Taxar ultrarricos para distribuir aos pobres é uma medida popular, diz Nobel de Economia

0

Francesa Esther Duflo diz que alguns bilionários já concordam com a taxação de 2% de sua riqueza para proteger os mais pobres das mudanças climáticas

Folha de São Paulo, 21/04/2025

A francesa Esther Duflo, uma das únicas três mulheres a receber o Nobel de Economia, diz estar em um relacionamento de longo prazo com o Brasil.

“Estou em contato bastante próximo com o ministro da Economia, Fernando Haddad, assim como com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. E é sempre um grande prazer interagir com eles”, disse ela à Folha durante visita a São Paulo, na última semana.

Duflo esteve no Brasil para anunciar a inclusão do Insper na Adept, uma aliança internacional para formação em análise de dados, avaliações e políticas públicas sediada no J-PAL  (Laboratório de Ação contra Abdul Latif Jameel), o centro de pesquisas cofundado por ela e sediado no MIT (Massachusetts Institute of Technology), nos EUA.

A economista apoiou a proposta feita pelo Brasil na presidência rotativa do G 20 de criação de um imposto global de 2% sobre a riqueza dos bilionários do mundo para financiar adaptação e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas sobre as populações mais pobres do planeta. “Os países pobres contribuem nada ou muito pouco para as mudanças climáticas, mas experimentam a maior parte dos seus danos”, avalia.

“Alguns ultrarricos já concordam que podem abrir mão de 2% de sua riqueza todos os anos”, afirma Duflo. “Provavelmente, eles mal sentiriam falta desses recursos em suas vidas, mas isso faria uma enorme diferença para o mundo que eles também habitam.”

Segundo a economista, taxar ultrarricos para distribuir entre os mais pobres é uma medida popular. A Nobel de Economia afirma que a implementação deste tipo de imposto parece difícil “porque as pessoas ricas têm muito poder político”. Mas, diz, “elas também precisam de um planeta habitável”.

No Brasil, proposta enviada ao Congresso pelo ministro Haddad para a criação de um imposto mínimo de 10% para quem ganha mais de R$ 50 mil por mês tem apoio de 76% dos brasileiros, segundo pesquisa Datafolha divulgada nesta semana.

Em entrevista à Folha, Duflo explicou porque escolheu trabalhar com o combate à pobreza, como a desigualdade se relaciona às mudanças climáticas e por que há poucas mulheres laureadas com o Nobel de Economia.

Por que a pobreza não é um problema apenas dos pobres?
Em primeiro lugar, porque compartilhamos a condição humana, os valores do humanismo e a solidariedade, o que significa que precisamos nos preocupar com a situação daqueles que mais sofrem com a pobreza, com a guerra e outras coisas. Em segundo lugar, porque a pobreza é um problema para as sociedades. Aquelas que têm muitas pessoas pobres perdem muito de seu potencial e riqueza porque a pobreza impede as pessoas de se tornarem cientistas ou engenheiros ou políticos. Ela empobrece toda a sociedade. É por isso que meu trabalho de vida tem sido combater a pobreza.

Como as mudanças climáticas afetam a pobreza no mundo?
Elas já estão afetando os países pobres hoje e vão afetar ainda mais no futuro por duas razões. A primeira é que esses países tendem a estar em lugares onde já é quente. E, portanto, à medida que o planeta esquenta, eles serão mais afetados por temperaturas que não são adequadas à vida humana. O segundo problema é que as pessoas pobres nesses países estão menos protegidas porque não têm ar condicionado nem acesso imediato a atendimento em saúde e não podem parar de trabalhar, o que quer dizer que é mais provável que elas morram quando está muito quente, ou que experimentem uma renda ainda mais baixa.

Como a luta contra a desigualdade e contra as mudanças climáticas se relacionam?
Elas se relacionam por meio de uma tripla desigualdade. Uma é que as pessoas pobres não contribuem nada para as mudanças climáticas porque suas emissões são muito baixas. Outra é que elas são as mais diretamente afetadas pelos efeitos das mudanças climáticas. E outra ainda é que elas têm menos meios para se proteger. Então, se não interferirmos diretamente na capacidade das pessoas mais pobres de se protegerem dos impactos climáticos, a desigualdade só vai aumentar. E a desigualdade na maneira como as mudanças climáticas impactam as pessoas só vai piorar e piorar.

A Sra tem uma proposta para mitigar os efeitos das mudanças climáticas sobre pessoas pobres. Qual é ela?
Primeiro é preciso observar que os países pobres contribuem nada ou muito pouco para as mudanças climáticas, mas experimentam a maior parte dos seus danos. Depois, é preciso colocar um número nisso para percebermos a extensão do dano. Se você colocar um preço na vida humana, nas perdas agrícolas e nas perdas econômicas, a extensão dos danos das mudanças climáticas a um país como Níger, na África, por exemplo, é algo como US$ 35.000 por pessoa por ano. Isso é o que o mundo, coletivamente, está impondo a Níger.

Considerando-se a trajetória climática mais quente prevista pelo IPCC [Painel Internacional de Mudanças Climáticas], até 2100 haverá 6 milhões de mortes extras no mundo devido à alta de temperatura, e elas serão quase todas em países que hoje são pobres. As emissões que vêm da Europa e dos EUA causam um dano de meio bilhão de dólares todos os anos. Então, precisamos encontrar uma maneira de compensar as pessoas por pelo menos parte desses danos. E, para isso, precisamos arrecadar dinheiro.

Como? Uma das coisas que estou propondo em colaboração com a presidência brasileira no G20 é uma tributação global de 2% dos ultrarricos para um fundo de proteção aos mais pobres. Se tivermos o dinheiro, precisamos descobrir como dá-lo às pessoas. Proponho encontrarmos uma maneira de enviá-lo diretamente para as pessoas que são mais afetadas.

Pesquisas mostraram que, embora aumentar impostos seja uma medida muito impopular, tributar os ultrarricos para financiar políticas para os mais pobres é visto de forma mais favorável.
Essa é uma pesquisa de um francês chamado Adrien Fabre, que analisou uma série de pesquisas de opinião de pessoas na Europa e nos EUA sobre várias soluções para as mudanças climáticas. Ele descobriu que o imposto sobre o carbono é muito impopular, mas a ideia de tributar ultrarricos para redistribuir o dinheiro em outro lugar é muito mais popular. Algo como 80% dos europeus gostam da ideia, e mesmo os americanos não são contra: cerca de 60 ou 70% a aprovam. Então há apoio popular.

Por que então esta é uma medida tão difícil de implementar?
Talvez porque as pessoas ricas têm muito poder político e não estão muito interessadas na ideia. Mas eu gostaria de persuadi-las, e algumas delas já estão persuadidas de que isso é do seu próprio interesse. Não é tanto dinheiro, e elas também precisam de um planeta habitável, e também sofreriam se o aumento da pobreza levasse a conflitos e muita agitação no mundo. Então, alguns ultrarricos já concordam que podem abrir mão de 2% de sua riqueza todos os anos. Provavelmente, eles mal mal sentiriam falta desses recursos em suas vidas, mas isso faria uma enorme diferença para o mundo que eles também habitam.

No Brasil, um país de grande desigualdade, a proposta do atual governo de isentar pessoas mais pobres de impostos é vista favoravelmente, mas a de aumentar impostos dos ultrarricos é tratada como algo que pode inibir investimentos e gerar fuga de capitais. Esses receios são reais?
Há muita evidência mostrando que tributar pessoas mais ricas não limita investimentos. Isso porque, no final das contas,  os bilionários tem tanto dinheiro que o que importa para eles é ser mais rico do que seus amigos —e os impostos não mudam isso. Já a fuga de capitais é uma questão quando um país age sozinho porque, em muitos lugares –o Brasil entre eles–, é fácil enviar capitais para paraísos fiscais. Aí entra a importância da cooperação internacional na tributação para que haja registro sobre onde o dinheiro está de modo que um país possa ir atrás dos ativos de seus cidadãos enviados para outro lugar. Ainda melhor seria coordenar uma medida em que todos os países tributarem ultrarricos em 2% por ano. Aí, a fuga não faria sentido.

Ainda assim, há estudos em países nórdicos que apontaram que a fuga de capitais em resposta ao aumento da tributação é real, mas bem menor do que se pensava. Talvez o problema fosse pior no Brasil, onde as pessoas já estão mais conectadas ao mundo exterior. Portanto, é um problema a ser levado a sério, mas que pode ser resolvido com países trabalhando juntos, como no processo que o G20 lançou

Algumas medidas de combate à pobreza são tratadas como falsos remédios. Programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, já foram criticados sob a premissa de que não se deve dar o peixe, mas ensinar a pescar…
Este ditado em particular é um dos grandes clichês no desenvolvimento, o que é particularmente irritante, na minha opinião. Há um estudo recente de Dean Karlan e Chris Udry que revisou 130 pesquisas sobre 72 programas de transferência de dinheiro que mostram efeitos enormemente positivos em todas as dimensões da vida dos beneficiários. Então, podemos levar as pessoas a sério em sua capacidade de usar bem o dinheiro e deixarmos o paternalismo de lado. Há coisas que não podem ser fornecidas com dinheiro e que também podemos fazer, como oferecer boas escolas.

Como você avalia o Bolsa Família?
Ele foi muito avaliado e copiado em muitos países, onde também foi submetido a avaliações randomizadas rigorosas, e se mostrou muito eficaz em melhorar a educação e a saúde das pessoas. A única coisa que aprendemos desde que o programa foi iniciado é que condicionalidades estritas não são necessárias. É possível atingir os mesmos objetivos com condicionalidades mais brandas, que sinalizem que o programa é para ajudar na educação e saúde das crianças e jovens sem que necessariamente a transferência seja retirada quando as pessoas não estão cumprindo as contrapartidas. No Brasil, é bastante óbvio que o programa pode ser creditado por uma enorme queda na pobreza.

Você foi uma das três únicas mulheres laureadas com o Prêmio Nobel de Economia. Como interpreta essa presença feminina?
Quando recebi o Prêmio Nobel, em 2019 também era a única que estava viva porque Elinor Ostrom [laureada em 2009] havia falecido [em 2012]. Três não são suficientes, mas isso é um reflexo do fato de que não há muitas mulheres na economia. Mulheres são menos propensas a fazerem doutorado em economia. Estudantes de doutorado mulheres são menos propensas a se tornarem jovens professoras. Jovens professoras são menos propensas a obter estabilidade. Como economistas, tendemos a pensar que devemos deixar as coisas seguirem seu curso porque chegarão ao lugar certo. Mas acho que percebemos, nos últimos anos, que há algumas estruturas sobre a profissão que não a tornam muito amigável para mulheres, em particular por causa de uma espécie de cultura agressiva, que não é útil. Muitos departamentos estão fazendo esforço para mudar isso. O resultado deve aparecer nos próximos anos, espero.

Raio-X

Esther Duflo, 52, é Professora de Alívio da Pobreza e Economia do Desenvolvimento no Departamento de Economia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos EUA, e cofundadora e codiretora do Laboratório de Ação contra a Pobreza Abdul Latif Jameel (J-PAL). Recebeu o Nobel em Economia “por sua abordagem experimental para aliviar a pobreza global” em 2019.

 

O lado esquecido do imperialismo dos EUA, por Lauro Mattei

0

Lauro Mattei – A Terra é Redonda – 19/04/2025

Para Donald Trump e seus séquitos só existe uma nação americana: os Estados Unidos

1.

A eleição e as ações iniciais do governo de Donald Trump parecem ir mais além de uma simples “guerra comercial” como tem sido divulgado frequentemente. Com sua pose de imperador do mundo, Donald Trump e seus asseclas pretendem retomar doutrinas imperialistas de séculos passados como forma de demonstração de poder absoluto sobre todas as demais nações do planeta.

Na essência, percebe-se que a ação de Donald Trump na esfera comercial global busca encobrir um problema doméstico, especialmente em termos do fracasso das políticas sociais norte-americanas que se reproduz no comportamento de fúria e ódio da classe média, a qual se frustrou com o cenário econômico que faz com que o “sonho americano” fique cada vez mais distante. Em grande medida, decorre daí o respaldo obtido por Donald Trump em relação às políticas protecionistas que estão sendo adotadas, bem como o apoio aos ataques proferidos contra os imigrantes, especialmente da América Latina e Caribe.

Para fazer frente a este cenário político complexo, Donald Trump está procurando reavivar para o presente a “Doutrina Monroe” definida pela política externa dos Estados Unidos em 1823. Ao impedir a interferência de países europeus no Continente Americano, tal doutrina reforçou o imperialismo dos Estados Unidos no referido local e permitiu, inclusive, que esse país realizasse todos os tipos de intervenção em países da América Latina e Caribe e também em países da América Central.

2.

Apenas recordando que o tema do imperialismo foi discutido sistematicamente por John A. Hobson em 1902. Esse autor o considerou como sendo um fenômeno decorrente do processo de acumulação de capital que foi fortemente potencializado após as revoluções industriais. Esse assunto foi retomado por Vladímir Lênin em 1916 em sua obra clássica Imperialismo, fase superior do capitalismo, momento em que são analisadas as distintas características do imperialismo que movem sua existência: a luta política pela partilha do domínio no mundo.

De um modo geral, pode-se dizer que a política dos Estados Unidos para o conjunto de países que fazem parte do continente americano baseia-se no exercício do domínio por meio dos poderes econômico, político, cultural e militar, estando ela assentada nas ideias de superioridade e de submissão dos demais aos seus interesses. Tais pressupostos estão ancorados na presunção com que se autodenominam: a América. [1] Ou seja, para Donald Trump e seus séquitos só existe uma nação americana: os Estados Unidos.

Portanto, não há nenhuma novidade quando o presidente Donald Trump se refere à América do Sul e Central como “quintal dos EUA”. O senhor Pete Hegseth, secretário de defesa dos EUA, em entrevista ao canal Fox News no dia 10.04.2025, assim se manifestou: (a) criticou o avanço da China na região utilizando-se do Canal do Panamá; (b) criticou o ex-presidente Barack Obama por ter deixado a China atuar na América do Sul e Central impondo sua influência econômica e cultural, além de ter feito “acordos ruins” com governos locais; (c) ressaltou que os EUA farão tudo o que for possível para interromper a influência chinesa na região, bem como as ameaças que a China representa para o hemisfério; (d) finalmente destacou a posição do presidente Donald Trump: “não mais, nós vamos recuperar o nosso quintal”. Para Donald Trump, a China “cresceu nesse quintal” durante os últimos governos democratas.

Em visita oficial recente ao Panamá, o secretário Pete Hegseth externou novamente o desejo de Donald Trump de que os EUA voltem a comandar o canal como era até 1999. Além disso, informou que haverá aumento das forças americanas nas antigas bases militares, além de solicitar isenção das taxas aplicadas às embarcações militares dos EUA, cujo movimento é elevado.

No mesmo evento, o secretário saudou a decisão do governo do Panamá de ter declinado de sua participação no projeto chinês da “nova rota da seda”, programa que, por um lado, promove a expansão de obras de infraestrutura e, por outro, busca a cooperação no âmbito de interesses mútuos. Registre-se que o canal do Panamá continua sendo estratégico para os EUA, uma vez que por ele passam 40% de todos os conteiners dos EUA, bem como 5% de todo o comércio mundial.

3.

A China se manifestou duas vezes sobre esses assuntos acima mencionados. Na primeira delas afirmou que o governo de Donald Trump está chantageando o governo do Panamá, uma vez que acordos comerciais são decisões soberanas dos países, portanto interferências externas são inaceitáveis.

Na segunda, a China rebateu mais fortemente a visão de Donald Trump sobre a América Latina e Central: os povos latino-americanos buscam suas independências e não querem doutrinas de dominação porque buscam construir seu próprio lar sem ser quintal de ninguém.

Neste sentido, nota-se que há mais elementos centrais que fazem parte do lado esquecido do imperialismo dos EUA, além da guerra comercial que esse país vem travando globalmente, porém em particular com a China: cortes expressivos nos programas mundiais de ajuda humanitária; retirada do país dos principais organismos e agências da Organização das Nações Unidas (ONU); culpabilização dos países latino-americanos pelo avanço das drogas na sociedade Estadunidense; culpabilização dos imigrantes latinos pelos problemas estruturais do mercado de trabalho dos EUA; etc.

Por fim, acreditamos que a maioria dos latino-americanos não tem nenhum apreço pelos desejos do presidente dos EUA, uma vez que seus quintais são providos de jardins com flores que simbolizam o amor e a paz entre os povos e não pelo ódio e pela guerra que nutrem cotidianamente a mente de um psicopata.

*Lauro Mattei é professor titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e do programa de pós-graduação em Administração, ambos na UFSC.

Notas

[1] Nunca é tarde relembrar ao senhor Trump que o Continente Americano é composto por três regiões geográficas com os seguintes países: América Latina e Caribe (33 países); América Central (7 países) e América do Norte (3 países). Portanto, as Américas não se restringem apenas ao país que ele governa atualmente.

Lições de um jovem magistrado, por Oscar Vilhena Vieira

0

Poder e autoridade judicial são fenômenos semelhantes

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023).

Folha de São Paulo, 19/04/2025

Certa vez fui despachar com um jovem magistrado, que me interrompeu no meio de uma frase: “Já entendi, o senhor está dizendo que eu errei”. Percebendo a minha perplexidade, voltou-me sua folha de anotações, onde estava escrito, em letras garrafais: “Errei!!! Corrigir”, numa clara demonstração de que sua autoridade não estava em jogo.

Poder e autoridade judicial são fenômenos semelhantes. Ambos se referem a capacidade de um juiz ou tribunal de impor conduta a outro agente. O respeito à autoridade judicial, no entanto, está intrinsecamente associado à imparcialidade, objetividade e rigor com que um juiz ou tribunal aplicam a lei. Já a submissão ao poder judicial decorre, sobretudo, do medo de sofrer alguma forma de coerção.

Os atritos entre a Justiça do Trabalho e o Suprema Tribunal Federal têm origem na forma equivocada como o Supremo vem aplicando a legislação trabalhista, assim como as normas constitucionais relativas ao direito do trabalho, nos últimos anos.

Sob o pretexto de que a Justiça do Trabalho estaria confrontando a jurisprudência do Supremo, diversos de seus ministros têm cassado decisões proferidas por juízes e tribunais do trabalho que, no exercício de suas competências constitucionais, detectaram a existência de fraude na contratação de trabalhadores, por meio de pessoas jurídicas.

A pejotização é um neologismo cunhado para designar um tipo de fraude contratual, voltada a suprimir o acesso do trabalhador aos seus direitos previstos na Constituição e na legislação trabalhista, além de promover a evasão fiscal e previdenciária.

Não importa se por preconceitos contra os trabalhadores CLT, viés ideológico, ou por simples desconhecimento da legislação trabalhista, inúmeras decisões do Supremo vêm incentivando a substituição de contratos de trabalho por contratos civis ou comerciais com pessoas jurídicas (MPE e MEI), compostas na grande maioria dos casos apenas pelos seus sócios proprietários. Esses “empreendedores”, no entanto, continuam mantendo relação de trabalho marcada pela pessoalidade e subordinação.

Sob a justificativa de valorizar a livre iniciativa e formas mais flexíveis de relações de trabalho, a postura do Supremo tem permitido que um número cada vez maior de empregadores deixe de recolher devidamente encargos sociais, como INSS, FGTS ou PIS, ampliando a crise da previdência e sobrecarregando os setores que contratam de acordo com a CLT e cumprem com as suas obrigações patronais.

Paralelamente, esse esquema também favorece a evasão do imposto de renda, por parte de trabalhadores contratados através de pessoas jurídicas, contribuindo para ampliar ainda mais a já perversa regressividade de nosso sistema tributário. Estima-se uma redução de cerca de 88% no valor de imposto de renda a ser recolhido com esse esquema. Desnecessário lembrar que, no país dos privilégios, essa redução de imposto de renda favorecerá, sobretudo, os trabalhadores mais ricos.

A postura do Supremo, por fim, tem contribuído para a precarização das relações de trabalho, impedindo o acesso do trabalhador a direitos básicos estabelecidos pela Constituição, como descanso semanal remunerado, limitação da jornada de trabalho ou décimo terceiro salário, além de não ser discriminado em face de sua raça ou gênero.

Torço para que o Supremo não use o seu poder para ganhar o braço de ferro com a Justiça do Trabalho. Ao julgar a tese de repercussão geral 1389, o tribunal terá a oportunidade de corrigir a confusão por ele criada e, como fez o jovem magistrado, restabelecer sua autoridade.

 

O privilégio dos EUA está em xeque? Solange Srour

0

Se perder posto de principal fornecedor de ativos seguros, seus mercados sofrerão com choques fiscais

Solange Srour, Diretora de macroeconomia para o Brasil no UBS Global Wealth Management.

Folha de São Paulo, 17/04/2025

A recente disparada nos juros dos títulos do Tesouro americano (Treasuries) tem sido atribuída por muitos à liquidação de posições alavancadas baseadas nesses ativos. Embora esse fator técnico tenha contribuído, a raiz do movimento parece ser bem mais profunda: a erosão do privilégio exorbitante dos Estados Unidos no sistema financeiro internacional.

Desde a Segunda Guerra Mundial, os EUA desfrutam do status de principal fornecedor global de ativos seguros. Essa posição lhes permite financiar déficits fiscais recorrentes, com o apoio de investidores estrangeiros dispostos a aceitar rendimentos menores em troca da segurança e liquidez dos Treasuries.

Historicamente, em momentos de crise —como na crise financeira global de 2008— esses investidores atuaram como estabilizadores. No último trimestre daquele ano, por exemplo, absorveram US$ 270 bilhões em Treasuries, mais da metade das emissões do período, mesmo com os EUA apresentando déficits nominais acima de 9% do PIB. O resultado foi a manutenção dos juros em patamares baixos, ancorados pela confiança na segurança dos ativos americanos.

Esse quadro, porém, vem se transformando. Desde a pandemia, surgiram sinais de ruptura. Em março de 2020, em vez da clássica “fuga para a qualidade”, o mundo vendeu US$ 400 bilhões em Treasuries, especialmente de longo prazo, o que forçou o Federal Reserve a intervir, comprando mais de US$ 1 trilhão. Outro momento crítico ocorreu com a eclosão da guerra na Ucrânia, quando as Bolsas caíram fortemente e os títulos americanos perderam valor na sequência.

Tudo indica que demanda estrangeira se tornou mais sensível ao preço. Paralelamente, os bancos centrais —que por anos acumularam esses títulos em seus balanços— passaram a se retrair. O fim do afrouxamento quantitativo e o retorno da inflação forçaram o Fed (e outros bancos centrais) a interromper a expansão de seus balanços, reduzindo a absorção de risco e pressionando os juros.

Entre 2007 e 2022, o Tesouro emitiu quase US$ 19 trilhões em títulos. O Fed absorveu US$ 5,15 trilhões e o restante do mundo, US$ 5,36 trilhões. Essa base de compradores inelásticos sustentou a demanda mesmo com déficits crescentes. Mas essa realidade pode estar mudando —e antes mesmo de o governo Trump trazer como prioridade a eliminação do seu déficit em conta-corrente. Caso os EUA precisem equilibrar sua conta-corrente, o investidor estrangeiro deixará de ser financiador líquido, exigindo a sua substituição pela poupança doméstica.

Essa mudança de comportamento do mercado é especialmente preocupante diante do quadro fiscal atual. A renovação dos cortes de impostos, que Trump pretende aprovar no Congresso, pode adicionar US$ 37 trilhões aos déficits nas próximas três décadas, elevando a dívida pública para mais de 200% do PIB.

Esse cenário lembra a trajetória do Reino Unido no século 20. No século 19, Londres era o centro financeiro global. Mas, entre as duas guerras, perdia esse status à medida que seus fundamentos fiscais se deterioravam. Com o fim da hegemonia britânica e o nascimento de Bretton Woods, o dólar assumiu a liderança como reserva de valor.

O episódio britânico de 2022 é emblemático sobre como, sem o status de reserva global, os mercados punem rapidamente países com fundamentos frágeis. O anúncio de cortes de impostos sem compensações levou a uma reação agressiva dos mercados: os juros dos títulos de dez anos subiram mais de cem pontos-base em um curto período, e a libra caiu para mínimas históricas.

Se os EUA perderem sua posição como principal fornecedor de ativos seguros, seus mercados podem passar a se comportar como os das demais economias —altamente sensíveis a choques fiscais. O privilégio exorbitante não desaparece de forma abrupta, mas os sinais de fratura são cada vez mais evidentes.

Sem o amparo irrestrito de investidores estrangeiros e bancos centrais, a disciplina fiscal volta a ser inegociável.

 

O editorial do Estadão, por Carlos Eduardo Martin

0

Carlos Eduardo Martins – A Terra é Redonda – 16/04/2025

A grande razão do atoleiro ideológico em que vivemos não é a presença de uma direita brasileira reativa a mudanças nem a ascensão do fascismo, mas a decisão da socialdemocracia petista de se acomodar às estruturas de poder

O editorial do jornal O Estado de S. Paulo de 12 de abril, contrário à anistia para Jair Bolsonaro e aos demais criminosos do 8 de janeiro, e crítico à posição assumida por Tarcísio de Freitas em favor do PL da anistia, revela o drama da velha oligarquia burguesa no Brasil. Não confia em Jair Bolsonaro, mas sem liderança política própria, é obrigada a fazer um pacto com o Partido dos Trabalhadores, que se presta ao papel de salvar uma burguesia parasitária, rentista, colonial e subdesenvolvida.

Estamos no meio de uma brutal crise orgânica da reprodução do capitalismo no Brasil. O PIB per capita brasileiro não cresce em dólares constantes desde 2013, oscilando entre soluços que não reverteram a tendência à baixa (ver Cepalstat), mas somos incapazes de oferecer uma alternativa ideológica ao nosso povo.

A grande razão do atoleiro ideológico em que vivemos não é a presença de uma direita brasileira reativa a mudanças nem a ascensão do fascismo, mas a decisão da socialdemocracia petista de se acomodar às estruturas de poder prevalecentes ao invés de lutar pelas grandes causas populares. Prefere a garantia de cargos, salários e remunerações no Estado – que alimentam a sua máquina partidária –, a enfrentar as grandes questões sociais, nacionais e democráticas – que podem ameaçar a sua estabilidade política imediata.

É falsa a tese de que as esquerdas não têm força porque existe o “pobre de direita”, produto da sua conversão à classe média baixa e da ofensiva fascista. A classe média brasileira é muito mais restrita e mais de 70% das famílias recebem remuneração abaixo do salário-mínimo necessário estipulado pelo DIEESE. A onda fascista existe, mas não possui toda essa força e encontra-se em crise de liderança e organização. A raiz da crise ideológica é a capitulação de classes do petismo, que desistiu de realizar transformações sociais no país para realizar a sua: converter-se em parte da elite burguesa brasileira.

Em 2006 a socialdemocracia petista teve mais votos que Jair Bolsonaro em 2018 e 2022, 12 ou 16 anos depois, sem o apoio dos dois maiores partidos do centrão de então (PSDB e PFL), da rede Globo e da grande burguesia liberal. A conversão de classes que desarmou a ideologicamente o povo brasileiro é a da elite petista e parte de seus militantes orgânicos a frações da burguesia, em particular, as médias e pequenas. Não foi a suposta ascensão dos extremamente pobres à classe média baixa.

A descoberta pontual e tardia petista de que no Brasil há uma direita refratária a mudanças sociais e políticas, usada para justificar a composição com as estruturas de poder e a capitulação, tampouco é aceitável, e revela grave manipulação oportunista. O que esperar de uma direita que levou ao suicídio de Getúlio Vargas? Que tentou o golpe de Estado em 1961? Que o conquistou em 1964? Que deixou impune o terrorismo de Estado em uma anistia que contraria o Tratado Interamericano de Direitos Humanos? Que estabeleceu outro golpe em 2016, impondo ainda o teto de gastos por emenda constitucional?

Houvesse no Brasil uma direita sensível às questões sociais, a urgência de uma esquerda de fato não seria tão grande. Sua absoluta necessidade vem de que as mudanças sociais e políticas dependem de uma vanguarda disposta a se arriscar na luta política, social e ideológica para promover o avanço da consciência de classe de um povo que dedica o seu cotidiano à sobrevivência.

No Brasil de hoje, a luta de classes se dá principalmente o plano interburguês entre os seguintes segmentos do grande capital:

(i) De um lado, o rentismo e a burguesia ilustrada, representados pelos grandes bancos brasileiros e o grande monopólio midiático da Globo, associados à liderança política da socialdemocracia petista e a sua capacidade de cooptar movimentos sociais, personalidades da cultura e da ciência e neutralizar o fascismo. Essa aliança se vincula contraditoriamente ao imperialismo liberal, representado pelo Partido Democrata e as forças multipolares impulsionadas pelo BRICS.

(ii) Do outro lado, estão o agronegócio, o extrativismo, as igrejas neopentecostais e as milícias. Em resumo, a grande burguesia do baixo clero, mas emergente em razão da desindustrialização brasileira, que se associa ao neofascismo.

O primeiro grupo impulsiona as taxas de juros reais mais elevadas para fortalecer os bancos nacionais, e não é casual que a Selic deflacionada tenha sido bem mais alta nos governos petistas que nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. O segundo grupo pretende promover a internacionalização financeira e a dolarização do país, pratica um arrocho fiscal brutal – com cortes nos gastos sociais e no custeio para atingir o conjunto dos trabalhadores e servidores públicos da educação e da saúde, organizadores das greves mais importantes do país nos últimos 15 anos –, e pretende expandir a fronteira agrícola e extrativista ampliando a superexploração da natureza e dos trabalhadores.

Essas forças representam as duas vias da tragédia brasileira. Encarnam formas distintas de modernização da dependência, do subdesenvolvimento e do legado colonial que mantêm o Brasil como uma nação de excluídos e um Estado muito abaixo das potencialidades que se abrem, num mundo multipolar e de transição energética, aos países continentais, anfíbios, dotados de recursos estratégicos e de uma população mestiça com imensa riqueza cultural e possibilidades de criação.

Nesse contexto, não surpreende o isolamento da minoria do PSol e de líderes como Glauber Braga, que se dedicam a combater intransigentemente o neoliberalismo e o fascismo, desvelando suas vinculações ou proximidades. A articulação de sua cassação na Comissão de Ética da Câmara de Deputados enquanto Arthur Lira – que a lidera, já sem o comando da casa – partia em viagem na comitiva presidencial de Lula para o Japão, e o silêncio no Palácio da Alvorada, são reveladores da extensão do incômodo que uma esquerda combativa pode causar.

Entretanto mesmo quando vencida ou derrotada, sua razão de existir permanece como necessidade histórica. Ganhando ou perdendo, Glauber Braga fica na história sufocada do Brasil profundo, que mais cedo ou mais tarde poderá se levantar, esgotadas as ilusões com forças decadentes e mantidas acesas as chamas e as centelhas da renovação da luta popular e democrática.

Carlos Eduardo Martins é professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (Boitempo).

 

Momentos preocupantes

0

O mês de abril está trazendo grandes movimentações nos cenários nacional e internacional, os agentes econômicos e produtivos estão passando por instantes de grandes preocupações, medos e pouca previsibilidade, desta forma, os investimentos produtivos se reduzem, as incertezas crescem, a insegurança dos trabalhadores aumenta e as organizações passam a repensar suas estratégias e seu planejamento econômico, buscando se adaptarem ao momento de volatilidades e grandes mutações no mundo dos negócios.

Vivemos um momento de conflitos comerciais e geopolíticos entre atores econômicos gigantescos, com impactos generalizados para toda a comunidade internacional, embora percebamos os momentos preocupantes que permeiam a sociedade mundial, sabemos também que nenhum dos grandes estrategistas de mercado, de acadêmicos renomados e de intelectuais que estudam a sociedade global, sabem o que vai acontecer com a sociedade global nos próximos meses, na verdade, atualmente, as modificações estão acontecendo não mais nos próximos meses, mas percebemos que as transformações estão acontecendo diariamente, discursos inflamados, além de publicações nas redes sociais e comentários agressivos e pouco educados, deixando de lado os tradicionais discursos diplomáticos.

Neste momento de crescimento da instabilidade e da volatilidade, percebemos o crescimento de um verdadeiro vale tudo global, onde as regras internacionais foram alteradas, leis criadas e assinadas por inúmeras nações, para fomentar o comércio e as trocas internacionais, estas regras estão sendo deixadas de lado, cada nação busca aumentar seus ganhos imediatos, deixando claro o incremento do individualismo e a sua busca frenética por mais  vantagens comerciais e financeiras, além de ganhos políticos e um melhor posicionamento na nova configuração de poder global.

Vivemos uma verdadeira guerra comercial, onde encontramos uma nação que vem perdendo espaço na estrutura industrial global e busca, de forma agressiva e violenta, retomar sua força e reencontrar seus instrumentos para retomar a liderança global, mesmo que para isso, sejam necessárias uma reestruturação de todo o comércio internacional e as instituições multilaterais. Neste momento, os Estados Unidos da América, grande ganhador das estruturas comercial e industrial do pós-segunda-guerra mundial, tenta alterar as regras e as convenções que eles mesmos foram patrocinadores, desta forma, percebemos que quando as regras não mais garantem sua liderança e sua hegemonia, as regras devem ser reescritas em prol de seus interesses imediatos e seus ganhos materiais.

Neste embate contemporâneo, encontramos resistências crescentes, governos nacionais adotam represálias no comércio internacional, países buscam novos parceiros no mundo das trocas produtivas, atraindo novos fornecedores e, desta forma, criam novos espaços de integração, novos interesses econômicos e produtivos e, neste cenário, ressurgindo novos nacionalismos e novas políticas protecionistas que, no começo do século anterior levou as nações a grandes conflitos militares, guerras fratricidas, além da matança de milhões de pessoas e patrocinaram devastações materiais.

As crises globais, em curso na sociedade contemporânea, as destruições ambientais, o incremento das guerras comerciais, o ressurgimento de nacionalismos exacerbados, a aversão aos imigrantes e a escalada militar que crescem no íntimos dos indivíduos, podem ser vistos como o primórdio de grandes conflitos bélicos e militares ou, o momento crucial para compreendermos que os desafios são gigantescos e a união entre povos e culturas são o começo da resolução da encalacrada que estamos vivendo na contemporaneidade, fruto do crescimento do egoísmo, da ganância, do individualismo e da busca frenética por acumulação material e os prazeres imediatos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

O consenso neoliberal, por Gilberto Maringoni

0

Gilberto Maringoni – A Terra é Redonda – 15/04/2025

Há chances mínimas do governo Lula assumir bandeiras claramente de esquerda no que lhe resta de mandato, depois de quase 30 meses de opção neoliberal na economia

No início de março, em evento na sede do BTG Pactual, Edinho Silva, ex-prefeito de Araraquara e candidato a presidente do Partido dos Trabalhadores, debateu a situação do país e do governo Lula com representantes do sistema financeiro. Em meio à defesa de maior aproximação da administração federal com o mercado, o petista enfatizou: “Com a polarização não há racionalidade, com a polarização não se concebe (…) uma agenda de unidade para o país, independentemente de divergências partidárias”.

A “polarização”, tida como grande mal da vida política, tem aparecido em editoriais, artigos de opinião e declarações de líderes políticos e intelectuais brasileiros com ênfase crescente. O que significa acabar com a polarização num dos países mais desiguais do mundo?

Convergências na economia

A defesa do “fim da polarização”, da maneira como colocada pelo dirigente petista, aparenta ter grande contraste com a extrema-direita, mas revela o seu contrário quando o debate chega à economia. A pregação de Edinho Silva tem como meta resolver um problema de médio prazo – articular uma frente eleitoral que se oponha ao neofascismo em 2026 – e não realizar mudanças profundas na estrutura institucional do país. Deveria haver uma continuidade lógica entre as duas iniciativas – eleições e mudanças –, mas não é o que ocorre.

Ao mesmo tempo, ver a polarização com o maior dos males da Terra pode embutir um misto de ilusão, oportunismo e tergiversação diante de um quadro de riscos colocados para a democracia brasileira. Se raciocinarmos que as propostas da extrema-direita são incompatíveis com a institucionalidade, a polarização torna-se necessidade vital. É algo a ser acentuado – e não lamentado – para que a população tenha clareza do que está em jogo e possa fazer escolhas com clareza. A experiência do governo Bolsonaro mostra o caráter golpista, autoritário, elitista, negacionista, excludente e submisso ao imperialismo da extrema direita. Como não polarizar com um regime desses?

A visão de que a polarização deve ser evitada coloca na mesa pelo menos três problemas.

O primeiro denota que apesar de todas as tentativas de se encontrar diferenças na condução econômica entre as principais forças políticas do país, o que se percebe é o contrário. Há grande convergência – num arco que vai do centro à extrema direita – sobre a necessidade de um ajuste fiscal permanente e redentor, que submeta a ação do Estado à alta-finança.

O segundo problema reside no fato de os contrários à polarização não deixarem claras as bases para a construção de uma hipotética unidade de forças. Da parte da grande mídia e da direita, parece haver certo saudosismo dos tempos do chamado “pensamento único”, utopia neoliberal derivada da famosa frase da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, “Não há alternativa”.

O terceiro é que “polarização” não é algo ou alguém dotado de vontade própria, capaz de impor pontos de vista, como se fosse um ser racional. Reclamar da “polarização” é como lamentar “a briga”, “o desentendimento” ou a “falta de amor” entre as pessoas. “Polarização” é uma relação de oposição entre dois polos, dois pontos de vista, duas condutas.

Com base nesses três pontos, vale perguntar: existe essa oposição real no que interessa – nos projetos econômicos – entre a frente liderada pelo PT e as forças aglutinadas em torno de Jair Bolsonaro? Ambas têm como pedra de toque, em maior ou menor grau, políticas de austeridade.

O consenso neoliberal

A fabricação do consenso neoliberal na sociedade é condição essencial para sua aplicação. Se pensarmos friamente, não é fácil convencer o eleitorado de que cortes em verbas de Educação e Saúde, venda de empresas públicas eficientes e perdas de direitos sociais representam vantagens para as maiorias. Não se trata de uma convergência à qual se chega pelo livre curso de ideias e debates públicos, mas através de uma sólida unidade entre diversos setores do grande capital (o que inclui a mídia e as big techs).

Essa coalizão tem como tarefa principal repetir num uníssono um conjunto de meias verdades e valores duvidosos sem contrapontos. Não falta o uso desmedido da força para sua imposição. Vozes dissonantes foram desqualificadas, ridicularizadas e até eliminadas para a fabricação do grande consenso, que ganhou ares de novo valor civilizatório.

A atual hegemonia neoliberal foi alcançada através da adesão de parte significativa da esquerda. Não nos esqueçamos do papel que tiveram o Partido Trabalhista britânico, o Partido Socialista Operário Espanhol, os Partidos Socialistas francês, italiano e chileno e o peronismo nos anos 1980-90. No caso brasileiro, o modelo neoliberal foi imposto à sociedade a partir do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), tido à época como progressista, e jamais teve suas medidas contestadas na prática pelas administrações do Partido dos Trabalhadores.

O neoliberalismo foi implantado em boa parte do mundo nos anos 1980-90 e vive uma segunda e mais agressiva fase a partir de crise de 2008. Novas modalidades de golpes começaram a surgir na América Latina, através de instâncias do Judiciário e do Legislativo, com auras de legalidade incontestes, como em Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016). A articulação para a deflagração do impeachment contra a ex-presidenta Dilma Rousseff envolveu múltiplos atores no campo dos três Poderes e a nata do capital financeiro e do agronegócio. Foi a famosa frente “com o Supremo e com tudo”, como bem sintetizou o ex-senador Romero Jucá.

A ponte ampla

Meses antes do golpe, no final de outubro de 2015, a direita brasileira colocou na rua sua síntese programática, centrada na pauta econômica. Apesar de Dilma ter entregue quase todas as exigências do mundo financeiro, como um ajuste fiscal que elevou a taxa de desemprego de 6,6% em dezembro de 2014 para 11,3, em março de 2016 (IBGE), o topo da pirâmide social queria mais. Esse “mais” ficou conhecido sob o título de “Uma ponte para o futuro”.

Embalado num livreto de 20 páginas, seu texto resumia um agressivo programa ortodoxo, que compreendia, entre outras coisas, o seguinte: “É necessário em primeiro lugar acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas, como no caso dos gastos com saúde e com educação. (p. 9) (…) Outro elemento para o novo orçamento tem que ser o fim de todas as indexações, seja para salários, benefícios previdenciários e tudo o mais. (p. 10) (…)

“O primeiro objetivo de uma política de equilíbrio fiscal é interromper o crescimento da dívida pública, para, em seguida, iniciar o processo de sua redução como porcentagem do PIB. O instrumento normal para isso é a obtenção de um superávit primário capaz de cobrir as despesas de juros menos o crescimento do próprio PIB. (p. 13) (…) [Será preciso] executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de logística e infraestrutura, parcerias para complementar a oferta de serviços públicos e retorno a regime anterior de concessões na área de petróleo, dando-se a Petrobras o direito de preferência”.

O “Ponte para o futuro” é uma formulação programática, cujos limites não deveriam ser desrespeitados por governo algum. O arrazoado apresentado pelo PMDB, elaborado por alguns dos melhores cérebros do mundo do dinheiro, funcionou como uma espécie de projeto de constituinte financeira para a reestruturação do Estado brasileiro. É uma obra em andamento, que não admite retrocessos nas medidas adotadas.

Baliza para reformas regressivas

O documento se constituiu na baliza para as reformas trabalhista e previdenciária, o teto de gastos e o arcabouço fiscal, as privatizações da Eletrobrás, da BR Distribuidora, do saneamento, das parcerias público-privadas (PPPs), dos programas de parcerias de investimento (PPIs), das concessões de infraestrutura (portos, aeroportos e estradas), da autonomia do Banco Central etc. São alterações para subordinar o poder público às dinâmicas do mercado financeiro e da agroeconomia de exportação.

A ministra Simone Tebet, do Planejamento, em entrevista à jornalista Míriam Leitão no último 12 de março, mostrou a rota do consenso pretendido para os próximos anos: “Em 2027, seja quem for o próximo presidente, ele não governa com esse arcabouço fiscal sem gerar inflação, dívida pública e detonar a economia. Então nós temos uma janela de oportunidade, que não é agora e nem às vésperas das eleições de 2026”, pois ninguém quer tratar disso às vésperas da disputa, afirma a ministra.

A janela de oportunidade, segundo ela, virá após o pleito, “seja o presidente Lula candidato, seja outro candidato, [a tarefa é] fazer o dever fiscal, cortar gastos, (…) fazer um arcabouço mais rigoroso, que não mate o paciente, mas que garanta sustentabilidade para baixar a dívida, os juros, a inflação e faça a economia crescer”.

Seja qual for o governo eleito, a condução econômica deve permanecer intocada, como se opções de investimentos e alocações de recursos públicos fossem realizadas a partir de obscuras diretrizes “técnicas”, a exemplo do que propagam operadores de mercado e membros da área econômica do governo.

Vale sempre perguntar “Técnicas em favor de quem?”, como observou o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019), num pequeno e profético livro intitulado Quem dará o golpe no Brasil?, lançado em 1962. Simone Tebet na prática propõe um golpe consensual entre as grandes forças políticas com representação parlamentar, para engessar a próxima administração.

Diante dessa abrangente somatória de pressões, esforços, consentimentos e concordâncias na aplicação do programa que embalou o golpe contra Dilma, como se pode falar que o traço principal da vida brasileira seja uma “polarização” que não se revela na política econômica?

Grandes interesses intocados

O consenso – e não a polarização – resulta de escolhas feitas para não se colocarem em risco interesses seculares. Em maior ou menor grau, todas elas, nos últimos 30 anos, aprofundaram medidas liberalizantes, enfraqueceram estruturas de Estado nas áreas sociais e de promoção do desenvolvimento.

Ao mesmo tempo, o consenso pela austeridade fiscal é um gerador de tensões e instabilidades, pois implica a sobreposição dos interesses de uma minoria abastada sobre os da maioria da população. Mais do que tudo, sua imposição acima de orientações partidárias geralmente leva governos eleitos com grande expectativa popular a frustrarem suas bases sociais, contribuindo para o senso comum de que “políticos são todos iguais”.

O terceiro governo Lula é resultado da constituição de uma ampla frente política entre contrários, foi essencial para se derrotar a extrema direita, numa situação delicada da vida nacional. Embora a face visível dessa coalizão seja marcada pela presença de lideranças conservadoras, a convergência real envolveu fatia considerável do PIB brasileiro, um amplo espectro partidário, da esquerda à direita tradicional, passando por golpistas de 2016 e setores desgarrados da extrema direita.

No entanto, ao longo do primeiro ano de gestão, ficou claro que a ampla frente tinha como amálgama unificador um severo programa de cortes de gastos, que se aproxima do “Ponte para o futuro”. Embora o governo seja tomado por interesses privados, em especial no Ministério da Educação, que existam compromissos de não se tocar em setores como Forças Armadas, ou em concessões na área de infraestrutura, que sua política externa seja errática e que a política de comunicação siga priorizando relações com a mídia tradicional, com destaque para a Rede Globo, entre outras iniciativas, o governo Lula tem marcadas diferenças com a gestão Bolsonaro, na esfera política. No que toca à democracia, a gestão petista busca se colocar em terreno oposto ao do ex-capitão.

O golpe como ameaça real

Não se podem minimizar as ameaças que rondam o país, desde a tentativa golpista de 8 de janeiro de 2023, até a permanente presença da extrema direita como fenômeno de massas na sociedade. A vitória de Norte a Sul do reacionarismo radical nas eleições municipais de 2024 é expressão desse enraizamento.

Se a polarização não é estrutural nas disputas, qual o motivo da disseminação do ódio e da ameaça autoritária na sociedade? Tudo indica existir uma espécie de briga de torcidas eleitorais nas redes e nas ruas, estimulada e fortalecida por cúpulas partidárias que buscam a todo custo despolitizar as eleições de 2026, tirando de cena uma real disputa de rumos. O confronto entre o que se pode chamar de neoliberalismo progressista e a extrema-direita é uma disputa para se ver quem aplica de forma mais eficiente e com menos conflito social o programa do financismo.

Diante desse dilema, vem a clássica pergunta: o que fazer? Vale destacar que o presidente Lula – como constata com grande apuro o ex-ministro José Dirceu – comanda um governo de centrodireita, sem qualquer expectativa de transformação da estrutura social brasileira. Ainda assim, para a maioria da população, o atual governo é de esquerda e seus principais oponentes estão na direita. É muito difícil que uma candidatura nucleada pelo lulismo seja ultrapassada pela esquerda, tendência de reduzida expressão na sociedade e nos partidos com representação no Congresso.

O enfrentamento eleitoral de 2026, embalado por inteligência artificial, jogo bruto das big techs e tiktoquização programática se dará no terreno da baixaria, das fake news, das pautas carolas, moralistas e repleta de ataques pessoais. É pouco provável que a política esteja no posto de comando das grandes candidaturas. Ao mesmo tempo, há chances mínimas do governo Lula assumir bandeiras claramente de esquerda no que lhe resta de mandato, depois de quase 30 meses de opção neoliberal na economia.

Apesar disso, se a desaceleração planejada pela equipe econômica não sair do controle e se for ampliado algum tipo de alívio material na base da sociedade, será possível enfrentar com chances a extrema direita. Há dois anos havia condições de mudança e o presente poderia ser diferente, mesmo com o crescimento do neofascismo pelo mundo. Antes de 2026 há que se disputar os dias que correm.

Gilberto Maringoni é jornalista e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC).

 

‘Nunca vi um pobre’ por Ana Cristina Rosa

0

Fiquei estarrecida com o relato sobre a euforia e empolgação de um jovem da elite paulistana diante da miséria

Ana Cristina Rosa, Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública).

Folha de São Paulo, 14/04/2025

Quando penso que já vi e ouvi de tudo um pouco, a vida insiste em surpreender. Fiquei estarrecida com o relato sobre a euforia e empolgação de um jovem da elite paulistana diante da miséria. “Nunca vi um pobre”, disse o estudante de uma renomada instituição privada de ensino superior ao participar de uma ação institucional voltada a prestar serviços públicos à população carente e em situação de rua em São Paulo.

Tamanha falta de discernimento e compreensão da realidade brasileira me deixou chocada. Como pode um universitário “bem-nascido, bem-criado, de boa família” e que vive na maior cidade de um dos países mais desiguais do mundo nunca ter visto um pobre?

Não pode. Afinal, a miséria é explícita no Brasil. E, francamente, não deveria empolgar ninguém, mas causar constrangimento e desconforto generalizado (no mínimo). Em Sampa, para “ver um pobre” basta dar uma volta em qualquer quarteirão da avenida Paulista, cartão postal da cidade.

Nem a vida confortável e luxuosa numa mansão (nos Jardins, no Morumbi, na Vila Olímpia ou em qualquer outro bairro nobre) é capaz de “blindar” a elite do contato com a pobreza. Não dá para ignorar que são os pobres que trabalham como babás, empregadas domésticas, cozinheiras, motoristas, jardineiros, porteiros e toda sorte de “eiros” a serviço de quem tem dinheiro de sobra. Pobres e predominantemente negros —é bom que se diga.

Pelas ruas deste país, é impossível deixar de avistar um pobre miserável perambulando, dormindo ao relento, jogado no chão, pedindo esmola ou comida, vendendo alguma quinquilharia ou ‘chapado’ para tolerar a rudeza de um cotidiano privado de esperança.

É desalentador e vergonhoso constatar que a sociedade brasileira continua a formar futuros “líderes” incapazes de sequer enxergar a realidade nacional —que dirá promover a transformação social necessária para fazer deste um país mais justo e menos desigual.

Uma elite que sabe muito, mas entende pouco, por Michael França

0

Entre cafezinhos e distinções formais, ela mal compreende seu próprio país

Michael França, Ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford.

Folha de São Paulo, 15/04/2025

Em uma manhã qualquer, entre um brunch com avocado e uma conversa sobre alguma viagem à Europa, um membro de uma típica parcela da elite brasileira pode ser flagrado cometendo um erro antigo, mas ainda recorrente: confundir experiências internacionais com sofisticação, e credenciais com educação de excelência.

Já faz algum tempo que se sabe que o acúmulo de conhecimento formal não anda, necessariamente, de mãos dadas com o desenvolvimento integral do ser humano. Ainda assim, quando se trata das elites brasileiras, o tema raramente é considerado à altura de sua importância.

Talvez porque seus protagonistas ocupem posições confortáveis demais para serem questionados. Ou, quem sabe, porque a ala mais esclarecida prefira evitar o desconforto de confrontar seus pares que estão blindados pela própria soberba. No fim, uma parte peca pela ignorância, a outra, pela complacência.

Contudo, essa negligência não é acidental. Ela tem raízes profundas na lógica educacional brasileira, que, mesmo em suas melhores versões, funciona menos como instrumento de formação e mais como ornamento de distinção social.

Em vez de expandir horizontes, a educação das elites tende a ser um subterfúgio para um sofisticado mecanismo de hierarquização social. Um filtro de status. Um verniz técnico que, por vezes, encobre uma brutal ausência de interesse em construir uma nação, em vez de apenas se servir dela.

Nossos melhores colégios e universidades até formam especialistas competentes, mas, em muitos casos, deformam cidadãos. Produzem indivíduos altamente eficazes do ponto de vista técnico, mas com baixa sensibilidade social. O custo disso é alto, pois se cria uma elite treinada para administrar, mas não para compartilhar. Uma elite focada em vencer, mas não em conviver.

Existe no país uma pedagogia do privilégio. Uma pedagogia que ensina, desde cedo, que o mundo é um espaço a ser explorado, não construído coletivamente. Ensina-se a liderar, mas não a escutar. Ensina-se a performar, mas não a refletir. E, não raramente, ensina-se uma arrogância disfarçada de competência, juntamente com um desprezo pelas dores e experiências do país real. Aquele que começa logo após os altos muros dos apartamentos e condomínios fechados.

Mesmo nas franjas mais conscientes dessa elite, o problema não é o excesso de educação, mas a estreiteza com que ela é concebida. Ocorre uma formação instrumental, mas sem densidade moral. E, quando essa elite malformada ocupa os espaços de decisão, tende a perpetuar privilégios, naturalizar desigualdades e reforçar estruturas excludentes, muitas vezes com a convicção sincera de estar fazendo o melhor.

Curiosamente, falta-lhe formação para pensar o país como um todo. Além disso, parte significativa ainda vê o Brasil como uma plataforma de extração, não como uma nação a ser construída. A despeito de sua mobilidade internacional, seu imaginário segue provinciano.

Transformar a educação dessas elites exige muito mais do que reformar currículos, exige reformar consciências. Porque um país com elites mal-educadas está fadado a repetir os mesmos erros, porém em versões cada vez mais disfarçadas de excelência.

 

Reflexões de um neto de Keynes, por Eduardo Giannetti da Fonseca

0

Eduardo Giannetti da Fonseca – Folha de São Paulo – 15/10/1998

Existem textos que volta e meia desejo revisitar. Penso neles como penso nas músicas, paisagens e cidades históricas que nos acolhem e surpreendem toda vez que a elas retornamos. São obras dotadas de fecundidade inesgotável. Tesouros de infinita sugestividade.

Ao deleite subterrâneo da repetição -o reencontro periódico com o que nos apraz e comove- junta-se o prazer da surpresa inesperada e reveladora: o arrepio da descoberta de novos ângulos de leitura e possibilidades insuspeitas de fruição. O valor está na química do encontro.

Nesses dias de sombra e apreensão globais, quando o espectro da Grande Depressão dos anos 30 parece rondar a imaginação de tantos, resolvi aproveitar o último feriado para revisitar “As Possibilidades Econômicas para os Nossos Netos” – o belo e provocador ensaio publicado, em 1930, pelo economista britânico John Maynard Keynes e por ele escolhido para encerrar a coletânea “Essays in Persuasion” do ano seguinte.

Não se trata de artigo técnico de economia, mas de uma reflexão abrangente sobre o lugar do econômico e da ambição material na existência humana. O real e o ideal.

Quem nos fala aqui não é o macroeconomista da “Teoria Geral”, mas o filósofo moral e político que sempre dedicou boa parte de seu tempo na Universidade de Cambridge ao convívio e interlocução ativa com filósofos como Bertrand Russell, G.E. Moore e Wittgenstein.

O argumento central do ensaio divide-se em três partes: presente, passado e futuro.

Na primeira, Keynes faz um apanhado do quadro depressivo da época e se insurge contra os dois tipos de pessimismo que percebia ao seu redor: o dos revolucionários (para quem só uma ruptura violenta com o sistema oferecia salvação) e o dos reacionários (para quem qualquer ação inovadora era risco de ruptura do sistema).

A crise, sustenta, não era o reumatismo senil de um mundo caduco, mas sim as dores de crescimento de uma fase de rápida mudança em que as instituições e políticas não puderam acompanhar o ritmo vertiginoso das transformações pelas quais as ações e o ambiente prático vinham passando.

O propósito do ensaio, porém, não era discutir o presente e o futuro imediato. Era imaginar o que poderia vir mais à frente – indagar prospectivamente sobre o tipo de mundo para o qual tenderia a humanidade.

Ultrapassada a tormenta e retomada a trajetória da bonança, inquiria Keynes, “quais são as possibilidades econômicas para os nossos netos?”.

A resposta parte de um retrospecto sinóptico contrastando, de um lado, a estagnação milenar da capacidade produtiva do homem no período que vai da pré-história a meados do século 18 e, de outro, a espantosa expansão verificada a partir de então.

Graças à força combinada da inovação técnica e da acumulação de capital (e apesar do forte crescimento populacional), o padrão médio de vida nos países civilizados havia quadruplicado em apenas dois séculos – um avanço material pelo menos duas vezes superior ao ocorrido em quatro milênios de labuta e evolução histórica até o advento da era moderna.

A continuidade desse avanço, antecipava Keynes, permitiria quadruplicar de novo o padrão de vida do cidadão comum no espaço de mais algumas décadas. Isso significava que “o problema econômico não é, se mirarmos o futuro, o problema permanente da espécie humana”. Tudo indicava que ele poderia ser derrotado, em definitivo, em no máximo duas ou três gerações.

Mas, supondo que isso aconteça, ele pergunta, quais seriam as consequências? Como seria uma sociedade na qual o “problema econômico” – a escassez e a luta no mercado, a ansiedade financeira e a incerteza sobre o amanhã – estivesse de fato em plano secundário, “no assento traseiro que é o seu lugar”, e não mais absorvesse o melhor de nossas energias materiais e morais?

“Quando a acumulação de riqueza já não for mais de alta importância social”, refletia Keynes, “haverá grandes mudanças no código de ética”. O ser humano estará em condições de se desfazer dos falsos princípios morais que o têm acorrentado por séculos a fio e que o levaram a enaltecer alguns dos mais repugnantes atributos, como a avareza, a cobiça e o calculismo financeiro, como se fossem grandes virtudes.

“Estaremos, então”, prosseguia, “em condições de ousar atribuir ao motivo monetário o seu verdadeiro valor: O amor possessivo pelo dinheiro será reconhecido pelo que é, uma morbidez bastante repulsiva, uma dessas propensões semicriminosas e semipatológicas que se conduz com um arrepio para os especialistas em doenças mentais”.

O centro de gravidade da vida humana deixaria de ser o “detestável amor ao dinheiro” e, em seu lugar, a arena dos corações e mentes passaria “a ser ocupada pelos nossos problemas reais – os problemas da vida e das relações humanas, da criação, da conduta e da religião”.

No mundo dos netos de Keynes, os fins valeriam mais que os meios e o bem estaria acima do útil. A busca da melhor vida não se renderia ao sacrifício no altar da prudência.

O valor econômico seria uma estrela menor na constelação dos valores humanos.

Ao terminar a releitura do texto fiquei pensando no que diria Keynes hoje em dia, à luz não só do que se passou desde sua época, mas da crise em que estamos metidos. Fiz uma conta simples: a geração dos netos de Keynes (nascido em 1883, sem filhos) chegaria à idade adulta nos anos 60 e 70.

A prosperidade dos anos dourados do pós-guerra e da globalização triunfante superou as suas mais altas expectativas. Alguns netos de Keynes nos anos 60, é verdade, bem que tentaram, mas o sonho revelou-se anêmico e naufragou.

A impressão que tenho é que estamos mais longe hoje da utopia keynesiana do que quando ela foi formulada. Continuaremos perpetuamente condenados ao túnel da necessidade? Pendurados ao “problema econômico” como preocupação obsessiva e perene da espécie humana?

O mundo clama por um novo Keynes (o economista), que mostre como domar a fera da globalização financeira. Mas o que mais nos falta, suspeito, é um outro Keynes (o filósofo moral) que elucide a natureza da compulsão econômica que a seus netos devora. Ou seria um novo Freud?

A economia para crianças de J. M. Keynes, por Leonardo Boff

0

Leonardo Boff – A Terra é Redonda – 11/04/2025

Keynes não via a economia como algo absoluto em si, mas no conjunto das atividades humanas. Mostrou-se muitas vezes um radical humanista e como tal com forte carga utópica

Nos dias atuais devido à subversão feita por Donald Trump em todos os mercados mundiais, o assunto dominante é a economia e os efeitos das políticas tarifárias impostas por ele. São medidas tresloucadas, aplicadas a toda a humanidade, a 180 países, desestruturando as economias nacionais e prejudicando particularmente a população pobre. Só gente sem coração e sem qualquer senso de humanidade pode tomar medidas desta natureza.

É neste contexto que me refiro ao pai da macroeconomia John Maynard Keynes (1883-1946). Considerado um dos maiores economistas dos últimos tempos, cuja função do Estado, para ele, é o de ser promotor do desenvolvimento ajudou a tirar a Europa da devastação da Segunda Guerra Mundial e deu rumo à economia mundial. Não via a economia como algo absoluto em si, mas no conjunto das atividades humanas. Mostrou-se muitas vezes um radical humanista e como tal com forte carga utópica.

Refiro-me a um texto muito pouco citado. Numa palestra em 1926 dizia: “as divindades que presidem a vida econômica não pode ser outra coisa que gênios do mal; de um mal necessário que ao menos, daqui há um século nos obrigará a fazer crer a cada um e a nós mesmos que a lealdade é uma infâmia e que a infâmia é a lealdade, pois a infâmia nos é útil e a lealdade não”. Em outras palavras – completava –, a humanidade chegará ao consenso de considerar a avareza, a usura e a prudência como indispensáveis para nos tirar do túnel da necessidade econômica a nos levar à luz do dia”.[1]

“Só então se alcançará o bem-estar geral e será o momento em que nossas crianças e esse é o sentido do meu ensaio “Perspectivas econômicas para nossas crianças” finalmente compreenderão que o bem é sempre melhor que o útil.

“Então nem precisam mais se lembrar de certos princípios, os mais seguros e os menos ambíguos da religião e da virtude tradicional: que a avareza é um vício, que é maldade extorquir os benefícios da usura, que o amor ao dinheiro é execrável”.

“Os que caminham seguramente pelo caminho da virtude e da sabedoria serão aqueles que se preocupam menos com o amanhã. E uma vez mais chegaremos a valorizar mais os fins que os meios e a preferir o bem ao útil. Honraremos aqueles que nos ensinaram a acolher o momento presente de maneira virtuosa e prazerosa, pessoas excepcionais que sabem saborear as coisas imediatas, como os lírios do campo que não tecem nem fiam”.

Mesmo que a proposta do humanista do eminente economista não se tenha realizado ainda (irá se realizar?) pois vivemos sob a ditadura do vil metal e da economia especulativa que nada produz a não ser mais dinheiro ainda, deixando grande parte da humanidade na pobreza e na miséria. Perceberá e isso vai continuar valendo que a essência da vida não está no acumular ilimitadamente e no consumir desmedidamente. Mas o sentido da vida consiste em viver a vida, gozá-la, reproduzi-la, celebrá-la, compartilhá-la com outros. Isso não é dado pela economia vigente. Em uma palavra, é o inútil que conta e não o que é economicamente útil.

Seguramente o sábio humanista e economista John Maynard Keynes nos tenha revelado a verdadeira natureza da economia, compreensível mais pelas crianças do que pelos adultos.

Hoje perdemos esta perspectiva e somos todos reféns da cultura do capital que nos obriga a gastar nossas vidas e nosso tempo em trabalhar, em produzir e em consumir no contexto de uma sociedade perversa, cujo ideal é a acumulação sem limite e o consumismo, sociedade que transformou tudo em mercadoria, até as coisas mais sagradas ou vitais como órgãos humanos.

A seguir por este caminho, por mais tarifas que o ensandecido Donald Trump castigue a inteira humanidade, iremos, provavelmente, ao encontro de uma grande tragédia, eventualmente de nosso próprio fim. Merecidamente, pois, não cumprimos o fim para o qual temos sido criados: viver a vida e agradecê-la.

Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Cuidar da Casa comum: pistas para protelar o fim do mundo (Vozes)

Indústria e Progresso, por Luiz Gonzaga Belluzzo

0

Luiz Gonzaga Belluzzo – A Terra é Redonda – 02/04/2025

A evolução da indústria e seu impacto nas economias contemporâneas

Paul Krugman disparou um post no Substack a respeito das políticas de Donald Trump. “Este post é sobre como as políticas de Donald Trump não poderiam ‘nos tornar uma nação manufatureira novamente’, mesmo que conseguissem reduzir muito os déficits comerciais… As pessoas devem entender que seremos uma economia de serviços, não importa o que aconteça, a fixação na manufatura como a única fonte de bons empregos está desatualizada”. Esta consideração de Paul Krugman está ancorada na concepção que privilegia as relações entre três setores: agricultura, indústria (manufatura) e serviços. Primário, secundário e terciário.

Para cuidar do tema dos três setores, seria oportuno tratar da Revolução Industrial. O historiador Carlo Cipolla escreveu: “A Revolução Industrial transformou o homem agricultor e pastor no manipulador de máquinas movidas por energia inanimada”. A ruptura radical no modo de produzir introduziu profundas alterações no sistema econômico e social.

Aí nascem, de fato, novas forma de sociabilidade, a urbe moderna e seus padrões culturais. A diferença entre a vida moderna e as anteriores decorre do surgimento do sistema industrial, que não só cria bens de consumo e os bens instrumentais para produzi-los, como suscita novos modos de convivência entre agricultura, indústria e serviços. Novas formas de “estar no mundo”.

A ocorrência da Revolução Industrial no fim do século XVIII despertou os devaneios de Alexander Hamilton, nos Estados Unidos, com seu Relatório sobre as Manufaturas ou as truculências de Otto von Bismarck, encantado com os maquinismos e a ferrovia.

A indústria não pode ser concebida como mais um setor ao lado da agricultura e dos serviços. A ideia da revolução industrial trata da constituição histórica de um sistema de produção e de relações sociais que subordinam o desempenho da economia à sua capacidade de gerar renda, empregos e criar novas atividades. O surgimento da indústria como sistema de produção apoiado na maquinaria endogeniza o progresso técnico e impulsiona a divisão social do trabalho, engendrando diferenciações na estrutura produtiva e promovendo encadeamentos intra e intersetoriais.

Em seu movimento revolucionário, o sistema industrial deflagrou mudanças na agricultura e nos serviços.

A agricultura contemporânea não é mais uma atividade “natural”, e os serviços já não correspondem ao papel que cumpriam nas sociedades pré-industriais. O avanço da produtividade geral da economia não é imaginável sem a dominância do sistema industrial no desenvolvimento transformador dos demais setores.

Os autores do século XIX anteciparam a industrialização do campo e perceberam a importância dos novos serviços gestados nas entranhas da expansão da indústria. Não há como ignorar, por exemplo, as relações umbilicais entre a Revolução Industrial, a revolução nos transportes e as transformações dos sistemas financeiros no século XIX. São reconhecidas as interações entre a expansão da ferrovia, do navio a vapor e o desenvolvimento do setor de bens de capital apoiado no avanço da indústria metalúrgica e da metalomecânica e na concentração da capacidade de mobilização de recursos líquidos nos bancos.

A introdução dos métodos “industriais” na agricultura e nos serviços vem promovendo o que convencionamos qualificar de hiperindustrialização. Em seu desenvolvimento, a indústria suscitou o avanço do tecnológico nos demais setores. As técnicas e equipamentos modernos – os métodos industriais – atenuaram a subordinação da agricultura aos caprichos da natureza.

Os serviços, apresentados por Paul Krugman como a vanguarda das economias de hoje, sofrem os benefícios do avanço tecnológico. Aí estão a internet e suas redes de comunicação que permitem o comércio eletrônico e o ensino à distância.

A introdução de métodos ‘industriais’ em serviços e na agricultura promove a “hiperindustrialização”.

Ademais, a manufatura contemporânea é conduzida pelo aumento do volume de dados, ampliação do poder computacional e conectividade, a emergência de capacidades analíticas aplicada aos negócios, novas formas de interação entre homem e máquina, e melhorias na transferência de instruções digitais para o “mundo físico”, como a robótica avançada.

É intenso o movimento de automação baseado na utilização de redes de “máquinas inteligentes”. Nanotecnologia, neurociência, biotecnologia e agora a inteligência artificial formam um bloco de inovações com enorme potencial de revolucionar as bases técnicas das economias contemporâneas.

Os avanços da estrutura técnica supõem a aplicação continuada e sistêmica da pesquisa científica. Um arguto pensador do século XIX criou a figura do General Intellect para designar a relação entre o avanço do conhecimento “socializado” nas universidades e instituições de pesquisa.

General Intellect se institui em uma forma de apropriação dos significados do conhecimento humano, em particular dos códigos da ciência. Para a consecução de seus propósitos, a nova economia toma a educação, cujos métodos e objetivos são ajustados aos requerimentos da aceleração do avanço dos ganhos de produtividade, no mesmo movimento em que impõe critérios de qualificação dos trabalhadores – cada vez mais exclusivos e “excludentes”.

Todos os métodos que nascem dessa base técnica não podem senão confirmar sua razão interna: são métodos de produção destinados a aumentar a produtividade social do trabalho em escala crescente. Isso suscitou a intensificação da introdução dos métodos “industriais” na agricultura e nos serviços, promovendo o que convencionamos qualificar de hiperindustrialização.

Essa expressão – “hiperindustrialização” – cuida de sublinhar a radical transformação das relações entre os setores mencionados acima. Voltamos a Carlo Cipolla: “A Revolução Industrial, transformou o homem agricultor e pastor no manipulador de máquinas movidas por energia inanimada”.

Luiz Gonzaga Belluzzoeconomista, é Professor Emérito da Unicamp. Autor entre outros livros, de O tempo de Keynes nos tempos do capitalismo (Contracorrente).

Cinema: A vertigem da adolescência, por José Geraldo Couto

0

Adolescência faz do plano-sequência não um fetiche, mas recurso potente para mostrar atordoamentos, labirintos, embates… E, omitir a catarse (o julgamento do caso) incita a pensar sobre como o mal floresce no mundo contemporâneo, para além de um indivíduo

José Geraldo Couto – OUTRAS PALAVRAS – 10/04/25

Os leitores habituais deste blog sabem que nossa prioridade absoluta são os filmes exibidos nos cinemas, mas excepcionalmente uma obra lançada no streaming justifica, por um ou outro motivo, sua presença aqui. É o caso, agora, de Adolescência, microssérie da Netflix, escrita por Stephen Graham e Jack Thorne e dirigida por Philip Barantini.

Como se sabe, trata-se da história, narrada em quatro episódios, de um garoto inglês de 13 anos condenado pelo assassinato de uma colega de escola. O garoto em questão é Jamie Miller (Owen Cooper), filho do encanador Eddie Miller (Stephen Graham, um dos roteiristas) e estudante de um colégio público de bairro popular. Ao falar dele, alguns spoilers serão inevitáveis.

Usos do plano-sequência

O que torna Adolescência um fenômeno singular, além do apelo urgente e dramático de seu tema e da excelência da produção, é sua opção formal pela tomada contínua, sem cortes, de cada um dos episódios. É o chamado plano-sequência, usado ocasionalmente no cinema em contraposição à habitual decupagem clássica, que fragmenta cada cena em diversos cortes e pontos de vista.

Considerado uma marca do cinema moderno, o plano-sequência tem sido usado desde os anos 1930 com os mais diversos propósitos expressivos. Um caso pioneiro é a esplêndida abertura de Scarface (Howard Hawks, 1932) e a experiência mais radical e paradigmática é Festim diabólico (Alfred Hitchcock, 1948), primeiro longa-metragem que simula (mediante truques engenhosos) uma única tomada contínua. Desde então um punhado de cineastas brilhantes (Welles, Antonioni, De Palma, Altman) adotou o recurso, cada um à sua maneira e com finalidades próprias.

No caso de Adolescência, houve quem acusasse os realizadores de usar o plano-sequência como um fetiche, uma bossa exibicionista e desnecessária. Estou aqui para discordar.

Em Adolescência, a meu ver, cada episódio se serve do plano-sequência com um propósito diferente. No primeiro, que encadeia num único fôlego a invasão da casa de Jamie, sua condução à delegacia e a todos os trâmites e situações que nos apresentam um fato brutal de maneira igualmente brutal, o efeito é de atordoamento e de sufoco. Somos lançados no meio da voragem, sem tempo para respirar e espairecer.

Labirinto de perigos

O segundo episódio, que mostra a visita do inspetor policial Luke Bascombe (Ashley Walters) e sua colega (Faye Marsay) ao colégio de Jamie, retrata a escola como um labirinto fervilhante de surpresas e perigos, feito de bullying, afronta e indisciplina. Ao passar sem cerimônia de um ambiente a outro, de um grupo a outro de personagens, a câmera nos deixa sempre a sensação de que há algo acontecendo às nossas costas, um evento ou sentido que nos escapa. É ali, pressentimos, que nasce o perigo, potencializado pela internet, como indica o filho do policial Bascombe, ele próprio vítima da violência reinante.

Totalmente diversa é a utilização do plano-sequência no terceiro episódio, ocupado em sua maior parte pela entrevista entre Jamie e a psicóloga (Erin Doherty) encarregada de procurar entendê-lo. Aqui a tomada contínua serve a um adensamento quase insuportável da atmosfera de embate entre duas mentes, duas vivências, duas sensibilidades. A percepção do tempo real intensifica a tensão, o desconforto e a imprevisibilidade da cena. É, antes de tudo, um duelo entre duas atuações fabulosas. (Chocante é saber que se trata da primeira experiência cinematográfica do garoto Owen Cooper.)

O quarto e último episódio, dedicado aos efeitos da tragédia na família de Jamie (pai, mãe e irmã) e em sua relação com o entorno, é o único que talvez não perdesse muito de sua eficácia se fosse narrado mediante a montagem tradicional. Mas é possível que, nesse caso, a quebra de coesão formal incomodasse o espectador e soasse como uma rendição ou traição.

Sem catarse

Um mérito adicional de Adolescência está naquilo que ele nos omite: o julgamento do caso. As cenas de tribunal costumam ser o momento catártico em que o público se extasia porque vê a justiça sendo feita ou se indigna por vê-la desrespeitada. Um contra-exemplo como o excepcional Anatomia de uma queda (Justine Triet, 2023) é isso mesmo: excepcional.

Adolescência, ao nos negar a satisfação vicária de ver os maus serem punidos e o bem vencer, nos incita a pensar na natureza e origem do mal, no modo como ele viceja e floresce no mundo contemporâneo, sem reduzir a questão à disfunção moral ou psíquica de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos. Por um momento – ou por quatro horas – somos todos o enigma Jamie, mas também somos seu pai, a psicóloga, o inspetor policial, a menina morta, sua família… todos unidos no espanto e na consciência vertiginosa da fragilidade da

Economia brasileira está presa em círculo vicioso da quase estagnação, Bresser Pereira

0

Juros altos e câmbio apreciado desestimulam investimentos, privilegiam rentistas e limitam o desenvolvimento do país

Luiz Carlos Bresser Pereira, Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC).

Folha de São Paulo, 10/12/2024

[RESUMO] Apesar de concessões e privatizações desde os anos 1970, os investimentos privados no país se mantêm em patamar muito baixo, desestimulados pelos juros exorbitantes que, junto à taxa de câmbio valorizada movem o círculo vicioso da quase estagnação que caracteriza a economia brasileira há 30 anos.

Um dia desses, um dos meus filhos me perguntou por que o governo Lula estava privatizando estradas de rodagem que são monopolistas e, por isso, não devem ser privatizadas. Não seria esse governo neoliberal? Ou neoliberal progressista, acrescentei parafraseando a filosofia americana Nancy Fraser.

Não, o presente governo é social-progressista e desenvolvimentista: defende uma diminuição da desigualdade e a intervenção do Estado na economia para aumentar o investimento público e promover o investimento privado. Não obstante, esse governo não tem alternativa senão privatizar as rodovias que exigem investimentos para os quais não tem recursos. O Brasil está preso no círculo vicioso da quase estagnação.

Entendo por quase estagnação o fato de um país não realizar o “catch-up” —o fato de seu crescimento per capita ser quase sempre inferior aos dos Estados Unidos, de forma que o padrão médio de vida dos brasileiros se afasta cada vez mais do padrão americano. Apesar de um desempenho econômico razoável neste ano e nos dois últimos anos, nada aconteceu de novo na economia brasileira que nos permita afirmar que escapamos da quase estagnação, inclusive porque a taxa de investimento continua muito baixa.

A economia brasileira está quase estagnada desde 1980. Hoje, a distância em relação aos Estados Unidos é maior do que era em 1980. A causa direta dessa quase estagnação é a taxa de investimento muito baixa. Tanto o investimento privado quanto o público é sistematicamente inferior a 17% quando deveria girar em torno de 25% do PIB. Oito pontos percentuais é uma diferença muito grande.

Se compararmos a presente situação com meados dos anos 1970 (a última década em que o Brasil cresceu satisfatoriamente e estava realizando o “catch-up”), veremos que o investimento privado, que naquela década estava em torno de 15% do PIB, se manteve nesse nível, embora devesse ter crescido devido às privatizações —deveria ter crescido para pelo menos 20% do PIB.

Já o investimento público, que deveria ter caído um pouco devido às mesmas privatizações, caiu muito; correspondia a aproximadamente 8% do PIB, agora está em torno de 2,5%. Em consequência, o investimento total caiu de 23% para aproximadamente 16% do PIB, e a taxa de crescimento caiu correspondentemente.

A primeira razão para isso é a taxa de juros exorbitante que existe no Brasil desde a abertura financeira (1992). A taxa de juros real vem sendo desde então em média cerca de 6% a 7% ao ano, quando deveria se manter em torno de 3% ao ano, ou seja, igual à taxa de juros real internacional mais um adicional que dê conta do risco dos brasileiros em investir no Brasil (não dos estrangeiros), que eu estimo ser de aproximadamente 1%.

Duas vezes menor, portanto, que a taxa real que o Banco Central pratica e, portanto, uma taxa que desestimula o investimento. Eu falei em risco dos brasileiros, que deve ser menor que o risco Brasil, calculado pelos mercados internacionais para potenciais investidores de fora do país, de cerca de 2,5%.

A segunda razão é a tendência de apreciação da taxa de câmbio no Brasil, que tem por trás quatro motivos: (1) porque a taxa de juros é alta para poder atrair capitais; (2) porque o Brasil incorre sistematicamente em déficits na conta corrente de aproximadamente 2% do PIB, quando deveria mantê-los em torno em zero; (3) porque o Brasil não reconhece e não neutraliza a doença holandesa, não tendo, portanto, uma política que evite que a taxa de câmbio se torne valorizada para as empresas industriais, a qual reduz a competitividade internacional dessas companhias; e (4) porque a taxa de poupança no Brasil é muito baixa, não sendo por isso compensada pelo recurso a financiamento interno ou externo.

Os atores

Para sabermos o porquê das três primeiras razões, precisamos considerar os atores que causam a baixa taxa de investimento e o círculo vicioso da quase estagnação. São eles os capitalistas rentistas e seus financistas, o agronegócio, o Norte Global ao qual os dois primeiros grupos estão associados, os empresários industriais, os eleitores e os políticos. Todos são responsáveis pela taxa de câmbio apreciada, a baixa taxa de investimento e a quase estagnação do Brasil.

Os rentistas e financistas, dominantes, querem uma taxa de juros real (descontada a inflação) alta e uma taxa de inflação baixa (para garantir o objetivo anterior). Os dois grupos são liberais: não querem que o Estado invista ou intervenha na economia; não querem, por exemplo, que o Estado tenha uma política cambial que estabilize a taxa de câmbio e evite que ela seja apreciada.

Assim, estão felizes com um déficit na conta corrente em torno de 2% do PIB e não querem saber da doença holandesa, embora esta surja quando o preço das commodities exportadas pelo Brasil sobe e torna as empresas industriais não competitivas, ainda que sejam competitivas no plano técnico.

Rentistas e financistas estão satisfeitos. Eles têm poder suficiente sobre a sociedade brasileira para capturar indevidamente cerca de 3% do PIB graças à diferença entre a taxa de juros média razoável (de 3% ao ano, como vimos acima) para a taxa praticada de 6% ao ano. Esses juros altos naturalmente desestimulam o investimento, a não ser que a taxa de lucro esperada seja alta e a desigualdade econômica, acentuada.

O agronegócio, embora recebendo altos subsídios do Estado, se afirma liberal e, como os dois grupos anteriores, não quer saber de uma política de neutralização da doença holandesa; quer realizar lucros extraordinários quando há um boom de commodities.

A doença holandesa é uma apreciação de longo prazo e cíclica da taxa de câmbio para a indústria causada por um substancial aumento de preços das commodities exportadas pelo país, que causa uma apreciação da taxa de câmbio geral ou corrente. Enquanto, para o setor exportador de bens primários (agronegócio e exportador de minérios e petróleo), essa taxa de câmbio mais apreciada é satisfatória porque o aumento de seus preços compensa a valorização da moeda nacional, para a indústria essa apreciação é desastrosa. É papel do Estado garantir uma taxa de câmbio competitiva para a indústria.

Nos países exportadores de commodities, a taxa de câmbio é cíclica porque os preços das commodities também tendem a ser cíclicos: ela se deprecia fortemente quando há uma crise financeira e depois se aprecia, chega à taxa de equilíbrio geral (que equilibra a conta corrente do país) e afinal se torna mais apreciada à medida que o déficit na conta corrente aumenta devido à política que os países adotam equivocadamente de incorrer em déficits na conta corrente (“poupança externa”). Começa então o endividamento externo que, afinal, levará o país a nova crise de balanço de pagamentos e a nova depreciação violenta da taxa de câmbio, encerrando-se assim o ciclo.

O Norte Global (o conjunto dos países ricos liderados pelos Estados Unidos) não tem qualquer interesse em uma taxa de investimento alta na sua periferia. Pelo contrário, visa evitar que os países em desenvolvimento se industrializem, porque não querem concorrência no futuro.

Para isso, além de nos recomendarem que tenhamos déficits na conta corrente desde que esses não levem o país a uma crise de balanço de pagamentos, buscam manter economicamente abertos os países em desenvolvimento para a exportar capitais (investimentos diretos e empréstimos) e para manter a troca desigual —a troca entre bens tecnologicamente sofisticados, que pagam bons salários e lucros, e bens pouco sofisticados que se caracterizam por baixo valor adicionado per capita.

As empresas industriais, que não precisam de proteção com base no argumento da indústria infante, precisam dramaticamente de proteção contra a doença holandesa que, em boom de commodities, as tornam não competitivas. Não obstante, seus dirigentes ou empresários não sabem ou não querem saber o que é a doença holandesa, que pode ser mortal para eles.

O setor interno de serviços, muito amplo e diversificado, quer que a taxa de juros seja baixa, mas seus dirigentes não têm poder político capaz de influenciar o Banco Central. Ao contrário, eles acabam sendo corresponsáveis pelos altos juros porque as associações que os representam são ocupadas por economistas neoliberais.

Os eleitores, principalmente a classe trabalhadora e de empregados, criticam a taxa de juros elevada, mas estão satisfeitos com uma taxa de câmbio apreciada que aumenta o poder aquisitivo de seus salários e demais rendimentos.

Os políticos, finalmente, acompanham seus eleitores e estão felizes com uma taxa de câmbio apreciada que facilita sua reeleição.

Os déficits na conta corrente e os investimentos privados

Os liberais afirmam que o principal problema da economia brasileira é o déficit público que causa aumento da dívida pública em relação ao PIB e causaria inflação. De fato, manter o equilíbrio fiscal é importante, mas mais importante é manter a conta corrente do país (a conta externa comercial mais os serviços) equilibrada, algo que só acontece raramente.

Na verdade, rentistas, financistas, agronegócio, interesses estrangeiros, eleitores e os políticos estão todos satisfeitos com um déficit na conta corrente moderado, porque esses déficits aumentam o poder aquisitivo dos seus rendimentos e mantêm tudo como está, inclusive a quase estagnação.

Ora, uma das características do populismo é procurar dar rendimentos artificiais aos eleitores que são, afinal, prejudiciais ao país. Ao aceitarem como bons os déficits na conta corrente (porque implicam acesso à poupança externa), nossos atores são todos populistas. Mas não teriam eles razão? Afinal, seria mais que natural que os países ricos em capitais transfiram seus capitais para países pobres em capitais como é o Brasil.

Não, a política de crescimento com poupança externa ou de déficits na conta corrente é uma política que contém a causa do seu fracasso). Ao incorrer em déficit na conta corrente, as entradas de capitais são maiores que as saídas, a taxa de câmbio se aprecia e, além de estimular indevidamente o consumo, desencoraja o investimento.

Esse caráter autofracassante da política de crescimento com endividamento externo deixa de sê-lo se o país adota uma política cambial capaz de compensar o excesso de entradas de capitais. Tudo, portanto, parece desestimular o investimento privado que, por isso, não aumentou sua participação no PIB como seria de se esperar.

Finalmente, é preciso considerar que a poupança brasileira é muito baixa e, ainda que esse fato possa ser superado pelo recurso ao financiamento interno (por isso keynes e Kalecki disseram nos anos 1930 que o investimento precede a poupança), ela precisa ser considerada. A poupança deveria ser, em princípio, quase igual aos lucros, os quais, para os empresários industriais, são necessariamente baixos, dada a taxa de juros alta e a taxa de câmbio apreciada.

Eles, portanto, não têm recursos necessários para financiar os investimentos de modernização de suas fábricas e de expandir sua produção, o que leva à desindustrialização. Além disso, ao não investirem, ficam atrasados tecnologicamente e a produtividade da economia permanece estagnada.

Já o agronegócio realiza lucros elevados, mas seus empresários investem na própria agricultura e pecuária e se opõem a qualquer política industrial e de neutralização da doença holandesa. Os rentistas e financistas, por sua vez, recebem juros e aluguéis elevados, mas não investem na indústria porque ela não dá o retorno que desejam. Preferem investir seu dinheiro no mercado financeiro e seus altos juros ou em imóveis que rendem bons aluguéis e se valorizam.

Em síntese, a taxa de investimento na indústria em relação ao PIB não aumentou apesar das privatizações que ocorreram desde os anos 1970. Em todo o período, os investimentos foram fortemente desestimulados porque apresentaram uma taxa esperada de lucro insatisfatória, incapaz de motivar os investimentos, dada a taxa elevada de juros que desde 1992 caracteriza a economia brasileira. Foram, portanto, claramente insuficientes para que o país retome o desenvolvimento e volte a realizar o “catch-up”.

A cultura dos juros altos

Além de rentistas e financistas defenderem juros altos e estes serem necessários para atrair capitais que financiem um déficit na conta corrente que não deveria existir, há uma causa subjacente para os juros serem altos: a cultura de juros altos, a acomodação de todos com os juros altos, que decorre do poder estrutural do capital e de um hábito cultural existente há muitos anos.

Duas indicações desse fato. Em 1964, já no quadro do regime militar, garantiu-se para as cadernetas de poupança, além da correção monetária, uma taxa de juros real de 6% ao ano. Em 1988, a nova Constituição limitou a 12% a taxa de juros real. Um limite muito alto, mas foi tanta a pressão do capital contra esse dispositivo que o STF decidiu depender de lei complementar do sistema financeiro internacional. Assim, a Constituição se tornou letra-morta nesse ponto, enquanto o Congresso não se move para discutir a lei necessária.

A falta de poupança pública e o investimento público

Voltando à comparação entre os anos 1970 (a última década em que o crescimento foi satisfatório no Brasil) e o presente, foram os investimentos do setor público que mais sofreram na virada dos anos 1970 para os anos 1980. A poupança pública que girava em torno de 4% do PIB caiu de repente para -2%, uma diferença de seis pontos percentuais.

Dois fatores foram determinantes da queda da poupança pública e do investimento público: a crise da dívida externa e a crise fiscal do Estado, que estudei bastante naquela época. Pergunto agora: seria possível o Estado voltar a realizar uma poupança pública e recuperar pelo menos uma parte daqueles seis pontos percentuais? Isto não parece provável. O Brasil continua com uma poupança pública negativa e a possibilidade de voltar a ter uma poupança pública positiva parece impossível.

Para aumentar a poupança pública, a maneira mais óbvia seria aumentar impostos para, assim, compensar o excesso de juros que são pagos aos rentistas locais e aos do Norte Global. Como vimos que esse excesso é de 3% do PIB, a carga tributária em relação ao PIB deveria aumentar na mesma proporção, mas ninguém quer pagar mais impostos.

A solução dada por rentistas e financistas ou, mais amplamente pelos, neoliberais é reduzir as despesas do Estado exceto os juros. Vimos que os investimentos públicos já foram reduzidos ao mínimo. Quanto às despesas sociais, é impossível reduzi-las. Seria, sim, possível reduzir os penduricalhos que a burocracia pública logra incluir em seus salários. O atual governo vem tentando fazer alguma coisa em relação a esse problema.

Seria também possível reduzir os incríveis e absurdos subsídios e isenções de impostos, como vem tentando o atual ministro da Fazenda, mas além de ter de neutralizar o lobby dos interessados nos subsídios e nas isenções, o Ministério da Fazenda tem que convencer muitos dos próprios membros do governo, que se julgam representantes dos interesses de suas áreas, e o próprio presidente da República que deve ser reeleito. Nessa área, como na dos juros, há bilhões a ser economizados, mas os interesses contrários são poderosos.

Demitir funcionários? No plano federal, não há excesso de servidores públicos. Nos governos estaduais e municipais, o excesso deve ser pequeno e o problema precisa ser enfrentado, mas não fará grande diferença. Onde faria uma grande diferença seria a redução da despesa com juros, que se obteria com a baixa da taxa para um nível civilizado e perfeitamente compatível com o controle da inflação. Mas quem será capaz de dobrar os rentistas e os financistas?

Assim, sem poder reduzir significativamente as despesas e sem conseguir aumentar os impostos para financiar essas despesas, o Estado não consegue realizar a poupança pública que seria necessária para financiar os investimentos públicos, que compensariam o não aumento do investimento do setor privado. Na verdade, o país não consegue zerar seu déficit público, que lhe permitiria realizar alguma poupança pública, a qual permanece negativa.

Os rentistas e financistas, porém, estão satisfeitos, porque não querem que o Estado invista —o que eles denominam “estatização”. Os rentistas e financistas (o “mercado financeiro”) querem que o Estado realize o superávit primário, uma métrica que lhes agrada porque exclui (esconde) os juros e, não obstante, garante que a dívida pública em relação ao PIB não aumente. Mas mesmo esse superávit o governo tem grande dificuldade de conseguir.

O círculo vicioso se fecha

Em consequência de tudo isso, o Brasil está preso no círculo vicioso da quase estagnação. Um círculo que tem alguma semelhança com o fluxo secular de Schumpeter, definido em 1911. Nesse fluxo circular, que decorre da lógica da teoria econômica neoclássica ou ortodoxa e do seu ideal de concorrência perfeita, não há lucros (existe apenas o lucro normal, igual à taxa de juros), os investimentos são iguais à depreciação efetivamente ocorrida e não há crescimento.

Já no caso do círculo vicioso da quase estagnação brasileira, há lucros, mas são baixos para a indústria de transformação; há investimentos e há crescimento porque setores do agronegócio, da indústria e o setor de serviços investem, mas esses são poucos, insuficientes para que o país saia da quase estagnação em que está mergulhado desde os anos 1980.

Por outro lado, o Estado não tem recursos para complementar o setor privado. Nos anos 1970, investia cerca de 8% do PIB. Hoje, investe apenas cerca de 2%. Não consegue nem sequer financiar os investimentos públicos em infraestrutura que são necessários para o país crescer. A solução proposta pela ortodoxia liberal é privatizar. Os governos vêm seguindo essa trilha, mas os resultados são parcos. O apetite e as possibilidades do setor privado são restritos.

Entretanto, alguns investimentos em infraestrutura, cujos lucros são certos, como nas concessões de rodovias, atraem muitos os rentistas e financistas e são relativamente necessários. O governo Lula, portanto, avança nas concessões por falta de alternativa.

Já outros investimentos muito necessários em infraestrutura não atraem o setor privado, a não ser que o Estado subsidie seus investimentos (parcerias públicas privadas). A potencialidade dessas parcerias, porém, é limitada porque envolve gastos do Estado, o qual é mantido no nível de subsistência.

Há 20 anos, afirmo que a economia brasileira está presa na armadilha dos juros altos e do câmbio apreciado. Hoje, apoiado na teoria novo-desenvolvimentista, posso acrescentar que o Brasil está preso ao círculo vicioso da quase estagnação. Um círculo que se fecha com a impotência do Estado de rompê-la.

Ao apresentar o Brasil, sua economia e sua política de uma maneira nova, na qual podemos ver como os diversos atores tratam de manter a economia brasileira presa a esse círculo, sou obrigado a me mostrar pessimista quanto ao futuro do Brasil e do seu povo.

 

Volta da ultradireita é tragédia contratada, por Maria Hermínia Tavares

0

Trump do segundo mandato é muito mais radical do que o do primeiro

Maria Hermínia Tavares, Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)

Folha de São Paula, 10/04/2025

Notável pensador alemão do século 19 fraseou que, na história, a tragédia só se repetia como farsa. No caso dos governos populistas de extrema direita dá-se o oposto: seu primeiro mandato é farsa; o segundo, tragédia.

Donald Trump é prova acabada disso. Desde que voltou à Casa Branca tem produzido destruição inigualável. Na mesma semana em que a imposição de tarifas arbitrárias a uma lista enorme de países virou de ponta-cabeça o sistema de comércio mundial, agentes do Doge (sigla em inglês para Departamento de Eficiência Governamental), comandado por Elon Musk, invadiram o Woodrow Wilson Center.

Seu diretor foi forçado a renunciar e no seu lugar foi instalada uma jovem líder da torcida organizada de Trump; chefias e altos executivos foram demitidos; seus funcionários federais colocados em disponibilidade; o reputado programa internacional de pesquisadores visitantes, desativado.

O Wilson Center, como é conhecido, foi criado pelo Congresso dos EUA —e, até a semana passada, era o mais respeitado think thank de política exterior do país. O ataque ao centro de excelência é mais um episódio da investida trumpista para garrotear as instituições que produzem conhecimento, ou financiam a sua produção, ou promovem o debate livre de ideias —universidades, agências públicas de financiamento da ciência, além dos citados think thanks.

Não há dúvida alguma: o Trump do segundo mandato é muito mais radical do que o do primeiro; tem mais clareza sobre os inimigos que quer destruir; forjou instrumentos mais afiados e cevou novos apoios para fazê-lo. E, até agora, seus desígnios não tiveram de se haver com a resistência das instituições democráticas que poderiam freá-los.

A volta da extrema direita a Washington põe em dúvida teorias caras aos cientistas políticos. A primeira sustenta que a participação no jogo democrático tende a moderar partidos e líderes extremados. A segunda supõe que instituições políticas sólidas —e robustecidas com o passar do tempo— criam freios e contrapesos eficazes à ambição de poder dos governantes. Nada disso parece estar acontecendo nos EUA. Até agora, diria um otimista.

São poucos os casos de populistas de extrema direita bem-sucedidos a ponto de se reeleger ou voltar ao governo em pouco tempo. Assim, são escassos os casos que permitam aceitar ou rejeitar aquelas teorias. Por via das dúvidas, é melhor tentar evitar que o retorno ocorra. Para tanto, levem-se a sério tanto as propostas extremistas como a intenção dos proponentes de cumpri-las.

No Brasil, as instituições democráticas formaram barreira eficaz aos intentos golpistas de Jair Bolsonaro. Mas convém não apostar só nelas. Isolar politicamente o ex-capitão é medida necessária —e urgente— nesta quadra que antecede seu julgamento por crimes contra o Estado de Direito e quando, segundo Datafolha, 52% dos brasileiros acham que deveria ser preso por cometê-los.

Eis porque chega a assustar que no último domingo (6), na avenida Paulista, todos os pré-candidatos da direita tenham decidido, pouco importa se por convicção ou cálculo eleitoral, curvar-se à liderança de quem tem Trump como ídolo e o autoritarismo como propósito.

Por que o capitalismo precisa da guerra? por Andreo Zhok

0

Andreo Zhok – A Terra é Redonda – 09/04/2025

 A essência do capitalismo consiste em um único ponto. É um sistema social idealmente acéfalo, desprovido de uma liderança política, guiado por um único imperativo categórico: o aumento do capital a cada ciclo produtivo

A essência do capitalismo

A ligação entre capitalismo e guerra não é acidental, mas sim estrutural e inevitável. Apesar da literatura de autopromoção do liberalismo ter sempre tentado argumentar que o capitalismo, traduzido como “doce comércio”, seria uma via preferencial para a pacificação internacional, na realidade isso sempre foi uma evidente falsidade. E isso não porque o comércio não possa ser um caminho para a paz – ele pode ser –, mas porque a essência do capitalismo não é o comércio, que é apenas um de seus possíveis aspectos.

A essência do capitalismo consiste em um único ponto. Trata-se de um sistema social idealmente acéfalo, ou seja, idealmente desprovido de uma liderança política, mas guiado por um único imperativo categórico: o aumento do capital a cada ciclo produtivo. O núcleo ideal do capitalismo é a necessidade de que o capital gere retorno, quer dizer, que aumente continuamente. A condução desse processo não é atribuída à política – muito menos à política democrática –, mas sim aos detentores de capital, os sujeitos que personificam as exigências do sistema financeiro.

É importante compreender que o ponto crucial para o sistema capitalista não é que “haja cada vez mais capital” em termos objetivos, isto é, que a quantidade total de dinheiro aumente continuamente; em determinados momentos, essa quantidade pode até se contrair. O ponto essencial é que deve existir sempre a perspectiva geral de um aumento do capital disponível. Na ausência dessa perspectiva – por exemplo, em uma condição prolongada de “estado estacionário” da economia –, o capitalismo deixa de existir como sistema social, pois perde-se o “piloto automático” representado pela busca constante por oportunidades de investimento.

O ponto deve ser entendido estritamente em termos de poder. No capitalismo, uma determinada classe detém o poder por ser responsável por conduzir o capital em direção ao crescimento. Se a perspectiva de crescimento desaparece, o resultado é tecnicamente revolucionário, no sentido específico de que a classe que detém o poder precisa cedê-lo a outros – por exemplo, a uma liderança política movida por princípios ou ideais, como ocorreu em maior ou menor medida ao longo da história (perspectivas religiosas, nacionais, visões históricas). O capitalismo é o primeiro e único sistema de vida na história humana que não busca encarnar nenhum ideal e não tende a seguir nenhuma direção específica. Isso abriria uma discussão interessante sobre a relação entre capitalismo e niilismo, mas o objetivo aqui é focar em outro aspecto.

A “queda tendencial da taxa de lucro”

Na natureza do sistema, está implícita uma tendência que foi analisada pela primeira vez por Karl Marx sob o nome de “queda tendencial da taxa de lucro”. Trata-se de um processo intuitivo. Por um lado, como já vimos, o sistema exige a busca constante pelo crescimento, transformando o capital em investimento que gera mais capital. Por outro lado, a competição interna ao sistema tende a saturar todas as opções disponíveis para aumentar o capital, consumindo-as. Quanto mais eficiente é a competição, mais rápido ocorre a saturação dos espaços onde é possível obter margem de lucro. Isso significa que, com o passar do tempo, o sistema capitalista gera estruturalmente um problema de sobrevivência para si mesmo.

O capital disponível cresce constantemente e busca aplicações “produtivas”, ou seja, capazes de gerar retorno. O crescimento do capital está vinculado ao aumento das perspectivas de crescimento futuro desse mesmo capital, em um mecanismo que se autoalimenta. É com base nessa dinâmica que surgem situações como a anterior à crise do subprime, quando a capitalização nos mercados financeiros globais equivalia a 14 vezes o PIB mundial. Esse mecanismo produz a constante tendência a “bolhas especulativa”. E esse mesmo mecanismo produz a tendência às chamadas “crises de superprodução”, termo comum, mas inadequado, pois sugere excesso de bens disponíveis, quando na realidade o problema é o descompasso entre produção e capacidade de consumo.

De modo constante e inevitável, o sistema capitalista enfrenta crises geradas por essa tendência: massas crescentes de capital pressionam para serem aproveitadas produtivamente, em um processo exponencial, enquanto as capacidades de crescimento permanecem limitadas. Para que uma crise se manifeste, não é necessário que o crescimento pare — basta que ele não corresponda à demanda crescente por margens de lucro. Quando isso ocorre, o capital — quer dizer, seus detentores ou gestores — começa a se agitar progressivamente, pois sua própria sobrevivência como detentor de poder é colocada em risco.

A busca frenética por soluções

Quando a compressão das margens de lucro se aproxima, inicia-se uma busca frenética por soluções. Na versão autopromocional do capitalismo, a solução principal seria a “revolução tecnológica”, ou seja, a criação de uma nova perspectiva promissora de geração de lucro por meio de inovação tecnológica. A tecnologia realmente é um fator que aumenta a produção e a produtividade. Se aumenta também as margens de lucro é uma questão mais complexa, pois não basta haver mais produtos disponíveis para que o capital cresça, mas é necessário que haja mais produtos comprados.

Isso significa que as margens podem realmente crescer em presença de uma revolução tecnológica apenas se o aumento da produtividade também se refletir em um aumento geral do poder de compra (salários), o que não é algo garantido. Contudo, mesmo quando isso ocorre, as “revoluções tecnológicas” capazes de aumentar a produtividade e as margens não são tão comuns. Muitas vezes, aquilo que é apresentado como uma “revolução tecnológica” é amplamente superestimado em sua capacidade de gerar riqueza e acaba sendo apenas um redirecionamento de investimentos que gera uma bolha especulativa.

Enquanto se aguardam eventuais revoluções tecnológicas que reabram a possibilidade de ampliação das margens, a segunda direção na qual se busca uma solução para recuperar margens de lucro é a pressão sobre a força de trabalho. Essa pressão pode se manifestar por meio da compressão salarial e de muitas outras formas que ampliam as áreas de exploração do trabalho. A redução direta dos salários nominais é uma medida adotada apenas em casos excepcionais; mais frequentes e fáceis de implementar são práticas como o não reajuste salarial para compensar a inflação, a “flexibilização” do trabalho para reduzir os “tempos mortos”, o “endurecimento” das condições de trabalho, a demissão de trabalhadores, entre outras.

Esse horizonte de pressão apresenta dois problemas. Por um lado, gera insatisfação, com a possibilidade de que isso resulte em protestos, revoltas etc. Por outro lado, a pressão sobre a força de trabalho, especialmente na dimensão salarial, reduz o poder de compra médio, correndo, assim, o risco de desencadear uma espiral recessiva (menores vendas, menores lucros, maior pressão sobre a massa salarial para recuperar margens, consequente redução nas vendas de produtos, e assim por diante).

Uma forma colateral de conquista de margens ocorre por meio das “racionalizações” do sistema produtivo, que conceitualmente se situam em um meio-termo entre inovação tecnológica e exploração da força de trabalho. As “racionalizações” são reorganizações que, por assim dizer, eliminam as relativas “ineficiências” do sistema. Essa dimensão reorganizativa, na prática, quase sempre resulta em um agravamento das condições de trabalho, que se tornam cada vez mais dependentes das exigências impessoais dos mecanismos do capital.

Um último horizonte de soluções surge quando na equação entra a esfera do comércio exterior. Embora, em princípio, os pontos anteriores esgotem os locais nos quais as margens de lucro podem crescer, ao considerar a esfera externa, as mesmas oportunidades de lucro se multiplicam devido às diferenças entre os países. Em vez de um incremento tecnológico interno, pode-se ter acesso a um incremento tecnológico externo por meio do comércio. Em vez de uma compressão da força de trabalho interna, pode-se obter acesso a mão de obra estrangeira de baixo custo, entre outras possibilidades.

O declínio do lucro

A fase atual da breve e violenta história do capitalismo que estamos vivendo é caracterizada pelo progressivo desaparecimento de todas as principais perspectivas de lucro. Sempre haverá espaço para “revoluções tecnológicas”, mas não com a frequência que possa estar por trás das massas infinitamente crescentes de capital que pressionam para serem utilizadas de forma lucrativa. Sempre haverá espaço para novas compressões sobre a força de trabalho, mas o risco de gerar condições de revolta ou reduzir o poder de compra geral impõe limites claros.

Quanto ao processo de globalização, ele atingiu seus limites e iniciou um movimento de relativo recuo; a possibilidade de encontrar oportunidades externas, completamente diferentes e mais vantajosas do que as internas, foi drasticamente reduzida (deve-se considerar que, quanto mais as cadeias de produção se expandem, mais frágeis elas se tornam, aumentando, também, os custos adicionais de transação.

A crise do subprime (2007-2008) marcou um momento decisivo, levando todo o sistema financeiro mundial à beira do colapso. Para sair dessa crise, foram utilizadas duas alavancas. Por um lado, houve uma pressão elevada sobre a esfera do trabalho, resultando na perda de poder de compra e no agravamento das condições de trabalho em nível global. Por outro lado, houve um aumento das dívidas públicas — que, por sua vez, representam uma imposição indireta sobre os cidadãos e a força de trabalho, sendo apresentadas como um ônus a ser compensado.

A crise da Covid (2020-2021) marcou um segundo momento de virada, com características semelhantes à crise do subprime. Também nesse caso, os resultados da crise foram uma perda média do poder econômico das classes trabalhadoras e um aumento das dívidas públicas.

Tanto na crise do subprime quanto na crise da Covid, o sistema aceitou uma redução temporária das capitalizações totais para reabrir novas áreas de lucro. No conjunto, o sistema financeiro saiu de ambas as crises em uma posição comparativamente mais forte em relação à população que vive de seu trabalho. O aumento das dívidas públicas, na prática, representa uma transferência de dinheiro da disponibilidade da cidadania média para os rendimentos dos detentores de capital.

É importante notar que, para neutralizar os espaços de contestação e oposição entre trabalho e capital, o capitalismo contemporâneo tem se empenhado com todas as suas forças para criar uma coparticipação em certos estratos da população, que são relativamente abastados, mas estão longe de exercer qualquer influência no plano do poder capitalista. Forçando as pessoas a adquirirem aposentadorias privadas, apólices de seguro rentáveis e incentivando-as a investir suas economias em algum tipo de título público, busca-se (e consegue-se) criar uma camada da população que se sente “parte interessada” no destino do grande capital. Esses estratos da população funcionam como uma “zona-tampão”, reduzindo a disposição média de se revoltar contra os mecanismos do capital.

A situação atual, especialmente no mundo ocidental, é a seguinte: o grande capital necessita, para sobreviver, acessar continuamente novas áreas de lucro. As populações dos países ocidentais têm visto suas condições de vida serem progressivamente deterioradas, tanto em termos de poder de compra quanto em sua capacidade de autodeterminação, ficando cada vez mais vinculadas a uma multiplicidade de restrições financeiras, trabalhistas e legislativas, todas justificadas pelas necessidades de “racionalização” do sistema.

As possibilidades de encontrar novas áreas de lucro no exterior foram drasticamente reduzidas devido ao alcance dos limites do processo de globalização. Essa é a realidade que os grandes detentores de capital enfrentam hoje. Em sua perspectiva, é urgente encontrar uma solução. Mas qual seria essa solução?

“Uma palavra assustadora e fascinante: guerra!”

Quando, no cânone ocidental, são apresentadas as guerras mundiais – os dois maiores eventos de destruição bélica da história humana –, elas geralmente são associadas a culpados bem definidos: o “nacionalismo” (especialmente o alemão) na Primeira Guerra Mundial e as “ditaduras” na Segunda Guerra Mundial. Raramente se reflete sobre o fato de que esses eventos têm como epicentro o ponto mais avançado de desenvolvimento do capitalismo mundial e que a Primeira Guerra Mundial ocorre no auge do primeiro processo de “globalização capitalista” da história.

Sem entrar aqui em uma análise detalhada das origens da Primeira Guerra Mundial, é útil lembrar que a fase que a antecede e prepara pode ser perfeitamente enquadrada em uma moldura que somos capazes de reconhecer. Por volta de 1872, inicia-se uma fase de estagnação na economia europeia. Essa fase impulsiona decisivamente a busca por recursos e força de trabalho no exterior, principalmente nas formas de imperialismo e colonialismo.

Todos os principais momentos de crise internacional que antecedem a Primeira Guerra Mundial, como o incidente de Fachoda (1898), são tensões decorrentes da disputa internacional pela apropriação de áreas de exploração. A primeira grande iniciativa de rearmamento na Alemanha guilhermina ocorre com o objetivo de criar uma frota capaz de contestar o domínio marítimo (que é domínio comercial) da Inglaterra.

Mas por que a guerra deveria representar um horizonte de solução para as crises geradas pelo capital? A resposta, neste ponto, é bastante simples. A guerra representa uma solução ideal para as crises de “queda da taxa de lucro” sob quatro aspectos principais.

Em primeiro lugar, a guerra surge como uma força não negociável para investimentos massivos, capazes de revitalizar uma indústria enfraquecida. Grandes encomendas públicas, justificadas pelo “sagrado dever da defesa”, conseguem extrair os últimos recursos disponíveis no setor público e direcioná-los para encomendas privadas.

Em segundo lugar, a guerra representa uma grande destruição de recursos materiais, infraestruturas e vidas humanas. Tudo isso, que do ponto de vista do senso comum humano é uma tragédia, do ponto de vista das perspectivas de investimento é uma oportunidade magnífica. De fato, trata-se de um evento que “recarrega o relógio da história econômica”, eliminando a saturação das possibilidades de investimento que ameaça a própria existência do capitalismo.

Após uma grande destruição, abrem-se vastas oportunidades para investimentos fáceis, que não exigem nenhuma inovação tecnológica: estradas, ferrovias, sistemas de abastecimento de água, habitações e todo o setor de serviços associado. Não é por acaso que, há muito tempo, enquanto uma guerra ainda está em curso – do Iraque à Ucrânia –, já se observa uma corrida preliminar para garantir contratos para a futura reconstrução. A maior destruição de recursos de todos os tempos – a Segunda Guerra Mundial – foi seguida pelo maior boom econômico desde a Revolução Industrial.

Em terceiro lugar, os grandes detentores de capital, especialmente o capital financeiro, consolidam comparativamente seu poder sobre o restante da sociedade. O dinheiro, por ter uma natureza virtual, permanece intocado por qualquer grande destruição material (desde que não seja um aniquilamento planetário).

Em quarto e último lugar, a guerra congela e interrompe todos os processos potenciais de revolta e todas as manifestações de descontentamento das classes mais baixas. A guerra é o mecanismo definitivo, o mais poderoso de todos, para “disciplinar as massas”, colocando-as em uma condição de submissão da qual não podem escapar, sob pena de serem identificadas como cúmplices do “inimigo”.

Por todas essas razões, o horizonte bélico, embora atualmente distante dos sentimentos predominantes nas populações europeias, é uma perspectiva que deve ser levada extremamente a sério. Quando hoje alguns afirmam – com razão – que não existem as bases culturais e antropológicas para que a sociedade europeia se predisponha seriamente à guerra, gosto de lembrar o momento em que Benito Mussolini, captando os humores das massas, passou em poucos anos do pacifismo socialista ao famoso encerramento de seu artigo no Il Popolo d’Italia, em 15 de novembro de 1914: “O grito é uma palavra que eu jamais teria pronunciado em tempos normais e que agora elevo forte, em alta voz, sem disfarces, hoje, com fé segura: uma palavra assustadora e fascinante: guerra!”.

*Andrea Zhok é professor de filosofia na Universidade de Milão. Autor, entre outros livros, de Critica della ragione liberale: Una

 

Crise Global

0

A economia internacional vem passando, nos últimos dias, por momentos de grande apreensão e dificuldades, levando os governos nacionais a repensarem suas estratégias construídas anteriormente, empresas nacionais e organizações globais buscam a reestruturação de suas variadas atuações em seus mercados e os trabalhadores aguardam, assustados e ansiosos, o desenrolar das movimentações do mundo contemporâneo, que geram preocupações, medos e constrangimentos financeiros.

Neste momento, estamos nos aproximando rapidamente de uma grande crise global, cujos impactos são impossíveis de serem mensurados, afetando a estrutura do comércio internacional, impactando sobre todas as regiões do mundo, afetando governos nacionais, atores globais e gerando incertezas crescentes, que tendem a afugentar os investimentos produtivos e obrigando os Bancos Centrais a atuarem para impedir uma crise global, cujo potencial destrutivo é elevado para a economia mundial.

Na economia contemporânea, marcada pelo desenvolvimento tecnológico, crescimento da integração e da interdependência entre empresas e governos nacionais, é fundamental ter previsibilidade, credibilidade e confiança, onde os atores econômicos e produtivos constroem estratégias para garantir novos mercados e encarar os concorrentes, motivando fortes investimentos em inovação, em pesquisa científica e desenvolvimento de novos produtos, garantindo lucros em ascensão.

As políticas protecionistas adotadas pelo governo dos Estados Unidos têm impactos generalizados para todas as nações e para todos os setores produtivos. Como destacou a revista inglesa The Economist, as medidas adotadas pelo governo norte-americano aumentaram a alíquota comercial de 2% para 24%, algo impensável numa sociedade que sempre estimulou e propagandeou o livre comércio, o liberalismo e a redução das intervenções estatais nos setores produtivos.

Neste momento, percebemos que a adoção de medidas unilaterais por parte do governo norte-americano, políticas estas que impactam sobre as nações e empresas locais e estrangeiras, enterram toda a estrutura econômica e produtiva mundial inaugurada no pós segunda guerra mundial, quando foram criadas instituições mundiais, com regras comerciais e financeiras, com instrumentos de regulação e fiscalização, diante disso, os atores econômicos globais estão assustados com os ventos futuros e as medidas protecionistas que podem criar mais incertezas, volatilidades e constrangimentos variados.

Vivemos num momento de preocupações crescentes na economia internacional, as Bolsas globais apresentam grandes desvalorizações, ações de grandes conglomerados apresentam perdas históricas, setores inteiros vivem momentos de medos e desesperanças, que podem culminar no aumento do desemprego, degradação da renda agregada e perda de poder de compra dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, mais injustiças, pobrezas e desigualdades, afinal, como aconteceu na última crise global, ocorrida em 2007/2008, os grandes capitalistas, agentes maiores da crise financeira, foram salvos com injeção de trilhões de dólares dos recursos governamentais, lembrando-os que os mesmos governos que alardeavam o neoliberalismo e a defesa contumaz da redução do papel do Estado na economia e, no clamor da crise financeira, adotaram práticas corruptas e  patrimonialistas para salvar seus apaniguados.

Neste instante, podemos estar às portas de uma crise global, cujos impactos financeiros são impossíveis de serem mensurados, empresas entrarão em bancarrota, desempregos tendem a aumentar, o medo e a desesperança devem crescer e os donos do poder, novamente, demandarão um cheque mais polpudo para evitar perdas financeiras homéricas e a conta, mais uma vez, sabemos quem vai arcar com o prejuízo de mais uma crise financeira global.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

Incerteza no comércio internacional, por Cecília Machado

0

Com ou sem negociações de tarifas, maiores incertezas sobre o comércio internacional já trouxeram consequências adversas para a economia global

Cecília Machado, Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

Folha de São Paulo, 08/04/2025

Há pouco menos de uma década, o referendo do brexit –que pôs fim a uma parceria comercial de muitos anos do Reino Unido com demais países da Europa– e as tarifas impostas sobre a China no primeiro governo de Donald Trump sinalizaram uma importante reversão no apoio ao livre comércio. Recentemente, o segundo governo Trump confirmou essa tendência, impondo tarifas de reciprocidade de pelo menos 10% a todos os países.

Por mais que os prejuízos da restrição ao comércio sejam todos bem conhecidos –incluindo redução da inovação, dos ganhos com economias de escala na produção, da competição de mercado, do acesso a novos produtos e da ampliação das possibilidades de consumo–, mudanças tão drásticas como as que estão sendo vistas trazem consequências econômicas adicionais, que vão além da restrição ao comércio em si.

Desde 2016, a incerteza com relação ao comércio global aumentou substancialmente, conforme revelam os indicadores construídos com base em notícias de jornais e na cobertura da mídia sobre o assunto (Caldara et al., 2020). O índice, gerado com base em textos que possuem palavras como “risco”, “ameaça” e “incerteza” relacionados a termos como “tarifas”, “impostos de importação” e “barreiras alfandegárias”, está fortemente associado a menção dessa incerteza na divulgação de resultados das empresas, mostrando aderência do indicador ao contexto econômico.

Quando as empresas tomam decisões de investimentos que são irreversíveis, incertezas sobre a economia, sobre o ambiente de negócios ou sobre a demanda por seus produtos as fazem adiar essas decisões. Há valor na espera. Uma incerteza elevada cria fortes incentivos para que as empresas esperem para ampliar seus negócios, realizar novas contratações e fazer inúmeras outras grandes decisões de gastos cuja reversão, caso o cenário se revele adverso, se mostre custosa.

É nesse sentido que aumentos no índice de incerteza de política comercial influenciam a decisão das firmas que envolvem custos elevados e irrecuperáveis. Tais efeitos foram estudados na guerra comercial de 2018, contexto no qual o aumento da incerteza resultou em queda de investimentos e em menor crescimento econômico.

Após a recente divulgação das novas políticas comerciais do segundo governo Trump, o indicador de incerteza de política comercial alcançou o maior valor da série histórica, em patamar que chega a ser quase quatro vezes maior ao máximo observado na guerra comercial de 2018. Esta, que é a mudança mais expressiva da política comercial americana das últimas décadas, deixa no ar ainda mais dúvidas sobre o futuro do comércio internacional. Os países atingidos pelas novas tarifas irão retaliar? Os Estados Unidos recuarão? Ou aplicarão medidas protecionistas ainda mais extremas?

Com ou sem negociações sobre as tarifas, o fato é que o futuro se tornou mais incerto. São empresas investindo menos, mas também pessoas mais cautelosas, consumindo menos e poupando mais.

Reconquistar a confiança em momentos de mudanças tão radicais pode se mostrar extremamente difícil, especialmente quando as mudanças de política econômica não se limitam apenas ao comércio e abarcam também mudanças regulatórias, nas finanças públicas, nas políticas de imigração.

A incerteza deixa todos em modo de espera, trazendo menos dinamismo e menos crescimento para a economia, o contrário do que se pretendia.

 

Tarifas são como um retrocesso tecnológico, por Bernardo Guimarães

0

Elas visam substituir cadeias de produção produtivas por um processo menos eficiente

Bernardo Guimarães, Doutor em economia por Yale, foi professor da London School of Economics (2004-2010) e é professor titular da FGV EESP

Folha de São Paulo, 09/04/2025

Na semana passada, o rei da confusão, Donald Trump, fez história ao anunciar sua insana política comercial com sua patética tabela de tarifas.

Para entender por que essas tarifas são um tiro no pé e uma facada no mundo, pense em como é feita uma simples caneta. Ela custa 12 segundos de trabalho de quem recebe o salário médio nos Estados Unidos. Doze segundos! Esse valor paga todo o processo de produzir a caneta, desde a extração dos minerais usados até a montagem do produto, incluindo o custo de usar as máquinas e equipamentos.

A caneta custa tão pouco porque o processo de produção é dividido em várias etapas, executadas por empresas diferentes. Da extração da matéria-prima à montagem, incluindo a produção dos equipamentos, o processo vai incluir dezenas de países.

Crucialmente, esse processo de produção não foi arquitetado por um planejador: cada empresa foi buscando fornecedores mais baratos, encontrando maneiras mais eficientes de produzir, e assim, com o tempo, chegamos a uma altíssima produtividade, que faz a caneta custar 12 segundos do trabalho de um norte-americano médio.

As tarifas vêm para matar esse processo produtivo. Trump quer que a produção de bens consumidos nos Estados Unidos aconteça no país. Esse é o maior erro.

Substituir cadeias de produção altamente produtivas, escolhidas pela mão do mercado, por um processo que não aproveitará as vantagens comparativas de cada país tem efeito similar ao de um retrocesso tecnológico. Caem a produção e a renda.

O argumento usual para proteger a indústria é que essas perdas são compensadas por algum aprendizado que estimulará uma indústria nascente e gerará ganhos futuros. Mesmo quem é simpático a esse argumento deve concordar que os Estados Unidos não precisam aprender a fazer meias e bicicletas.

Os Estados Unidos podem produzir camisetas, telefones e carros sem negociar com o exterior. Só que os salários seriam muito menores ou os preços dos bens seriam muito maiores (dá no mesmo).

E para quê?

O segundo problema, como explicou a coluna de Cecília Machado desta semana, é que ninguém vai investir para montar esse novo processo de produção 100% americano se ninguém sabe como serão as tarifas no ano que vem.

A parte patética é que as tarifas foram calculadas para punir países com os quais os Estados Unidos têm déficit comercial mais alto. Isso faz tanto sentido quanto o dono da pizzaria querer punir o produtor de tomates porque compra mais tomates do que vende pizzas para ele. A conclusão inescapável é que Trump tem uma visão mercantilista extremamente rudimentar da economia.

Em retrospectiva, é fácil ver que mercados foram excessivamente otimistas ou benevolentes com Trump. Talvez ainda estejam sendo.

É ridícula a crença de que Trump impôs essas tarifas para forçar outros países a eliminarem barreiras comerciais. Quem entende os benefícios do comércio internacional jamais tomaria essa medida, por entender o enorme custo que as tarifas impõem à própria economia americana.

Agora o mundo quer saber se Trump vai voltar atrás. O problema é que Trump não vai dizer que errou, era brincadeira. Ele precisa cantar vitória. A resposta da China –impor mais tarifas aos Estados Unidos– atrapalha demais esse caminho.

 

As tarifas de Trump vão prejudicar o mundo, por Martin Wolf

0

Os déficits comerciais permanecerão praticamente inalterados, e o mundo apenas acabará mais pobre

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo/ Financial Times – 08/04/2025

Agora sabemos qual economia é a maior ameaça aos Estados Unidos depois da China: Lesoto. Atualmente, a China tem uma tarifa combinada de 54% sob o novo plano de Donald Trump. Mas, aparentemente, Lesoto merece uma tarifa “recíproca” de 50% sobre suas exportações para os EUA, logo à frente dos 49% sobre o Camboja e 46% sobre o Vietnã, seguidos por 32% sobre a Indonésia e Taiwan, 26% sobre a Índia e 20% sobre a UE. O Reino Unido escapa com 10%.

O que talvez seja mais extraordinário sobre a derrubada de quase um século de política comercial é que ninguém, aparentemente, informou ao presidente que um procedimento que coloca Lesoto no degrau mais alto faria os EUA parecerem ridículos. Mas fez —e fez isso porque esse procedimento era ridículo.

Não houve uma análise sutil de todas aquelas supostas barreiras tarifárias e não tarifárias das quais, diz Peter Navarro, ecoando seu chefe, os EUA explorados têm sofrido tão terrivelmente. Não, foi muito mais simples e estúpido. As tarifas propostas são proporcionais ao déficit comercial bilateral dividido pelas importações bilaterais.

A suposição implícita é que, em um mundo justo, o comércio se equilibraria com cada parceiro individual. Isso é uma completa loucura. No entanto, agora se tornou a base intelectual da política comercial do país mais poderoso do mundo —infelizmente, pobre coitado, aparentemente vítima de uma conspiração comercial global.

Não é apenas loucura. É perversidade. Pense na história do envolvimento dos EUA no Vietnã. No entanto, agora, os EUA decidiram tentar interromper seu desenvolvimento econômico. O Vietnã não está sozinho em buscar explorar os benefícios da abertura. De fato, a política comercial convergiu para o liberalismo nas economias emergentes de forma bastante ampla. Eles estavam respondendo a uma promessa que os EUA agora retiraram.

Isso não é nem mesmo todo o trabalho de Trump. Canadá e México ainda são vítimas de suas “tarifas de fentanil”. Há uma tarifa de 25% sobre automóveis e as tarifas sobre aço e alumínio também foram aumentadas.

No entanto, as tarifas não fecharão os déficits comerciais. Nos anos 1970, trabalhei na economia indiana, então uma das economias mais protegidas do mundo. Ela tinha grandes superávits comerciais? Não. Sim, tinha uma proporção pequena de importações em relação ao PIB. Mas tinha uma renda ainda menor de exportações. Isso se devia ao impacto adverso da proteção na competitividade das exportações.

Isso agora acontecerá com os EUA: as importações encolherão, mas as exportações também. Os déficits, determinados pela renda e pelo gasto, permanecerão praticamente inalterados. O mundo apenas acabará mais pobre. Como argumenta o Instituto Kiel da Alemanha, os maiores efeitos negativos provavelmente recairão sobre os EUA: a proteção geralmente [e um tiro no próprio pé.

As pessoas que fundaram o sistema de comércio global nas décadas de 1930 e 1940 experimentaram os resultados do protecionismo empobrecedor nas décadas de 1920 e 1930. O sistema que criaram foi baseado, por boas razões, nos princípios de não discriminação, liberalização através de negociações recíprocas, vinculação de tarifas e adjudicação imparcial de qualquer uso das cláusulas de escape no sistema.

Tudo isso foi projetado para criar um regime comercial previsível, transparente e liberal. Ao longo de oito rodadas de negociações concluídas, o resultado se tornou uma economia mundial aberta e dinâmica. Isso foi um produto da diplomacia dos EUA. Trump não apenas trouxe a proteção dos EUA a níveis não vistos em um século, mas destruiu tudo o que seus predecessores buscaram alcançar. Isso é um ato de guerra contra o mundo inteiro.

O debate sobre se devemos levar Trump a sério acabou. Ele agora aprendeu a ser o tirano que sempre desejou ser, isso levou um tempo. Mas, com a ajuda que recebeu, ele chegou lá. Sua administração está engajada em um ataque abrangente à república americana e à ordem global que ela criou. Sob ataque doméstico estão o Estado, o Estado de direito, o papel do Legislativo, o papel dos tribunais, o compromisso com a ciência e a independência das universidades.

Todos esses eram os pilares sobre os quais a liberdade e a prosperidade dos EUA repousavam. Agora, ele está destruindo a ordem internacional liberal. Em breve, presumo,  Trump estará invadindo países enquanto prossegue para restaurar a era dos impérios.

A aplicação de todas essas tarifas é um símbolo perfeito do que Trump representa. Ele apelou para uma “emergência” inexistente, permitida por um Legislativo tolo, para impor um aumento de impostos altamente regressivo que pesará particularmente sobre sua própria base política, em parte para financiar uma extensão que estoura o orçamento de seu próprio corte de impostos altamente regressivo de 2017.

Parece inevitável que essas tarifas, além da incerteza criada pelo novo ambiente político não ancorado e, portanto, imprevisível, prejudicarão o mundo e os EUA tanto agora quanto a longo prazo. Nossas economias estão muito mais abertas do que nunca.

Aumentos enormes e repentinos na proteção terão efeitos econômicos correspondentes maiores do que antes. Os mercados de ações estão certamente certos ao supor que uma boa parte do estoque de capital produtivo de hoje se tornará sucata: a contínua turbulência do mercado é provável.

Isso oferece um tipo perverso de esperança. A tentativa de Trump e seus associados de minar a república levaria tempo. Agora é mais provável que ele fique sem tempo. Imagine que, como resultado de toda essa turbulência, a economia realmente vacile e, assim, os republicanos sejam derrotados nas eleições de meio de mandato. Isso tornaria o projeto Maga muito mais difícil de realizar. Quem sabe? As instituições dos EUA podem começar a mostrar um pouco de coragem. Acima de tudo, a próxima eleição presidencial pode realmente ser justa.

Enquanto Maga dominar a direita americana, o potencial dos EUA para um comportamento imprevisível, irracional e pernicioso permanecerá. Isso é, infelizmente, um grande presente para a China. Mas quanto pior ficar agora, mais provável é que Maga seja um interlúdio, não o destino da América. Isso é um consolo e uma esperança.