Perdendo potencial humano, por Priscilla Bacalhau

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É crucial que os indivíduos sejam capazes de aplicar produtivamente seus conhecimentos

Priscilla Bacalhau, Doutora em economia, consultora de impacto social e pesquisadora do FGV EESP CLEAR, que auxilia os governos do Brasil e da África lusófona na agenda de monitoramento e avaliação de políticas

Folha de São Paulo, 25/08/2023

Uma nação é feita de pessoas. Apenas oferecendo oportunidades para que os indivíduos desenvolvam seu potencial máximo, será possível atingir um nível desejável de desenvolvimento econômico e social. Para isso, é crucial que os indivíduos sejam capazes de aplicar produtivamente seus conhecimentos, habilidades e experiências para criar valor econômico. Esse potencial individual de aplicar habilidades é conhecido como capital humano e é ele que molda a capacidade de uma sociedade prosperar e inovar.

Atualmente no Brasil, os economistas do Banco Mundial, Norbert Schady e Joana Silva, divulgam seus trabalhos para medir o capital humano das nações. Em recente entrevista na Folha, Schady alertou que, sem investimentos em capital humano, os brasileiros poderiam enfrentar uma drástica redução em sua renda.

O Índice de Capital Humano, desenvolvido pela organização, considera três dimensões: sobrevivência infantil até os 5 anos de idade, anos de escolaridade ajustados pela aprendizagem e sobrevivência na idade adulta. Combinados, os indicadores estimam o quanto uma pessoa nascida hoje será produtiva quando chegar à idade adulta.

Os resultados do Brasil não são nada animadores. De acordo com as estimativas, uma criança brasileira nascida em 2019 atingiria apenas 60% do seu potencial, considerando as condições de saúde e educação a que estavam expostas. O Brasil apresenta déficits significativos em termos de aprendizado, mesmo quando comparado a países de desenvolvimento econômico semelhante. Além disso, o país ainda possui uma parcela considerável de trabalhadores com baixo nível educacional, com retornos limitados ao entrar no mercado de trabalho.

Além de os resultados não serem bons na média, as desigualdades de raça, gênero e região são marcantes, como de praxe no país. Crianças do Norte e do Nordeste, por exemplo, têm a oportunidade de desenvolver apenas metade de todo seu potencial, menos do que crianças no Sudeste. Por outro lado, vários municípios no Nordeste apresentaram grande evolução no índice de capital humano entre 2007 e 2019, puxada principalmente por melhorias nos indicadores educacionais.

Os efeitos da pandemia no acúmulo de capital humano podem ser devastadores, tanto regredindo para níveis de uma década atrás, quanto no aprofundamento de desigualdades. Mas ainda há esperança: pode-se aprender com experiências subnacionais e investir em políticas públicas abrangentes, capazes de promover igualdade de oportunidades para acesso à saúde e educação de qualidade. Apenas investindo no potencial das crianças é que o Brasil pode trilhar o caminho rumo a um desenvolvimento condizente com seu verdadeiro potencial.

O agro não é pop… o agro é lobby!, por André Roncáglia

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É o único setor em que benefícios tributários superam a contribuição ao PIB

André Roncáglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 25/08/2023

A teoria das vantagens comparativas é uma das mais bem-sucedidas abstrações na assim chamada ciência econômica. Elaborada pelo economista britânico David Ricardo, ela visava fortalecer a indústria manufatureira, cujo desenvolvimento era inibido por uma política de proteção à agricultura. Ricardo defendia a abolição das tarifas protecionistas à agricultura para que as importações derrubassem o preço dos grãos. A subsequente queda dos salários e da renda dos proprietários de terra abriria espaço para os lucros impulsionarem a indústria.

Curiosamente, o tom industrializante da aplicação da teoria ao império global da época se inverteu ao cruzar a linha do Equador. Na periferia, a teoria recomendava a especialização na exportação de matérias-primas. O Brasil conta, desde então, com um séquito leal de defensores das vantagens comparativas. Deslumbrados com o poder tecnológico dos países do norte, tornaram-se sócios minoritários abastados do nosso subdesenvolvimento.

Sob o manto protetor dessa “boa teoria econômica”, o agronegócio consolidou seu poder econômico, o que lhe permite financiar meios de comunicação para legitimar seu protagonismo e ocultar seus privilégios. Slogans como “o agro é tech, o agro é pop” lançam um verniz mítico sobre um setor que é, na verdade, fortemente subsidiado e protegido pelo Estado há décadas.

A agropecuária representa 7,9% do PIB e míseros 3% dos empregos formais da economia, mas paga menos de 1,5% da arrecadação total de tributos. É o único setor que abocanha uma fatia dos benefícios tributários (13,5%) maior do que sua contribuição ao PIB. Por comparação, a indústria representa 12,9% do PIB e 15% dos empregos formais, sendo responsável por 31% dos tributos arrecadados e 12,5% dos benefícios tributários.

Além disso, o agro não seria tech sem os pesados investimentos feitos pelo Estado em pesquisa agropecuária. A Embrapa custará R$ 3,7 bilhões aos cofres públicos em 2023. Cerca de 2.500 pesquisadores oferecem inovações que melhoram a produtividade do setor. Em contraste, a Embrapii (Associação Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial) recebe R$ 1,1 bilhão, enquanto a Ceitec, estatal do chip que tira o sono dos liberais, custa R$ 53 milhões ao Orçamento federal.

É uma raridade um empresário do agronegócio reclamar da Selic estratosférica. Sabe por quê? O agro conta com o Plano Safra, que oferece crédito com taxas de juros variando de 7% ao ano até 12,5% ao ano. A Selic pode ir pra Marte que o agro não dará um pio. Dificilmente o agro seria pop se pagasse as taxas de juros que a indústria paga, cujo piso médio está em 20% ao ano.

No período 2023-2024, serão R$ 435 bilhões em crédito subsidiado (apenas R$ 73 bilhões serão destinados à agricultura familiar). Em 2015, o crédito direcionado representava 90% do Plano Safra, caindo para cerca de 50% desde então. O motivo é a captação de crédito via Letras de Crédito do Agronegócio (LCA) e nos Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA), ambos com isenção do Imposto de Renda sobre os rendimentos financeiros.

Na reforma tributária em debate, o agro conseguiu um desconto de 60% na alíquota dos novos tributos (o IBS e a CBS), mas pressiona os congressistas a elevar o desconto para 80%. Essa “meia-entrada agrishow” deverá ser paga sobretudo pela indústria, mas também pelo comércio e pelos serviços.

Alega-se que o agro traz divisas para o Brasil, o que justificaria os subsídios bilionários destinados ao setor. Se tiver a mesma oportunidade, a indústria também pode fazer isso, com efeitos mais robustos em termos de geração de empregos e inovação tecnológica.

Reverter nossa baixa sofisticação produtiva e nossa pauta regressiva de exportações requer nivelar o campo de jogo entre todos os setores.

Tecnologia educacional: aliada ou vilã? por Débora Garofalo

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Mais que restringir, há de se priorizar vivências, inclusive na produção

Débora Garofalo, Mestra em educação, é professora na rede pública de São Paulo; em 2019, foi a primeira sul-americana a disputar o Global Teacher Prize, sendo considerada uma das dez melhores professoras do mundo

Folha de São Paulo, 25/08/2023

Em relatório divulgado recentemente, dados da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação; a Ciência e a Cultura) alertam sobre o risco do uso de telefone celular na sala de aula e trazem um panorama sobre evidências escassas de impacto positivo da tecnologia digital na área educacional.

O relatório aborda também a questão do abismo digital; o ritmo acelerado das mudanças tecnológicas e a adaptação da educação; e a oferta de conteúdo online sem regulamentação suficiente do controle de qualidade e/ou diversidade. Alguns dos apontamentos remetem a discussões já realizadas anteriormente em âmbito nacional. Recaem sobre aspectos importantes da compreensão do papel das tecnologias na educação, como objeto de conhecimento e ferramenta de ensino, e da ausência de regulamentações para uso de aparatos tecnológicos e a ineficiência de políticas públicas para a questão da conectividade.

E como evitar as distrações com o uso das tecnologias digitais em sala de aula? Através da intencionalidade pedagógica, permitindo que os estudantes vivenciem a tecnologia e não sejam apenas consumidores, mas produtores dela. Proibir e/ou restringir não são caminhos: o importante é criar regras e oportunizar vivências. Assim, há necessidade de potencializar o aprendizado da tecnologia como objeto de conhecimento e de ferramenta de ensino, principalmente aos estudantes com deficiência.

Nesse sentido, precisamos encontrar o equilíbrio do seu uso em sala de aula e potencializar sua ressignificação. Um exemplo disso é a cultura maker, que possui potencial desde que utilizada com intencionalidade pedagógica, já que é uma abordagem que incentiva os estudantes a resolverem problemas colaborativamente, criando artefatos usando as mãos, sendo porta de entrada para trabalhar a inovação na educação.

Essa abordagem possibilita novas e significativas experiências ao professor, através de estímulos aos estudantes no desenvolvimento de projetos de maneira prática, usando metodologias ativas ao desenvolver habilidades e competências relacionadas à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e seu complemento sobre computação, habilidades socioemocionais e colaborativas.

Um dos principais objetivos da educação maker é proporcionar que os estudantes consigam colocar em prática os conhecimentos adquiridos em sala de aula. Para isso, precisam ser expostos a variadas possibilidades e soluções para os problemas propostos. Essa abordagem representa estratégia para modificar o processo de aprendizagem, já que promove interdisciplinaridade e oferta oportunidade de realizar avaliações diagnósticas personalizadas, por envolver os estudantes em ações pertencentes e experiências de aprendizagem.

É um equívoco pensar que para colocar a mão na massa é necessário ter um ambiente com equipamentos de alta tecnologia. É possível fazer muita coisa com a sala de aula tradicional, proporcionando um ambiente colaborativo e com atividades desplugadas. O pedagógico deve ser realizado de maneira estratégica, com olhar para o ambiente de aprendizagem, flexibilizando o currículo ao permitir que o modelo educacional seja menos teórico e mais participativo.

Maneiras diferentes de enxergar a tecnologia educacional ajudam a romper barreiras e garantem igualdade, inclusão e equidade.

A criminalização dos políticos, por Segadas Vianna

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Por Segadas Vianna – O Terra é Redonda – 21/08/202As

Jornadas de 2013 abriram as portas para a direita envergonhada

Desde a redemocratização até 2013 a direita brasileira ficava pr.ticamente isolada em dois campos: um se abrigava sob o patrimonialismo e o outro ancorado em figuras aparentemente folclóricas e histriônicas isoladas dentro da vida legislativa. E isso muda de forma radical em 2013.

Manifestações surgidas originalmente no Rio de Janeiro contra o aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus logo se transformaram em manifestações contra o governo, evoluíram para manifestações contra “os políticos” e culminaram em incluir os partidos políticos nessa pauta.

Em pouco tempo a direita percebeu essa larga avenida que se abria para ela, onde várias características do fascismo estavam aparentes e incluiu nas manifestações a luta por um Projeto de Lei que viria a dar mais poderes aos Procuradores da República.

Com esse quadro muito vivo e pujante nascem duas outras questões que foram fundamentais nos alicerces da atual direita bolsonarista. O impedimento da presidenta Dilma Rousseff e o início da Lava Jato, dois marcos na criminalização dos políticos, em especial nos políticos da esquerda e mais especialmente nos políticos do PT.

Estava mais do que pronto o quadro para aquela direita que se ocultava ideologicamente com medo de ser tachada e estigmatizada pela esquerda e pelos libertários como ignorante e atrasada começasse a ter um orgulho doentio das posições que defendia e com o crescimento do fascismo tupiniquim, renascido verde amarelo nas manifestações contra Dilma Rousseff, como todo projeto fascista precisa da idolatria foi criada a figura do “Mito” onde o expoente da extrema direita se consolida como liderança nacional das diversas matizes da direita e investe pesadamente na fanatização das massas.

Explorando dois medos incutido no subconsciente da classe média brasileira, um vindo da formação cristã, que é “o medo do comunismo” (ainda que as massas mal saibam o que é comunismo) e o da segurança pessoal e familiar onde supostamente a esquerda apoiaria a atividade criminosa, tese criada pela direita no Rio de Janeiro nos anos 1980 para combater Leonel Brizola, a direita consegue fazer renascer o conceito de um “salvador da pátria e dos valores da família”.

Voltando às jornadas de 2013 outro fator que contribuiu de forma marcante para que o campo para a direita caminhar fosse pavimentado, de forma consciente ou não, foi a atuação de grupos de Black Blocs que teoricamente agiriam “para defender os manifestantes da brutalidade policial” e para ações anarquistas como a depredação de sedes de instituições financeiras. Estas ações que se transformaram em depredações generalizadas e ataques até mesmo a jornalistas, como o que foi vítima fatal de um explosivo, um “morteiro”, e consolidaram na população em geral medo das esquerdas.

Todo o restante, ocorrido no processo da chegada da direita, especialmente a extrema direita ao poder, nasceu, em nossa opinião, nas chamadas jornadas de julho de 2013 que foram na verdade uma espécie de Marchas com Deus pela Família e pela Liberdade turbinadas e travestidas em uma versão 2.0.

E hoje a sociedade consciente deve aprender também com isso para não haver repetições ou revivals. Cabe às esquerdas aprender que não basta ganhar eleições e chegar ao poder. Que é necessário educar e informar massivamente a população sobre política de forma correta, pois essa direita que está “ferida”, mas ainda bem viva não volte a criar cenários onde ela reapareça para “salvar o Brasil”.

Segadas Vianna é jornalista.

Reforma militar, por Manuel Domingos Neto

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Manuel Domingos Neto – A Terra é Redonda – 23/08/2023

Resumo das teses apresentadas no livro recém-lançado “O que fazer com o militar”

O militar fracassou em sua missão precípua. Em que pese o Brasil deter capacidade científica e industrial e dispor de um dos maiores orçamentos de Defesa do mundo, o militar não consegue negar os espaços territorial, marítimo, aéreo e cibernético ao desafiante medianamente preparado.

As mudanças no jeito de guerrear, a dinâmica social e o cuidado com a democracia impõem uma reforma militar. Cabe revisar o papel, a organização e a cultura das Forças Armadas porque o Brasil precisa inserir-se dignamente na ordem internacional e as novas gerações devem ser poupadas das exorbitâncias do quartel.

O brasileiro não se envolve na Defesa Nacional por ser impatriota, mas porque lhe é reiteradamente passada a ideia de que essa política pública cabe exclusivamente ao militar e também porque é escaldado pelo terrorismo de Estado praticado pelos comandos militares.

Muitos admitem que as corporações devem estar subordinadas ao poder político, mas isso é impossível devido à inexistência de um corpo civil especializado e de um acervo de estudos atualizado. O Brasil precisa de uma Universidade da Defesa Nacional dirigida por um civil.

A sociedade e o Estado devem destituir o militar da condição auto-outorgada de apóstolo do patriotismo e do civismo, que afronta a cidadania, anula o espírito republicano, prepara a tirania e deixa o Brasil indefeso.

O valor do soldado não encerra “toda a esperança que um povo alcança”, como diz a canção do Exército. A reforma militar é necessária para que o soldado respeite a sociedade.

O político não pode reconhecer as corporações armadas como interlocutoras. Soldado é treinado para obedecer e mandar, não para dialogar. Comandantes precisam ser consultados sobre a Defesa, mas a sua concepção e condução cabem ao político.

Há generais e tropas em demasia. A distribuição espacial de efetivos e equipamentos é perdulária e inócua para a Defesa.

É necessário rever o serviço militar obrigatório porque a composição da tropa reproduz a iniquidade da estrutura social: aos mais pobres são reservadas as posições hierárquicas inferiores. O serviço militar, como está organizado, reproduz o legado colonial.

Cabem estudos aprofundados e planejamento para a revisão do serviço militar, que implica redimensionamento do tamanho, da estrutura, do funcionamento das corporações e em revisão da carreira militar.

A reforma militar deve atenuar o isolamento do castro. A “família militar” é uma excrescência.

Perturba a coesão dos brasileiros. O militar não pode ficar à margem da sociedade. Os deslocamentos constantes pelas guarnições não lhe permitem inserção social. A endogenia precisa ser contida. Os colégios militares representam despesas desnecessárias para a Defesa.

Adolescentes devem ser socializados em estabelecimentos civis.

É possível imprimir novos rumos às fileiras sem rupturas institucionais: cabe compatibilizá-las com a Constituição. O militar tem que respeitar o pluralismo político que fundamenta a República. Ao diabolizar a esquerda, pisa na Carta e empobrece o intercâmbio de ideias. A reforma deve eliminar seu pavor às mudanças sociais e comportamentais.

As corporações são importantes para o desenvolvimento socioeconômico. Devem ser equipadas com produtos nacionais. A proposta de Política de Defesa Nacional que tramita no Congresso Nacional propõe parcerias com potências detentoras de tecnologia avançada. É a mesma orientação nociva que prevaleceu durante o século passado e que deixou o país desprotegido.

Não há explicações aceitáveis para a elevada dependência externa do Brasil em material bélico.

Os escritórios das Forças Armadas nos Estados Unidos e na Europa precisam ser desmontados. A subalternidade ao estrangeiro poderoso esvazia a retórica da incolumidade territorial.

Sem reforma militar, não haverá Segurança Pública aceitável. Cumpre distinguir o militar do policial. Manter a ordem e combater criminalidade são missões distintas da luta contra o estrangeiro hostil.

A ideia de combate ao “inimigo interno” precisa ser extinta: alimenta o transtorno de personalidade funcional do militar e do policial. Quando o policial age como militar e o militar como policial, a sociedade fica indefesa e o potencial agressor estrangeiro beneficiado.

A noção de “inimigo interno” pressupõe a guerra civil permanente. Entre inimigos não há generosidade, mas ódio cego. Admitir a existência desse “inimigo” é excluir propensões ao agasalho, à tolerância e ao convencimento, fundamentos da comunidade nacional.

O militar deve ser liberado de tarefas que não lhe cabem. Reposições da lei e da ordem devem ser entregues à Segurança Pública. A utilização das corporações para atender demandas crônicas sugere à sociedade noção enganosa do papel do militar e impede o preparo para a Defesa Nacional.

Quem comanda os instrumentos estatais de força, controla o Estado e a sociedade. O ativismo político do militar foi reforçado pelo uso combinado de instrumento letais e não letais, configurando a “guerra híbrida”, da qual a “guerra jurídica” e as “manobras informacionais” são expedientes.

O militar não pode conduzir a Defesa porque forças de terra, ar e mar não se entendem quanto aos seus papeis. O desentrosamento é oneroso: enseja sobreposição de estruturas, em particular no ensino, pesquisa, assistência médica e produção de armas e equipamentos.

Em mãos castrenses, a formulação da Defesa Nacional será limitada em decorrência da unidade política e ideológica dos oficiais. Essa unidade nega a democracia, que tem como fundamento o pluralismo político. É uma forma de corrupção institucional.

A unidade doutrinária é necessidade para a organização, o preparo e o emprego das Forças, mas a unidade ideológica deixa o militar em confronto com a sociedade, cuja coesão passa pelo embate de ideias.

Se o leque de convicções políticas e ideológicas presente na sociedade não se refletir nas corporações, prevalecerá seu uso instrumental por uma corrente política.

O conceito “poder nacional”, disseminado pelo Pentágono e absorvido pelo militar brasileiro, mantém viva a ideologia que orientou a ditadura. Nos Estados Unidos, esse conceito remete ao exercício do mando planetário. No Brasil, ampara o autoritarismo doméstico.

Cumpre ao político deliberar sem pressão castrense sobre gastos militares. Assessorias legislativas, em matéria de Defesa, devem ser entregues ao corpo civil especializado.

Cabe suprimir a cooptação de agentes públicos e privados pelo militar por meio de concessão de medalhas corporativas.

A propaganda das Forças Armadas nos veículos de comunicação é nociva. Quando o militar disputa a simpatia popular, se confunde com o político.

Reformas sociais são indispensáveis a uma Defesa que tenha como viga mestra a coesão nacional. Disparidades de renda e de oportunidades, bem como desigualdades de desenvolvimento entre as regiões desprotegem o Brasil.

A Constituição ordena a mudança social, mas as corporações rejeitam avanços que contrariem os propósitos de suas existências, condicionem sua forma de ser e agridem as convicções ideológicas de seus integrantes.

O combate à mitologia da “união das três raças”, que tenta encobrir o extermínio dos povos originários e esconde a desumanidade da escravidão, é indispensável à uma Defesa consistente.

Vendo-se herdeiro do colonizador, o militar repele Tiradentes porque participou de seu martírio.

Proclamando-se pacificador da sociedade escravocrata, declina do papel de defensor da nacionalidade. Quem ama o colonizador odeia a pátria e semeia a desavença porque dela se abastece. Quem ama o povo brasileiro quer a inclusão de todos.

Passo decisivo da reforma militar é a reverência aos heróis brasileiros. A exaltação da brutalidade do Estado contra a sociedade expõe as Forças Armadas ao desapreço. Não faz sentido o militar glorificar a repressão enquanto a sociedade reverencia suas vítimas.

Tiradentes deve ser o farol da reforma militar. Quando o enfileirado sentir-se um vingador do mártir, a base estruturante das mudanças corporativas estará constituída. O transtorno de personalidade funcional do militar estará sendo vencido.

O Brasil não logrará desenvolvimento econômico sustentável sem abraçar os vizinhos. Não conseguirá controle sanitário nem proteção ambiental. A proteção da Amazônia será uma quimera.

As ilicitudes nas fronteiras persistirão. A Defesa brasileira será dispendiosa e frágil. O subcontinente patinará na busca de futuro promissor.

A coesão dos brasileiros, sendo a viga mestra da Defesa Nacional, a amizade com os vizinhos representa sua primeira grande escora. O militar brasileiro evita a integração sul-americana para não desagradar Washington.

Não obstante Lula ser favorável à integração sul-americana, a Política Nacional de Defesa em análise no Congresso prioriza alianças estratégicas com potências imperialistas. Os Estados Unidos não largam mão do controle do material de guerra produzido no Ocidente. A busca de cooperação com “nações mais avançadas” revela os fundamentos arcaicos da Defesa Nacional.

O Brasil é um dos poucos países em condições de dissuadir potenciais agressores a partir da construção de um sólido bloco capaz de impor respeito no tabuleiro internacional. O Brasil precisa liderar a integração sul-americana.

O militar foge da discussão sobre a Defesa Nacional. Pede mais recursos públicos com argumentos inconsistentes. As dimensões territoriais do país, o tamanho de sua população e de seu PIB não são motivos para engrossar fileiras: a capacidade de uma corporação militar pode ser inversa ao seu tamanho. Diante de mísseis hipersônicos e drones furtivos, pouco valem homens preparados para a luta corpo-a-corpo.

As premissas do planejamento do Exército brasileiro, “agilidade”, “força” e “presença” são insustentáveis e contrárias a uma Defesa Nacional consistente. Precisam ser revisadas.

A “agilidade”, pressupõe o monitoramento de potenciais ofensores, o uso da aviação de combate e de mísseis de grande alcance e velocidade. O deslocamento rápido de tropas faria sentido diante de uma ocupação territorial difícil de imaginar, por supérflua e desarrazoada.

Caso a ocupação de parte do território brasileiro seja tentada, seria inviabilizada pela interrupção de transporte aéreo e marítimo do invasor. O combatente da “selva” formado pelo

Exército passa ao contribuinte a impressão de capacidade para defender a Amazônia, mas serve essencialmente para combater brasileiros insatisfeitos e alimentar propaganda enganosa.

A premissa “força” é negada pelo emprego dos recursos destinados a Defesa. Se as Forças Armadas pretendessem demonstrar “força”, reduziriam seus gastos com pessoal em benefício da produção autônoma de armas e equipamentos avançados.

Quanto à terceira premissa, “presença”, muitos quartéis e extensas fileiras não dissuadem agressor estrangeiro. O militar precisa chegar em qualquer lugar e a qualquer hora, mas para isso precisa priorizar a Força Aérea.

Por deter grande território e extenso mar, o Estado brasileiro deveria ter menos soldados e grande capacidade aeronaval. A supremacia da Força Terrestre serve para o combate ao “inimigo interno”, não para dissuadir estrangeiro hostil.

Espero que meu livro O que fazer com o militar (Gabinete de Leitura) estimule um debate que não pode ser postergado.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice-presidente do CNPq.

O consumismo põe em risco a vida na Terra, por Leonardo Boff

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Leonardo Boff – A Terra é Redonda – 22/08/2023

Não interessam os cidadãos nem seu nível de consciência, menos ainda seus problemas existenciais. Interessa que sejam consumidores

Considerando a história humana constatamos que a fome foi, por séculos, um problema permanente. Por não termos, à diferença dos animais, nenhum órgão especializado que garantisse nossa subsistência, logo no início surgiu a urgência de buscar o necessário para matar a fome, seja extraindo o alimento diretamente da natureza, seja conquistando-o pelo trabalho.

A grande virada se deu por volta de 10 mil anos atrás com a introdução da agricultura de irrigação. Ao longo dos grandes rios do Oriente Médio, do Egito, da Índia e da China começou-se a usar a irrigação para produzir mais produtos a par de domesticar animais como a galinha, o porco, a ovelha e a cabra. Produziu-se o excedente que eliminava a fome. Simultaneamente, é preciso dizer, surgiu a guerra, pois os exércitos levavam comida suficiente para enfrentar o inimigo, como por exemplo, entre os impérios mesopotâmicos e o Egito, as potências políticas da época.

Tudo mudou com o advento da era industrial nos séculos XVII e XVIII em diante até os dias de hoje. Começou a produção em massa com a possibilidade de atender as demandas humanas. Ocorre que esse desenvolvimento técnico-científico se operou no quadro do capitalismo. Nele, desde seu início, se estabeleceu a divisão entre o proprietário, possuidor de terras e dos meios de produção e o trabalhador apenas detentor de sua força de trabalho. Essa cisão foi ao longo do tempo se exacerbando a ponto de nos dias atuais os donos das riquezas naturais e tecnológicas controlarem o sistema econômico globalizado com imensa desvantagem para os assalariados, deixando milhões e milhões sem acesso aos bens fundamentais da vida.

A situação se agravou com a assim chamada “Grande Transformação” pela qual uma economia de mercado se transformou numa sociedade só de mercado. Tudo virou mercadoria desde órgãos humanos, saberes, a verdade, a notícia etc.

A lógica capitalista é de obter lucro com tudo, mediante a exploração ilimitada dos bens e serviços da natureza, através de uma feroz competição entre todos os que estão do mercado, supostamente livre e uma acumulação individual ou corporativa que compete com o Estado na gestão da coisa pública.

A produção procura obviamente atender demandas humanas de alimentação e subsistência, desde que tal processo seja lucrativo. A própria produção é levada ao mercado e ganha seu preço no jogo da concorrência, sem o cuidado para com os recursos naturais e a contaminação do meio ambiente (considerada uma “externalidade” a ser resolvida pelo Estado). Como se trata de gerar riqueza ilimitada começou-se produzir produtos não necessários para a vida, mas importantes para fazer dinheiro.

Assim junto com o consumo necessário, surgiu o consumismo. O consumismo se caracteriza pela aquisição de bens e serviços supérfluos, não necessários para a vida, em vista do ganho econômico. Grande parte da produção se destina na produção de tais supérfluos gestando o consumismo principalmente das classes ricas, mas também da própria sociedade.

Para estimulá-lo usa-se a propaganda, as imagens falantes, os quadros sedutores, as músicas, os youtubes, os filmes bem orientados, para levar às pessoas a consumirem tal e tal produto. Não interessam os cidadãos nem seu nível de consciência, menos ainda seus problemas existenciais.

Interessa que sejam consumidores.

O fato é que se criou a cultura do capital. Grande parte dos produtos (TVs, carros, eletrodomésticos, roupas, tênis e infinitos outros itens) caem sob a obsolescência – são feitos para durar por determinado tempo, obrigando o consumidor a substituí-los, comprar e consumir.

Praticamente todos somos reféns da cultura do capital, obrigando-nos a trocar de tempos em tempos os produtos, ou porque ficaram obsoletos como um computador ou pela obsolescência geral. Sabemos da força intrínseca de uma cultura que nos entra por todos os poros e naturaliza o estilo de vida. Como é difícil e longo o processo de sua superação por outra. É a cultura consumista que continuamente renova e prolonga a perpetuidade do capitalismo.

Entretanto, nos últimos anos nos temos confrontado com os limites da Terra. Um planeta limitado não tolera um consumismo ilimitado. Já agora necessitamos de mais de uma Terra para atender o consumo de 8 bilhões de pessoas e o consumismo de fausto e de luxo das classes opulentas.

Demo-nos conta do assim chamado “Dia da Sobrecarga da Terra” (em inglês The Earth Overshoot Day). Cada ano os organismos que estudam a sustentabilidade do planeta, nos oferecem os dados. Neste ano de 2023 foi identificado no dia 2 de agosto. Isto significa que neste dia, os bens e serviços naturais, essenciais e renováveis para a nossa existência, conheceram o fundo do poço. Logicamente, as árvores, o ar, os solos e as águas estão aí. Mas todos eles cada vez mais minguados, poluídos e insustentáveis.

A Terra, um super ente sistêmico e vivo, ao não nos dar o que lhe exigimos, responde com mais aquecimento, com mais eventos extremos, com mais dizimação da biodiversidade e mais vírus danosos e até letais. A relação toda se define na articulação entre “biocapacidade” e a “pegada ecológica”. A biocapacidade significa a capacidade da natureza de ter resiliência e de se auto-regenerar. A pegada ecológica nos indica o quanto de biocapacidade aquenta aquela região ou país. Quanto mais complexa é a região, com cidades, população e indústrias tanto mais recursos naturais demanda.

Nesse momento, tão grave quanto o aumento do aquecimento global, é a rápida a sobrecarga da Terra. Nosso estilo de vida está esgotando o estoque de bens e serviços necessários para a vida. Urge mudar nosso estilo de consumo tornando-o sóbrio, solidário e autolimitado. Xi Jinping propôs para toda a China o ideal de uma “sociedade suficientemente abastecida”. Devemos aprender a viver com o suficiente e o decente, diminuir o consumo de energia e buscar meios de transporte alternativos e menos poluentes.

Se não fizermos este acordo entre todos, nossa existência nesse planeta será miserável e até impossível.

*Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Habitar a Terra (Vozes)

Concorrência e cooperação

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Vivemos numa sociedade marcada por grandes competições entre todos os agentes econômicos, políticos e sociais, onde a concorrência se transformou na tônica da sociedade contemporânea, neste ambiente, marcado pelo incremento do individualismo, do imediatismo e na busca frenética pelos ganhos monetários, percebemos que a sociedade vem perdendo valores fundamentais para a construção de uma sociabilidade mais consistente, abandonando a solidariedade, a compaixão, a honestidade, a lealdade e a harmonia. A ausência destes valores civilizacionais está no centro das dificuldades da sociedade contemporânea, que estimula a malandragem, o ódio, o ressentimento, a exclusão e a violência que crassa a sociedade.

A estrutura produtiva estimula a competição como espaço de desenvolvimento e como forma de crescimento econômico, acreditando que a concorrência entre todos os atores econômicos faz com que a comunidade se desenvolva, as estruturas econômicas cresçam, melhorando as condições sociais e criando oportunidades para os indivíduos, garantindo novos horizontes para os seres humanos.

A competição entre os atores econômicos pode ser muito positiva para a sociedade, garantindo que todos os indivíduos mostrem todas as suas potencialidades, garantindo espaços para os crescimentos individual e coletivo. O grande problema desta concorrência constante ou deste incremento da competição nesta sociedade é que, numa comunidade altamente desigual e com a ausência de oportunidades para uma parte substancial da sociedade, esta competição crescente acaba degradando as estruturas sociais, econômicas e políticas, gerando cada vez mais exclusões, fomentando desigualdades que caracterizam a sociedade contemporânea, elevando as violências, os medos e as desesperanças.

A concorrência e a competição que caracterizam a sociedade mundial, deveriam estimular a cooperação dos agentes econômicos e sociais, levando-os a trabalharem para reduzir os desequilíbrios na sociedade global, somando esforços para combater o aquecimento global, levando as nações e as comunidades, de todas as vertentes culturais , a colaborarem para acabar com os conflitos militares que geram constrangimentos para todas as regiões, levando a milhões de mortos, destruições na infraestrutura das nações, afastando familiares e criando rancores e ressentimentos.

A globalização da economia criou novos instrumentos de integração entre as nações, o desenvolvimento da tecnologia fortaleceu os processos de interligação entre as comunidades, criando espaços de solidariedade, fortalecendo a harmonia entre as nações mas, percebemos que o crescimento desta competição desenfreada está degradando muitas nações, criando uma concorrência constante, estimulando o individualismo e as incertezas sociais, adoramos o mercado de consumo globalizado marcado por altas tecnologias disruptivas mas, ao mesmo tempo, rechaçamos as mudanças no mundo do trabalho, que fortalecem empregos temporários, com ausência de benefícios sociais e ocupações precarizadas.

A cooperação pode abrir novos horizontes para a comunidade internacional, levando as nações mais desenvolvidas a adotarem políticas de inclusão e de desenvolvimento, respeitando a sustentabilidade e o respeito ao meio ambiente, além de rejeitar os conflitos militares cujas destruições degradam as relações entre as nações, levando os países a respeitar a soberania entre os povos e apagando das memórias recentes de exploração constantes, que contribuíram na construção de um hiato crescente entre países desenvolvidos e nações paupérrimas, onde a concorrência e a competição desigual foi o instrumento para angariar seus enriquecimentos em detrimento da degradação, das desigualdades e das desesperanças entre os países que convivem perpetuamente com condições indignas.

Cooperar deve ser o verbo utilizado para a melhoria da sociedade internacional contemporânea, desta forma, poderemos construir novas bases para a sociedade mundial, onde os valores imediatistas e individualistas devem ser reescritos para os desafios do mundo contemporâneo. Os desafios são elevados e os valores prescindem, urgentemente, de cooperação, respeito e solidariedade.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Criptomoedas (Unyleya), Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Privatização não é solução para governos ruins, diz pesquisador

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Autor do recém-lançado ‘A Privatização Certa’ elenca vantagens e desvantagens, acertos e erros de venda de estatais

SÃO PAULO Ao contrário do que muita gente costuma pensar, as privatizações não são uma solução para governos ruins, afirma Sérgio Lazzarini.

Folha de São Paulo, 19/08/2023

“Se você tem um Estado corrupto e ineficiente, quando ele privatizar, vai ter corrupção na privatização, vai ter um processo não transparente, a modelagem vai ser malfeita. Não resolve”, diz ele.

Autor do recém-lançado “A Privatização Certa”, Lazzarini pesquisou teoria e prática sobre o assunto e percebeu que o debate no Brasil é contaminado por visões dogmáticas e ideológicas dos dois lados da discussão.
Em seu livro, o quadro pintado é cheio de nuances, com vantagens e desvantagens, acertos e erros, mas um denominador comum: para a privatização funcionar, é preciso haver um bom governo.

“É até engraçado, porque um livro sobre privatização fala que, nesse debate, o mais importante é um governo competente”, afirma à Folha.

Seu livro apresenta um cenário matizado a respeito de privatizações e estatais. Por que o debate público costuma ser reduzido a uma oposição simplista entre as duas posições?

Acaba tendo muita ideologia. Pessoas com uma ideologia mais libertária partem da ideia de que todo governo é ruim, então não tem muita conversa. E quem parte de uma ideia mais na linha de ativismo estatal vai na outra direção: diz que tem que preservar estatais sem nenhum questionamento; qualquer proposta de reformar estatais é carimbada como neoliberal –e fim da conversa.

O sr. afirma no livro que a pergunta certa não é se privatizar é melhor do que manter a gestão pública, mas sim quando e em que condições fazer isso. Qual é a resposta?

É até engraçado, porque um livro sobre privatização fala que, nesse debate, o mais importante é um governo competente… (risos) Mas a resposta é essa: precisa ter um governo competente.

Se pegarmos a educação, por exemplo, vai ter gente defendendo que seja tudo privatizado, que seja dado voucher para os alunos; e vai ter gente falando em aumentar o salário dos professores, enfatizar a rede pública. Só que nenhum dos dois lados considera os custos e benefícios de cada opção, nem os problemas e nem mesmo as evidências empíricas.

Então o caminho é mesmo ter um bom governo, que vai analisar a situação, vai se perguntar qual é o problema que se quer resolver, vai olhar as evidências empíricas.

E se o governo não for competente?

A má notícia é que, se o governo for ruim, privatizar ou manter a presença do Estado… As duas opções são péssimas com governo ruim. A saída é desenvolver as competências governamentais ao longo do tempo. A notícia boa é que não precisa mudar o país inteiro para isso acontecer. Podemos ter unidades governamentais muito boas em determinadas localidades.

Nos últimos anos, houve no Brasil um discurso muito comum de que a privatização é a solução para um Estado inchado, corrupto e ineficiente. Essa ideia está correta?

Se você tem um Estado corrupto e ineficiente, quando ele privatizar, vai ter corrupção na privatização, vai ter um processo não transparente, a modelagem vai ser malfeita. Não resolve. Se o governo não está fazendo um serviço bom, não é só privatizar. Se tem estatal que não está operando bem, podemos tentar fazer ela melhorar, e aí podemos comparar as alternativas.

Agora, vendo o grau de interferência nas estatais, muitas vezes eu fico deprimido com essa linha. Mas a gente tem evidências de que é possível reformar, obter avanços.

Que reformas ou leis o Brasil já aprovou que são importantes no sentido de tornar o governo mais competente e quais ainda precisam ser feitas?

Tivemos avanços institucionais interessantes, e alguns deles o pessoal está tentando destruir. A própria Lei das Estatais. Apesar de não prever privatização, ela traz melhora de governança das estatais. E, muito paradoxalmente, à medida que a estatal melhora, ela começa a fazer um contrato privado aqui e ali, sai de determinadas áreas, focaliza.

Do lado negativo, até tivemos uma lei das agências reguladoras aprovada recentemente, mas ainda estamos esperando que elas sejam reforçadas. O governo atual não dá sinais [de que vai fazer isso], porque, de novo, ideologia: as agências são vistas como instrumento neoliberal.

E não são. Na verdade, as agências reguladoras são instrumentos de governo. Elas precisam ser fortes para monitorar a qualidade de serviço.

Tem também a reforma do Estado de forma mais ampla. Muita gente coloca na linha de permitir demissão de servidores, enxugar a máquina. Eu gosto de colocar mais na linha de cobrar resultados. Está previsto que a permanência de um funcionário público é condicionada à avaliação de desempenho. Só que não regulamentamos isso.

E acho que podemos pensar num instrumento legal para a criação de unidades públicas capazes. Na linha das agências reguladoras, mas para estimular a criação de parcerias público-privadas, ou de colaboração dentro do Estado. A gente tem evidência empírica de que essas unidades ajudam na modelagem dos projetos.

É possível fazer uma comparação direta entre empresas privadas e estatais?

Isso é superdifícil. É um erro crasso, por exemplo, ver que as estatais estão perdendo dinheiro e as privadas estão ganhando dinheiro e concluir que as privadas são melhores. É um erro crasso porque elas podem ter objetivos distintos e atender públicos distintos. Dá para tentar comparar, mas precisa tomar muito cuidado.

O Brasil vive há décadas um pêndulo entre governos pró-privatização e pró-estatais. Esse vaivém atrapalha políticas de médio e longo prazo?

Acho que, para o país, é complicado. A população sofre com essas mudanças. Vem um governo atrás do outro e nenhum deixa o aprendizado fluir. Quando a gente está aprendendo alguma coisa, vem o novo governo e diz: “Não gosto porque não gosto”. E acaba.

A solução mais adequada seria ir testando. Vai ter muita heterogeneidade mesmo. Um setor tem lá uma estatal funcionando relativamente bem –vamos em frente com ela. Outro setor está muito mal e não se consegue reformar a estatal –vamos tentar uns contratos de concessão. E em outro setor podemos ter uma combinação de tudo acontecendo ao mesmo tempo.

Chamo isso de consenso plural, uma brincadeira com o Consenso de Washington. As pessoas têm que entrar nesse debate sem visões dogmáticas e pensar em resolver o problema.

Entre os modelos híbridos, as parcerias público-privadas [PPPs] e a política de campeões nacionais tiveram e têm bastante destaque no Brasil. Qual é a sua avaliação sobre ambos?

A política de PPPs está tudo bem. Ela teve um arcabouço legal bem desenhado. Inclusive o Fernando Haddad foi um dos idealizadores. Uma coisa que me preocupa, em particular, é como se está medindo o resultado desses contratos. E há inclusive a possibilidade de esses resultados, sendo medidos, modularem ou variarem o pagamento ao ator privado. Então dá para avançar.

Quanto aos campeões nacionais, teoria é que o governo pode dar um impulso em empresa privada para ela melhorar. A gente tem evidência [de que isso funciona]. Mas não o tipo de empresa que a gente apoiou [no Brasil], empresa grande.

Existem evidências mais consistentes sobre apoio para empresas menores, de tecnologia, empreendedoras, ou empresas que estão buscando projetos sociais e ambientais de maior impacto.

Muita gente fala que a Coreia do Sul apoiou empresa grande. Só que as condições lá são muito distintas. Primeiro, já tinha um sistema educacional bem desenvolvido, com muito capital humano presente. E a ação do governo com essas grandes corporações foi muito estrita, com acompanhamento. Se alguma delas não alcançasse determinados resultados, o apoio seria abortado. Isso não acontece no Brasil.

E quanto ao uso de estatais para fazer políticas além do escopo de atuação, como no caso do controle de preços via Petrobrás?

A gente precisa definir qual é o mandato da estatal, qual é o seu objetivo. Lendo a legislação da Petrobras, eu não consigo ver um mandato para controlar o preço da gasolina. Então, se o governo quer fazer isso, precisa mudar o arcabouço legal. Precisa passar pelo Congresso, precisa ter discussão pública.

Eu tenho sugerido, inclusive, que toda estatal precisa ter uma definição muito clara do seu mandato. E isso pode e deve ser feito de maneira muito democrática.

Sérgio G. Lazzarini, 52
Mestre (USP) e doutor (Universidade Washington) em administração, é professor da Ivey Business School, da Western University (Canadá) e pesquisador sênior do Insper. É autor de “A Privatização Certa”.

Com Novo PAC, voltamos ao Estado indutor do desenvolvimento, por R. Zeidan

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Não existe programa que abarque tudo; quem tudo quer fazer faz malfeito

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 19/08/2023

O primeiro PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) começou bem, mas acabou se assemelhando mais a um Programa de Aceleração da Corrupção. Dá a impressão de que vamos ter a volta de um plano que parece saído de uma cartilha intervencionista da década de 1970.

Voltamos ao Estado indutor do desenvolvimento com o Novo PAC. A ideia de loucura não é tentar a mesma coisa repetidas vezes, sabendo que não funciona?

Ainda assim, pode ser que dê certo. O que importa mesmo, e o que sempre faltou nesse tipo de programa, é algo simples: boa execução.

No Brasil, o debate sobre o Estado empreendedor é às vezes rasteiro, com gente que diz que o governo brasileiro só sabe transferir dinheiro dos pobres para os ricos e outros que afirmam que, sem o Estado, o Brasil seria só plantação de bananas. A realidade, claro, não é binária. O problema não é se o Estado é empreendedor ou não, nem muito seu tamanho, mas sim sua competência em executar seus planos de forma eficiente.

O mesmo Estado que induz uma corrida espacial que levou cachorros ao espaço e seres humanos à Lua pode criar ralos de dinheiro como refinarias inacabadas ou usinas no meio do mato para esconder gastos quase infinitos.

Que o Novo PAC em si só não é das melhores ideias, não é difícil de ver. O presidente, como bom político, parece mais preocupado com o anúncio de um pacote trilionário do que com os detalhes dos projetos em si.

Mas há esperança. Para cada excrescência do PAC Energia, existem centenas de projetos residenciais do Minha Casa, Minha Vida (que, mesmo que imperfeito, valeu a pena), que mudaram as vidas das pessoas.

Sabe aquele sujeito que diz que tem uma ideia genial mas não lhe pode contar pois você roubaria sua ideia? Ignore-o. A ideia dele não vale nada. De boas ideias o inferno está cheio.

O que importa mesmo é implementação. Basicamente, qualquer produto realmente inovador não é fruto de uma ideia genial, mas de uma capacidade única de transformar algo, muitas vezes rotineiro, em produto ou serviço fenomenal. E ideias medíocres podem ser melhores que ideias boas, se as primeiras forem bem executadas e as segundas não. Criar um Novo PAC é um plano medíocre, mas, depois de um governo com ideias estapafúrdias, vá lá.

Não dá para julgar de antemão se essas iniciativas vão prestar. O que já sabemos é que a ideia do Estado indutor do desenvolvimento no país nunca funcionou no conjunto, seja na época dos militares, seja na de Lula e de Dilma.

Alguns bons programas emergiram no meio de tantos projetos horrorosos. Se o governo Lula tomar cuidado com dinheiro público, aprovando gastos, mesmo que trilionários, baseados em projetos robustos, talvez consiga induzir
desenvolvimento. Capital humano não falta. Há muita gente no setor público com habilidades gerenciais para tocar esses projetos. Não falta gente séria que queira contribuir para um país melhor.

Claro que, se o objetivo for só eleitoreiro, de colocar dinheiro na economia rapidamente, vai dar errado. De novo. É muito melhor um PAC (uma sigla que deveria ser abandonada, por sinal) mais enxuto, com boa seleção de programas, que algo grandioso, só para colocar números grandes nas mídias sociais.

E não existe programa que abarque tudo. O Novo PAC tem nove eixos, que englobam quase tudo, de saúde e educação até inclusão digital e defesa. Quem tudo quer fazer faz malfeito. Mais uma vez?

Carta Mensal – Julho 2023

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Julho deve ser visto como um mês de comemorações no front econômico, com melhoras no ambiente da economia nacional, redução da inflação, alivio do câmbio, melhora no emprego, retomada de políticas públicas, mas com grandes desafios no front político, com dificuldades de fortalecer a base política de sustentação do governo federal.

O mês de julho de 2023 foi marcado por grandes expectativas sobre a taxa de juros definida pela Banco Central, neste cenário, os agentes econômicos se debruçavam constantemente para conversar sobre os rumos que a Autoridade Monetário definiria, se manteria as taxas de 13,75% ou faria algum tipo de movimento para baixo ou para cima, para cima me parece algo absurdo…

Juros altos pode ser visto como um instrumento adotado pelo Banco Central para debelar as pressões de preços, o objetivo de uma política monetária restritiva é diminuir o ímpeto da inflação. Mas essa taxa de juros neste patamar impacta fortemente sobre as decisões econômicas e produtivas, levando os empresários, investidores e consumidores a repensar sobre as decisões estratégicas de seus negócios.

Neste momento, encontramos variadas críticas do governo federal para que a Autoridade Monetária reduza as taxas de juros, mostrando que o governo adotou políticas concretas para que os riscos fiscais fossem debelados, tais como o arcabouço fiscal e a Reforma Tributária, que devem ser vistas como uma vitória do governo mas, é importante destacar, que esses projetos ainda carecem de um aprovação completa posterior, já que os projetos foram aprovados na Câmara dos Deputados mas precisam passar pelo Senado Federal e, se for necessário, passar novamente para a Câmara dos Deputados.

Devemos destacar o começo do desenrola, política adotado pelo governo federal para melhorar os altos índices de endividamento da população, essa política foi adotada com consonância dos setores produtivos, bancos e varejistas, para que a população em condição de endividamento pudesse aliviar suas finanças e voltar as compras, contribuindo para movimentar o sistema econômico. Um balanço inicial feito pelos analistas econômicos e políticos foram muito positivos para a economia nacional, com milhões negócios efetivados, limpando os respectivos nomes e trazendo novos consumidores para o mercado de consumo.

Neste mês encontramos uma das grandes fragilidades do governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, percebemos efetivamente a pouca força política no Congresso, notadamente na Câmara dos Deputados, que abarca apenas 130/140 votos num universo de mais de 513 deputados, desta forma, a maior fragilidade é conseguir apoio para passar seus projetos, levando o governo a negociar voto a voto para angariar a aprovação de medidas defendidas pela coalizão governista.

Neste cenário, o governo com uma presidência da Câmara dos Deputados com grande força política, uma oposição marcada por grande ressentimento, com forte capacidade de gerar constrangimentos para fragilizar a gestão governista, com grande capacidade de criar constrangimentos para impedir a adoção de políticas públicas e aprovar gastos públicos, vistos como desperdícios e prejuízos para a economia nacional, tudo isso, limita a capacidade e agilidade do governo federal.

Neste momento, percebemos o avanço de várias investigações referentes ao governo anterior, políticas públicas degradadas anteriormente, desvios de recursos na Caixa Econômica Federal (CEF) referentes ao consignado visto como uma política que trouxe grandes prejuízos para os cofres públicos. Destacamos ainda, os avanços nas investigações da Polícia Federal (PF) referentes as joias recebidas pelo presidente Jair Messias Bolsonaro, onde foram descobertos inúmeros produtos oriundos da Arábia Saudita para presentear o mandatário anterior, com grandes indícios de corrupção e outras ilegalidades. O mês de julho foi farto em denúncias e descobertas de malfeitos no governo anterior.

Outro ponto bastante discutido no mês de julho foi as descobertas referentes aos vínculos das Forças Armadas em questões constrangedoras, que colocam o Exército em condição indigna, com um posicionamento equivocado e com desvios crescentes de desvios de condutas, que fragilizam a instituição, com isso, percebemos que em momentos anteriores, de regimes militares, deveriam ter sido feito uma verdadeira justiça de transição para punir equívocos, corrupções e crimes cometidos pelas Forças Armadas, a ausência de uma investigação mais elaborada, feita por instituições civis, para que todos os responsáveis por crimes fossem punidos como forma de evitar os erros e equívocos contemporâneos.

Um assunto que pipocou na sociedade brasileira, foi a indicação do economista Márcio Pochmann para a presidência do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), uma indicação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Essa indicação foi muito criticada pela mídia corporativa, que levantou questionamento do economista da Unicamp, visto como um negacionista e quando presidente do IPEA (Instituto de Pesquisa Economia Aplicada) foi acusado de constranger pesquisadores renomados na instituição com visões diferentes do presidente do órgão. Essas críticas foram rebatidas pelos representantes do governo federal e antigos presidentes do IBGE que destacamos a solidez da instituição e a impossibilidade de alterar dados e informações, destacando que o IBGE é uma instituição séria, respeitada, transparente e dotado de credibilidade e confiabilidade.

O mês de julho trouxe grandes discussões referentes aos desafios sobre a sociedade internacional, onde o Brasil se colocou em grandes conversações internacionais, dialogando com várias nações, entrando em confrontos verbais, falas equivocadas sobre a assuntos globais, reclamações mundiais referentes a comportamento de nações desenvolvidas, reprimendas internas da mídia corporativa, além de discussões desnecessárias.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

José Murilo de Carvalho e o peso das ilusões, por Maria H. Tavares.

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Uma de suas análises sobre o golpe de 64 ajuda a entender o 8 de Janeiro

Maria Hermínia Tavares, Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

Folha de São Paulo – 17/08/2023

No meio de tudo o que publicou de bom e robusto, José Murilo de Carvalho, que se foi no fim de semana, deixou muitos artigos curtos, despretensiosos. Entre eles, uma joia de 11 páginas, “Fortuna e Virtù no Golpe de 1964”, incluído no livro “Forças Armadas e Política no Brasil” (2005).

Ali, o cientista político e historiador fala das duas surpresas dos que viveram a deposição de João Goulart e a chegada dos militares ao poder. A primeira foi a facilidade com que os conspiradores da direita levaram a melhor. A segunda, a permanência dos fardados no comando
político, quando o retrospecto, desde o fim do Estado Novo, em 1945, fazia crer que a quartelada seria “cirúrgica”: removido o presidente, o poder logo seria devolvido aos civis.

Para explicar o inesperado, José Mucio refuta as teses que o davam como inevitável, vistas as características do nosso desenvolvimento econômico, a formação das classes dominantes, sem falar nos interesses do “imperialismo ianque”. Segundo ele, tais teorias eximem de responsabilidade os atores políticos —o golpe de 64 não fora produto de forças sociais imbatíveis, mas dos enganos de protagonistas influentes de carne e osso.

A interpretação, a rigor, não é original. Com argumentos sofisticados e rica documentação, havia sido exposta no clássico de Argelina Cheibub Figueiredo, “Democracia ou Reformas?” (1993). A contribuição de Murilo consiste em ter dado o devido peso às ilusões que induzem as forças políticas a escolhas desastrosas: as apostas de Jango no poderio dos sindicatos e da massa organizada e na lealdade do chamado “dispositivo militar”; a crença dos nacionalistas radicais de que uma estratégia de polarização os beneficiaria. Se a responsabilidade do golpe foi dos que o deram, reitera Murilo, as ideias fora de lugar dos que o sofreram foram cruciais para o desenlace.

O argumento de Murilo ajuda a ver melhor o fracassado golpe de Bolsonaro no 8 de Janeiro.

A oposição democrática e a resistência das instituições republicanas foram fundamentais para brecar a intentona. Porém, quanto mais passam os meses, mais claro fica que o ex-capitão, capturado por vastas emoções e pensamentos para lá de imperfeitos, acreditava que seguiria no poder, dissessem o que dissessem as urnas.

Foi-lhe fatal a miragem de que a simpatia da caserna —cultivada com benefícios e adulação sistemática e ainda estimulada pelo berreiro dos acampamentos— empurraria para o seu lado, incondicionalmente, o alto comando militar.

O despudor de seus comandados na desastrada operação para vender as joias da Presidência não se explica de outra forma.

Desaceleração chinesa

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Vivemos momentos interessantes e altamente complexos. As movimentações econômicas e políticas podem gerar crescimento econômico, melhorando as condições de vida da população, aumentando a renda agregada e, ao mesmo tempo, podendo fragilizar os indicadores econômicos e postergar a recuperação produtiva, gerando desafios e oportunidades novas.

Depois da pandemia, que vitimou mais de 6 milhões de cidadãos globais, com grande desaceleração econômica e fragilização produtiva, com conflitos constantes e instabilidades políticas, a economia retomou seu crescimento econômico, com melhoras significativas, mas percebemos que a recuperação está perdendo força, regiões inteiras estão com dificuldades de aumentar seus investimentos, com altas dívidas internas, endividamento crescentes de empresas, aumento de custos energéticos e, ao mesmo tempo, muitas nações estão aumentando seus gastos militares em detrimento de recursos públicos em setores sociais, com isso, a sociedade percebe o aumento das reclamações, as inseguranças, o a incremento da violência urbana, xenofobias, ódios e ressentimentos.

Depois de forte crescimento econômico desde o final dos anos 1990, a economia chinesa vem perdendo dinamismo, a geração de emprego diminuiu, as massas salariais perderam a pujança, as exportações que sempre foram vistas como um diferencial chinês vem perdendo espaço, gerando instabilidades no mercado interno, preocupações nos anos futuros e incertezas políticas, afinal, estamos numa sociedade onde o Estado Nacional tem um papel central como agente planejador e responsável pelas estratégias desenvolvidas na nação. Neste cenário, as incertezas internas da economia chinesa geram graves constrangimentos para a economia internacional, afinal, estamos falando do maior exportador mundial e a segunda maior economia do mundo, sua desaceleração tem impacto sobre todas as regiões globais, com menores investimentos, com redução de empregos e fragilizando a renda mundial.

A desaceleração da economia chinesa está ligada aos desequilíbrios gerados pela pandemia, que gerou graves desajustes na estrutura produtiva internacional, levando as economias a aumentarem suas taxas de juros para combater a inflação, que vitimou variadas nações e obrigaram os governos a adotarem políticas monetárias restritivas. Acrescentamos ainda, os custos gerados pela guerra entre Rússia e Ucrânia, que impactaram fortemente sobre os preços dos alimentos, das energias e dos combustíveis, levando a Europa a mergulharem a crises constantes em seu setor industrial, baixo crescimento, instabilidades econômicas e gerando insatisfações políticas.

Nos Estados Unidos, percebemos no período pós pandemia fortes incentivos fiscais e financeiros para estimular a retomada econômica, com forte incremento dos preços relativos e aumento inflacionário, gerando juros mais elevados e instabilidades dos setores produtivos, desta forma percebemos uma economia muito instável e com baixa capacidade de movimentar o sistema econômico e produtivo. Neste cenário, percebemos que a desaceleração econômica se espalha para as economias ocidentais, diminuindo a demanda interna, aumentando as instabilidades da renda agregada e impactos generalizados sobre a economia chinesa, reduzindo suas exportações e perdendo a capacidade de movimentar a economia internacional, papel desempenhado pela nação oriental desde o final do século anterior.

Vivemos numa economia altamente interligada e interdependente, encontramos eixos constantes de integração, as dificuldades internas diminuem as demandas externas, dificultando as exportações, reduzindo o dinamismo econômico e limitando o crescimento da nação, reduzindo a capacidade da estrutura econômica, postergando investimentos, inviabilizando novos empregos e retardando a recuperação produtiva.

Neste momento de incertezas crescentes, a economia mundial se olha para o dinamismo chinês, buscando soluções globais e crescimento econômico, pressionando seus governos a estimularem novos investimentos, como forma de evitar o marasmo econômico e evitando que o ambiente externo, tão preocupante, possa reverter essa situação de estagnação que aprofunda as desigualdades que crescem na contemporaneidade e geram medos e instabilidades cotidianas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

O tempo da economia engole a Educação, por Raphael Fagundes

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A busca acelerada por resultados dita o ritmo da desintegração social no neoliberalismo. Cresce o desinteresse pelo ensino reflexivo. Saídas mágicas, como cursinhos e youtubers, vêm para dar conta do sujeito apto a responder ao relógio do mercado

Raphael Fagundes – Outras Mídias – 14/08/2023

O sociólogo Christian Laval levanta uma questão interessante: “O mercado exige ‘reações’ fortes, enquanto a solução para muitos dos problemas da educação demanda decisões que funcionam no longo prazo” [1]. Sem dúvida este é um dos motivos da crise da educação.

O neoliberalismo tem como objetivo mercantilizar todas as manifestações humanas. Isso porque F. A. Hayek criou uma espécie de “formação discursiva neoliberal” que pode ser aplicada como episteme capaz de dar conta de diversas áreas. Para Hayek não pode haver um planejamento econômico. O governo deve apenas “fixar normas determinando as condições em que podem ser usados os recursos disponíveis, deixando aos indivíduos a decisão relativa aos fins para os quais eles serão aplicados” [2]. Ou seja, o governo não deve promover um plano econômico com o objetivo de acabar com a fome, desenvolver a tecnologia etc.

Na visão neoliberal, a economia é um “local” em que cada indivíduo irá extrair recursos para saciar suas necessidades pessoais. Um lugar livre em que se compra ações, faz-se investimentos para se recolher os lucros. Se o indivíduo quiser criar uma instituição de caridade, escolas etc., ele tem o direito de fazer isto com as quantias provenientes do seu investimento. Por outro lado, “o Estado deve limitar-se a estabelecer normas aplicáveis a situações gerais deixando os indivíduos livres em tudo que depende das circunstâncias de tempo e lugar, porque só os indivíduos poderão conhecer plenamente as circunstâncias relativas a cada caso e a elas adaptar suas ações” [3].

Este mesmo discurso pode vir a ser aplicado a outras áreas, como na educação. A educação acaba se tornando um bem privado. Não deve haver uma política educacional. O Estado não deve investir na educação para formar cidadãos, pessoas críticas etc. A educação deve ser encarada como um recurso usado por cada indivíduo visando atender suas necessidades privadas, como a de arranjar uma boa posição no mercado de trabalho.

A educação deixa de ser um bem coletivo para se tornar um bem individual. Essa lógica importada da economia provoca uma crise insolúvel na educação. Insolúvel no sentido de ser impossível resolvê-la dentro das próprias premissas neoliberais.

A aceleração do tempo

A grande revolução capitalista foi a Revolução Industrial, mas antes dela já estava sendo trabalhada uma alteração temporal no trabalho. A invenção do relógio foi fundamental. O tempo de produção não estaria mais submetido às intempéries naturais. “O pequeno instrumento que regulava os novos ritmos da vida industrial era ao mesmo tempo uma das mais urgentes dentre as novas necessidades que o capitalismo industrial exigia para impulsionar o seu avanço” [4], explica E. P. Thompson.

Sendo assim, o valor da mercadoria passou a ser determinado pelo tempo que leva para ser produzida, “impõe-se o tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção, que é a lei natural reguladora, que não leva em conta pessoas […] A determinação da quantidade do valor pelo tempo do trabalho é, por isso, um segredo oculto sob os movimentos visíveis dos valores relativos das mercadorias” [5].

As máquinas vieram exatamente para produzir uma maior quantidade de mercadorias num menor período de tempo. Diversos inventos foram criados com este objetivo. A tecnologia pragmática está voltada para essa visão econômica.

A partir de então, como destaca Harmut Rosa, “as transações monetárias modernas facilitam, multiplicam e aceleram transações sociais e econômicas, e com isso praticamente todas as relações sociais” [6]. Antes, um problema que surgia no trabalho na sexta-feira, só seria resolvido na segunda-feira da semana seguinte. Hoje, com a tecnologia criada para acelerar o mundo, o trabalhador recebe uma mensagem no ônibus que pega para voltar para casa ou no happy hour exigindo dele soluções para tratar da situação indesejada para os lucros finais da empresa.

A educação entra nessa lógica. O indivíduo quer o resultado mais imediato possível, já que o mundo ao seu redor está cada vez mais acelerado. Mas como algo que exige tempo pode auxiliar um indivíduo que vive em um mundo imediatista?

O desinteresse pela educação formal

Assim surgem os cursinhos. Os youtubers, com suas soluções mágicas, explicações “simples” etc, faturam nessa economia totalizadora do curto prazo. Se tudo deve ser mercantilizado, tudo deverá ser acelerado.

É possível adquirir cada vez mais conhecimento num espaço de tempo cada vez menor? A indústria do conhecimento diz que é.

O desinteresse pela educação formal vem diminuindo por conta dessa lógica. O aluno quer o resultado imediato, e isso é justamente o que a escola não pode fornecer. Na busca de adequar a escola às exigências do mercado e de seus consumidores, as reformas educacionais vêm tentando encontrar mecanismos que aceleram a produção de pessoas aptas ao mercado de trabalho. Cursos de como fazer brigadeiros a como ser um influenciador digital já estão tomando o espaço de disciplinas como História e Sociologia. Exatamente porque o resultado é muito mais imediato.

Esse é um movimento antigo. Thompson mostra que em 1772, já se “via a educação como um treinamento para adquirir o “hábito do trabalho’”. O historiador inglês destaca que, ainda no século XVIII, já se observava que “uma vez dentro dos portões da escola, a criança entrava no novo universo do tempo disciplinado” [7]. Com o advento de uma tecnologia voltada para a eficiência (que no capitalismo é produzir mais em um período mais curto de tempo), essa função da escola tornou-se mais necessária para o capital.

Alguns poderiam dizer que os Tigres Asiáticos seriam um exemplo positivo de relacionamento entre educação e economia. Só esquecem que lá houve muito planejamento econômico. Mariana Mazzucato mostra que foi “através do planejamento e políticas industriais ativas [que os países do Leste Asiático] conseguiram se ‘equiparar’ tecnológica e economicamente ao Ocidente” [8]. Ou seja, o casamento entre educação e economia só funciona longe da lógica neoliberal.

Rosa entende o tempo como uma dimensão central e constitutiva dos fenômenos da modernidade. A aceleração social é um fenômeno crucial para entender o mundo moderno: “a desintegração social seria, assim, uma consequência da crescente dessincronização social; a destruição ambiental, uma consequência da sobrecarga do ciclo cronológico de regeneração da natureza; a perda da individualidade ‘qualitativa’, um subproduto do aumento do ritmo da vida; e o abandono da autonomia racional, resultado da ‘temporalização do tempo’” [9].

Conclusão

Onde isto vai parar? As fake news ganham espaço porque muitos preferem as explicações curtas e objetivas sem uma reflexão mais pormenorizada dos fatos. Informações são produzidas numa velocidade cada vez maior pelos próprios veículos confiáveis, porque é necessário vender informação em um intervalo de tempo cada vez mais reduzido.

A lógica neoliberal está destruindo a educação, não porque se trata de uma conspiração dos donos do capital por tornar as pessoas mais burras, mas porque a sua dinâmica é a aceleração. A velocidade é um dos principais obstáculos para o conhecimento. Não será possível salvar a educação, a menos que alteremos a lógica econômica que se impõe sobre todo o mundo.

[1] LAVAL, C. A escola não é uma empresa. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 187

[2] HAYEK, F. A. O caminho da servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, p. 90.

[3] Id., p. 91.

[4] THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Cia das letras, 1998, p. 279.

[5] MARX, K. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 97.

[6] ROSA, H. Aceleração. São Paulo: EdUnesp, 2019, p. 108.

[7] THOMPSON, p. 293.

[8] MAZZUCATO, M. O Estado empreendedor. São Paulo: Portifolio-Penguin, 2014, p. 71.

[9] ROSA, p. 123.

Icebergs à deriva, por Ricardo Antunes

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Ricardo Antunes

A Terra é Redonda – 14/08/2023

Trechos de artigo do livro recém-publicado

As plataformas digitais e suas origens

Há algumas décadas, o capitalismo, sob condução financeira, vem se desenvolvendo de forma que a produtividade do capital se valorize sempre em seu ponto de ápice. Ao proceder desse modo, as corporações globais ampliam seus lucros e exasperam a competitividade entre elas, introduzindo cada vez mais um maquinário informacional-digital altamente avançado, capaz de potencializar exponencialmente a utilização da força de trabalho.

Para as grandes corporações, a ampliação e intensificação dos tempos de trabalho geradores de lucro e de mais-valor tornaram-se ainda mais vitais frente à intensa competição que travam entre si para ampliar seu domínio no mercado, tanto na indústria, agricultura e serviços, como em suas interconexões conhecidas (agroindústria, serviços industriais e indústria de serviços) e presentes nas novas cadeias produtivas de valor.

Foi central para esta reorganização dos capitais a expressiva expansão do setor de serviços, cada vez mais subordinado à forma-mercadoria. Essa configuração, além de desmoronar o mito de que a “sociedade de serviços, pós-industrial” eliminaria a classe trabalhadora, fez deslanchar uma significativa expansão do novo proletariado de serviços na era digital. Tal processualidade, contrariamente ao que foi propugnado nas últimas décadas, não levou à perda de relevância da teoria do valor, mas à ampliação de novas formas geradoras do mais-valor, ainda que frequentemente assumindo a aparência do não-valor.

E o capitalismo vem demonstrando uma enorme capacidade de articular as atividades materiais, que têm grande prevalência na indústria de transformação e na agroindústria, àquelas nas quais se ampliam também as atividades imateriais, como as desenvolvidas na indústria de serviços e nas grandes plataformas digitais. Esses arranjos contribuem para que possamos melhor compreender o papel vital que a informação, convertida em nova mercadoria, passa a assumir no processo de valorização e geração de mais valor que, é imperioso acrescentar, se encontra sob comando do capital financeiro, a quem cabe impulsionar e dirigir econômica, política e ideologicamente a totalidade da produção e reprodução do valor. [I]

Com a ampliação do universo digital, através das tecnologias de informação e comunicação presentes cada vez mais na produção (em sentido amplo), encontramos novos componentes que merecem uma análise cuidadosa, de modo a melhor captar qual o papel que essas tecnologias vêm desempenhando nas formas de acumulação presentes no capitalismo financeiro atual. [II] Isso porque estes novos espaços produtivos, cada vez mais conectados com as plataformas digitais e com o mundo dos algoritmos, vêm tendo enorme destaque na geração de lucros e de mais valor, obrigando-nos a melhor compreender como as grandes plataformas digitais – que de fato são verdadeiras corporações globais – vêm participando do que Srnicek denominou como “capitalismo de plataforma”. [III] São empresas que, além de detentoras de informação, são cada vez mais proprietárias da infraestrutura da sociedade, com forte potencial monopolista e concentracionista no conjunto da economia global.

Mesmo sabendo que a conceitualização capitalismo de plataforma pode e deve ser problematizada, aqui a utilizamos mais no sentido descritivo, qual seja, em referência a uma fase informacional-digital-financeira do capitalismo na qual o sistema depende cada vez mais do uso intensificado das plataformas digitais. Sempre reiterando que as plataformas, enquanto instrumental tecno-digital, são cada vez mais utilizadas por uma gama imensa de empresas e corporações que tem finalidades as mais distintas, tendo em comum, entretanto, a recorrência a este artefato informacional.

Foi nesta contextualidade que o capitalismo de plataforma pôde se expandir a tal ponto que hoje as corporações do ramo de tecnologia se encontram entre as empresas mais valorizadas do mundo, desbancando aquelas que ocupavam o topo do capital no período anterior a explosão informacional-digital.

Mas é importante indicar também que a digitalização do trabalho não foi uma “revolução surpreendente. De fato, a digitalização do trabalho introduziu (ou favoreceu) múltiplas, profundas e rápidas mudanças nas estruturas e nos processos produtivos; na organização do trabalho e no mercado de trabalho”. Essas alterações resultaram “em uma forte fragmentação do processo produtivo; uma aceleração igualmente forte do ciclo de valorização das mercadorias (na produção, na gestão das cadeias de abastecimento, nas vendas); uma significativa decomposição da força de trabalho (reduzindo sua concentração física); uma intensa individualização das relações e dos contratos de trabalho”. E esta grande transformação da economia “foi baseada em um alto grau de informatização, automação e robotização, sob a égide das tecnologias digitais”. [IV]

Se nos anos 1980/90 tivemos a informatização e automação do setor industrial, através da externalização de atividades nos países do Sul do mundo, nas primeiras duas décadas do século XXI assistimos ao “advento da conectividade total, do cloud work, da digitalização da Indústria 4.0, dos serviços e de setores específicos como o dos cuidados”. E foi assim que o trabalho digital, que hoje se amplia em grande parte do mundo, encontrou grande impulso no contexto da pandemia.

Como consequência do que anteriormente indicamos, vamos apresentar as três teses críticas que talvez possam nos ajudar na compreensão do tamanho, significado, riscos e profundidade das metamorfoses em curso no mundo do trabalho.

Os novos laboratórios de experimentação do trabalho

A primeira tese – os novos laboratórios de experimentação do trabalho – pode ser assim sintetizada: durante a pandemia, foram desenvolvidos novos laboratórios de experimentação do trabalho, dos quais o trabalho vinculado e subordinado às plataformas de serviços, o home office e o teletrabalho (com suas similitudes e diferenciações) são exemplares. Se estas práticas já eram utilizadas antes da crise pandêmica, durante sua vigência elas se ampliaram ainda mais significativamente.

Resultado de um complexo movimento, cujas origens remontam à crise estrutural do capital, as grandes corporações vêm se utilizando simultaneamente de uma enorme massa de desempregados que passam a trabalhar sob o comando das tecnologias digitais e seus algoritmos. Essa simbiose também vem permitindo o incentivo à individualização do trabalho (o “empreendedorismo” a “autonomia” e mistificações assemelhadas) e assim procedendo, conseguem burlar a legislação protetora do trabalho, tendência que tem enorme potencial de expansão para um conjunto de atividades que se desenvolvem na indústria de serviços, isto é, nos serviços comoditizados ou mercadorizados.

Os resultados são visíveis: jornadas de trabalho extenuantes, frequentemente sem folga semanal; os salários reduzidos; demissões sumárias e sem qualquer explicação; custeamento da compra ou locação de veículos, motocicletas, bicicletas, celulares, internet, dentre tantas outras aberrações, que compreendem o trabalho uberizado, no qual exploração/espoliação/expropriação se mesclam e se intensificam. Não é por outro motivo que, além da pandemia do COVID-19, estamos vivenciando também a pandemia da uberização. [V]

Assim, o receituário empresarial da fase pós-pandemia já se encontra desenhado e delineado: mais flexibilização, mais informalidade, ampliação das formas de terceirização, com a consequente explosão do trabalho intermitente e uberizado, tudo sob o comando dos algoritmos com sua só aparente neutralidade.

Desse modo, em meio à pandemia do coronavírus, as plataformas corporativas globais criaram, com engenhosidade que parece ilimitada, novos laboratórios de experimentação do capital, ampliando e intensificando o mundo laborativo, envolvendo-o em uma nova realidade caracterizada pela pandemia da uberização. É por isso que, em todos os espaços, particularmente dos serviços privatizados, impulsiona-se cada vez mais a uma “nova” modalidade de trabalho na qual o assalariamento se transfigura e assume a aparência de “empreendimento” e “autonomia”.

Esse processo, que tem suas raízes fincadas em uma processualidade estrutural de crise, acentuou-se particularmente depois de 2008/2009. É nesse contexto que, por suas repercussões socioeconômicas singulares, a pandemia converte-se em momento que impulsionou novos laboratórios de experimentação do capital, aparentemente contingenciais, mas que incidiram nas mais distintas atividades, sejam elas produtivas ou reprodutivas, abrindo caminho para a acentuação significativa da precarização do trabalho no período pós-pandemia. A única forma de travá-lo dependerá da capacidade de resistência da classe trabalhadora, impondo limites à exploração do trabalho e exigindo novos direitos.

Assim, os “novos” traços que caracterizam o trabalho uberizado são por demais evidentes: não há mais limites nem de tempo, nem de jornada de trabalho; a separação entre tempo de labor e tempo de vida está em desaparição; as práticas laborativas são cada vez mais desregulamentadas; os direitos do trabalho sofrem um processo de corrosão cotidiano e a justiça do trabalho, quando acerta, se vê tolhida pelas decisões supremas. A intensidade e os ritmos de trabalho são exercitados ao limite, sendo que as mistificações subjacentes ao trabalho que deixou de ser trabalho, ao assalariamento que milagrosamente se converteu em “empreendedorismo”, em “autonomia”, são por demais evidentes.

Como a expansão do trabalho uberizado encontra o solo fértil em uma gama quase ilimitada de atividades nos serviços, seria um verdadeiro milagre que tal ordem destrutiva não produzisse mais acidentes, adoecimentos e padecimentos no trabalho, com ênfase nos adoecimentos psíquicos, mais subjetivos, mais interiorizados.

Burnout, depressão, suplício e suicídio, tudo isso passa a ser mais a regra do que a exceção. Turbinado pelo nefasto “sistema de metas” que se tornou o novo cronômetro na era da acumulação flexível, sistemática que se converteu em uma poderosa criação do capital, em sua empreitada voltada para a desconstrução do trabalho. Intensificou-se, então, nos laboratórios de experimentação do trabalho, a era de devastação do trabalho. Cenário que, provocativamente, nos leva à segunda tese: o capitalismo de plataforma parece ter algo em comum com a protoforma do capitalismo.

O capitalismo de plataforma e a protoforma do capitalismo

Indicamos que o capitalismo de plataforma, plasmado por relações sociais do capital, acaba por subsumir o arsenal informacional-digital prioritariamente às necessidades de sua autoexpansão e valorização. E, ao assim proceder, recorre cada vez mais às formas pretéritas de exploração, expropriação e espoliação do trabalho que o século XX já se encarregara, em alguma medida, de eliminar, ou pelo menos restringir, ao menos em partes do mundo.

Sabemos que a protoforma do capitalismo foi marcada pela enorme exploração do trabalho, nos primórdios do universo fabril em Manchester, berço da Revolução Industrial no século XVIII, cujas jornadas de homens, mulheres e crianças ultrapassavam 12, 14, 16 horas por dia, além de recorrer ao putting–out system e outsourcing, formas de externalização do trabalho frequentemente baseadas no pagamento por peça. Assim, nossa tese indica uma esdrúxula (mas não paradoxal) aproximação entre estas distintas fases históricas do capitalismo, a pretérita e a presente.

Isso ocorre porque, em plena era digital, intensificam-se as modalidades de sucção do excedente de trabalho (intelectual e manual) em todos os espaços onde o capital se reproduz, exatamente no período em que, dado o enorme avanço tecnológico, a jornada de trabalho poderia ser significativamente reduzida. A ininterrupta competição entre as corporações globais, converte a devastação e a corrosão do trabalho em um imperativo indiscutível para o capital.

É por isso que estamos presenciando uma variante de acumulação ao mesmo tempo muito digital e abusivamente primitiva. Um capitalismo de plataforma que parece ter algo em comum com a protoforma do capitalismo. Isto porque, uma vez mais o sistema de metabolismo antissocial do capital [VI] impõe seu curso, articulando o moderno, que se encontra, por exemplo, na inteligência artificial, com o arcaico, intensificando o binômio exploração e espoliação.

E, além das formas de exploração do trabalho, ampliam-se também as formas de expropriação e espoliação, uma vez que, além de fornecer sua força de trabalho, os trabalhadores e as trabalhadoras são responsáveis pelos custos de compra ou alocação dos veículos, celulares, equipamentos (como as mochilas dos entregadores), ampliando a sua dependência financeira para pagar pelos instrumentos de trabalho de deveriam ser fornecidos pelas empresas. Assim, para que esse processo se efetivasse, foi preciso também expropriar a classe trabalhadora que, uma vez desprovida de instrumentos de trabalho e endividada, não possa ter outra escolha senão aceitar “qualquer” labor.

É por isso que o trabalho que se expande na “base produtiva” da Amazon (e Amazon Mechanical Turk), Uber (e Uber Eats), 99, Cabify, Lyft, Ifood, Rappi, Glovo, Deliveroo, Airbnb, Workana, GetNinjas, dentre tantos outros exemplos, vem cada vez mais se assemelhando a uma modalidade de trabalho que, apesar de suas tantas diferenças, pode ser denominado como trabalho uberizado.

Em uma quadra histórica na qual a uberização do trabalho e a Indústria 4.0 são dotadas de enorme dimensão destrutiva em relação à força de trabalho, nossa terceira tese finaliza com um desenho crítico de grande intensidade e profundidade.

Uma nova era de desantropomorfização do trabalho

É dentro dessa processualidade capitalista que, simultaneamente ao crescimento do trabalho uberizado, vemos a expansão global da Indústria 4.0, propositura que nasceu na Alemanha e foi concebida para propiciar um novo salto tecnológico no mundo produtivo (em sentido amplo) a partir da ampliação da robótica e das novas tecnologias de informação e comunicação.

Sua implantação vem acarretando a intensificação ainda maior dos processos produtivos automatizados em toda a cadeia produtiva de valor, de modo que toda a produção e logística empresarial se torna cada vez mais controlada e comandada digitalmente. [VII]

É neste contexto que aflora nossa terceira tese: além da precarização intensificada que vem conformando o trabalho uberizado, na outra ponta desta mesma processualidade, onde se expande a Indústria 4.0, estamos presenciado uma expressiva ampliação do trabalho morto, tendo o maquinário digital como dominante e condutor de todo processo produtivo, com a consequente redução do trabalho vivo, através da substituição das atividades que se tornam supérfluas, por conta do ingresso de novas máquinas automatizadas e robotizadas, sob o comando dos algoritmos.

Mais robôs e máquinas digitais invadem a produção, o que nos leva a indicar que estamos adentrando em uma nova fase qualitativamente superior de subsunção real do trabalho ao capital.

Agora com a presença da internet das coisas-IoT, inteligência artificial, nuvem, big data, impressão 3D, internet 5G, celulares, tablets, smartphones e assemelhados, o mundo informacional-digital passou a controlar, supervisionar e comandar esta nova fase da cyber indústria do século XXI.

É por conta desses elementos socialmente destrutivos que estamos às vésperas de um novo processo de desantropomorfização do trabalho (para recordar Lukács [VIII]), uma vez que se acentua expressivamente a tendência de eliminação (e/ou sujeição) de nossos contingentes de trabalho vivo e sua substituição (e/ou subordinação) pelo trabalho morto, resultante deste novo empreendimento empresarial que visa a consolidar a nova fábrica digital, nos mais distintos ramos e setores econômicos.

Estamos adentrando, então, em um novo patamar de subsunção real do trabalho, que aprofunda sua condição de apêndice da máquina informacional, digital e algorítmica, ampliando a desantropomorfização de amplos contingentes de trabalho vivo, numa dimensão ainda mais profunda do que aquela que ocorreu com a introdução da maquinaria durante a Primeira Revolução Industrial.

Isso porque, se durante o ciclo artesanal e manufatureiro o trabalho tinha o comando e o controle do instrumental de trabalho (das ferramentas) e de seus movimentos (sendo, por isso parte ativa e condutora de um mecanismo vivo), na grande indústria deu-se uma completa inversão: o comando transferiu-se para um mecanismo morto, independente do trabalho vivo que, desse modo, tornou-se apêndice da máquina. Transformou-se, como assinalou Marx, em um autômato, dada a subsunção real do trabalho vivo ao capital, ao trabalho morto. [IX]

Assim, ao definir a desantropomorfização do trabalho, estamos aludindo não somente a uma dimensão quantitativa, mas também à perda qualitativa do trabalho vivo e sua subsunção ao trabalho morto. No capitalismo atual, comandado pelo capital financeiro, sob a névoa dos algoritmos, inteligência artificial e da internet das coisas, com sua aparência de neutralidade, nossa tese é de que a subsunção real que se forja na cyber indústria, que se encontra em reestruturação produtiva permanente, torna-se ainda mais complexa e profunda, tanto no universo da objetividade, quanto da subjetividade da classe trabalhadora.

Ainda mais coisificado e fetichizado, sem deter sequer minimamente o controle dos movimentos do novo maquinário informacional-digital, o trabalho vivo, quando não desaparecesse pela via do desemprego, se subsume ainda mais intensamente ao capital, uma vez que sequer conhece as engrenagens que estão em movimento na nova fábrica digital sob o comando dos algoritmos, da internet das coisas, inteligência artificial etc.

Uma nova era de revoltas

Foi este cenário de precarização estrutural do trabalho presente no trabalho uberizado que em 1º e em 25 de julho de 2020, em plena pandemia, o Brasil se encontrou frente a duas greves importantes – denominadas #brequedosapps – que sinalizavam um novo cenário de lutas e resistências dos trabalhadores-entregadores de plataformas digitais, movimento que se expandiu para vários países da América Latina e em várias partes do mundo, como demonstram a experiência britânica e de outros países europeus.

Junto com inúmeras paralisações que se seguiram no Brasil, na América Latina e em várias partes do mundo, somadas a outras tantas greves de trabalhadores e trabalhadoras, vêm expressando um mosaico e uma multiplicidade de formas de ação e resistência deflagradas pelo novo proletariado de serviços, segmento que não para de se expandir, indicando claros sinais de descontentamentos que devem se ampliar nessa era de derrelição e corrosão dos direitos da classe trabalhadora na era informacional-digital. [X]

Fica, então, o convite para a leitura dos 28 capítulos presentes no livro “Iceberg à deriva”.
*Ricardo Antunes é professor titular de sociologia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de O capitalismo pandêmico (Boitempo).

Referência
Ricardo Antunes (org.). Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais. São Paulo, Boitempo, 2023, 552 págs.

[1] François Chesnais, A mundialização do capital (São Paulo, Xamã, 1996).

[2] Para um panorama amplo e crítico destas tendências, contemplando vários países, ver Ricardo Antunes, Fabio Perocco e Pietro Basso, (orgs.), Il lavoro digitale: Maggiore autonomia o nuovoasservimentodel lavoro, em Socioscapes International Journal of Societies, Politics and Cultures II, (Special issue, Itália, 2021.

[III] Nick Srnicek, Platform capitalism (Cambridge, Polity, 2017). p. 86.

[IV] Ricardo Antunes, Fabio Perocco e Pietro Basso (org.), Il lavoro digitale, cit., p. 10-11.

[V] Ver Ricardo Antunes, Capitalismo Pandêmico (São Paulo, Boitempo, 2022)

[VI] István Mészáros, Para Além do Capital (São Paulo, Boitempo, 2020).

[VII] Ver, em relação ao avanço da Indústria 4.0 no Brasil: Geraldo Augusto Pinto, A indústria 4.0 na cadeia automotiva. Em: Ricardo Antunes (Org.). Uberização, Trabalho Digital e Indústria 4.0 (São Paulo, Boitempo, 2020).

[VIII] György Lukács, Para Uma Ontologia do Ser Social, Livro II, (São Paulo, Boitempo, 2013).

[IX] Karl Marx, O capital, livro I (São Paulo, Boitempo, 2013), p. 494-95.

[X] Este artigo resume algumas ideias centrais presentes no capítulo 1 do livro que organizamos, com o título Icebergs à deriva: O Trabalho nas Plataformas digitais, que traz a pesquisa realizada pelo Grupo Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses, do IFCH/UNICAMP, e tem a participação de autores/as do país e também do exterior (Itália, Inglaterra e Portugal).

Os inimigos do livro, por Edilson Adão Cândido da Silva

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Se há algo que não existe nas obras didáticas brasileiras é superficialidade

Folha de São Paulo, 14/08/2023

Edilson Adão Cândido da Silva

Autor de livros educativos, é mestre em ciências (USP) e doutorando em geografia (Unicamp)

O mundo da educação assiste consternado a algo que até então parecia improvável: um secretário da Educação combater livros didáticos. Para justificar o injustificável, Renato Feder, de São Paulo, declarou nesta Folha sobre os livros do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD): “(…)

Perderam qualidade, profundidade e conteúdo. Estão superficiais” (“Secretário de Educação de SP diz que livros didáticos escolhidos pelo MEC são superficiais”, 2/8).

Ora, só nos resta uma constatação: o secretário Feder fala com propriedade sobre aquilo que desconhece. Ele não é do mundo da educação; seu negócio é outro. Senão, vejamos.

O PNLD é um programa educativo criado em 1985 e sucessor do Conselho Nacional de Livro Didático, instituído em 1938 durante o governo Getúlio Vargas. Atualmente, antes de chegarem às salas de aula, os livros didáticos do PNLD passam por um rigorosíssimo processo de avaliação, permanecendo em produção, em média, por três anos: cumprem um edital estabelecido pelo Ministério da Educação, este por sua vez ancorado em regras normativas baseadas na Lei de Diretrizes e Base, Diretrizes Curriculares Nacionais e no mais novo documento normativo da educação brasileira, a Base Nacional Curricular Comum, de 2017.

Após a produção, as obras são submetidas a uma competente banca avaliadora formada por acadêmicos das principais universidades brasileiras e professores da educação básica. Em seguida a esse trâmite, são aprovadas ou reprovadas. Professores de escolas públicas de todo o país recebem, então, um guia com os livros aprovados. Somente após esse filtro é que são escolhidos e, enfim, encaminhados aos alunos.

Toda essa trajetória hercúlea faz o livro didático brasileiro situar-se entre os melhores do mundo. A sociedade precisa ser esclarecida sobre esse fato para refutar mentiras —os livros didáticos são de altíssima qualidade. Não são escritos à revelia, ao léu. Há um longo percurso pautado por solidez conceitual, respeito à relação ensino-aprendizagem e rigor editorial.

O secretário afirma: “Estão superficiais”. Ora, se há algo que não existe nos livros didáticos brasileiros é superficialidade. Está claro: o senhor Feder não leu os livros. Para além do ritual avaliativo ao qual são submetidas, as obras didáticas são construídas a partir de embasamento científico e em fina sintonia com pesquisas científicas. Suas fontes são primárias, balizadas em relatórios dos principais organismos nacionais e internacionais. E são atualizadas. Não percebeu isso, senhor secretário? Talvez, por descuido, tenha aberto uma das apostilas produzidas pelo governo de São Paulo, cujas fontes precárias poderiam até ser cômicas se não fossem trágicas.

O indisfarçado desejo de desqualificar os livros didáticos é o mote para o secretário apresentar sua solução mágica para a salvação da educação paulista: colocá-los em seu lugar um conteúdo digital. A secretaria da Educação paulista age assim exatamente no momento em que a Unesco acaba de desaconselhar o uso maciço de tecnologias digitais na educação. Tecnologia, sim, mas na dosagem adequada. Países com avançados índices educacionais estão procedendo dessa forma, pisando no freio da educação digital, que não se mostrou tão eficiente quanto se pensava.

Para a combinação correta entre educação e cultura digital, o ideal é exatamente como propõe o PNLD, que em seus editais equaciona o uso do livro impresso como protagonista e a tecnologia digital subsidiando as coleções didáticas. Combinação correta. A proposta irresponsável apresentada em São Paulo conduz ao uso excessivo de tela entre crianças e adolescentes. Estudiosos das áreas de oftalmologia e oftalmopediatria devem ter ficado estarrecidos com tal despropósito.

Sabe-se do infeliz estágio de desigualdade em que se encontra o Brasil e São Paulo. Fazemos nos valer aqui de um alerta dado no relatório “Monitoramento Global da Educação”, divulgado pela Unesco recentemente: “Tecnologia a serviço de quem?”. Na atual conjuntura e da forma estapafúrdia como se propõe em São Paulo, não temos dúvidas: do acirramento da injustiça. Haja atenção!

Revolução Financeira

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Neste espaço, constantemente discutimos as grandes transformações em curso na sociedade contemporânea. Vivemos momentos de destruições criadoras, como destacou o economista austríaco, Joseph Schumpeter, responsável por conceitos fundamentais para compreendermos as grandes alterações econômicas, seus impactos sobre o mundo do negócio, as formas de sociabilização, as reflexões referentes a democracia e as questões políticas, todas estas transformações estão criando um mundo novo, mais integrado, mais competitivo, com mais riquezas e, ao mesmo tempo, mais inseguro, mais desigual, mais violento, e com maior potencial de destruição.

Uma das grandes características da sociedade contemporânea é a revolução financeira em curso na sociedade internacional, surgindo novos produtos no mundo das finanças, onde destacamos conceitos novos com fortes repercussões em todas as regiões do mundo, tais como criptomoedas, blockchain, Open Banking, moedas digitais, bitcoin, token, fintechs, plataformas digitais, dentre outros. Estes conceitos ganharam relevâncias e estão no centro das grandes transformações da revolução financeira, que ganharam importância no período da pandemia de Covid – 19, que alterou as bases da sociedade, gerando novos modelos de negócios, compras virtuais, criptoativos, ou seja, estamos vivendo uma verdadeira revolução financeira.

As fintechs, instituições que disponibilizam serviços na área financeira, tendem a crescer fortemente na economia internacional, mas sabemos que esse modelo de negócio não deve engolir os bancos tradicionais, mas deve estimular o incremento da competição, forçando uma maior concorrência entre as organizações, trazendo benefícios para toda a comunidade, com o aumento do crédito e a taxa de juros mais atrativas, gerando espaços para o aumento dos investimentos produtivos e melhora dos ambiente de negócios.

A revolução financeira em curso na sociedade global está transformando comportamentos arraigados na comunidade, criando novas formas de relacionamento entre o dinheiro e o ser humano, levando-os a buscarem novos conhecimentos do mundo das finanças, buscando a compreensão dos desafios nos investimentos, fazendo com que as informações bancárias e financeiros estejam disponíveis em seus smartphones, fazendo trabalhos e liberações que anteriormente eram feitas pelos funcionários das instituições bancárias, com isso, essa revolução financeira nos traz a possibilidade de termos mais autonomia e maior planejamento, que com a introdução do Open Bankimg, exigirá uma maior profissionalização da gestão de suas respectivas finanças individuais.

Essa revolução financeira está trazendo novos elementos importantes para compreendermos o mundo contemporâneo, o mundo das finanças está sempre envolto em fortes competições, imediatismo e a busca crescente dos ganhos materiais e financeiros, levando as pessoas e as organizações a buscarem ganhos extraordinários e lucros imediatistas, levando muitos grupos a adotarem medidas degradantes, estimulando fraudes financeiras e levando-nos a crises, que em uma economia marcada pela crescente globalização, seus impactos se espalham para toda a economia internacional, vide as consequências da crise imobiliária dos Estados Unidos.

Vivemos momentos de grandes inovações, o mundo financeiro vem ganhando relevância em toda a sociedade global, o poder das finanças está moldando o mundo contemporâneo, alterando o comportamento humano, aumentando a competição e transformando os indivíduos, levando-nos a uma busca crescente de ganhos materiais, transformando a educação, a saúde e a segurança como espaços crescentes de rentismo, onde as escolas buscam maiores ganhos monetários e perdem seu sentido verdadeiro na formação profissional e na construção de valores sociais, onde a saúde se transformou num espaço de acumulação desenfreada de lucros dos grupos privados, onde os acionistas controlam a gestão, angariando ganhos substanciais, muitas vezes as custas de péssimos serviços, diminuindo investimentos, se apropriando dos órgãos reguladores e se perpetuando via porta giratória, perpetuando desigualdades, violências variadas, estimulando pobreza e indignidade humanas.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Circular, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Não, o ‘socialismo’ não está tornando os americanos preguiçosos, por Paul Krugman

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Tudo o que precisávamos era de uma política que desse uma chance ao trabalho

Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

Folha de São Paulo, 15/07/2023.

Bernie Marcus, cofundador da Home Depot (grande loja de construção e decoração), teve algumas coisas negativas a dizer sobre seus compatriotas americanos em uma entrevista em dezembro passado.

“O socialismo” destruiu a ética do trabalho, ele declarou. “Ninguém trabalha. Ninguém dá a mínima. ‘Apenas dê para mim. Envie-me dinheiro. Não quero trabalhar — sou muito preguiçoso, sou muito gordo, sou muito burro'”.

Você é ingênuo se acha que a opinião dele é excepcional. Sem dúvida, homens ricos estão constantemente dizendo coisas semelhantes em clubes de campo em todos os Estados Unidos. Mais importante, os políticos conservadores são obcecados pela ideia de que a ajuda do governo está deixando os americanos preguiçosos, e é por isso que eles continuam tentando impor a exigência de trabalho para programas como Medicaid e vale-refeição, apesar da evidência esmagadora de que tais requisitos não promovem o trabalho, e sim criam barreiras burocráticas que negam ajuda aos que realmente precisam.

Não tenho a ilusão de que os fatos mudarão a opinião dessas pessoas. Mas todos os outros devem saber que, no ano passado, realizamos um grande teste da proposição de que os americanos se tornaram preguiçosos. E acontece que não.

Diante das oportunidades criadas por uma economia de pleno emprego — sem dúvida, a primeira economia de pleno emprego que tivemos em quase um quarto de século —, os americanos estão, de fato, dispostos a trabalhar. Na verdade, eles estão mais dispostos a trabalhar do que quase todo mundo imaginava, até mesmo os otimistas. E a robustez da ética de trabalho americana tem enormes implicações para as políticas.

Antes de entrar nos números, um lembrete sobre números. Os EUA têm uma população que envelhece, o que significa que, tudo o mais sendo igual, deveríamos estar vendo uma tendência de queda na parcela de adultos que ainda trabalham. De fato, a taxa geral de participação na força de trabalho — a porcentagem de adultos trabalhando ou procurando ativamente trabalho — é um pouco menor agora do que na véspera da pandemia de Covid-19.

Mas esse declínio era previsível e previsto, por exemplo, em projeções pré-pandêmicas do Escritório de Orçamento do Congresso. E a participação atual da força de trabalho é na verdade maior do que o órgão esperava — o que é realmente notável, visto que a Covid levou alguns trabalhadores à aposentadoria precoce, enquanto a Covid prolongada pode ter deixado um número significativo de trabalhadores com deficiências persistentes.

Uma maneira de olhar para além das mudanças demográficas é focar na participação na força de trabalho dos americanos em seus primeiros anos de trabalho, que é maior hoje do que 20 anos atrás. Bobby Kogan, do Centro para o Progresso Americano, relata que, se você ajustar pela idade e o sexo, o emprego geral nos EUA está agora em seu nível mais alto da história — novamente, apesar dos efeitos prolongados da pandemia.

Portanto, chega de alegações de que o grande governo tornou os americanos preguiçosos, ou mesmo falar de uma “grande autodemissão”. Os americanos estão trabalhando mais que nunca.

De onde vêm esses trabalhadores adicionais? Uma resposta é que, em um mercado de trabalho restrito, os empregadores estão mais dispostos a aceitar grupos marginalizados, muitos dos quais se revelam perfeitamente capazes de empregos produtivos. Vimos, por exemplo, um aumento impressionante no emprego entre os americanos com deficiência.

Também vimos um aumento no número de trabalhadores nascidos no exterior. O que quer que pessoas como Ron DeSantis possam pensar, os imigrantes são uma grande vantagem para a economia dos EUA: eles tendem a estar em idade ativa e altamente motivados. De fato, as políticas anti-imigração de DeSantis já estão tendo um efeito adverso visível na economia da Flórida.

Então, o que nos diz o extraordinário sucesso dos Estados Unidos em trazer a população de volta ao trabalho, além do fato de que não nos tornamos preguiçosos? Uma coisa que ele nos diz é que a lenta recuperação que se seguiu à crise financeira de 2008 — lenta em grande parte porque as Pessoas Muito Sérias estavam obcecadas por dívidas em vez de empregos — negou emprego a milhões de americanos que poderiam e deveriam estar trabalhando.

E os recentes ganhos no emprego também fazem a “bidenomia” parecer muito melhor do que um ano atrás.

O presidente Joe Biden começou seu mandato com um grande pacote de gastos que, segundo muitos, causou o superaquecimento da economia, alimentando a inflação. Provavelmente há uma verdade considerável nessa afirmação. Mas também houve alegações de que para se livrar do excesso de inflação seriam necessários anos de alto desemprego. Acontece que, afinal, a inflação — incluindo medidas que tentam eliminar fatores temporários — tem diminuído, apesar do alto nível de emprego. Portanto, tais afirmações parecem cada vez menos convincentes.

Embora a economia aquecida possa ter aumentado temporariamente a inflação, também colocou os americanos para trabalhar — não apenas aqueles que perderam empregos durante a pandemia e suas repercussões, mas também alguns que antes não conseguiam colocação. Também produziu ganhos especialmente altos para os trabalhadores de baixa remuneração. Se conseguirmos evitar uma recessão severa, muitos desses ganhos de emprego provavelmente persistirão.

O ponto mais importante é que, não importa o que os homens ricos mal-humorados possam dizer, os americanos não se tornaram preguiçosos. Pelo contrário, estão dispostos, e até ansiosos, a aceitar empregos, se estiverem disponíveis. E embora a política econômica dos últimos anos esteja longe de perfeita, uma coisa que ela fez — para grande benefício da nação — foi dar uma chance ao trabalho.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

Bolsa Família está deixando os ricos preguiçosos? por Michael França

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Muitos gostam de colher onde nunca semearam

Michael França, Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Folha de São Paulo, 08/08/2023

Em um recente artigo, Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia e colunista do jornal The New York Times, trouxe interessantes perspectivas sobre a atual conjuntura do mercado de trabalho dos Estados Unidos.

Krugman começa sua coluna com uma citação de Bernie Marcus, cofundador de uma grande loja americana, na qual ele afirma que o socialismo destruiu a ética do trabalho. Segundo a visão de Marcus, ninguém quer trabalhar atualmente. Os americanos teriam virado preguiçosos e dependentes do Estado.

Tal afirmação contrasta com a realidade vivida por aquele país. A economia mostrou o quanto os americanos querem trabalhar. Dado o envelhecimento da população, deveria ter ocorrido uma queda no percentual de trabalhadores no mercado de trabalho. Porém o que se observa é justamente o contrário.

Quando se consideram características como gênero e idade, o emprego nos Estados Unidos está no nível mais alto da história. Com o atual mercado de trabalho aquecido, até grupos historicamente marginalizados, como os que têm algum tipo de deficiência e os imigrantes, estão conseguindo considerável espaço.

Os fatos não costumam mudar as opiniões das pessoas. Talvez isso seja ainda mais saliente entre conservadores. No Brasil, por exemplo, o Bolsa Família, famoso programa de transferência de renda para os pobres, é visto por um amplo conjunto de especialistas no meio acadêmico como uma política bem-sucedida, dado que diversas pesquisas mostraram que ela teve vários impactos sociais positivos a um baixo custo.

Apesar de o respaldo empírico sugerir o contrário, não é raro encontrar alguém no país dizendo que o programa produz preguiçosos. Em especial, entre os mais ricos, corriqueiramente, tal afirmação se faz presente. Entretanto é preciso subverter esse debate.

Quando se olha demais para a parte inferior da distribuição de rendimentos e riqueza, se esquece de questionar a parte superior. Nesse contexto, a “bolsa família” recebida pelos filhos dos mais ricos tem o potencial de deixar muitos deles relativamente preguiçosos.

Isso porque, visto que parte das ações humanas é movida pelas aspirações individuais, vários daqueles que nascem em ambientes ricos e com baixa competitividade podem não ter incentivos suficientes para se esforçarem em ir além daquilo que já foi construído nas gerações anteriores.

Afinal, quase tudo lhes é dado.

Sabe-se que vários membros das elites não construíram seus patrimônios sozinhos. Desse modo, o legado familiar afeta o conjunto de escolhas e a potencial oferta de trabalho. Alguns usam seus privilégios para se desenvolver. Trabalham duro e avançam os limites daquilo que foi construído pelos antepassados.

Outros apenas herdam as riquezas criadas por terceiros e vivem da renda gerada por ela. Não acrescentam muito valor à sociedade. São o que se convencionou chamar de rentistas. Algo que não é novo na história da humanidade.

Adam Smith, considerado como o pai da economia, já tinha destacado padrão análogo ao analisar a renda derivada dos aluguéis, séculos atrás. De acordo com Smith, os proprietários de terra, como todos os outros homens, gostam de colher onde nunca semearam.

União Europeia disfarça o protecionismo de sempre com preocupação verde, por Sylvia Colombo

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Exigências ambientais para acordo com o Mercosul inclui metas quase incumpríveis e cascas de banana

Sylvia Colombo, Historiadora e jornalista especializada em América Latina, foi correspondente da Folha em Buenos Aires. É autora de ‘O Ano da Cólera’

Folha de São Paulo, 06/08/2023

Em passagem pelo Brasil há duas semanas, o presidente eleito do Paraguai o, Santiago Peña,
afirmou que compartilhava a irritação demonstrada por Luiz Inácio Lula da Silva em sua visita mais recente à Roma. O assunto esteve na pauta do encontro de ambos em Brasília.

Na ocasião, o brasileiro disse serem “inaceitáveis” alguns pontos da chamada “side letter”, ou “anexo ambiental”, enviado pela União Europeia como requisito para seguir adiante com o que seria a etapa final do acordo com o Mercosul —ainda que já houvesse um texto pré-aprovado em 2019.

“Também fiquei irritado com isso, tenho simpatia pela posição de Lula, e porque muitas vezes no exterior se fala de nossos problemas sem conhecerem bem a situação”, afirmou Peña. E acrescentou: “Acontece o mesmo quando sempre se associa o Paraguai com o contrabando e o narcotráfico na Tríplice Fronteira. Só que a região não é só do Paraguai, são três países. E há muito o que dizer sobre os intercâmbios comerciais legais e positivos que passam por ali.”

A coluna teve acesso, em colaboração com o jornal paraguaio ABC Color, à “side letter” que até agora não havia sido divulgada e circulava apenas entre os negociadores.

O texto, de tom duro, exige que o Acordo de Paris seja cumprido, sob risco de punição em caso contrário — algo que não constava do texto original e meta que nem sequer foi alcançada por vários países europeus.

Outro requisito é “interromper e reverter a perda florestal e a degradação da terra até 2030, ao mesmo tempo que se promova o desenvolvimento sustentável e se impulsione uma transformação rural inclusiva”. Para isso, diz o texto, haverá uma “meta intermediária de redução do desmatamento de pelo menos 50% em relação aos níveis atuais até 2025”. Ou seja, um prazo curtíssimo para solucionar questões históricas dos países.

Também em um tom de exigência, a União Europeia diz que o acordo implicará que os países não possam “reduzir seus padrões ambientais ou trabalhistas com a intenção de atrair comércio ou investimento estrangeiro”. O documento também fala de compartilhamento de informações sobre metas nacionais e monitoramento sobre o cumprimento delas.

Uma fonte do governo paraguaio afirmou que se trata de um documento de cumprimento quase impossível, com muitas cascas de banana; que é preciso ainda trabalhar muito, porque contempla convenções ou disposições que não competem ou não contemplam o Mercosul, nem mesmo a muitos Estados-membros da União Europeia.

Outra fonte, do lado brasileiro, afirmou que a avaliação é de que o novo documento não dá espaço para que o Mercosul discuta o que a União Europeia quer e coloca o bloco sul-americano como mero acompanhante dessas exigências. O Brasil pedirá que o acordo se dê mais na base da colaboração mútua do que na de exigências.

As negociações para tentar fechar o acordo UE-Mercosul se arrastam há mais de 20 anos. Mesmo com um texto aprovado em 2019, não entrou ainda em vigor porque precisa ser ratificado pelos Parlamentos de todos os 31 países. Há uma resistência crescente com relação a produtores agrícolas em alguns países, como a França.

O adendo contém finalidades nobres e temas de fato urgentes ante a mudança climática e com relação à preservação do meio ambiente. Por outro lado, tem um tom quase hostil que sugere que, na verdade, o que a União Europeia deseja mesmo é adiar uma decisão.

Seria o protecionismo de sempre, só que agora disfarçado de preocupação verde.

Quem quer ser professor? por Priscilla Bacalhau

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Os que persistem na profissão apesar de todos os desincentivos enfrentam um achatamento da carreira

Priscilla Bacalhau, Doutora em economia, consultora de impacto social e pesquisadora do FGV EESP CLEAR, que auxilia os governos do Brasil e da África lusófona na agenda de monitoramento e avaliação de políticas

Folha de São Paulo, 04/08/2023

A carreira docente na educação básica apresenta uma contradição intrigante. Não é difícil encontrar professoras que têm verdadeira paixão pela docência e uma resiliente dedicação às escolas e aos alunos. O magistério é visto como uma missão, que é seguida heroicamente. Ao mesmo tempo, diante das inúmeras dificuldades enfrentadas, demandas crescentes e baixa valorização, um sentimento de frustração com a profissão as acompanha.

Essa contradição é um reflexo da percepção geral sobre a profissão: por mais que haja motivação intrínseca, a profissão de professor não é atrativa. Diversas pesquisas mostram que menos de 5% dos jovens estudantes do ensino médio afirmam querer ser professor. Esses estudantes que demonstram interesse em ser professor não estão entre aqueles com melhor desempenho acadêmico.

Para os demais, a baixa remuneração, pouca valorização social e planos de carreira desestruturados são fatores determinantes para essa falta de interesse na profissão.

Os poucos que decidem seguir a carreira enfrentam dificuldades na formação. Há grande evasão, em especial na área de exatas, em que 70% dos alunos desistem do curso, segundo o Inep. A grande incidência de cursos a distância é outro desafio da formação inicial dos professores. Estes cursos, de forma geral, precisam ter seus mecanismos de garantia de qualidade da formação revistos, e os estudantes acabam concluindo a licenciatura sem uma formação sólida.

Os que persistem na profissão apesar de todos os desincentivos enfrentam um achatamento da carreira, ou seja, avançam muito pouco e muito lentamente. O piso salarial, que vem aumentando desde a criação da lei do piso nacional em 2008, não é suficiente para garantir uma valorização digna das demandas da profissão, nem condições mínimas de trabalho. Além disso, nem o crescente piso salarial pode ser considerado alto quando se compara com outros profissionais de ensino superior.

Professores são o principal fator dentro dos muros da escola que afetam o aprendizado dos alunos. Portanto, diante da baixa valorização docente, não surpreende que os alunos não estejam aprendendo o suficiente, como apontam todas as avaliações de alcance nacional.

Políticas de valorização e incentivo aos professores são urgentes para tornar a carreira atrativa. Investir no corpo docente já formado é imprescindível para atrair novos jovens, pois é vendo professores motivados e valorizados que novos jovens serão engajados em seguir a carreira de professor. A profissão docente não pode ser apenas para as heroínas que insistem em seguir sua missão mesmo frente a todas as adversidades.