdade, vimos uma drástica redução em investimentos sociais, como educação, saúde pública e outros programas sociais. Essa política de austeridade, junto a outros eventos do sistema político brasileiro, pavimentaram o caminho para a eleição de Jair Bolsonaro.

Movimentos como esse poderiam dar lugar ao avanço de partidos de extrema direita?
Sim, esse é outro exemplo de que a austeridade não é um erro. Muita gente na esquerda diz que é fruto de uma economia ruim, que é um erro. Infelizmente, não é um erro. O que você descreveu mostra o sucesso da austeridade. As pessoas foram tão desempoderadas, que perderam seu senso de união de classe. Perderam a noção da luta coletiva contra o inimigo, que é a minoria que se beneficia do sistema, e terminaram votando por essa minoria que se beneficia do sistema. Porque a austeridade nos individualiza, nos convence que todos nós podemos ser empresários se nos esforçarmos e que deveríamos sentir vergonha de ser pobres. O motivo por que as pessoas votam em alguém como Trump é exatamente o sucesso da austeridade. Não acho que podemos culpá-las por

votarem em Bolsonaro ou Trump. Deveríamos culpar a elite dominante, incluindo, infelizmente, o Partido Democrata [dos Estados Unidos] e todos os partidos supostamente progressistas que, de forma hipócrita, já vinham praticando a austeridade.

A austeridade atravessa fronteiras partidárias. Infelizmente, aqueles que supostamente representam o povo, incluindo os sindicatos, apoiaram a austeridade, criaram a sensação de falta de esperança e de que deveríamos fazer o possível para nos salvar como indivíduos, sem olhar para o fato de que somos, na verdade, produtores, produtores coletivos que deveriam lutar contra a exploração e contra aqueles que nos exploram. Então é só através da recriação do senso de coesão de classe e da conscientização de classe que podemos nos libertar da armadilha de pensar que regimes autoritários vão nos salvar. Eles não vão. Mas o mesmo vale para partidos democratas, como o de Biden, que estão desfinanciando todos os setores sociais. Por toda parte.

Edição: Rodrigo Durão Coelho

Uma terra para todos, por Thomas Piketty

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A Terra é Redonda, 20/10/2023

Ao fechar os olhos para as violações do direito internacional e ao privilegiar os interesses financeiros a curto prazo, a União Europeia contribuiu para enfraquecer a esquerda israelense

As atrocidades cometidas durante a operação terrorista do Hamas e a resposta israelense em curso na Faixa de Gaza levantam a questão das soluções políticas para o conflito israelo-palestino e do papel que outros países podem desempenhar na tentativa de promover uma evolução construtiva.

Será que ainda podemos acreditar numa solução de dois Estados, tornada obsoleta, na opinião de muitos, pela extensão da colonização, por um lado, mas também, por outro lado, por um desejo de negar a própria existência de Israel e de eliminar seus cidadãos, que acaba de assumir sua forma mais bárbara com os assassinatos e as tomadas de reféns dos últimos dias?

Será que ainda podemos sonhar com um Estado binacional, ou não é o momento de imaginar uma forma original de estrutura confederativa que permita que dois Estados soberanos possam um dia viver em harmonia? Tal solução é cada vez mais evocada por movimentos de cidadãos que reúnem israelenses e palestinos, como a coalização Uma Terra para Todos: Dois Estados, Uma Pátria, que elaborou propostas inovadoras e detalhadas. Muitas vezes ignorados no estrangeiro, estes debates merecem ser seguidos de perto.

Os territórios palestinos reúnem cerca de 5,5 milhões de habitantes, dos quais 3,3 milhões na Cisjordânia e 2,2 milhões em Gaza. Israel tem uma população de pouco mais de 9 milhões de habitantes, incluindo cerca de 7 milhões de cidadãos judeus e 2 milhões de árabes israelenses.

No total, Israel e Palestina possuem uma população de mais de 14 milhões de habitantes, dos quais cerca da metade são judeus e metade muçulmanos, bem como uma pequena minoria de cristãos (cerca de 200.000).

Este é o ponto de partida para o movimento Uma Terra para Todos: as duas comunidades têm aproximadamente a mesma dimensão e cada uma delas tem boas razões históricas, familiares e afetivas para considerar a terra Israel-Palestina como sua, a terra de suas esperanças e sonhos, para além das fronteiras arbitrárias e intricadas legadas pelas cicatrizes militares do passado.
Solução política

Idealmente, gostaríamos de imaginar um Estado verdadeiramente binacional e universalista, que um dia reunisse estes 14 milhões de habitantes e concedesse a todos os mesmos direitos políticos, sociais e econômicos, independentemente de suas origens, crenças ou práticas religiosas. Mas, antes de chegarmos lá, será necessário percorrer um longo caminho para restabelecer a confiança, na esperança de que a estratégia abjeta dos terroristas não tenha aniquilado essa possibilidade.

A coalizão Uma Terra para Todos propõe inicialmente a coexistência de dois Estados: o atual Estado judaico e um Estado palestino que sucederia a Autoridade Palestina criada em 1994. Esta última, já reconhecida como Estado com estatuto de membro observador nas Nações Unidas desde 2012, exerceria finalmente uma soberania plena sobre a Cisjordânia e Gaza.

A novidade é que os dois Estados estariam ligados por uma estrutura federal que garantiria sobretudo a liberdade de instalação entre os dois Estados, semelhante às regras aplicadas na União Europeia. Por exemplo, os atuais colonos israelenses poderiam continuar instalando-se na Cisjordânia, desde que respeitassem as leis palestinas, o que implicaria o fim das expropriações sumárias. Do mesmo modo, os palestinos poderiam trabalhar e instalar-se livremente em Israel, desde que respeitassem as regras em vigor. Em ambos os casos, as pessoas que optassem por residir no outro Estado teriam o direito de votar nas eleições locais.

Os autores da proposta não escondem as dificuldades, mas mostram como elas podem ser superadas.

Em particular, afirmam inspirar-se explicitamente na União Europeia que, desde 1945, permitiu pôr fim, por meio do direito e da democracia, a um século de guerras e derramamento de sangue entre a França e a Alemanha. Referem-se também ao caso complexo da federação bósnia criada em 1995.

A coalizão Uma Terra para Todos insiste igualmente no papel fundamental do desenvolvimento socioeconômico e na redução das desigualdades territoriais. O salário médio é inferior a 500 euros em Gaza, em comparação com mais de 3.000 euros em Israel. A entidade federal que reunirá os dois Estados deverá estabelecer regras comuns em matéria de direito do trabalho, partilha da água e financiamento da infraestrutura pública, educativa e sanitária.

Tudo isso tem alguma chance de acontecer? Depois de, no passado, ter-se apoiado frequentemente no Hamas para dividir e desacreditar os palestinos, a direita israelense parece agora determinada a destruir a organização terrorista. Mas, depois disso, não se contentará em colocar novamente a tampa e fechar as torres de observação nos territórios palestinos. Terá que encontrar interlocutores e relançar um processo político.

É aqui que o resto do mundo tem um papel a desempenhar, em particular a Europa, que absorve quase 35% das exportações israelenses (contra 30% para os Estados Unidos). É tempo da União
Europeia utilizar sua arma comercial e deixar claro que oferecerá regras mais favoráveis a um governo que se oriente por uma solução política do que a um regime que se lance no apodrecimento.

Ao garantir à direita israelense as mesmas regras comerciais, faça ela o que fizer, a União Europeia encorajou de fato a colonização. Ao fechar os olhos para as violações do direito internacional e ao privilegiar os interesses financeiros a curto prazo, a União Europeia contribuiu para enfraquecer a esquerda israelense.

Mas existe uma esquerda vívida e inovadora em Israel e na Palestina, particularmente entre os jovens. Estes jovens viram-se muitas vezes sozinhos diante da indiferença dos governos, tanto do Norte como do Sul, que pactuaram com uma direita israelense cada vez mais nacionalista e cínica.

É mais do que tempo de apoiar o lado da paz e de penalizar o lado da guerra.

Thomas Piketty é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI (Intrinseca).

Tradução: Fernando Lima das Neves. Publicado originalmente no jornal Le Monde.

Planos de saúde estão num beco sem saída e a única opção é a prevenção, por Drauzio Varella

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Operadoras economizam no valor da consulta para esbanjar com imagens produzidas em exames desnecessários

Dráuzio Varella, Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

Folha de São Paulo – 18/10/2023

Mantida a atual organização, os planos de saúde se tornarão inviáveis. Os primeiros sinais já estão à vista: demora para autorizar procedimentos, substituição de hospitais e laboratórios por similares de qualidade inferior e outras estratégias para redução de custos.

Sou leitor assíduo das colunas de Hélio Schwartsman na Folha. No último sábado, com o título de “Círculo Mórbido”, ele resumiu com precisão a encruzilhada em que se encontram os planos de
saúde.

Em primeiro lugar, durante a pandemia os gastos das operadoras diminuíram graças à suspensão de cirurgias eletivas e de outros tratamentos. Agora, a demanda reprimida explodiu e a situação é de crise.

As fraudes também aumentaram, e os legisladores e reguladores ampliaram as coberturas sem considerar os custos. Assim, as mensalidades sobem mais do que a inflação.

Além disso, os jovens arriscam ficar sem planos, enquanto os mais velhos “fazem de tudo para mantê-los”, cenário em que a sinistralidade aumenta e encarece as mensalidades.

Hoje, cerca de 50,4 milhões de brasileiros são atendidos pela saúde suplementar, que responde por 60% do total de gastos com saúde no Brasil inteiro. Os gastos do SUS correspondem a apenas 40%, para cerca de 160 milhões de brasileiros que só contam com ele.

Nos anos 1970 e 1980, as operadoras dos planos tiveram alta lucratividade. Nas listas dos brasileiros mais ricos, havia sempre um empresário do setor. Numa época de inflação galopante, em que as mensalidades eram pagas em data certa enquanto hospitais, laboratórios e demais prestadores de serviços tinham o pagamento retido por 60 a 90 dias, aplicar esse dinheiro no mercado financeiro foi uma fria.

As operadoras não se preocupavam com os custos dos serviços contratados, mas com os prazos de
pagamento. Na competição pela clientela, anunciavam na televisão o acesso aos equipamentos modernos, às tecnologias mais avançadas e ao transporte de doentes por helicóptero.

Tais extravagâncias publicitárias deram origem à cultura de que exames laboratoriais, ultrassonografias, tomografias e ressonâncias eram essenciais não só para recuperar como para manter a saúde.

Correr para o pronto-socorro ao primeiro pico febril da criança virou rotina. Perdi a conta de quantas vezes tenho ouvido essa frase: “pede todos os exames, doutor, eu tenho plano de saúde”.

Nesse contexto, os médicos tiveram papel importante. Preencher pedidos de exames com cruzinhas sem pensar nos custos é prática usual. Pouco antes da pandemia, uma paciente me trouxe 83 exames laboratoriais pedidos pela ginecologista numa consulta de rotina. O único número alterado era a dosagem de antimônio.

Solicitar exames de imagem para abreviar a consulta é uma estratégia para compensar os baixos salários que a maioria dos planos paga aos médicos. Eles economizam no valor da consulta para esbanjar com as imagens produzidas.

A realidade é que esses desmandos criaram uma situação que vai levar à insolvência. O número de operadoras tem caído desde 2016. Desde 2010, as despesas anuais com o atendimento pagas por elas aumentaram 18%, enquanto as receitas mal chegaram a 14%. Ao contrário de outras áreas da economia, na medicina a incorporação de tecnologia só aumenta drasticamente o preço do produto final.

Para agravar o quadro, há as fraudes e os desperdícios. Uma análise das contas hospitalares realizada pela Funeseg revelou que 18% correspondem a fraudes e 40% a exames desnecessários. Que atividade comercial consegue sobreviver com perdas da altura de quase 60% da receita?

Com o envelhecimento da população, as doenças crônicas se tornaram a principal demanda. Cerca de 60% dos adultos sofrem de uma delas. Quando o SUS foi criado, éramos mais jovens. Hoje, quando perdemos um familiar com 70 anos, dizemos que morreu cedo. A faixa da população que mais cresce, inclusive, é a que está acima dos 60 anos.

Os brasileiros envelhecem mal. Metade das mulheres e homens chega aos 60 anos com hipertensão arterial, o número de pessoas com diabetes anda perto dos 20 milhões e mais da metade dos adultos tem excesso de peso ou obesidade.

A saúde suplementar está neste momento em um beco sem saída. A única alternativa é a prevenção.

É preciso adotar programas semelhantes ao Estratégia Saúde da Família, do SUS, considerado um dos mais importantes do mundo, com equipes que contam com agentes de saúde para bater de porta em porta.

Inquietações globais

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A economia internacional vem vivendo momentos de grandes inquietações, de um lado estamos saindo de uma pandemia que gerou graves constrangimentos sociais, econômicos e políticos, com mais de seis milhões de mortes e graves desequilíbrios emocionais e sentimentais, que impactaram todas as regiões do globo, deixando rastros de destruições generalizadas. Vivemos períodos de alterações geopolíticas, passando de uma sociedade unipolar e atrelada a uma nação dominante, os Estados Unidos, para uma nova configuração geopolítica, com o surgimento de um mundo multipolar, com novos focos de poder e grandes repercussões internacionais.

Depois de milhares de mortes atreladas a pandemia, percebemos momentos de inquietações econômicas e produtivas, a introdução de novos modelos de negócios, o surgimento da inteligência artificial, novas tecnologias e o crescimento dos negócios digitais, neste cenário, percebemos o incremento das incertezas crescentes da economia global, da elevação dos preços, do aumento nas taxas de juros e o crescimento do desemprego estrutural, cujos impactos variados e imprecisos são preocupantes, como será a sociedade mundial nos próximos anos?

Neste cenário, percebemos que os preços estão crescendo em algumas economias, levando seus governos a elevarem os custos do dinheiro, levando as taxas de juros a incrementos crescentes, cujos impactos sobre as respectivas economias são elevados, diminuindo as atividades produtivas e degradando empregos, desta forma, os movimentos internacionais são preocupantes e geram instabilidades que podem gerar retração dos investidores, diminuindo seus investimentos produtivos e reduzindo a geração de empregos.

Recentemente, o Banco Central dos Estados Unidos elevou sua taxa de juros como forma de reduzir
as pressões inflacionárias, com impactos generalizados sobre a economia internacional, gerando fuga de dólares, desvalorizando moedas locais e pressões inflacionários que, posteriormente, levando as Autoridades Monetárias a elevarem seus juros internos, prejudicando a recuperação da economia, postergando a geração de emprego e diminuindo a renda agregada, com graves constrangimentos para suas economias e seus setores produtivos.

A elevação das taxas de juros dos Estados Unidos nos mostra, claramente, como o sistema econômico internacional tem grande dependência da moeda norte-americana, dando a este governo um poder muito elevado sobre as outras economias mundiais e a condução da política econômica de outras nações, demonstrando a urgência da reconstrução do sistema econômico e financeiro internacional, diminuindo o poder da economia hegemônica em detrimento de um modelo mais abrangente e democrático, elevando a autonomia das economias nacionais, retomando a capacidade de gestão interna e retomando a soberania de suas economias.

Desde a pandemia, a economia internacional passou a sentir na pele os efeitos deletérios do incremento das taxas de inflação, o crescimento dos preços que fragilizam as populações mais carentes e geram novos desequilíbrios econômicos e financeiros para todos os setores da população, motivando instabilidades políticas crescentes, auxiliando na ascensão de governos autoritários, populistas e antidemocráticos. O aumento inflacionário obriga os governos a elevarem as taxas de juros, reduzindo os investimentos produtivos, aumentando os ganhos de setores parasitários da economia e contribuindo para a piora dos indicadores sociais e agravando as polarizações políticas que crescem em todas as regiões da sociedade global.

Vivemos um momento estratégico da sociedade mundial, com alterações climáticas e desequilíbrios ambientais, crescimento de confrontos militares, com guerras econômicas e comerciais, com corrupção generalizada e com a degradação do trabalho, prejudicando quase todos os indivíduos da sociedade globalizada, mas não podemos perder de vista que, dentre os grandes desafios contemporâneos, fazem-se necessários combatermos os desequilíbrios sociais, a hipocrisia, a soberba e a ambição humana que crassa no coração dos defensores do individualismo, do imediatismo e do lucro exasperado.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Periferias criaram governo de baixo para cima com facções e igrejas, diz Bruno Paes Manso

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Para autor, onda pentecostal difunde imagem de Jesus adepto da extrema direita e leva batalha espiritual à política

Eduardo Sombini, Geógrafo e mestre pela Unicamp, é repórter da Ilustríssima

Folha de São Paulo, 16/09/2023

Um homicídio em 1993 deu origem a conflitos que resultaram em 156 mortes em cinco anos, de acordo com o Ministério Público de São Paulo.

Esse dado, incluído em “A Fé e o Fuzil” (Todavia), de Bruno Paes Manso, sintetiza o cenário de violência nas periferias de São Paulo nas décadas de 1980 e 1990: um assassinato, muitas vezes por motivos banais, levava a ciclos de vingança intermináveis, produzindo um efeito bola de neve que fazia as estatísticas crescerem a cada ano e os jovens a se preocupar, antes de mais nada, com a própria sobrevivência.

A situação, que parecia não ter saída, foi pouco a pouco se distensionando. Não de cima para baixo, a partir de uma ação das polícias ou da Justiça, mas principalmente de baixo para cima, argumenta o jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP em seu livro recém-lançado.

Convidado deste episódio, Manso chama a atenção para o novo sistema de valores difundido por igrejas pentecostais e por facções criminosas e afirma que a reprogramação de mentes por meio da conversão, promovida tanto por pastores quanto no PCC, permitiu que o Brasil popular das periferias inventasse mecanismos para se governar.

Na conversa, Manso diz que a onda pentecostal recorre à imagem do Deus vingativo do Antigo Testamento e impulsiona discursos de batalha espiritual e perseguição a infiéis, em que a pretensa guerra do bem contra o mal logo extrapola os cultos e passa a influenciar os rumos da política nacional.

“Foram sendo construídas igrejas que transformaram o vocabulário e passaram a lidar com os valores de uma sociedade em que, se você tem dinheiro, pode testemunhar a diferença entre vida e morte. Pode comer, ter casa, ter educação e condição de trabalhar. Se você não tem dinheiro, está perdido. Essa visão realista da situação acabou sendo articulada, e a solução foi promovida pelas instituições criadas no seio da miséria, de pessoas que viviam a miséria e percebiam o desafio que era participar desse mercado cada vez mais relevante. De um lado, as igrejas promoveram o autocontrole das pessoas, dos seus desejos e dos seus comportamentos. Do lado do crime, houve uma transformação da mentalidade do criminoso em São Paulo, via PCC, que tem muitos aspectos parecidos com a igreja”, de Bruno Paes Manso, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP

Para o autor, um Jesus másculo e simpatizante da extrema direita tomou o lugar do Jesus fraterno e pacifista. Citando o teólogo Fernando Altemeyer Júnior, Manso diz que o pentecostalismo se tornou uma religião do capital, em que o sucesso financeiro individual, considerado uma benção divina, se torna a razão de existir.

Os esfarrapados viraram traders! por André Roncaglia

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Livro de César Calejon mostra como pessoas de baixa renda sofrem influência dos mais ricos

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela
FEA-USP

Folha de São Paulo, 13/10/2023

A pandemia transformou muitas dimensões da vida social e agravou desigualdades mundo afora. A fome acompanhou o aumento no valor da riqueza acumulada pelo crescente número de bilionários.

A falta de saneamento adequado para proteger as famílias pobres da disseminação da Covid-19 revelou deficiências profundas nas infraestruturas física e social. O mundo do trabalho, o mercado imobiliário e as relações sociais foram irreversivelmente afetados.

No Brasil, em que o 1% mais rico detém metade da riqueza do país, a pandemia se chocou com a agenda neoliberal, turbinada sob Temer e Bolsonaro, responsável pela estagnação econômica e a precarização das condições de trabalho.

A interrupção do ciclo de desenvolvimento (2006-2014) e o desmonte das políticas públicas bloqueou a ascensão da classe mais pobre, tornando-a presa fácil do populismo de extrema-direita que Bolsonaro incarnou. Emergiu deste processo uma figura sociológica desafiadora: o pobre de direita.

Por ser um objeto de estudo que transcende a economia, é bem-vindo o contundente livro “Esfarrapados”, de César Calejon. O autor decifra a gramática da desigualdade brasileira explorando o conceito de “elitismo histórico-cultural”: um regime em que categorias de distinção —material, racial, de gênero etc.— estruturam hierarquias sociais rígidas. Neste arranjo, pessoas de baixa renda adotam como seus os interesses e aspirações dos mais ricos. Identificados com a elite, os esfarrapados introjetam a retórica da meritocracia e do Estado mínimo.

Paralelamente a este processo, os anos 2010 viram a digitalização de serviços bancários e de investimento acirrar a concorrência entre bancos, fintechs e corretoras. A queda no custo das operações incluiu milhões de brasileiros no mercado financeiro.

Segundo relatório de junho de 2023 da B3 (antiga Bovespa), em 2017, eram 500 mil investidores pessoa física; em 2023, há 5,3 milhões de CPFs. O crescimento de CPFs na B3 entre 2020 e 2023 foi mais rápido nas regiões Norte (188%) e Nordeste (135%). No recorte etário, os jovens (de 0 a 24) representavam 10% em 2018; hoje, são 22% dos CPFs da B3.

Nas categorias de renda variável, o saldo mediano caiu de R$ 20 mil por investidor (em 2017) para R$ 1,1 mil (em 2023). O fenômeno se repete em Fundos Imobiliários (de R$ 29 mil para R$ 3 mil), em ETFs (de R$ 18 mil para R$ 1,6 mil) e no Tesouro Direto (de R$ 15 mil para R$ 3 mil).

Dos 86 mil novos CPFs na B3 em junho de 2023 cerca de metade (55%) fez aplicações até R$ 200; 27% deles, até R$ 40.

A análise dos dados sugere, portanto, que os “esfarrapados” foram para a bolsa de valores. O mercado de assessoria financeira cresceu e se descentralizou, expondo os pobres digitalizados à proliferação de gurus das finanças —que rotulei de econocoaches— vendendo cursos sobre a “viver de renda” por meio de estratégias ousadas na Bolsa de Valores e em criptoativos.

E aqui mora um risco enorme: tratar a bolsa como um jogo de loteria. Neste sentido, o livro “Trader ou investidor”, de Bruno Giovannetti e Fernando Chague, é um antídoto à sedução dos econocoaches.

Os autores mostram de forma leve e cativante como orientar as finanças para a aposentadoria (investidor), em vez da adrenalina com enriquecimento fácil que motiva o trader —que compra e vende ações rapidamente buscando retornos rápidos. Renomados pesquisadores em finanças, eles revelam como os agentes de mercado lucram com a oferta de produtos financeiros que mascaram o risco e exageram os retornos (como os COEs) —e mostram os vieses comportamentais (comprar ações de empresas em crise, por exemplo) que geram perdas sistemáticas aos traders.

O acesso à bolsa de valores é uma boa notícia, desde que não se torne uma loteria viciada contra os pobres.

Naturalizamos a convivência com a violência, por Maria Hermínia Tavares

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No ano passado, 47.398 pessoas tiveram morte violenta intencional

Maria Hermínia Tavares, Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

Folha de São Paulo, 12/10/2023

Diz tudo da naturalidade com que o país encara a barbárie nossa de cada dia o fato de convivermos, ano após ano, com níveis elevados de violência e descalabro na segurança pública. O assassinato dos médicos de São Paulo, no Rio, a chacina de sete membros de uma família de ciganos, na Bahia, as mais de duas dezenas de mortos durante a Operação Escudo, no Guarujá, são apenas os exemplos mais recentes dessa hecatombe.

No ano passado, informa o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 47.398 pessoas —o equivalente aproximado da população da estância paulista de Campos de Jordão— tiveram morte violenta intencional, uma taxa de pouco mais de 23 mortos por 100 mil habitantes. As forças policiais, civis e militares, foram responsáveis por 13,6% do total, em todo o país. Por suas taxas muito superiores à média nacional, Amapá, Goiás, Rio de Janeiro e Bahia destacaram-se nessa lúgubre estatística.

De Fernando Henrique a Lula, a segurança pública foi o grande fracasso dos governos progressistas, os mesmos que lograram mudanças importantes em muitas frentes: do controle da inflação à montagem de um moderno arcabouço institucional para a gestão econômica; da reforma do sistema de proteção social às políticas para reduzir a pobreza —sem esquecer da área ambiental.

Por outro lado, no período em que PSDB e PT comandaram o governo, o Brasil deixou de ser rota do tráfico para se transformar em grande mercado consumidor de drogas; as facções criminosas se multiplicaram e passaram a controlar territórios urbanos pobres; o banditismo organizado se impôs nos presídios abarrotados e se embrenhou Amazônia adentro; setores das forças da ordem foram corrompidos pelos criminosos; a circulação ilegal de armas só fez crescer, assim com as bancadas da bala, com parlamentares egressos das corporações policiais, eleitos com promessas fáceis de enfrentar o crime com desmedida violência.

Tão grave quanto isso foi a popularização do discurso público que justifica a brutalidade policial em nome do combate à insuportável violência dos criminosos. Hegemônico e eleitoralmente eficaz, já não distingue políticos opostos em tudo mais, como os governadores de São Paulo e da Bahia.

O Executivo federal acaba de atualizar o PNPS (Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social) 2021-2030. Com excesso de prioridades e escassez de recursos, o projeto é uma carta de (boas) intenções que pode, ou não, se transformar em políticas efetivas. Mas ainda está por ser travada —quanto antes, melhor— a dura batalha de ideias e valores que permita ancorar uma política de lei e ordem no respeito à dignidade humana.

Hamas, Israel e os não humanos, por Thiago Amparo

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Devemos ir além do espanto falsamente humanista, muitas vezes insincero

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Folha de São Paulo, 12/10/2023

“É horrível, desumano e inaceitável. Os palestinos são humanos e têm que ser tratados como tal.

Não importa a razão. Estão bombardeando civis. Isso não seria aceitável em nenhum outro lugar —
apenas na Palestina”, afirmou de forma certeira à Folha Mariana Said.

Em tempos obtusos quando a autodeclarada complexidade ofusca o horror, é cada vez mais difícil ter a clareza moral contra as atrocidades da guerra. Solidarizar-se com vítimas civis, de ambos os lados, não é uma posição inocente, é a mais digna; fazê-lo nos permite criticar tanto o regime de apartheid imposto por Israel aos palestinos quanto o regime de terror imposto pelo Hamas.

Clareza nos permite, inclusive, separar o todo da parte. Criticar o Estado de Israel é possível sem cair no antissemitismo; bem como criticar a estratégia militar do Hamas é possível sem cair no desprezo a vidas palestinas. Salem Nasser, meu colega na FGV, está correto ao perguntar por que costumamos praticar o ultraje seletivo. Devemos, igualmente, ir além do espanto falsamente humanista, muitas vezes insincero: não esqueçamos os fundamentos racistas, coloniais, capitalistas e orientalistas que impulsionam o divisionismo, inclusive no crescente abandono da causa palestina por países árabes.

Desumanização como arma política está no centro da guerra e não começou no último sábado (7): o braço militar do Hamas desumaniza civis israelenses atacando-os de maneira indiscriminada, e o premiê de extrema direita Netanyahu, “ao estabelecer um governo de anexação e desapropriação”, como definiu o jornal israelense Haaretz, priva palestinos de qualquer possibilidade de sair da prisão a céu aberto a que foram jogados, dá munição para a expansão territorial ilegal de Israel e fortalece ao invés de minar os mais radicais.

Evidências de crimes de guerra abundam, seja no rapto de civis pelo Hamas, seja na fome como arma de guerra por Israel. Se algum dia sairemos deste horror, talvez o caminho comece por encontrar uma linguagem que nos permita descrevê-lo.

Irã e Hamas tentam frear surgimento do ‘novo Oriente Médio’, por Jaime Spitzcovsky,

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Avanço das relações de Israel com países árabes joga a favor da resolução da questão palestina

Jaime Spitzcovsky, Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e Pequim.

Folha de São Paulo, 09/10/2023

A ofensiva terrorista do Hamas, celebrada pelo Irã, não buscou apenas promover assassinatos e produzir imagens abjetas, pois mirou, no plano geopolítico, as mudanças tectônicas em curso no Oriente Médio, responsáveis por cimentar laços há pouco impensáveis e por colocar em xeque estratégias do autointitulado “eixo da resistência”.

Dirigentes do Oriente Médio, Arábia Saudita à frente, passaram a construir uma nova fórmula de permanência no poder, desafiados por ventos turbulentos do século 21. Perceberam a crescente perda de importância da economia petrolífera e, com a queda de ditadores após os protestos da Primavera Árabe, uma década atrás, diagnosticaram a importância de gerar empregos para uma população jovem e castigada por escassez de oportunidades econômicas.

Diversificar modelo econômico despontou como imperativo para a preservação desses regimes
ditatoriais. O surgimento do mundo multipolar, com ascensão de mais centros de poder, também levou à revisão de políticas externas, por meio da aproximação com China e Índia.

O nascente cenário golpeou a “fórmula do tripé”, prevalente havia décadas em paragens médio-orientais: petróleo na economia, ditadura na política e colocar o conflito israel-palestina como tema central do mundo árabe. O ditador egípcio Gamal Abdel Nasser, por exemplo, mobilizava centenas de milhares de pessoas nas ruas do Cairo para bradar pela destruição do Estado judeu, e não para debater mazelas socioeconômicas de seu regime.

Da “fórmula do tripé”, dois pilares agora revistos, para preservar o poder de monarcas. Primeiro, um modelo baseado em serviços, como tecnologia, finanças e turismo passa a dividir espaço com a economia petrolífera.

E, segundo ponto, o pragmatismo econômico leva a rever a abordagem do conflito israelo-palestino. A narrativa diversionista de “Israel como a maior catástrofe para o mundo árabe” dá lugar a uma perspectiva de cooperação com o país cujo direito à existência se questiona pelo menos desde a Partilha da Palestina pela ONU, em 1947.

O século 21 golpeou a “fórmula do tripé”, e a necessidade de mudanças remodelou as economias dos Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Qatar. Recentemente, chegou a vez de a líder regional, Arábia Saudita, mais conservadora e mais cautelosa, seguir o caminho dos vizinhos.

A partir de 2020, sob a lógica do “novo Oriente Médio”, antigos adversários, como Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão, assinaram acordos históricos com Israel.

Existe também na aproximação o componente de rivalidades regionais. Países sunitas, como Arábia Saudita e Egito, já ensejavam cooperações com Israel devido a ações do Irã, de maioria xiita, empenhado em ampliar influência no mundo muçulmano.

Dinâmica regional em mutação, israelenses passaram a viajar a Dubai. Diálogo intergovernamental israelo-marroquino se intensificou. Cresceram as expectativas de um acordo de paz entre Arábia Saudita e Israel.

Empenhada na arquitetura de um Oriente Médio menos turbulento e mais atrativo a investimentos, a Arábia Saudita se aproximou também do rival Irã, por meio da retomada de laços diplomáticos em março, numa cerimônia realizada, sinal dos novos tempos, em Pequim.

Teerã, no entanto, demarcou seu limite ao embarque no “novo Oriente Médio”, com apoio aos ataques do Hamas. Desafiado pelos maiores protestos pró-democracia desde sua chegada ao poder, em 1979, a ditadura iraniana se esforça para manter acesa a chama do “discurso revolucionário” de rejeição a Israel e aos EUA.

O Irã e seus aliados do “eixo da resistência”, como o Hamas e o libanês Hezbola, buscam sabotar um Oriente Médio redesenhado pelo pragmatismo econômico e adequação ao mundo multipolar. Teerã, no entanto, vai fracassar na estratégia, pela impossibilidade de parar o relógio da história.

O avanço das relações de Israel com países árabes joga a favor da resolução da questão palestina, com dois Estados para dois povos, obtidos por meio de diálogo. Não é essa a proposta da ditadura iraniana e de seus aliados.

Uberização no mundo do trabalho impõe desafios à esquerda, por Angela Pinho

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Características como gamificação dos apps e dispersão dos trabalhadores favorecem ação individual

ANGELA PINHO – FOLHA DE SÃO PAULO – 09/10/2023

A disrupção no mundo do trabalho causada pela chamada uberização da economia aumenta o desafio da esquerda de ganhar adeptos e barrar o avanço da direita.

Tradicionalmente motor de partidos como o PT, a mobilização coletiva de trabalhadores esbarra nas características inerentes ao trabalho por plataformas —disperso, mediado por algoritmos e conjugado às redes sociais, terreno em que a direita leva vantagem.

A mudança também enfraquece ainda mais os sindicatos, base de legendas de esquerda tradicionais, e coloca em xeque, para parte dos trabalhadores, o apoio à distribuição de benefícios sociais.

O fenômeno tem sido alvo de pesquisas acadêmicas recentes que mapeiam as implicações políticas do tema.

Uma delas é coordenada pela antropóloga brasileira Rosana Pinheiro-Machado diretora do laboratório de economia digital e extremismo político da University College Dublin, na Irlanda.

Ela teve no ano passado financiamento aprovado pelo Conselho Europeu de Pesquisa para analisar a ligação entre autoritarismo na política e precaridade no trabalho no Brasil, na Índia e nas Filipinas.

A hipótese é que, nesses países, características inerentes às plataformas, como o isolamento e a competição, favoreçam o individualismo e a identificação com a direita.

A fase piloto da pesquisa já aponta nessa direção, diz a professora. Seu grupo analisa o perfil de pessoas que começaram a empreender online no Brasil. Segundo ela, a tendência é que, à medida que passam a seguir influenciadores, essas pessoas acabam por cair em redes bolsonaristas.

Outros trabalhos já demonstraram que os algoritmos das redes sociais, onde esses empreendedores passam horas do dia, impulsionam publicações de extrema direita.

As implicações políticas da chamada uberização da economia são um tema de pesquisa em outros países também.

Dois fatores que dificultam a identificação como classe para a mobilização coletiva de trabalhadores de aplicativos são elencados pelos pesquisadores Giedo Jansen, da Universidade de Amsterdam, na Holanda, e Paul Jonker-Hoffrén, da Universidade de Tampere, na Finlândia, no livro “Platform Economy Puzzles” (quebra-cabeças da economia de plataforma, em português), de 2021.

O primeiro é a competição induzida pela lógica de jogo, ou gamificação, de parte das plataformas. Seria a disputa pelas estrelinhas dadas pelos passageiros ou o privilégio a quem aceita mais corridas, por exemplo.

O segundo seria a dispersão espacial dos trabalhadores, o que dificultaria um laço de solidariedade e o apoio a políticas coletivistas de esquerda.

Eles apontam ainda a dificuldade de partidos social-democratas, identificados com a esquerda em boa parte da Europa, para lidarem com esses trabalhadores precarizados sem abandonarem sua base de trabalhadores formais que almejam a proteção do emprego e dos direitos trabalhistas já existentes.

A questão está posta no Brasil, onde o registro formal não é uma demanda consensual entre os trabalhadores dos aplicativos. “Não é que eles não querem a CLT, eles não querem empregos ruins”, diz a antropóloga.

Integrante do movimento Entregadores Unidos pela Base, Renato Assad, 31, vai na mesma linha. Os entregadores que defendem autonomia, diz, não querem é ganhar um salário mínimo baixo para ficar oito horas à disposição do patrão.

Se o mínimo fosse mais alto, não haveria esse dilema, diz. Sem isso, “o trabalhador prefere se autoexplorar para ganhar mais”.

Formado pela USP em geografia, ele alterna as entregas em motocicleta com aulas na rede particular. Há quatro anos rodando pela cidade, ele afirma que o único político que já se aproximou da categoria foi Guilherme Boulos (PSOL), durante a campanha à prefeitura em 2020.

Mas se diz decepcionado com a decisão do psolista de contratar como marqueteiro o publicitário de agência que trabalhou para desmobilizar paralisações dos trabalhadores de aplicativos durante a pandemia da Covid-19, segundo reportagem da Agência Pública.

A plataformização do trabalho também é foco do PT. A Fundação Perseu Abramo, ligada ao partido, conduz pesquisa quantitativa e qualitativa sobre o trabalho em aplicativos e o impacto na cultura política.

REGULAÇÃO

Compromisso de campanha do presidente Lula (PT), a regulamentação do segmento é objeto de um grupo no Ministério do Trabalho e Emprego.

Uma alternativa à regulamentação é um acordo entre empresas e a categoria, mediado pela pasta, em torno de pontos como remuneração mínima, jornada de trabalho e proteção em caso de doença.

É muito menos do que seria necessário, diz Nicolas Souza Santos, 35, integrante da Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativo, que reúne entidades representativas da categoria pelo país. Ele defende a inclusão de outros pontos na regulação, como a transparência dos algoritmos e carga horária.

Filiado ao PDT, ele diz lamentar que seu partido tenha abandonado a discussão sobre o vínculo trabalhista da categoria. “A gente não é contra os autônomos, mas as plataformas são. Elas cronometram o tempo que a gente tem para chegar, dizem quem é o cliente e qual é o preço que podemos cobrar.”

Ele reconhece, porém, que a demanda por vínculo causa divisões na categoria, o que atribui à desinformação —já que seria possível, por exemplo, uma vinculação como horistas.

Mobilizar os colegas, aliás, é um desafio diário, segundo Nicolas. Dispersos pelas cidades, eles se comunicam muitas vezes por grupos de WhatsApp e Telegram, nos quais a regra número 1 é não falar de política para não gerar controvérsia.

Sob sua perspectiva, fazer parte dessa chamada nova economia não é uma vantagem para quem precisa da mobilização coletiva. “Não somos os metalúrgicos”, diz. “Nascemos praticamente anteontem.”

Feirão tributário, por Marcos Mendes

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Distorções tributárias não criam empregos, nem ajudam os pobres

Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper, é organizador do livro ‘Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil’

Folha de São Paulo, 07/10/2023

No dia 19 de setembro participei de audiência pública do Senado sobre a Reforma Tributária. Onze setores econômicos ou profissões estavam representados. As apresentações pareciam um feirão tributário: todos tentando ampliar os já largos privilégios criados na Câmara. As apresentações começavam com afirmações do tipo: “a reforma é muito boa. Mas veja bem, no caso do meu setor…”.

O representante da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) mostrou-se inconformado com o fato de que os advogados terão que pagar impostos como qualquer um. Afinal, “sempre houve um cuidado do legislador no sentido de oferecer uma tributação reduzida desde 1968. (…) Então esses serviços têm que ter um olhar diferenciado, não deveriam se submeter a uma tributação, como vários outros”. Por que mesmo? Não estamos fazendo uma reforma para que a tributação seja mais igualitária e justa?

O representante do setor de educação privada, não satisfeito por já ter conseguido uma alíquota 60% mais baixa, pleiteou alíquota zero. Aplicou o princípio básico das relações institucionais, segundo o qual o setor dele é tão importante que, se lhe for concedido um privilégio, quem ganha é a sociedade.

Assim, argumentou que tributar a educação privada vai aumentar o custo das mensalidades e empurrar alunos para a escola pública, além de fechar escolas e eliminar empregos, resultando em menor arrecadação tributária e mais gasto público: uma perda fiscal de R$ 24 bilhões. A alíquota zero para o setor produziria o milagre de evitar essa perda, gerando recursos suficientes para financiar o Programa Escola em Tempo Integral!

O representante do setor de serviços trouxe números igualmente mágicos: uma desoneração total da folha de pagamentos, financiada pela criação de uma CPMF, faria o PIB (Produto Interno Bruto) bombar. Propôs ignorar o princípio central da reforma, que é a introdução de um imposto sobre valor agregado, que funciona em mais de 170 países, para falar de CPMF, que já se mostrou um péssimo tributo.

Vários defenderam que se mantenha a prática atual, em que as empresas do Simples pagam imposto com alíquota menor, mas geram crédito como se pagassem o imposto com a alíquota padrão. Isso porque o Simples é um regime cumulativo, que não permite abater todos os impostos embutidos nos custos. Daí a necessidade de um subsídio tributário para equalizar. Mas a PEC aprovada na Câmara já prevê que empresas do Simples podem optar por recolher o IBS e a CBS pelo regime normal, eliminando o risco de serem oneradas por incidência cumulativa.

O representante dos supermercados, já beneficiado pela questionável desoneração da cesta básica, quer estender a alíquota diferenciada para produtos de higiene, para os sistemas de gestão do comércio e para toda a cadeia produtiva de bens da cesta básica.

Além disso, propõe abater do imposto a pagar as despesas com folha de pagamento. Isso é um contrassenso, pois o cerne da reforma é tributar valor agregado. Salários pagos são parte relevante do valor agregado.

Foi recorrente o argumento de que “meu setor gera empregos”. Chegou-se a propor a “emenda do emprego”: alíquota menor para empresas em que é grande o custo da folha de pagamento. Isso desestimula a inovação, subsidia setores menos produtivos e derruba o crescimento. Será a “emenda do desemprego”.

Para contrapor estes e outros argumentos tortuosos, recomendo a leitura do relatório de Grupo de Trabalho do TCU sobre a Reforma Tributária. Ele sintetiza a literatura teórica e empírica, com evidências de que isenções e alíquotas reduzidas aumentam a complexidade, o custo de cobrança e as fraudes. A perda de arrecadação pode superar 20%.

A ideia de que alíquotas mais baixas levarão a preços menores para os consumidores e maior emprego esbarram em estudos que mostram muitos casos em que o maior ganho se concentra no lucro das empresas, com pequeno impacto no emprego e nos preços finais.

Alíquota favorecida também não é bom instrumento de redução da pobreza, pois beneficia igualmente os consumidores ricos.

Por isso, política social e de emprego devem ser feitas do lado do gasto, com alocações transparentes de recursos no orçamento. Ou na tributação da renda. Não devem ser embutidas na tributação do consumo, dando roupagem de preocupação social ao lobby setorial.

Ilusões econômicas

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Vivemos momentos de grandes discussões patrocinadas por indivíduos especialistas em tudo, as redes sociais estão inaugurando conhecimentos desconhecidos, anteriormente as discussões coletivas estavam relacionadas com a escalação da seleção brasileira, agora as coisas estão cada vez mais sofisticadas, encontramos discussões sobre as questões jurídicas, as questões políticas , questões relacionadas a doenças e tratamentos médicos e as questões econômicas, todos somos especialistas em tudo, emitindo pareceres, relatórios e somos catedráticos de todas as coisas.

Destas discussões cotidianas, encontramos discussões sobre as receitas econômicas para resolvermos problemas que convivemos desde os tempos imemoráveis, desequilíbrios estruturais que estão nas raízes de nosso nascimento como país, emitimos opiniões, cancelamos aqueles que pensam diferentes e acreditamos que somos democráticos e prezamos pela liberdade de expressão, nos esquecemos que numa sociedade marcada por desequilíbrios variados, marcados por pobrezas generalizadas, riquezas centradas em espoliações e explorações cotidianas, falar sobre democracia é algo imprudente, precisamos compreender as nossas raízes, nossos atrasos e, principalmente aquilo que queremos ser num futuro imediato, o tempo urge e as decisões estratégicas estão sendo pouca discutidas, infelizmente.

Neste cenário, vivenciamos um momento de grandes transformações no meio ambiente, o clima está em polvorosa, estamos numa transformação estrutural climática que tende afetar todas as regiões do planeta, podendo levar regiões prósperas e dotadas de grandes riquezas materiais a um cenário de devastações constantes, desertos, enchentes, terremotos e devastações ambientais, todas essas consequências estão atreladas a escolhas anteriores, políticas patrocinadas por toda a comunidade internacional visando o crescimento econômico e o desenvolvimento das nações, com impactos sobre todos os indivíduos e para a comunidade. Se esse foi o intuito dos responsáveis por essas políticas anteriores, os resultados na sociedade contemporânea são outros, vivemos uma sociedade marcada pelo individualismo, o imediatismo e a busca crescente dos prazeres materiais como se estes fossem os grandes objetivos do homem racional, definidos pelos chamados economistas ortodoxos.

Vivemos momentos de ilusões econômicas, acreditamos na meritocracia como forma de alavancar o crescimento econômico e produtivo e nos esquecemos de que vivemos numa sociedade centrada na desigualdade crescente dos indivíduos, onde uma pequena casta de privilegiados e bem-nascidos conseguem ascender no panteão no conforto, nos luxos e das influências políticas e econômicas.

Vivemos numa sociedade centrada nas ilusões econômicas, acreditando que a austeridade deve levar o equilíbrio das contas públicas e a reconstruir das finanças governamentais, reduzindo os repasses públicos para os mais humildes e deixando de lado os vultosos subsídios dos grandes donos do poder político e econômico, se esquecendo que os grandes ganhadores destas políticas são os privilegiados dos banquetes da miséria da classe trabalhadora, que se rastejam para garantir recursos mínimos e se acreditam empreendedores e inovadores…

Vivemos em momentos de grandes ilusões econômicas acreditando no discurso empreendedor dos donos do poder, esperando uma ideia revolucionária e inovadora como forma de se transformar em patrão de si mesmo, se esquecendo que esse modelo econômico foi cunhado para reproduzir privilégios, garantindo taxas de juros estratosféricas, taxação inexistente e subsídios elevados para os grandes donos do poder e para seus prepostos ganhadores desta sociedade marcada por exclusão social e subdesenvolvimento, perpetuando uma exploração estrutural.

Vivemos numa sociedade que nos acostumamos todos os dias com a degradação, com as expropriações constantes, da educação degradada, das violências cotidianas e das discussões equivocadas e nos acreditamos como seres cordiais, solidários, caridosos e empreendedores, mas na verdade, somos uma sociedade sem alma, estamos nos desumanizando cotidianamente, vivendo sem horizontes claros e quando nos olharmos no espelho, nós nos assustaremos com a nossa imagem refletida.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Paes Manso: A fé na ponta do fuzil

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Da transformação espiritual à mão invisível do mercado, novo livro investiga a reorganização do crime e da política em torno da “teologia da prosperidade”. Obra traz relatos de ex-matadores e debate o uso de símbolos religiosos na guerra contra o Estado

Outras Mídias – 03/10/2023

Silvana Salles, Publicado no Jornal da USP –

Marcelinho vendia crack antes de virar evangélico. Sobreviveu a um atentado, largou o crime e as drogas e mudou completamente seu comportamento. Pereira, ex-policial militar condenado por executar suspeitos, teve seu momento de conversão na prisão. Era véspera de Natal, ele se sentia solitário, sem esperanças de progredir de pena para o regime semiaberto. A pastora Viviane passou a questionar suas práticas de trabalho missionário ao ver uma facção criminosa usar o discurso religioso para justificar a violência e o controle do território. O jornalista Bruno Paes Manso conta essas e outras histórias em seu novo livro, A fé e o fuzil: Crime e religião no Brasil do século XXI, lançado em setembro pela editora Todavia.

Bruno, que é pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP e colunista do Jornal da USP, há mais de 20 anos investiga as cenas do crime e do tráfico de drogas no Brasil. Dessas investigações nasceram seus livros anteriores, A guerra (em coautoria com Camila Nunes Dias) e A República das milícias. Em A fé e o fuzil, ele discute como a visão de mundo dos evangélicos têm organizado novos propósitos de vida e novas ordens de comportamento nas periferias das cidades brasileiras, tanto a partir das igrejas quanto a partir de facções criminosas com bases prisionais.

O jornalista conta que começou a observar que a violência do cotidiano das cidades brasileiras frequentemente se encontrava com experiências relacionadas à fé de seus entrevistados a partir dos testemunhos de pessoas que abandonaram o crime após se tornarem evangélicas. Nesses testemunhos, elas contam que não se trata meramente de frequentar a igreja, mas de passar por um profundo processo de transformação pessoal. Esse processo é conhecido como metanoia.

“Eu pesquisava matadores e entrevistava matadores para saber por que eles matavam. Como o assunto é muito delicado, eu passei a entrevistar ex-matadores, ex-bandidos, ex-traficantes que haviam se convertido e não tinham problema em falar sobre o passado, porque até [isso] dimensionava o tamanho do milagre da transformação na vida deles a partir de Deus e desse processo de metanoia. E aí, a partir dessas conversas, eu comecei a colecionar uma série de histórias pessoais de transformação”, conta.

Nem comunista, nem capitalista: “sou dinheirista”

Os relatos de conversão são amostras de um fenômeno de acelerada mudança na religiosidade do povo brasileiro. Nos anos 1980, os evangélicos eram 5,6% dos brasileiros. Em 2019, já eram 31%.

Conforme o pentecostalismo foi ganhando mais adeptos, o discurso evangélico foi se tornando mais influente – culminando, em 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro, que, embora se declare católico, adotou publicamente muitas referências evangélicas, a exemplo do slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Bruno explica que isso aconteceu tanto na política institucional quanto fora dela.

“Principalmente quando eu vou investigar as milícias, eu começo a perceber que esse discurso religioso, que estava restrito ao universo privado de transformações pessoais, passou a ser usado com uma dimensão política a partir de lideranças criminosas no Rio de Janeiro, que passavam a se dizer ungidas ou terem sonhado com Deus, que teria dito que ele representavam o bem na terra, para justificar seu poder”, diz o autor, mencionando o caso do Complexo de Israel, território na zona norte do Rio de Janeiro dominado pela facção criminosa Terceiro Comando Puro.

Mas, afinal, o que o discurso das lideranças de facções criminosas tem a ver com o cotidiano dos fiéis e a eleição de Bolsonaro em 2018? Na avaliação do autor, nos três casos há uma visão da prosperidade como benção divina, que não deve sofrer a interferência do Estado. Por um lado, essa visão ganhou força no Brasil com a influência das igrejas neopentecostais, altamente midiáticas e promotoras da teologia da prosperidade. Por outro, a utopia do estado de bem-estar brasileiro ruiu de 1988 para cá, devido à dificuldade do Estado em garantir direitos sociais.

“O Brasil não vira uma Suécia, né? O Brasil não vira uma Dinamarca. O mercado continua sendo muito importante para garantir o sustento. Quem não tem dinheiro, dança aqui. Não adianta você esperar que vai ter escola pública ou posto de saúde e que isso vai te dar tranquilidade para você ter uma vida digna. Não! Você tem que ter dinheiro. E a partir dessa visão, o pentecostalismo começa a promover justamente essa crença e essa disposição de empreender, de lutar pelas próprias pernas, de acreditar em si mesmo, de ver o progresso material como uma benção divina, de construir redes de apoio entre pessoas que têm os mesmos valores que os seus e a enxergar o Estado como, no máximo, um agente promovedor desses negócios”, explica.

Essa visão de mundo mais neoliberal, de um Estado que não deve atrapalhar as pessoas que ganham dinheiro, é compartilhada pelas milícias e as facções criminosas envolvidas no bilionário negócio da venda de drogas. “É uma visão mais realista e cínica. É uma grande selva em que o mais capacitado para empreender, para ganhar dinheiro, sobrevive”, explica Bruno. “Como um criminoso, uma pessoa que entrevistei, já me falou: ‘olha, eu não sou nem comunista, nem capitalista. Eu sou dinheirista, eu quero ganhar dinheiro’”, completa.

Os mundos do crime e dos evangélicos começaram a se cruzar em termos mais concretos a partir da profissionalização do crime, empreendida pelo PCC. Isso porque o dinheiro da venda de drogas no atacado, que antigamente já era lavado por meio de doleiros e empresas, passou a entrar até mesmo em igrejas. No início deste ano, uma investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro revelou que um dos líderes do PCC – Valdeci Alves dos Santos, o “Colorido” – investiu em sete igrejas evangélicas para lavar o dinheiro do tráfico.

Guerra espiritual?

A noção de guerra é outro aspecto no qual o mundo evangélico se cruza com os mundos do crime e também da política. No contexto evangélico, a guerra é espiritual. Trata-se da ideia de uma batalha do bem contra o mal, com críticas à religiosidade de matriz africana e forte ênfase na luta pela expulsão do demônio. As igrejas neopentecostais que falam dessa batalha compartilham da visão de que o fim do mundo está próximo e, por isso, é importante ter a maior quantidade de “soldados do bem” em diversos postos da sociedade quando Jesus Cristo chegar pela segunda vez.

Bruno Paes Manso afirma que essa ideia de guerra espiritual foi apropriada pelo bolsonarismo sob o argumento de que a esquerda seria um grande bloqueio ao desenvolvimento, identificando todo este campo político como “aqueles que querem nos impedir de ganhar dinheiro”. Se a prosperidade é uma benção, então a defesa do estado de bem-estar social seria identificada como um inimigo.

“O pentecostalismo na política, essa visão da guerra que surge com o bolsonarismo, nas redes sociais, guerra contra o comunismo, guerra contra o esquerdismo, guerra contra o feminismo, é uma visão quase de um anarcocapitalista. Como é o próprio [Javier] Milei na Argentina, [que] se diz anarcocapitalista e tem muitas semelhanças com o bolsonarismo”, diz o jornalista.

Por sua vez, a milícia e o crime compartilham de uma visão da guerra que tem contornos tão darwinistas quanto a competição defendida pelos anarcocapitalistas. “O que importa para esses grupos não é um Estado que organize coletivamente a sociedade, que reduza desigualdades, que promova a justiça, que apoie os mais fracos, inclusive os que não estão com capacidade de participar dessa disputa darwinista. Eles não enxergam o Estado dessa forma. Eles enxergam o Estado como alguém que deve permitir que essa guerra do mais forte aconteça, que os mais capacitados para ganhar dinheiro, os mais abençoados, sobrevivam”, afirma Bruno.

É preciso reinventar o capitalismo, diz economista Mariana Mazzucato

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Para italiana, papel do Estado no século 21 é exigir que setores da economia inovem para alcançar sustentabilidade

FOLHA DE SÃO PAULO, 02/10/2023

DOUGLAS GAVRAS

Mariana Mazzucato, 55, não se surpreende ao ver o retorno de políticas de austeridade após a pandemia de Covid ou o aumento da popularidade de novos líderes ao redor do mundo que classificam o Estado como fonte de todos os problemas.

Para a economista italiana, antes de criticar os eleitores que escolhem políticos engajados em destruir o Estado, é preciso que as instituições públicas assumam um novo papel no século 21, fornecendo uma direção e exigindo que todos os setores da economia inovem.

Para se adequar às demandas atuais, é preciso reinventar o capitalismo, diz a professora, que esteve no Brasil na quarta-feira (27), para participar do 10º Congresso Internacional de Inovação da Indústria, realizado pela CNI (Confederação Nacional da Indústria) e o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio as Micro e Pequenas Empresas).
Mazzucato tem se aproximado do Brasil. Uma das referências para os economistas do PT, em especial de gestores do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) —como Aloizio Mercadante e Nelson Barbosa—, ela participou de seminário da instituição em março.

Em julho, o Ministério da Gestão e a Enap (Escola Nacional de Administração Pública) assinaram acordo com o Instituto da Inovação e Propósito Público da University College London (IIPP/UCL), fundado por ela. O objetivo é a capacitação de servidores, além da inovação na administração pública.

Essa proximidade tem reforçado sua visão de que o país pode ser um ator de destaque.
O presidente Lula tem defendido no exterior o papel do Brasil como protagonista de um futuro de desenvolvimento sustentável. Como colocar suas palavras em ação?

A razão pela qual as pessoas estão ouvindo o que Lula tem a dizer é que não há líderes suficientes no mundo hoje que
levem a sustentabilidade a sério —fala-se muito, mas muito pouco é feito.

Desde o primeiro dia, quando ele começou o novo governo, a questão da sustentabilidade e a Amazônia têm estado no centro, e o fato de o plano de transição ecológica brasileiro incluir o Ministério da Fazenda é algo radical.

Geralmente, o que acontece é a velha maneira de pensar, em que o Ministério do Meio Ambiente faz a política de sustentabilidade e o Ministério da Saúde se preocupa com o bem-estar.

Todo o governo deve estar voltado para um grande plano de economia verde?
A chave é como as diferentes áreas trabalham juntas, porque cada ministério tem suas próprias metas ambientais.
Ter um banco público, como o BNDES, também é muito importante para o financiamento, mas é preciso impor condicionalidades de inovação para o financiamento.

O grande gargalo em países como o Brasil é que as empresas são fortes, mas muitas delas não estão inovando, há uma inércia.

Mesmo um setor consolidado, como a siderurgia, precisa inovar e transformar-se. A Alemanha hoje tem o aço mais verde do mundo, não por ter decidido que seria assim, mas por precisar ser verde para conseguir dinheiro do governo, é uma parceria simbiótica em vez de uma parceria parasitária.

O Brasil poderia, de fato, liderar um processo de inovação?
Imagine pegar o orçamento de compras de cada ministério —Saúde, Transporte, Defesa, Energia— e transformá-lo em um orçamento de inovação, orientado para programas de mobilidade sustentável, que tentem resolver os congestionamentos nas grandes cidades. Acho que o Brasil pode realmente liderar um movimento nesse sentido, especialmente porque o Ministério da Fazenda é parte disso.

Trata-se de reinventar o capitalismo, fazer tudo de uma forma diferente, estruturando as organizações públicas e deixando que as organizações privadas também sejam instadas a trabalhar em conjunto.

Para chegar à lua, lá atrás, foram mobilizadas pessoas de diferentes setores —de profissionais de nutrição ao setor de eletrônicos e aeronáutica— e esse trabalho em conjunto solucionou muitos outros desafios pelo caminho.

Hoje temos câmeras, celulares, comida para bebê e softwares que são resultado dessas grandes mobilizações de recursos. O mesmo deveria acontecer com a agenda de sustentabilidade do Brasil, você a divide em diferentes frentes e as soluções para os problemas que surgirem ao longo do caminho podem fomentar muita inovação, é daí que vem o crescimento.

Deixar de ser um exportador principalmente de commodities é uma ambição ainda distante?
No caso da América do Sul, é preciso ter muito cuidado, porque os novos recursos são muito atraentes, como o lítio para baterias elétricas.

Ele também traz muitos problemas, um deles é que a extração de lítio cria enormes quantidades de água poluída, por exemplo, então é preciso ter certeza de que a solução para um lugar não cause um problema em outro.

Tenho aprendido muito com a Dinamarca, que hoje é um grande fornecedor de serviços verdes digitais de alta tecnologia, tendo criado um ecossistema de inovação. Não cabe a mim dizer ao Brasil o que fazer, mas a questão é que você não quer cair na armadilha das commodities novamente.

A falta de recursos é sempre um problema, sobretudo em países com problemas em diferentes áreas. Como contornar a limitação cada vez maior do Orçamento?
Todos os países reclamam de falta de recursos. O erro é pensar que a restrição se dá pelo déficit, a restrição real é a dívida em relação ao PIB [Produto Interno Bruto]. Sem investir de forma inteligente, no setor privado e no setor público, a produtividade não aumenta e ela é o principal impulsionador.

Sou italiana, e depois da crise financeira, todos os países do sul da Europa [Portugal, Itália, Grécia e Espanha] foram forçados a reduzir os seus déficits, o que aconteceu foi que a dívida em relação ao PIB aumentou.

O que realmente importa não é ter um Estado grande ou pequeno, o que faz diferença é um investimento público inteligente, estratégico e orientado, que catalisa o investimento privado, mas para isso é preciso saber qual é a direção que está sendo tomada em relação ao bem-estar e à sustentabilidade, para depois redesenhar empréstimos, concessões e subsídios. Não basta distribuir dinheiro para as empresas.

E é claro que o dinheiro público só deve ser usado por aqueles que não conseguem obter o dinheiro privado, é preciso ajudar a promover um ecossistema competitivo inovador, em que pequenas e médias empresas estão dispostas a trabalhar em torno de temas, como saúde, clima, digitalização e a preservação da Amazônia.

Encontrar uma forma de construir um ecossistema simbiótico de público e privado é muito importante para qualquer governo progressista, como o brasileiro.

A popularidade de políticos extremistas ao redor do mundo, como no caso da Argentina, em que Javier Milei prega a destruição das instituições, não aponta que parte da população deixou de acreditar no Estado?
Com certeza e, infelizmente, a onda de populismo está acontecendo por toda parte.

A Espanha pode ter escapado por pouco dela, mas vemos fenômenos assim na Itália e com o Brexit no Reino Unido.

Não deveríamos ser condescendentes e dizer que as pessoas são estúpidas por estarem votando nessas pessoas com ideologias malucas. Elas perderam a confiança no governo e nas empresas, por isso não é coincidência que muitos desses partidos populistas se apresentem como anarquistas.

Mas a realidade é que as ideias deles são muito antigas, é uma ideologia velha e, em alguns casos, até feudal, por isso é muito importante retirar a máscara de novidade que esses políticos “outsiders” usam.

Eles apresentam soluções simplistas e que olham para o sintoma, dizem que é preciso colocar mais pessoas na prisão ou que os imigrantes são a fonte dos problemas.

A teoria liberal, com menos Estado, também ganhou força nos últimos anos. Tivemos um exemplo disso no Brasil, durante o governo anterior, em que o ministro da Economia se orgulhava de defender as ideias da Escola de Chicago.

Por se tratar de um centro acadêmico, era de se esperar que a Escola de Chicago se importaria com as evidências, e as evidências nos dizem que a austeridade não funciona nem para o planeta nem para as pessoas, por aumentar a pobreza.

A ideologia dos ‘chicago boys’ é uma economia estúpida e eles sabem disso, então, para ser honesta, cheguei à conclusão de que eles apenas não se importam. Por que mais alguém cortaria as refeições escolares ou a verba para centros juvenis e bibliotecas públicas?
A pandemia alterou a relação das pessoas com o Estado, mas essa mudança foi passageira?
De repente, o Estado foi lembrado como o agente que proporcionou a vacinação, mas essa fase durou bem pouco, muitos países já estão passando por novas ondas de austeridade e dizem que gastou-se muito [durante a pandemia].

Os governos deram recursos para as famílias que não estavam trabalhando durante a quarentena e agora dizem “precisamos cortar programas sociais”, só que as consequências desses cortes acabam custando mais.

A disputa dos países na aquisição das vacinas nos deveria ensinar que todos temos interesses diferentes e conflitantes.

Estou escrevendo um novo livro sobre esse tema —por exemplo, a água é um grande problema mundial e o ciclo global nos une a todos, o desmatamento na Amazônia causa uma seca do outro lado do mundo, então, em teoria, poderíamos pensar que o mundo todo está preocupado com a água de forma conjunta, mas isso não está acontecendo.

Salvar o planeta é o grande desafio para o Estado no século 21?
O Estado tem de fornecer uma direção e exigir que todos os setores da economia inovem, pensando que o maior objetivo, claro, é a sustentabilidade, mas também a saúde e o bem-estar. É preciso estar preparado para a próxima pandemia.

O meu livro mais recente [“The Big Con”] é sobre como os governos precisam investir na capacidade de implementação de ações, sem investir no serviço público, você não saberá como agir e então ficará refém de consultorias, como ocorreu na crise de Covid.

O livro reforça como a indústria de consultorias infantilizou os governos.

RAIO-X
Mariana Mazzucato, 55
É professora de economia da inovação na UCL (University College London), onde é diretora fundadora do UCL Institute for Innovation and Public Purpose. É autora de quatro livros, incluindo “O Estado Empreendedor” e “Missão Economia”

Dentro do aquecimento global, por Leonardo Boff

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A Terra é Redonda, 30/09/2023

Neste ano já se fizeram notar as consequências funestas da mudança de regime climático.

Não estamos mais indo ao encontro do aquecimento global. Estamos já dentro dele, possivelmente de forma irreversível. Na COP 15 de Paris de 2015 se firmou o acordo de inversão de um bilhão de dólares anuais para reter o aquecimento e ajudar os países que não possuem meios suficientes para isso. A perspectiva era de evitar que o clima crescesse 1,5oC até 2030, tendo como referência o começo da era industrial.

O fato é que quase ninguém cumpriu o prometido. Como o aquecimento cresce dia a dia, chegamos ao ponto de o último relatório do IPCC de ano de 2023 e de outras fontes oficiais nos revelam que este aquecimento nos chegará antecipado entre 2025 e 2027.Ele poderá alcançar dois graus Celsius.

Temos verificado neste ano de 2023 um aumento assustador do aquecimento atingindo praticamente todo o mundo, chegando e muitos lugares acima de 40oC ou mais. Já não podemos falar simplesmente de aquecimento global, mas de mudança de regime climático da Terra. Inauguramos uma nova era, com níveis climáticos variáveis conforme as regiões, mas possivelmente se estabilizando planetariamente por volta de 38-40oC.

Neste ano já se fizeram notar as consequências funestas desta mudança de regime climático: o grande degelo das calotas polares, incêndios devastadores em muitas regiões do mundo, como no Canadá e nas Filipinas que incinerou uma inteira ilha com casas e carros e tudo o que perfaz uma cidade. No Sul do Brasil ocorreram um ciclone devastador e enchentes em muitas cidades, algumas delas praticamente destruídas.

Andando por aqueles lugares no final de setembro e refletindo em vários centros com numerosos grupos sobre esse fenômeno, sempre de novo surgia a pergunta: por que está ocorrendo esta devastação, com mortes e milhares de desabrigados? Esforcei-me, o mais que pude, para lhes conscientizar de que estes fenômenos não são naturais, mesmo com a confluência de dois fatores: o el Niño e o aquecimento global. Estes fenômenos são inaturais. Eles obedecem à nova lógica das mudanças do regime climático. Devemos todos nos preparar porque tais devastações serão cada vez mais frequentes e mais danosas.

Muitos dos mais notáveis climatólogos atestam que chegamos atrasados com nossa ciência e técnica. Elas, nas condições atuais da pesquisa, pouco podem fazer, apenas advertirmos da chegada dos ciclones, dos tufões e das tempestades e minorar os efeitos danosos. Mas eles virão fatalmente. Quer queiram ou não os negacionistas, os dirigentes de grandes corporações planetárias e de inteiros governos, o fato inegável é que entramos num estágio novo da história da Terra.

Muitos, especialmente crianças e idosos terão dificuldades de adaptação e morrerão. Igual devastação ocorrerá na própria natureza com a fauna a flora.

No que se refere às enchentes tenho explicado que cada rio possui dois leitos: o normal pelo qual ele normalmente corre e o segundo ampliado que é aquele espaço que lhe pertence e que acolhe as águas das enchentes. Neste espaço do leito ampliado não podemos fazer construções e elevar inteiros bairros. Temos que respeitar o que lhe pertence e reforçar a mata ciliar que margeia seu leito principal. Caso contrário, enfrentaremos destruições momentosas com muitas vítimas de pessoas e de animais que pertencem à nossa comunidade de vida.

Aprendemos pela ecologia não meramente verde e ambiental, mas pela ecologia integral (urbana, social, política, cultural e espiritual) aquilo que é a tese fundamental da física quântica e de todo discurso ecológico: todos os seres estão interligados. Tudo é relação e nada existe fora da relação. Isso nos leva a incorporar uma compreensão que identifica as conexões de todos os fenômenos. O terremoto do Marrocos, a enchente na Líbia, os incêndios no Canadá e a onda quase insuportável de calor que tomou conta da Europa e em quase todo o nosso país, tem a ver com as enchentes no Sul do país. Pois o problema é sistêmico, afeta todo o planeta.

A maioria das audiências públicas organizadas pelos organismos do governo federal e estadual geralmente é hegemonizada pelo discurso dos cientistas. Eles não são os melhores conselheiros pois trabalham os meios técnicos, sugerem medidas dentro do sistema no qual estamos encerrados, mas não se colocam a questão dos fins.

O discurso é dos fins e não dos meios: que tipo de Terra queremos? Que mudanças devemos fazer no modo de produção e consumo? Como diminuir a vergonhosa desigualdade social mundial? A maioria cai na ilusão de que dentro do atual sistema produtivista seja capitalista seja socialista, notoriamente devastador dos bens e recursos da natureza, pode-se chegar a soluções que resultam da diminuição de gazes de efeito estufa. Ledo engano. Dentro desta bolha que ocupou todo o planeta não há solução contra a mudança de regime climático. Pois são exatamente eles que sugam os recursos escassos da natureza que consequentemente produzem milhões de toneladas anuais de CO2 e de metano (28 vezes mais danoso que o CO2) lançadas na atmosfera.

É urgente, se queremos ainda permanecer neste planeta, fazer uma “conversão ecológica fundamental” como o diz a encíclica do Papa Como cuidar da Casa Comum.

Os grandes conglomerados e aquela pequeníssima porção de pessoas que controla o sistema de produção e os fluxos financeiros de onde tiram seus fabulosos lucros, jamais aceitam tal mudança. Perderiam seus ganhos, privilégios, poder econômico e político. No entanto, seguir por este caminho tornaremos a Terra cada vez mais inabitável, com milhões se refugiados climáticos e emigrantes que já não podem mais viver em seus lugares queridos. Engrossaremos o cortejo daquele que rumam na direção de sua própria sepultura. Se quisermos evitar este destino, devemos mudar.

Qual a alternativa necessária? Não é aqui o espaço para detalhar esta complexa resposta. Mas refiro apenas duas palavras-chaves: passar do ser humano, hoje dominante, como “dominus”, senhor e dono da natureza e não se sentindo parte dela, explorando-a sem limites para o ser humano como “frater” irmão e irmã entre todos os humanos e também com os demais seres da natureza da qual é a parte consciente, porque possuímos com eles e mesma base biológica e cuidamos dela.

Somos de fato irmãos e irmão, por um dado de ciência mais do que pela mística cósmica de São Francisco. O fato é que não nos tratamos como irmãos e irmãs. Somos antes insensíveis e até cruéis. Sobre tal tema remeto aos meus próprios escritos que tentam detalhar este novo rumo.

*Leonardo Boff é eco-teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de O doloroso parto da Mãe Terra: uma sociedade de fraternidade sem fronteiras e de amizade social (Vozes).

Na ONU, o Brasil volta a si, por Maria Hermínia Tavares.

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Lula reiterou posições clássicas da nossa diplomacia e elencou prioridades novas.

Maria Hermínia Tavares, Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

Folha de São Paulo, 28/09/2023

Quem se der ao trabalho de comparar o discurso de presidente Lula na abertura da Assembleia-Geral da ONU, na terça-feira (19), com o pronunciamento de Jair Bolsonaro na mesma tribuna quatro anos atrás, será recompensado com uma tripla dose de alívio. Pela voz do seu chefe de governo, o Brasil voltou à antiga forma: falou bem, foi digno e ambicioso na justa medida.

Aquela reunião anual não é foro para decisões. É um ritual em que, por se fazer representar à altura do evento, os seus 193 estados-membros reafirmam a adesão ao multilateralismo; compartilham a sua visão do estado do mundo; explicam as suas escolhas em política externa e marcam posição diante das decisões coletivas a tomar.

Nos 21 minutos em que se fez ouvir, o líder brasileiro falou dos princípios que orientam a ação internacional do país; das prioridades que deveriam nortear as nações ali reunidas; das urgentes reformas institucionais para ressuscitar as organizações do sistema ONU à beira da irrelevância.

Lula reiterou posições clássicas da diplomacia brasileira –mas também elencou prioridades novas. De um lado, tratou de temas que de há muito configuram a identidade internacional do país: defesa da democracia; busca de soluções pacíficas para os conflitos; demanda por reforma das organizações multilaterais a fim de dar mais voz aos países intermediários –em especial por meio da ampliação de seu espaço no Conselho de Segurança e nos órgãos de governança econômica do FMI e do Banco Mundial.

De outro lado, deu promissora importância à agenda ambiental e à maneira como ela deveria se entrelaçar com a meta maior de redução das desigualdades. Assim, reafirmou a disposição de cumprir, no prazo estipulado (2030), os 17 ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) definidos pela ONU e que dão corpo à convergência daqueles dois objetivos. Sem esquecer da reativação do Tratado de Cooperação Amazônica e da interlocução entre os países com extenso patrimônio florestal.

Para atestar os compromissos do seu governo com a agenda ambiental, falou do Plano de Transformação Ecológica, fruto da cooperação entre os Ministérios da Fazenda e do Meio Ambiente –e destinado a mudar o rumo das políticas de desenvolvimento. Invocou o princípio das responsabilidades comuns e diferenciadas na proteção do planeta, cobrando das nações ricas o financiamento das políticas ambientais das mais pobres.

O ambicioso pronunciamento é uma carta de princípios que ultrapassa o que o país pode fazer de fato.

Trunfo para valer só na agenda ambiental. É aí que se poderá ancorar um protagonismo que vá além da oratória.

A geração Z e as ameaças do álcool, por Laura Cury

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Taxação mais rígida e restrições publicitárias devem ser observadas

Laura Cury, Coordenadora do projeto álcool da ACT Promoção da Saúde

Folha de São Paulo, 01/10/2023

As mudanças sociais e demográficas recentes promoveram um prolongamento da adolescência que, segundo especialistas, duraria até os 24 anos. São justamente os indivíduos que vivem a transição entre a adolescência e a vida adulta que apresentaram dados alarmantes sobre saúde e comportamento na última edição do Covitel, o Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas não Transmissíveis em Tempos de Pandemia.

Os jovens brasileiros dormem pouco (45,8%), praticam menos de 150 minutos de atividade física por semana (63,1%), não consomem frutas (33,5%) e verduras e legumes (39,2%) de forma regular e fazem uso excessivo de telas (76,1%). Todos esses fatores contribuem para o aumento de 90% da obesidade entre 2022 e 2023, quando o índice saltou de 9% para 17,1%, e para que 1,4 milhão tenha hipertensão, e 750 mil, diabetes. Vêm também dessa faixa etária os maiores percentuais de consumo de dispositivos eletrônicos de fumar, de 6,6%.

Se esses dados já acendem um sinal vermelho acerca da saúde da juventude e das consequências futuras dos hábitos ruins, como maior índice de mortalidade por doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), sobrecarga dos sistemas de saúde no futuro e envelhecimento nada saudável dessa população, as informações sobre consumo de álcool são ainda mais preocupantes.

Jovens são os que mais consomem bebidas alcoólicas de forma abusiva: 32,6%. Também são os que mais relataram não lembrar do que fizeram enquanto embriagados. O álcool ocupa um lugar privilegiado na sociedade: está nas comemorações, nas festas, nas confraternizações de família. Começar a beber é visto como um rito da vida adulta. A consequência é que 4,8% de jovens já relatam dependência ou risco de desenvolvê-la.

As bebidas alcoólicas fazem mal à saúde física e mental, tão prejudicadas pela pandemia. O álcool é um depressor do sistema nervoso central e pode agravar sintomas de ansiedade e depressão —diagnósticos em crescimento entre pessoas de 18 a 24 anos. Há também evidências do aumento de ocorrências de violência, seja no trânsito, doméstica ou suicídios. O álcool também responde por DCNTs como câncer, cardiovasculares e diabetes.

O senso comum diz que não há necessidade de pensar em ações para esse grupo, mas é fundamental garantir o acesso à saúde —física e mental— e desmistificar o tema entre jovens, além de incentivar a prática de esportes, o contato social e a redução do uso de telas.

A Reforma Tributária é uma oportunidade para garantir incentivos fiscais para produtos saudáveis e endurecer impostos para cigarros, alimentos e bebidas ultraprocessados e alcoólicas. É, também, essencial criar restrições à publicidade e ao marketing de álcool.

Enquanto a propaganda for indiscriminada, o imaginário em torno das bebidas não vai mudar. Não há glamour no álcool: a Organização Mundial da Saúde já declarou que qualquer dose é prejudicial. Apoiar pessoas jovens é investir em um futuro mais saudável para toda a população.

Brics

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As constantes transformações na sociedade internacional exigem uma visão estratégica, centrada na consciência de suas potencialidades, suas dificuldades estruturais e os anseios sobre o futuro imediato, desta forma, precisamos reconstruir novos espaços de comércio mundial, retomando acordos estratégicos e uma ação mais efetiva no novo cenário geopolítico, marcado por atores ascendentes e desafios incomensuráveis para todas as nações.

Neste momento, percebemos que o eixo de poder global está em constante alteração, as nações que regiam o concerto internacional, os países ocidentais desenvolvidos, estão perdendo espaço na comunidade mundial, suas estruturas industriais vem perdendo espaço, muitas nações estão se desindustrializando, com isso, percebemos a criação de novas oportunidades e grandes desafios, exigindo uma visão mais articulada, mais audaciosa e grande ousadia, desenvolvendo projetos econômicos consistentes, fortalecimento a unidade política, desenvolvendo uma visão estratégica, compreendendo as instabilidades e incertezas do mundo, as nações precisam correr riscos, afinal estamos numa sociedade em constante transformação.

Neste cenário, percebemos os espaços abertos com o crescimento e o fortalecimento do bloco dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que nasceu como um acrônimo criado por um economista de um grande banco de investimento, Goldman Sachs, John O’ Neil, que criou a expressão se referindo aos chamados países baleias, que tinham em comum grandes extensões territoriais, alto contingente populacional e que, segundo esse teórico, seriam as economias que dominariam a economia no século XXI. Deste acrônimo, os países criaram o Bloco dos Brics, com sede na China e ganhou relevância da economia internacional, força política e importância estratégica e geoestratégica, lembrando-os que neste grupo, estão os chineses, vistos como a maior economia do mundo em paridade de poder de compra, ultrapassando a economia norte-americana.

Neste encontro, foram aceitos novos membros no bloco dos Brics, passando a ser vistos como o Brics Plus, onde foram incorporados Argentina, Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes, Etiópia e Irã, desta forma, o bloco ganhou musculatura e se espalhou para outras regiões do mundo, lembrando que além destes países que ganharam assento nos Brics mais de trinta outras nações demonstraram interesses em participar deste bloco renovado, angariando poder no cenário global e aumentando a maior influência política em questões internacionais e demonstrando que estamos vivendo uma sociedade multipolar, se distanciando de uma visão unilateral e centradas nos interesses das nações ocidentais desenvolvidas, que dominaram a sociedade internacional desde a Revolução Industrial, impondo seus valores, seus interesses financeiros, sua visão cultural e destacando o poder de sua moeda e de sua estrutura bélica, como forma de dominação e hegemonia.

A ascensão dos Brics no cenário internacional nos mostra novos horizontes de investimentos produtivos, novos valores e novas culturais nacionais, exigindo, ao mesmo tempo, uma visão geoestratégica mais consistente, grande capacidade de negociação política, incrementando novas agendas e menos atreladas as potências ocidentais.

Neste momento da sociedade internacional, marcada por grandes transformações e desafios, é imprescindível e urgente, que cada nação construa um projeto coerente para compreendermos os desafios do mundo contemporâneo, deixando de lado conflitos degradantes e discussões intermináveis sem sentido e que prejudicam o futuro da sociedade brasileira, precisamos de lideranças competentes e grande potencial de vislumbrar as reais necessidades da população. É fundamental construirmos uma sociedade mais igualitária, com novos horizontes de ascensão social, com uma educação de qualidade para todos os cidadãos, com uma tributação justa e rejeitando um sentimento que foi muito bem destacado por Nelson Rodrigues quando descreveu o viralatismo da elite nacional que contribuem para a manutenção da estagnação econômica e dos nossos ultrajantes indicadores sociais.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Novíssima dependência, por Luiz Gonzaga Belluzo

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Luiz Gonzaga de Mello Belluzo – A Terra é Redonda – 20/09/2023

Vou perpetrar a ousadia de rabiscar algumas ideias a respeito do livro de Lucas Crivelenti e Castro Novíssima dependência: a subordinação brasileira ao imperialismo no contexto do capitalismo financeirizado.

Peço vênia, diria um jurista de escola, para começar com a globalização, um conceito demasiado impreciso, enganoso e carregado de contrabandos ideológicos. Entre os contrabandos mais notórios, inscreve-se a tentativa de excluir as relações de poder entre os Estados nacionais, ou seja, abolir as relações entre os Impérios e seus súditos.

Ainda assim, se pretendemos avançar na análise e compreensão dos processos de transformação que sacodem a economia e a sociedade contemporâneas, estamos condenados a empreender a crítica ao conceito de globalização.

São muitos os que defendem, desde uma posição supostamente “científica”, o caráter benigno do chamado processo de globalização. Dois pressupostos estão implícitos nesta formulação: (i) a globalização conduzirá à homogeneização das economias nacionais e à convergência para o modelo liberal de mercado; (ii) esse processo ocorre acima da capacidade de reação das políticas decididas no âmbito dos Estados nacionais.

As receitas liberal-conservadoras, em voga, recomendam para os países emergentes, popularescas deduções, em linha direta, dos modelos abstratos da teoria neoclássica. Senão vejamos: a ampla abertura comercial está apoiada na vetusta teoria das vantagens comparativas, sem as tímidas modificações da “nova teoria do comércio”; as privatizações e o não intervencionismo do Estado emanam de uma modelo competitivo de equilíbrio geral; a liberalização financeira decorre da hipótese dos mercados eficientes.

Quando falamos em etapa financeira do capitalismo, em capitalismo financeiro, frequentemente não nos damos conta do significado que essa palavra tem. Karl Marx tratou a forma financeira como a mais desenvolvida do capital. “Mais desenvolvida” na concepção marxista diz respeito à realização do conceito de capital enquanto processo de acumulação de riqueza, monetária, abstrata. A economia do capital é um regime cujo objetivo não é a produção de mercadorias, nem mesmo a submissão do trabalho, ainda que em sua metamorfose – Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro – o capital seja obrigado a passar necessariamente por tais agruras.

Karl Marx trabalha com a simultaneidade de dois movimentos: o da reiteração dos mecanismos
básicos de reprodução econômica e social do capitalismo e a transformação, a mudança, conduzida pelo incessante impulso à superação destes limites. É essa a história do capitalismo.

Autoidentidade e diferença, no sentido de que os mecanismos de controle despótico impostos pela máquina capitalista continuam a operar sempre, enfrentando os métodos de resistência e as alternativas criadas pelas classes trabalhadoras na luta de classes. Vamos repetir: o regime do capital tem uma única finalidade: acumulação de riqueza abstrata, encarnada no dinheiro. Por isso, no capitalismo qualquer ato só adquire significado econômico quando começa e termina com o dinheiro.

A financeirização não é, portanto, uma deformação do capitalismo, mas um “aperfeiçoamento” de
sua natureza. Aperfeiçoamento que exaspera o seu movimento contraditório: na incessante busca da “perfeição”, ou seja, a acumulação de dinheiro a partir do dinheiro – sem a mediação da exploração do trabalho – o regime do capital é obrigado a desvalorizar a força de trabalho e a expandir o capital fixo para além dos limites permitidos pelas relações de produção, o que engendra as crises periódicas de realização e de superacumulação.

No capitalismo, a finança é a instância de controle e dominação. É através da forma financeira
que se realiza a chamada alocação de recursos, processo encarado pela economia neoclássica como a grande proeza dos mercados competitivos. Na visão marxista, a concorrência capitalista se realiza no âmbito dos mercados financeiros que promovem, de fato, a distribuição de recursos mediante o “descongelamento” do capital imobilizado nas diversas esferas de produção, em busca das melhores oportunidades e das aplicações mais rentáveis.

A respeito do tema alocação de recursos, vou me permitir a reprodução de um trecho do livro Dinheiro: o poder da abstração real, escrito em parceria com Gabriel Galípolo: “Sob os auspícios do capital financeiro e de um sistema monetário internacional assimétrico, ocorreu a brutal centralização do controle das decisões de produção, localização espacial e utilização dos lucros em um núcleo reduzido de grandes corporações e instituições financeiras à escala mundial. A centralização do controle impulsionou e foi impulsionada pela fragmentação espacial da produção”.

A centralização do comando no capital financeiro alterou profundamente a estratégia da grande empresa produtiva. Os lucros acumulados são primordialmente destinados às operações de tesouraria. Já os novos empréstimos financiam a recompra das próprias ações para garantir “valorização” da empresa. Dados do Federal Reserve (FED) revelam que, no período 2003-2008, o volume de crédito destinado a financiar posições em ativos já existentes foi quatro vezes maior do que os créditos destinados à criação de emprego e renda no setor produtivo.

Na posteridade da crise de 2008, a reiteração da dominância da forma financeira da riqueza e dos rendimentos das empresas e das famílias endinheiradas está ancorada “em derradeira instância” no inchaço das dívidas públicas nacionais.

Vamos repetir uma banalidade: a dívida pública é riqueza privada. Para a compreensão do enriquecimento e reprodução das desigualdades é necessário avaliar o papel do endividamento público no ciclo atual de “inflação de ativos”. Os “mercados” sustentam uma nova escalada de preços nas bolsas de valores, escorados nas operações do FED com títulos públicos destinadas a regular a liquidez e manter reduzidas as taxas longas. Os títulos do governo americano constituem, portanto, o lastro de última instância, fiador das políticas monetárias de “facilitação quantitativa” e de suas consequências para a deformação da riqueza e ampliação das desigualdades.

O capitalismo global assumiu a sua forma mais avançada como economia monetária, cujos agentes
detentores dos poderes de criação da riqueza social são tangidos pelo império da acumulação de riqueza abstrata. Isso não depende da maldade ou bondade desses agentes, senão de forças sistêmicas que lhes impõem a necessidade de desejar sempre mais para sobreviver em sua natureza capitalista. Esse comportamento impulsiona a dinâmica sistêmica e, ao mesmo, é reforçado por ela. É necessário sublinhar a palavra forma porque a compreensão da dinâmica capitalista como movimento das formas transformadas permite conferir significado preciso à palavra contradição. Contradição como negação da negação no movimento de construção de novas positividades, logo adiante negadas.

É sob esse critério que devemos observar a concomitância entre o avanço tecnológico, pífia evolução na produtividade trabalho, dissolução das relações salariais, queda nos rendimentos médios dos trabalhadores, encolhimento da massa de salários, empregos precários, redução nas taxas de investimento, crescimento explosivo do endividamento privado e público, a valorização incessante dos ativos financeiros e, finalmente, o rápido agravamento das condições ambientais.

Estas transformações nos mercados financeiros ocorridas nas últimas duas décadas estão submetendo, de fato, as políticas macroeconômicas nacionais à tirania de expectativas volúveis.

Não foram poucos os ataques especulativos contra paridades cambiais, os episódios de deflação brusca de preços de ativos reais e financeiros, bem como as situações de periclitação dos sistemas bancários. É desnecessário reafirmar que estes episódios são o resultado inevitável, na maior parte dos casos, do livre movimento do floating capital.

Essas situações têm sido contornadas pela ação de última instância de governos e bancos centrais da tríade (Estados Unidos, Alemanha e Japão). Apesar disso, não raro, até mesmo países sem tradição inflacionária foram submetidos a crises cambiais e financeiras, cuja saída exigiu sacrifícios em termos de bem-estar da população e renúncia de soberania na condução de suas políticas econômicas.

A inserção dos países neste processo de globalização foi hierarquizada e assimétrica. Os Estados Unidos usufruindo de seu poder militar e financeiro dão-se ao luxo de impor a dominância de sua moeda, ao mesmo tempo em que mantêm um déficit elevado e persistente em conta corrente e uma posição devedora externa. Isto significa que o os mercados financeiros parecem dispostos a aceitar, pelo menos por enquanto, que os Estados Unidos exerçam, dentro de limites elásticos, o privilégio da “segniorage”.

Esta polarização da confiança se traduz em limitações à autonomia das políticas nacionais de outros países. A intensidade da restrição depende da forma e do grau da articulação das economias nacionais com os mercados financeiros sujeitos à instabilidade das expectativas. Japão e Alemanha, por exemplo, são superavitários e credores e por isso têm mais liberdade para praticar expansionismo fiscal e juros baixos, ou tolerar amplas flutuações no valor de suas moedas, sem atrair a desconfiança dos especuladores.

Países, com passado monetário turbulento, precisam pagar elevados prêmios de risco para refinanciar seus déficits em conta corrente. Isto representa um sério constrangimento ao raio de manobra da política monetária, além de acuar a política fiscal pelo crescimento dos encargos financeiros nos orçamentos públicos.

O “capital vagabundo” conta, nos Estados Unidos, com um mercado amplo e profundo, onde imagina poder descansar das aventuras em praças exóticas. A existência de um volume respeitável de papéis do governo americano, reputados por seu baixo risco e excelente liquidez, tem permitido que a reversão dos episódios especulativos, com ações, imóveis ou ativos estrangeiros, seja amortecida por um movimento compensatório no preço dos títulos públicos americanos.

Os títulos da dívida pública americana são vistos, portanto, como um refúgio seguro nos momentos em que a confiança dos investidores globais é abalada. Isto significa que o fortalecimento da função de reserva universal de valor, exercida pelo dólar, decorre fundamentalmente das características já aludidas de seu mercado financeiro e do papel crucial desempenhado pelo Estado americano como prestamista e devedor de última instância.

É por isso que as oscilações das taxas de juros de longo prazo, que exprimem as variações de preços dos títulos de 10 anos do Tesouro americano, são hoje, no mundo das finanças desregulamentadas e securitizadas, o indicador mais importante do estado de espírito dos mercados globalizados. Seus movimentos refletem as antecipações dos administradores das grandes massas de capital financeiro a respeito da evolução do valor de suas carteiras, que tomam as variações de preços dos títulos do Tesouro como base para fazer antecipações sobre evolução provável dos preços e da liquidez dos diferentes ativos, denominados em moedas distintas.

Os novos mercados têm a obsessão da liquidez, como diz o professor Michel Aglietta. Essa obsessão, aliás, é a decorrência natural e inevitável de mercados cuja operação depende de conjeturas a respeito da evolução do preço dos ativos. Apesar de todas as técnicas de cobertura e distribuição de riscos entre os agentes, ou até por causa delas, estes mercados desenvolveram uma enorme aversão à iliquidez e aos compromissos de longo prazo.

Além disso, e muito importante: aumentou significativamente a sensibilidade dos novos mercados financeiros a elevações imaginadas das taxas de inflação. Ainda que a mudança prevista no patamar inflacionário possa ser julgada desprezível – se avaliada pelos critérios das décadas anteriores – a reação dos mercados tende a ser muito elástica às antecipações pessimistas.

Por isso, é de pouca sabedoria dizer, como o fez o relatório do BIS, que os níveis atuais de inflação (ou de deflação rastejante) são razoáveis e que os governos deveriam tratar do crescimento. Cabe perguntar: são razoáveis para quem? As opiniões dominantes são, nesta etapa do capitalismo, aquelas que se aferram à defesa do valor real da riqueza já existente, ou da “riqueza velha”, em detrimento do espírito empreendedor que busca a criação de nova riqueza.

Vivemos num mundo em que predomina o “ethos” do rentismo e prevalecem as taxas de juros reais elevadas.

A sensibilidade à inflação e a aversão à iliquidez, que se exprimem através das reações das taxas longas, funcionam como freios automáticos, cuja função é conter o crescimento da economia real, antes que ele se revele “inconveniente” para os detentores de riqueza financeira.

Estas peculiaridades da finança contemporânea, fundada na preeminência de mercados amplos e profundos para a negociação de papéis e seus derivativos, têm suscitado uma variedade muito grande de interpretações. O crescimento espetacular da riqueza financeira (em relação a outras formas de acumulação da grande empresa e das famílias de alta renda) e o desenvolvimento correspondente de mercados sofisticados e abrangentes, destinados à avaliação diária desta massa de riqueza mobiliária, estão afetando de forma importante o comportamento do investimento, do consumo e também do gasto público.

Independentemente das boas intenções ou de reformas virtuosas buscadas pelos governos, a lógica
da valorização patrimonial vai se apoderando de todas as esferas da economia, impondo os seus critérios como os únicos aceitáveis em qualquer decisão relativa à posse da riqueza. Não se trata apenas de que o cálculo do valor presente do investimento produtivo seja afetado pelo estado de preferência pela liquidez nos mercados financeiros (um velho, mas pouco compreendido problema keynesiano), mas sim que a acumulação produtiva vem sendo “financeirizada” como, aliás, o professor José Carlos Braga vem tentando explicar em seus trabalhos pioneiros.

A generalização e intensificação da concorrência, protagonizadas pela grande empresa, que opera em múltiplos setores e em muitos mercados só pode ser compreendida corretamente à luz destas transformações financeiras.

As questões relativas às estratégias de localização da corporação transnacional moderna ou de suas mutações morfológicas (constituição de empresas-rede, com concentração das funções de decisão e de inovação e dispersão das operações comerciais e industriais) devem ser avaliadas a partir desta perspectiva. O fenômeno se apresenta, prima facie, sob a forma de “contestação” das estruturas oligopolistas “estabilizadas” que regulavam a concorrência no período anterior.

Analisada com mais profundidade, essa generalização da concorrência explicita uma nova etapa de reconcentração e recentralização dos blocos de capital, sob a égide e a disciplina do capital financeiro.

A economia mundial está atravessando um momento de intensificação da rivalidade intercapitalista (o que não exclui acordos e coalizões, mas os supõe) e, neste clima, nenhum protagonista é capaz de garantir a posição conquistada. Por isso, todos se sentem compelidos a ganhar a dianteira.

Para escândalo dos liberais, a grande empresa que se lança a incertezas da concorrência global necessita cada vez mais do apoio dos Estados Nacionais dos países de origem. O Estado está cada vez mais envolvido na sustentação das condições requeridas para o bom desempenho das suas empresas na arena da concorrência generalizada e universal. Elas dependem do apoio e da influência política de seus Estados Nacionais para penetrar em terceiros mercados (acordos de garantia de investimentos, patentes etc.), não podem prescindir do financiamento público para suas exportações nos setores mais dinâmicos e seriam deslocadas pela concorrência sem o benefício dos sistemas nacionais de ciência e tecnologia.

Ao invés da vitória dos mercados, em que prevalece o automatismo da concorrência perfeita, estamos assistindo à reiteração da “politização” da economia. As transformações em curso não se propõem a reduzir o papel do Estado, nem enxugá-lo, mas almejam aumentar sua eficiência na criação de “externalidades” positivas para a grande empresa envolvida na competição generalizada. A disparidade de situações e de projetos nacionais e regionais, entre os países desenvolvidos e entre estes e os países em desenvolvimento, vem aumentando nos últimos anos.

O relatório da UNCTAD Trade and Development Report de 2003 traz o subtítulo “Acumulação de capital, crescimento e mudança estrutural”. Trata-se de um estudo histórico-comparativo sobre o desempenho dos países em desenvolvimento ao longo do movimento de transformação da economia global nas décadas dos 1980 e 1990.

(i) os de industrialização madura como a Coréia e Taiwan que já atingiram um grau elevado de industrialização, produtividade e renda per capita, mas apresentam uma taxa declinante de crescimento industrial; (ii) os de industrialização rápida, como a China e talvez a Índia que – mediante políticas que favorecem elevadas taxas de investimento doméstico e graduação tecnológica – apresentam uma crescente participação das manufaturas no produto, emprego e exportações; (iii) os de industrialização de enclave, como o México que, a despeito de aumentar sua participação na exportação de manufaturados têm desempenho pobre em termos de investimento, valor agregado manufatureiro e produtividade totais; e (iv) finalmente, os países em vias de desindustrialização, que inclui a maioria dos países da América Latina.

A tipologia desenhada pela UNCTAD é o ponto de chegada do jogo complexo. Em todas as etapas de expansão do capitalismo este jogo envolve as transformações financeiras, tecnológicas, patrimoniais e espaciais que decorrem da interação de dois movimentos: (a) o processo de concorrência movido pela grande empresa, sob a tutela das instituições nucleares de “governança” do sistema: a finança e o Estado hegemônico; e (b) as estratégias nacionais de “inserção” das regiões periféricas. As transformações que hoje observamos são impulsionadas pelo jogo estratégico entre o “polo dominante” – no caso a economia americana, sua capacidade tecnológica, a liquidez e profundidade de seu mercado financeiro, o poder de seignorage de sua moeda – e a capacidade de “resposta” dos países em desenvolvimento às alterações no ambiente internacional.

É desnecessário dizer que as economias periféricas dispõem de estruturas e trajetórias sociais, econômicas e políticas muito dessemelhantes, o que dificulta para umas e facilita para outras a chamada “integração competitiva” nas diversas etapas de evolução do capitalismo. Assim, por exemplo, o sucesso do Brasil, até o início dos anos 1980, desencadeou a crise que iria provocar o seu reiterado “fracasso” na tentativa de se ajustar às novas condições internacionais. No polo oposto, o fracasso chinês até os anos 1980 propiciou condições iniciais mais favoráveis para o sucesso das reformas empreendidas a partir de então.

A década de 1970 é o momento da aproximação China-EUA, promovida por Nixon e Kissinger. De uma perspectiva geopolítica e geoeconômica, a inclusão da China no âmbito dos interesses americanos é o ponto de partida para a ampliação das fronteiras do capitalismo, movimento que iria culminar no conflito entre o protecionismo do republicano (liberal?) Donald Trump e o “livre-comércio” do
comunista Xi-Jinping. Ironias da história: uma coisa é uma coisa, outra coisa é a mesma coisa.

Essa “desarticulação” (ou rearticulação?) econômica descortinou uma nova fase, marcada por conflitos e contradições entre o modo de funcionamento dos mercados globalizados e os espaços jurídico-políticos nacionais.

A partir dos anos 1980, a liberalização das contas de capital, a desregulamentação financeira e comercial, revigorou a vocação universalista das empresas americanas. No afã de reduzir os custos salariais e escapar do dólar valorizado, o deslocamento “competitivo” da produção manufatureira americana buscou as regiões em que prevaleciam baixos salários, câmbio desvalorizado e perspectivas de crescimento acelerado.

Isso promoveu a “arbitragem” com os custos salariais à escala mundial, estimulou a flexibilização das relações de trabalho nos países desenvolvidos e subordinou a renda das famílias ao aumento das horas trabalhadas. O desemprego aberto e disfarçado, a precarização e a concentração de renda cresceram no mundo abastado.

No outro lado do mesmo processo, as lideranças chinesas valeram-se da
“abertura” da economia ao investimento estrangeiro ávido em aproveitar a oferta abundante de mão de obra. Apostaram na combinação favorável entre câmbio real competitivo, juros baixos para empreender estratégias nacionais de investimento em infraestrutura, absorção de tecnologia com excepcionais ganhos de escala e de escopo, adensamento das cadeias industriais e crescimento das exportações.

À sombra da aproximação com os Estados Unidos e outros países ocidentais, Deng Xiaoping entrosou as reformas domésticas com a abertura ao investimento estrangeiro. Nesse momento, a força do dólar e as condições oferecidas pelo mercado financeiro dos EUA favoreceram a migração das empresas de Tio Sam para fruir as vantagens do novo espaço de expansão.

Em simultâneo à abertura controlada, “o mercado passou a ser instrumento de governo para revigorar sua base material”. A reinauguração do mercado na China inicia-se com a permissão aos camponeses ao comércio de seus excedentes de produção, fato que pode ser comparado com o destampamento de uma panela de pressão que foi a base do desenvolvimento da sociedade chinesa por cerca de três mil anos e que fora temporariamente proibido. O resultado foi o aumento da produtividade agrícola e a “fabricação de fabricantes” em massa. Atualmente, 80% dos empresários de Shenzhen eram camponeses médios em 1978.

A formulação estratégica do Partido Comunista da China está ancorada em um sistema de consultas da base para a cúpula e vice-versa, sistema que obedece a uma sequência de instâncias de avaliação e decisão. Uma vez tomada a decisão, as burocracias de Estado, os gestores das empresas estatais, os governos provinciais, o People’s Bank of China, todos cuidam de implementar as diretrizes.

Durante a primeira década do novo milênio, a taxa de crescimento média anual da economia chinesa foi de 10,5%, contra 1,7% dos EUA e 0,9% da Alemanha. No fim da década, a China respondia por 42% da produção mundial de televisores em cores, 67% dos produtos de vídeo, 53% dos telefones móveis, 97% dos PCs e 62% das câmeras digitais.

O livro China versus The West, de Ivan Tselichtchev, dá a dimensão da transformação ocorrida. Nos anos 1980, a economia chinesa detinha o mesmo 1% do Brasil de participação no comércio mundial, em 2010 sua participação saltou para 10,4%, contra 8,4% dos EUA e 8,3% da Alemanha.

A escalada chinesa avançou amparada na relação favorável câmbio/salários, nos crescentes ganhos de escala e no rápido desenvolvimento tecnológico. A China enfrentou os desafios da globalização com concepções e objetivos que desmentem a propalada perda de importância das políticas nacionais e intencionais de industrialização e desenvolvimento.

A estratégia chinesa promoveu, com sucesso, a atração do investimento direto estrangeiro em parceria com as empresas locais, privadas e públicas. A determinação da taxa de câmbio escapou aos humores dos mercados financeiros. Foi utilizada como instrumento de competitividade e de atração do investimento forâneo.

Em 2013, o presidente Xi Jinping lançou o projeto “Nova Rota da Seda”, um programa de longo prazo para promover investimentos e conexões com todas as regiões do mundo. Esse projeto revela que, em poucas décadas, a China virou o jogo. Antes da Rota da Seda, o Império do Meio havia transitado de receptor de capitais para grande promotor de investimentos no exterior.

Em discurso de abertura no 19º Congresso do Partido Comunista da China, Jinping discorreu a respeito da economia com características chinesas. O presidente anunciou políticas de “ampliação do papel do mercado e de reforço às empresas estatais”. Ao avaliar as palavras de Jinping em sua edição de 22 de julho de 2017, a revista The Economist publicou um artigo com o título “Seleção Antinatural”. A revista imagina que a “seleção natural” é promovida pela livre concorrência, processo que sobrevive apenas nos livros-textos de introdução à economia. O capitalismo aboliu-o há tempos. Inspirada nesse anacronismo, The Economist lamentou o programa chinês de fusões das empresas estatais (Soes): “A agência do governo organizou a fusão de portos, ferrovias, produtores de equipamentos e empresas de navegação… Essas ações parecem destinadas a promover campeões nacionais”.

O governo chinês encaminhou uma dura reforma de suas empresas estatais nos últimos anos da década de 1990. Preparar sua economia ao cumprimento das normas de admissão à Organização Mundial do Comércio, ocorrida em 2001, demandou conceber um tipo de empresa com forte tendência à conglomeração, métodos de administração ultramodernos, comercialmente agressivas e com função de núcleo duro do desenvolvimento de um Sistema Nacional de Inovação.

*Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, é Professor Emérito da Unicamp. Autor entre outros livros, de O tempo de Keynes nos tempos do capitalismo (Contracorrente).