Pé-de-meia reduz 25% do problema da evasão escolar, por Laura Muller Machado

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Proposta brasileira está em linha com os resultados mundiais, mas pode ser fortalecida com melhoria na educação

Laura Muller Machado, Mestre em Economia Aplicada pela USP, é professora do Insper e foi secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo

Folha de São Paulo, 22/03/2025

O Pé-de-Meia, a partir de um incentivo financeiro-educacional mensal e de uma poupança condicionada para os jovens, tem como objetivo promover a permanência e a conclusão escolar de alunos matriculados no ensino médio público. O programa prevê o pagamento de uma bolsa de estudos com menos de meio salário-mínimo per capita a inscritos no cadastro único.

Os pagamentos são de 10 parcelas mensais de incentivo de R$ 200, que podem ser sacados em qualquer momento desde que comprovada a frequência de 80%, além de três depósitos de R$ 1.000 ao final de cada ano concluído, que só poderão ser retirados da poupança após a conclusão do ano letivo. Os valores chegam a até R$ 9.200 por aluno ao longo do ensino médio, desde que o estudante frequente e seja aprovado em todas as etapas.

Sabemos, a partir do estudo “Consequências da violação do direito à educação”, de Ricardo Paes de Barros, que os jovens que não concluem a educação básica irão incorrer em uma perda de R$ 395 mil ao longo da vida toda devido a perdas, não apenas envolvendo remuneração, mas também longevidade, externalidades econômicas e episódios de violência.

Isso quer dizer que, a cada cinco jovens que não evadem, deixamos de perder R$ 2 milhões. O custo da não conclusão da educação básica é muito alto, tanto para quem deixa a escola como para toda a sociedade brasileira.

Espera-se que uma bolsa de estudo seja um instrumento mais eficaz quando a razão para a evasão é a falta de renda para frequentar a escola, e menos eficaz em casos nos quais o jovem tem condições, mas não percebe a escola como um investimento produtivo para seu tempo.

Uma bolsa de estudo deve ter mais impacto quando o motivo da evasão é a pobreza e a necessidade de trabalhar do que a baixa qualidade da educação oferecida. O Pé-de-Meia será um bom instrumento para combater a evasão por motivo de ausência de recursos financeiros. Mas para ser mais impactante, o programa precisa de um complemento: a educação de qualidade.

A partir de dados da Pnad e do Inep de 2019, o Centro de Evidências da Educação Integral do Insper desenvolveu um simulador, uma avaliação ex-ante, para estimar seu impacto. O resultado mostra que, considerando todas as séries, a taxa de evasão no ensino médio para os beneficiários do programa sem o Pé-de-Meia é da ordem de 28%, enquanto com o Pé-de-Meia, de 21%, uma redução de 7 pontos percentuais. Portanto, o programa é capaz de equacionar um quarto da evasão.

Muitos países têm programas como o brasileiro. Foram publicados em torno de 104 estudos sobre esses incentivos educacionais ao redor do mundo. A literatura aponta para um impacto de redução de evasão de 2 a 9 pontos percentuais em programas similares. Portanto, a proposta brasileira está em linha com os resultados mundiais.

Apesar de promissor, fica evidente que a bolsa não é a solução completa do combate à evasão, um dos maiores desafios do ensino médio. Em especial, a ciência indica que o programa será enriquecido quanto mais robusto for a educação.  No Canadá, por exemplo, o incentivo equivalente é disponibilizado em conjunto com um plano de aperfeiçoamento de educação na escola beneficiada.

Sem dúvida, estamos todos gratos e animados com a bolsa de estudos para os mais vulneráveis poderem estudar. No entanto, sabemos que o Pé-de-Meia poderia alcançar resultados maiores e ser mais potente em um cenário de melhoria da qualidade da educação.

 

Adeus ao mundo eurocêntrico? Entrevista com Walden Bello

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Um pensador destacado do altermundismo sustenta: o poder do Ocidente nunca foi tão frágil. É possível esperar um novo Sul Global? Por que a China é muito diferente da antiga URSS? Que esperar dela numa nova ordem mundial?

Walden Bello, entrevistado a Néstor Restivo, em Tektónicos 

Tradução: Antonio Martins – OUTRAS PALAVRAS – 13/09/2024

A primeira vez que encontrei Walden Bello foi no verão de 2001, em Porto Alegre. Por ocasião do primeiro Fórum Social Mundial (FSM), há mais de duas décadas, esse sociólogo das Filipinas, ex-membro do parlamento de seu país viajou para o sul do Brasil como tantos ativistas, líderes e acadêmicos ou pesquisadores que esperavam que esse fórum, e os que o seguiram por vários anos, se consolidasse como uma tribuna internacionalista de resistência ao neoliberalismo – então em seu momento de expansão – e, ao mesmo tempo, uma plataforma para ideias alternativas. Bello, pouco conhecido na América do Sul, já era presença importante nos movimentos “altermundistas”. Dirigia uma rede de organizações sul-asiáticas denominada Focus on the Global South, cujo nome me chamou atenção.

O termo “Sul Global” apareceu pela primeira vez em 1969, quando o professor e ativista norte-americano Carl Oglesby escreveu um artigo sobre a Guerra do Vietnã no qual mencionou a “dominação do Norte sobre o Sul Global” — causa, segundo ele, de uma “ordem social intolerável”.

“Certamente não fomos os inventores nem os pioneiros em falar do ‘Sul Global’””, diz Walden Bello na Casa de las Madres de Plaza de Mayo, no inverno de 2024 em Buenos Aires, uma cidade que ele está visitando pela primeira vez. Ele conta que a Focus on the Global South foi estabelecida em Bangkok, Tailândia, em 1995, acrescentando: “de qualquer forma, adotamos esse nome, sintonizando-nos no momento certo com o que estava começando a acontecer no mundo”.

Walden Bello visitou à capital argentina (e não deixou de observar com perplexidade tudo o que emerge do governo de Javier Milei) a convite do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) e da Fundação para a Pesquisa Social e Política (FISYP). Palestrou sobre o “Impacto e oportunidades da crise da hegemonia dos EUA” e conversou com a Tektónikos sobre esse tema.

O que o Sul Global significa para você hoje?

– O que chamamos de países em desenvolvimento, subdesenvolvidos ou colonizados costumava ser chamado de “Terceiro Mundo”. Mas a União Soviética e a Europa Oriental entraram em colapso, entre 1989 e 91. Isso pôs fim à ideia de que havia um “segundo mundo”, um mundo comunista. Ficou difícil manter estes termos. Então, o termo Sul Global, que já havia sido inventado, ressurgiu como uma ideia na década de 1990, sob a premissa de reivindicar o fim de sua dominação.

Quais foram os principais desafios — e quais ainda são agora — nesse novo mundo em formação?

Continuam a ser o fim da dominação econômica e política dos Estados Unidos e de suas potências aliadas no Ocidente. São forças estruturais que dominaram o mundo por 500 anos, um cenário que, no entanto, está sendo questionado neste século XXI. Isso se dá principalmente por causa do surgimento de um grande ator como a China. Isso criou algum espaço para que o Sul Global pudesse se distanciar do Ocidente, tramar seu próprio desenvolvimento, ensaiar políticas autônomas – e não continuar a ser dominado por uma força ocidental liderada pelos Estados Unidos. A disputa da União Soviética com os EUA abriu espaço de manobra para o Terceiro Mundo. Mas a diferença é que agora a China possibilita outro cenário: é uma grande potência econômica e política de uma forma que a URSS não era – ou era apenas militarmente, mas não em outros níveis. Em outras palavras, agora a China tem grandes recursos econômicos e pode cooperar muito melhor com o mundo em desenvolvimento. Essas são condições muito diferentes daquelas da Guerra Fria.

Qual é o papel do BRICS?

É uma nova formação importante, hoje já com 10 países que se juntaram ao chamado BRICS+. Isso significa que não apenas os quatro e depois cinco fundadores do início (Brasil, Rússia, Índia, China e depois África do Sul), mas agora o dobro de nações (Egito, Irã, Etiópia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos se juntaram desde 2024). Além disso, outros países querem aderir. Em outras palavras, agora temos um nível maior de recursos que podem ser usados para o desenvolvimento do Sul Global. Em segundo lugar, e talvez o mais importante, temos a China novamente, não apenas como uma potência econômica, mas oferecendo um modelo bem-sucedido de desenvolvimento liderado pelo Estado, em contraste com o que o FMI ou o Banco Mundial vêm defendendo há décadas, com seu foco no mercado como condutor. E, em terceiro lugar, o peso político dos BRICS é muito importante para fornecer recursos, espaço e margem de manobra, além de crédito para o Sul Global. Os BRICS também oferecem diversidade, pois em muitos aspectos os parceiros são diferentes uns dos outros (Brasil da Arábia Saudita ou Rússia do Irã etc.). Ainda assim, o importante é que o grupo agora ampliado não pode mais, devido ao seu tamanho e peso, ser dominado pelas potências ocidentais.

E quanto ao papel da China em particular, sendo a mais poderosa desse grupo?

É claro que a China lidera o grupo, é a principal fornecedora de recursos e impulsionadora dos bancos de desenvolvimento que estão sendo criados nesse ambiente, dos fundos de contingência, que têm formatos e exigências diferentes dos esquemas do FMI (o que mostra uma alternativa em potencial à ordem multilateral existente). A liderança da China é muito interessante. Pequim forneceu uma quantidade impressionante de recursos aos países do Sul Global e é um modelo, insisto nisso, em que o Estado controla as forças de mercado. Cada vez mais países estão olhando para isso como uma alternativa às economias orientadas pelo mercado. E, por fim, há o peso político e militar da China, embora ainda seja muito menor do que o dos EUA. A China tem muito cuidado para não se apresentar como um substituto dos EUA e disse explicitamente que bancos como o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) ou o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) não querem substituir o sistema de Bretton Woods. Entretanto, os EUA afirmam que a China é uma potência revisionista e ambiciosa, que quer ser a número um, substituir tudo, não se integrar ao capitalismo e que representa um desafio. Na verdade, essa é uma tentativa de justificar o primeiro objetivo dos EUA, que é conter a China com uma postura muito agressiva, presente em especial no governo Biden, que está saindo.

A guerra interna imperial

O Ocidente está inevitavelmente entrando em guerra ou há setores que querem negociar algum tipo de transição?

Acho que a Europa está sendo arrastada pelos EUA nesse objetivo de conter a China. Ela foi fortemente influenciada e isso levou à expansão da OTAN para o leste e para a Ásia. Por meios econômicos, diplomáticos e militares, os EUA têm procurado conter a China durante todos esses anos e o Partido Democrata (PD) deu sinais muito claros aos seus militares de que é isso que eles querem em relação à China. O número de missões e bases dos comandos militares dos EUA no Pacífico foi aumentado e as forças armadas receberam sinal verde para isso. O comandante da Força Aérea, Mike Minihan, chegou a ser citado como tendo falado sobre a possibilidade de entrar em guerra contra a China em 2025.

A posição da extrema direita e do Partido Republicano em geral nos Estados Unidos é menos clara, você não acha?

Vamos examinar isso com atenção. A candidata democrata Kamala Harris e os líderes democratas gostariam de manter o papel do “livre comércio”, a hegemonia dos EUA, o uso de órgãos multilaterais que controlam e o fluxo “livre” de capital. Mas basicamente essa é a velha ordem. O presidente Biden e outros disseram que os EUA são os únicos capazes de preservar tudo isso, as instituições do domínio ocidental em seu conjunto, etc. Eles também acreditam que o desafiante republicano, Donald Trump, não faria isso. Com relação a Trump, acho que ele não está tão interessado em expandir o poder econômico dos EUA no Sul Global — nem no fluxo de capitais, nem na promoção de uma economia global ou transfronteiriça. Pense que, em seu primeiro governo, uma das ações imediatas de seu governo, em janeiro de 2017, foi retirar-se da Parceria Transpacífica (TPP). Isso é muito diferente do que o Partido Democrata quer. A mesma coisa aconteceu com a forma diferente de lidar com a ocupação do Afeganistão durante a mudança de governo de Trump para Biden. Acho que Trump está basicamente interessado em trazer o capital de volta para os EUA, o chamado reshoring, porque ele acusa as corporações de levar empregos para fora do país. Toda essa ideia de colocar os “Estados Unidos em primeiro lugar” é seu ponto de apoio. E seus apoiadores odeiam as grandes empresas de tecnologia do Vale do Silício e de Wall Street. Embora o próprio Trump seja obviamente um grande capitalista, ele explora esses sentimentos contra o grande capital. Entretanto, sua ideia não é tanto expandir os EUA, mas priorizar o mercado doméstico.

Será que o trumpismo se posiciona como completamente alheio aos problemas globais?

Eu diria que, em geral, sim, embora obviamente preservando o poder unilateral em questões mundiais. Ele é claramente anti-imigração. Em termos militares, eu o vejo mais comprometido e interessado em ter um país poderoso em si mesmo novamente, não um país de alianças como a OTAN, pois ele não gosta disso. Em resumo, vejo uma perspectiva diferente da dos democratas. Há diferenças reais entre os dois candidatos e os dois projetos. A pergunta que faço é se nós, no Sul Global, devemos escolher uma dessas duas opções. Minha resposta é que não precisamos fazer isso, não temos interesse na ordem liberal ou na ordem “América em primeiro lugar”. Mas precisamos prestar atenção em qual das duas posições prevalece e tentar tirar proveito dessas contradições.

Olhando das Filipinas, qual é o papel do Sudeste Asiático na reconfiguração global em andamento?

Há muitas contradições. O Vietnã e as Filipinas são muito críticos em relação à China pelo mesmo motivo: a disputa de limites no Mar do Sul da China, onde a China assumiu unilateralmente uma posição. É um mar com seis países reivindicantes e a China estabeleceu unilateralmente que 90% dele lhe pertence. Pode-se entender que a razão chinesa não é expansionista, mas defensiva – porque o Sudeste Asiático está muito próximo do núcleo industrial da China (Xangai, Guangzhou, suas áreas adjacentes etc.) e a ideia é que ela precisa proteger ou impedir um ataque dos EUA à sua infraestrutura produtiva. Em um cenário de guerra, isso é fundamental para a China, e os norte-americanos têm muitos ativos militares na área. Isso é compreensível do lado chinês, o que não é compreensível foi seu método unilateral de dizer “isso é nosso e, por ser nosso, vamos desenvolvê-lo de tal maneira”. A China deveria ter negociado isso com os outros países. Então, talvez fosse possível avançar na desmilitarização da área. É por isso, entre outros motivos, que o Vietnã critica a China nesse ponto. O país tem uma política externa independente. Como você sabe, já lutou no passado contra os norte-americanos e os franceses e exerce neutralidade diplomática.

E quanto ao seu país?

As Filipinas são diferentes. São totalmente aliadas militarmente aos EUA com o atual presidente Ferdinand Marcos Jr. Os norte-americanos têm nove bases militares e Marcos não tem nenhum senso de nacionalismo. Ele não se importa, só se preocupa com a fortuna de sua família, seu grupo central de pessoas próximas, a dinastia, seus investimentos milionários nos EUA e em outros países ocidentais, que podem ser facilmente expropriados se ele não fizer o que Washington quer. O governo de Marcos está completamente vendido aos EUA e não tem controle sobre a política de defesa.

E quanto ao cenário global, o restante das nações do Sudeste Asiático?

O restante da ASEAN, a associação que integra todas essas nações, é diversificado, mas a maioria da população tem uma opinião melhor sobre a China do que sobre os Estados Unidos, especialmente na Tailândia, no Camboja, na Indonésia e na Malásia. A maioria prefere a China como parceira aos EUA, de acordo com relatórios recentes. Os únicos dois países que se opõem a isso são, não surpreendentemente pelo que expliquei, embora por motivos diferentes, o Vietnã e as Filipinas. Essa é a situação atual na região, que se tornou decisiva no tabuleiro de xadrez global.

 

A Europa se prepara para a guerra, por Flávio Aguiar

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Flávio Aguiar – A Terra é Redonda – 18/03/2025

Sempre que os países da Europa prepararam-se para uma guerra, a guerra aconteceu. E este continente propiciou as duas guerras que em toda a história humana ganharam o triste título de “mundiais”

Há sinais de fumaça no horizonte de que os países europeus preparam-se para a guerra. Que guerra? Contra a Rússia.

Tomemos a Alemanha como exemplo.

Primeiro exemplo: a Volkswagen, empresa que há quase um século está vinculada à identidade nacional alemã, vai fechar três de suas fábricas, devido à crise econômica que assola o país e o continente. Mas há uma empresa interessada na compra das três. Qual? a Rheinmetall, uma das principais produtoras de armamentos na Alemanha. Por quê? Porque seus diretores prevêem uma margem de lucro considerável, graças ao anúncio, por parte da presidenta da Comissão Europeia, Úrsula von der Leyen, de que a União vai investir 800 bilhões de euros em armamentos para incrementar a defesa do continente.

Exemplo 2: paradoxalmente, o diretor de uma das agências do serviço secreto alemão, Bruno Kahl, do Bundesnachrichtendienst, manifestou, em entrevista à Deutsche Welle, em 03/03/2025, a preocupação com a possibilidade de que a guerra na Ucrânia tenha um “fim rápido”. Por quê? Segundo ele, porque isto liberaria a Rússia para ameaçar o restante da Europa antes de 2029 ou 2030, isto é, antes de que os outros países do continente estejam preparados para enfrentar o “inimigo”. A afirmativa, que provocou indignação em Kiev, mostra que há uma estratégia pensada a respeito da possibilidade e previsão da guerra.

E a indústria da guerra parece ser um dos vetores mais importantes para a recuperação econômica da Alemanha e do continente.

A Alemanha ocupa o quinto lugar entre os maiores exportadores de armas do mundo. São eles, em ordem crescente, segundo o Instituto Internacional de Investigação para a Paz, sediado em Estocolmo: Israel, Coreia do Sul, Espanha, Reino Unido, Alemanha, China, França e Rússia praticamente empatadas, e Estados Unidos.

Há duas enormes discrepâncias entre estes países. Primeira: de Israel à China, o percentual de participação nas exportações mundiais de armas fica em um dígito, de 1 a 5%. Com Rússia e França, o índice dá um salto, para 10,5 e 10,9%, respectivamente, sendo que a França superou a Rússia porque as exportações desta caíram, graças à guerra com a Ucrânia e os aliados que a apoiam.

Com os Estados Unidos, o salto é maior ainda: o índice de sua participação é de 40% do mercado mundial.

Segunda discrepância: nos últimos dez anos o valor destas exportações caiu, em oito dos dez países. As duas grandes exceções são a França e os Estados Unidos. No caso destes, o aumento foi de 24%.

Das 100 maiores empresas g“`privadas de produção de armamentos, 41 são norte-americanas, e 27 europeias, excluindo-se a Rússia, que tem apenas 2 empresas entre elas.

Invertendo-se a perspectiva, verifica-se que o país que mais importa armas no mundo é a Ucrânia, com quase 9% do setor. E seus principais fornecedores são os Estados Unidos, a Alemanha e a Polônia.

Assinale-se uma curiosidade: nenhum país da América Latina figura entre os principais exportadores ou importadores de armas.

Aqueles números acima mostram que, como no passado, infelizmente a guerra ou sua perspectiva permanecem sendo um bom negócio para afastar o fantasma de recessões econômicas para quem produza armas, não para quem suporte seus efeitos.

Como afirmei no começo, há sinais de fumaça no horizonte apontando na direção de uma guerra. Sabe-se que onde há fumaça, há fogo. Sempre que os países da Europa se prepararam para uma guerra, a guerra aconteceu. E este continente propiciou as duas guerras que em toda a história humana ganharam o triste título de “mundiais”.

Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

 

Paulo Francis anteviu em 1972 cisão nos EUA que levaria a Trump, por Gabriel Trigueiro

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Reportagens compiladas em livro trazem valiosas lições a políticos e eleitores democratas

Gabriel Trigueiro, Doutor em história comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

Folha de São Paulo, 23/02/2025

Paulo Francis publicou em 1972 o livro “Nixon x McGovern: As Duas Américas”, reunião de reportagens sobre a eleição nos EUA naquela mesmo ano. Lido agora, na volta de Trump à Presidência, a obra soa profética ao antecipar a virada populista na direita americana, a divisão profunda entre as elites culturais e econômicas e a “maioria silenciosa”, a idealização provinciana de uma “América real” e as estratégias de comunicação para descredibilizar as instituições e toda espécie de crítica.

Em 1972, durante as eleições presidenciais dos EUA, a melhor cobertura não foi feita por um americano, mas sim por um brasileiro: o jornalista e crítico cultural Paulo Francis. Em sua obra “Nixon x McGovern: As Duas Américas”, cada capítulo foi escrito durante um momento diferente da campanha, o que deu urgência e dinamismo à sua análise.

Mesmo quem não se interessa em acompanhar a vida política norte-americana pode se divertir com a leitura do livro, já que o texto de Francis é escrito à moda de um thriller político com leveza e ritmo ágil. Seu estilo tinha algo de Bernard Shaw: frases curtas e economia de conectivos, deixando o leitor quase sem fôlego no virar da página.

Publicado no início dos anos 1970, “Nixon x McGovern” nos dá perspectivas sobre algumas disputas políticas norte-americanas contemporâneas. Os dois principais partidos, Republicano e Democrata, são duas máquinas de arrecadação e propaganda. É nesses termos que devem ser compreendidos.

“Nixon x McGovern” é um livro que anteviu o trumpismo. Traçando a origem de algumas estratégias utilizadas por Donald Trump, especialmente no âmbito da comunicação, encontraremos suas raízes na virada populista que Richard Nixon imprimiu na década de 1970 ao movimento conservador.

Afinal, Nixon foi eleito pelos descontentes com a “contracultura” e “os hippies”, da mesma maneira como o atual presidente dos EUA foi eleito ao se contrapor à “cultura woke” e à “esquerda radical”: termos imprecisos e vagos, mas úteis na elaboração de seu discurso como um “americano comum”. E como construir esse representante da “América real”?

Política populista x política aspiracional

No sucesso da campanha de Nixon para a Presidência americana em 1972, foi proveitoso o conceito de “maioria silenciosa”: uma expressão antiga popularizada com um novo sentido pelo seu redator de discursos, Patrick Buchanan.

Foi vendida a ideia de que qualquer posição crítica aos EUA (normalmente associada à esquerda, intelectuais e a grupos como negros, gays etc.) não representava a “América real”, nem o “americano médio”. Embora pertencesse a um grupo majoritário, esse “americano médio” estaria em silêncio e sem a representatividade institucional adequada. Nixon tinha a pretensão de falar por essa América sem voz.

Esse é um momento de virada nos EUA: a ascensão do populismo, uma corrente antiga no país, mas que desta vez estava adaptada às novas formas de comunicação, e fazia oposição a uma tradição aspiracional e quase aristocrática da política norte-americana. Francis constrói uma radiografia precisa dessa guinada.

Ambas as escolas de pensamento, definindo-as aqui como “populista” e “aspiracional”, existem nos EUA e disputam o poder pelo menos desde a independência do país.

A diferença é que durante o processo eleitoral de 1972 esse negócio ganhou uma roupagem contemporânea, irrigada com grana do “big business”, verba publicitária nababesca e o uso inédito de meios de comunicação como TV e rádio.

A diferença das duas escolas fica mais evidente quando pensamos em John f. Kennedy e Richard Nixon, que disputaram a Casa Branca em 1960. Segundo Francis, o primeiro exibia “a sofisticação da Costa Leste (centro financeiro e intelectual dos EUA), o sotaque Boston e Harvard”. Foi, por definição, um modelo aspiracional da América educada, de sangue azul e dinheiro antigo. No entanto, isso vinha com um custo alto: “o povo admirava Kennedy, mas o sentia acima das respectivas cabeças”.

Já Nixon “é o que inúmeros americanos são e têm vergonha de ser: o careta preconceituoso, aquisitivo, isento de imaginação e ideias, tão inseguro de si próprio que recebe qualquer crítica aos EUA como uma ofensa pessoal”.

No entanto, a cada vez que gente como Nixon ou, hoje em dia, alguém como Trump, se torna o saco de pancadas da classe intelectual, essa ofensa jamais fica circunscrita ao objeto da crítica: o político conservador da vez. Ela é coletivizada.

O ofendido passa a ser agora o grosso da população, que, repare, não se identifica, e jamais se identificou, com códigos de comportamentos cosmopolitas. Até porque são códigos que podem soar arbitrários, elitistas, exagerados e autoritários.

O partido do rei

Hoje a política norte-americana assumiu a seguinte configuração: o Partido Democrata comporta alas socialistas, passa por liberais, liberais-conservadores, até chegar a conservadores moderados. A orientação partidária Democrata é, no fundo, conservadora —não em questões sociais e de costumes, claro, mas no sentido de que ela é refratária a mudanças e tem uma estrutura interna rígida, hierarquizada e comandada por oligarquias e caciques.

O Partido Republicano, em contraste, virou o partido do rei. É composto por gente que acredita, ou finge acreditar, que Donald Trump é uma espécie de imperador que teve o seu “direito de sucessão” usurpado por falsos postulantes, e que agora tem o dever de restaurar as glórias perdidas da antiga América, corrigindo os excessos liberais e constitucionais de uma República em decadência.

Muitos analistas, inclusive eu mesmo nesta Folha, subestimaram a capacidade de adesão radical à ideologia trumpista. O fato é que o Partido Republicano se tornou, pelo menos desde 2016, o que os britânicos do século 17 chamariam de “loyalist” —sua agenda está subordinada à vontade do rei. É como se Trump reiteradamente dissesse: “O partido sou eu”. E todo mundo comprasse a ideia.

Em 1972, Francis declarou: “A diferença entre as convenções democrata e republicana é a democracia para ditadura. Toda a gama de opiniões nos EUA apareceu com os democratas. Louvaminhas a Nixon consumiram tudo na republicana. Esta parecia um congresso do PC stalinista, onde o líder é o ‘deus ex-machina'”. Já estava lá o alerta para esse modo de operar totalitário que Nixon estabelecia dentro do partido.

“Certos animais comem o próprio vômito”

Durante as eleições de 2016, Trump era considerado uma figura política desagregadora, que iria fraturar não apenas o seu partido, mas o próprio movimento conservador. No entanto, tão logo foi eleito, e mesmo após sua derrota de 2020, houve uma reconfiguração de forças: um processo revolucionário envolvendo a máquina Republicana e os intelectuais que a orbitavam, com a pretensão de se tornarem conselheiros e amigos do rei.

Gente como Marco Rúbio, ex-senador pelo Estado da Flórida e atual Secretário de Estado desse segundo mandato presidencial, bem como o próprio vice J.D. Vance —ambos foram quadros políticos e intelectuais que no início se opuseram com veemência à ascensão de Trump, mas que logo em seguida já estavam na fila para lhe bajular.

Acompanhando a eleição de 1972, Francis destacava o adesismo de Nelson Rockefeller a Nixon. “Nelson Rockefeller, a quem Nixon venceu e humilhou em 1960, 1964 e 1968, fez o discurso de saudação ao candidato. Certos animais comem o próprio vômito. Certos humanos também, pelo visto.” Nada de novo sob o sol, repare.

O ataque à “mídia liberal”

Na campanha de Nixon, seu discurso parecia vindo da linguagem publicitária criada para a TV. Francis escreve: “Nixon é um admirador profundo das técnicas de vendas de detergentes, mata-ratos, pastas de dentes, sprays vaginais e outros produtos que infestam o vídeo americano. Constantemente, usa slogans reminiscentes dos ditos em discursos eleitorais”.

Não custa lembrar que Trump obteve fama nacional como figura midiática associada um reality show televisivo, “O aprendiz”. Durante os quase 15 anos em que esteve no ar, aprimorou o tino para uma linguagem que se comunica com públicos amplos e aprendeu o alfabeto das métricas de audiência.

Se Trump observou Nixon com o caderninho de anotações em mãos, certamente notou que seu vice, Spiro Agnew, atacava aquilo que, anos depois, recebeu o apelido entre os conservadores de “liberal media”. E estabeleceu desse modo o tom da maioria dos políticos de direita subsequentes, até que isso culminasse na sua versão mais predatória: o trumpismo. Não custa lembrar da declaração, ainda na primeira coletiva de seu primeiro governo, em 2017, de que a imprensa seria tratada como “o partido de oposição”.

Ataques à imprensa eram uma estratégia de apelo popular, porque eram baseados na ideia de que os comentaristas da TV e os editores desses jornais fossem um bando de intelectuais elitistas, apartados do resto da sociedade e do americano médio em gostos e costumes.

Mas Francis arrematou: “Para um político matuto como Agnew, a linguagem de Times e Post, ou da CBS, deve soar elitista. Certamente é superior ao nível de Jararaca e Ratinho a que ele está habituado”.

Francis percebia que descredibilizar os veículos de jornalismo era uma tática de longo prazo que visava criar desconfiança em qualquer informação apurada e publicada e, portanto, borrar as fronteiras do que são fatos ou apenas narrativas inventadas. Se remete a alguma técnica empregada em 2025, não é mera coincidência.

Alguns nomes da nova direita brasileira gostam de invocar Paulo Francis como um antecedente intelectual e uma genealogia respeitável de seus próprios argumentos e posição política. O Francis a que se referem é o defensor da alta cultura, o antipetista antes de isso ser modinha, o autor que sempre tinha à mão algum deboche sobre a esquerda.

No entanto, a realidade é mais complexa. Foi o sujeito, afinal, que argumentou que “(…) o liberalismo americano, se deseja fazer justiça ao nome, precisa evoluir para uma forma de socialismo, democrática e em outros respeitos compatíveis com as tradições do país”.

Voltando aos EUA, de lá para cá liberais e democratas não parecem ter aprendido muita coisa. Não lhes faria mal ler o livro desse brasileiro escrito no distante ano de 1972, mas com uma ou outra lição valiosa a ensiná-los sobre a política de seu próprio país.

 

O império da lei sob ataque, por Oscar Vilhena Vieira

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Suprema Corte terá a resiliência demonstrada pelo STF?

Folha de São Paulo, 21/03/2025

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023)

Subjugar o Poder Judiciário é um passo essencial na cartilha do populismo autoritário. Foi assim na Venezuela, de Chávez, na Rússia, de Putin, na Hungria, de Orbán, e na Turquia, de Erdogan. Em todos esses países a erosão do império da lei passou por ataques ao sistema de Justiça, seguidos da captura e subordinação dos tribunais pelo poder político.

A escala de ataques a juízes federais nos Estados Unidos não é um bom presságio. O atual governo está não apenas seguindo a malfadada cartilha populista como ampliando o seu repertório ao ameaçar escritórios de advocacia que estejam patrocinando ações contrárias aos interesses do governo, alerta Steven Levitski, autor de “Como as Democracias Morrem”.

A partir de uma interpretação cesarista das prerrogativas do Poder Executivo, ideólogos do presidente têm proposto uma verdadeira subversão do sistema de freios e contrapesos estabelecido pela Constituição, buscando afastar do legislador e, sobretudo, dos juízes a competência para controlar os atos do Executivo.

As ameaças de impeachment têm sido empregadas como um instrumento de intimidação dos magistrados, não apenas pelo presidente. Elon Musk lançou uma campanha pública e fez doações para membros do Congresso dispostos a promover o impeachment de juízes que se oponham ao governo. Isso levou o recatado e conservador John Roberts, presidente da Suprema Corte, a emitir nota afirmando que “o impeachment não é uma resposta apropriada quando se discorda de decisões judiciais”.

Difícil prever se o Judiciário norte-americano, tido como um dos mais independentes e poderosos do mundo, terá a resiliência demonstrada pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro ou pela Suprema Corte de Israel, que sobreviveram às investidas de Bolsonaro e Netanyahu.

Como nos lembra Alexander Hamilton, um dos pais fundadores da Constituição norte-americana, o Judiciário não tem nem a bolsa nem a espada para se impor. Conta apenas com a autoridade de suas decisões e com a lealdade dos atores políticos e cidadãos para sobreviver.

Se é verdade que o eleitor tradicionalmente tende a punir políticos que descumpram decisões judiciais ou ameacem a independência dos tribunais, a última eleição norte-americana pode estar estabelecendo um novo paradigma na medida em que o confronto com o Judiciário constituiu parte explícita da agenda premiada pelo eleitor.

Essa nova dinâmica incorporada ao projeto de subversão do Estado de Direito tem levado algumas democracias, como a alemã, a fortalecerem as barreiras de proteção aos seus tribunais.

No Brasil, onde os ataques também têm escalado, é imperativo que o próprio sistema de Justiça reduza suas vulnerabilidades, aumentando a eficiência, a integridade e a imparcialidade na aplicação da lei, assim como reduzindo privilégios corporativos inaceitáveis.

Na esfera do Supremo, o mais urgente seria reduzir radicalmente as decisões monocráticas. O emprego abusivo dessas decisões cria enorme instabilidade e grave insegurança jurídica. O Supremo também precisa adotar um código de conduta que contribua para a preservação de sua autoridade e integridade. O STF também tem o desafio de não errar no julgamento daquele que quis subjugá-lo.

A cartilha do populismo autoritário, atualizada por Trump, certamente inspirará políticos ambiciosos e oportunistas a aumentar os ataques ao Judiciário ao redor do mundo.

Não há por que acreditar que aqui será diferente.

 

Donald Trump conseguirá fortalecer os Estados Unidos? Paulo Nogueira Batista Júnior

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Paulo Nogueira Batista Júnior – A Terra é Redonda – 21/03/2025

O slogan MAGA é revelador do que está acontecendo com os EUA: uma perda progressiva de expressão relativa, em termos econômicos, populacionais e políticos

Donald Trump conseguirá fortalecer os Estados Unidos? Conseguirá, pelo menos, deter o seu declínio relativo? Ou irá acelerar a decadência do Império? Transcorridos apenas dois meses desde a sua posse, falta evidentemente a famosa perspectiva história. Mas questões candentes nunca esperam essa perspectiva. Para elas, vale sempre o ante mortem, não o post mortem.

Feita essa ressalva, antecipo a conclusão do artigo: Donald Trump não só será incapaz de deter o declínio dos EUA, como irá apressá-lo. Em vez de Make America Great Again (MAGA), ele deve Make America Weaker Still (MAWS). (Em vez de fortalecer os EUA, deve torná-los mais fracos.)

O seu slogan MAGA é revelador do que está acontecendo com os EUA: uma perda progressiva de expressão relativa, em termos econômicos, populacionais e políticos. O plano trumpista é restabelecer a hegemonia americana no mundo, custe o que custar.  Mas isso é mais um sonho do que um plano realista, como tentarei argumentar.

Em primeiro lugar, a herança geopolítica que o novo governo americano recebe é altamente problemática. Superestimando o próprio poder e subestimando o de outros países, os americanos se meteram em uma guerra em três frentes.

Pareceu-lhes uma boa ideia hostilizar simultaneamente a Rússia e a China, o que aproximou esses dois gigantes como nunca. A guerra econômica e tecnológica contra a China atrapalhou, mas não conseguiu parar o avanço chinês. A guerra na Ucrânia e as sanções econômicas e financeiras aplicadas contra a Rússia não tiveram o efeito pretendido. Apesar delas e do apoio maciço do Ocidente à Ucrânia, a Rússia vem levando a melhor no campo de batalha.

Para completar o quadro, os EUA carregam o peso econômico e moral de apoiar o genocídio praticado por Israel. A força do lobby judaico converteu o Império americano num instrumento dos planos israelenses, o que desmoraliza por completo os valores humanitários proclamados pelos EUA e demais países do Ocidente.

Como Donald Trump pretende lidar com essa herança? Em relação a Israel, a sua política consegue ser uma versão piorada do que já vinha sendo feito por Joe Biden, uma vez que proporciona apoio ainda mais enfático aos crimes de Israel. E pior: ele dá sinais de que pretende ser mais agressivo com o Irã, não descartando uma guerra aberta contra o país. Em vez de pacificar uma das três frentes herdadas de Joe Biden, Donald Trump pretende ao que parece aprofundar o conflito no Oriente Médio. Só um país se beneficia disso: Israel.

Todos os esforços iniciais de Donald Trump se concentraram em uma tentativa arrojada de encerrar a guerra na Ucrânia e pacificar a relação com a Rússia. Terá sucesso? Cedo para dizer, evidentemente, mas alguns pontos parecem claros. A pacificação implica reconhecer a vitória da Rússia, que terá suas principais reivindicações atendidas, entre elas o reconhecimento de que algo como 20 a 25% do território ucraniano serão parte permanente da Rússia e a neutralidade da Ucrânia, que será obrigada a abandonar qualquer intenção de entrar para a OTAN.

Donald Trump afirma, com razão, que a guerra na Ucrânia não é obra sua. Permanece, entretanto, o fato de que a vitória da Rússia representa uma derrota para os Estados Unidos e seus aliados europeus. Derrota para o Ocidente; vitória para o mundo multipolar.

Quanto à China, os planos de Donald Trump ainda não estão totalmente claros. Mas uma hipótese bem plausível é que ele pretende redobrar os esforços de conter a ascensão da China, tentativa que tem amplo apoio bipartidário nos EUA e que vem sendo perseguida em todas as administrações desde o final do governo de Barack Obama, inclusive de modo vigoroso no primeiro governo de Donald Trump. A pacificação com a Rússia teria como objetivo quebrar, ou pelo menos enfraquecer, a aliança entre russos e chineses.

Outra indicação desses planos anti-China talvez sejam as relações cordiais com a Índia e o Japão, tradicionais adversários da China na Ásia. A boa-vontade com a Índia, aliás, ajuda a enfraquecer os BRICS, na medida em que reforça as tradicionais resistências de Nova Dehli a avanços do grupo, em especial no que tange à desdolarização, tema que desperta, como se sabe, a fúria do novo presidente dos EUA.

Donald Trump poupa a Índia e o Japão da sua metralhadora giratória, mas não alguns outros dos aliados históricos dos EUA, notadamente os canadenses e os europeus, inclusive a Inglaterra. Faz isso de duas formas. Exclui os europeus das fases decisivas da sua negociação com a Rússia. E aplica tarifas de importação pesadas sobre produtos europeus e canadenses, algo especialmente problemático para o Canadá, cuja economia por razões geográficas e históricas é profundamente integrada à dos EUA.

Esses países parecem ter sido pegos de surpresa pela agressividade do novo governo americano. Já contavam com relações mais difíceis, mas como antecipar um movimento de tanta hostilidade contra aliados tradicionais? Aliados, não. Talvez seja melhor referir-se a eles como satélites. O Canadá e o Reino Unido, em especial, têm sido leais vassalos dos EUA desde a Segunda Guerra Mundial. Que sentido faz atacá-los econômica e politicamente? Difícil entender de que maneira isso colabora para a estratégia de fortalecimento mundial dos EUA.

Repare, leitor, que Donald Trump não só não resolve vários dos problemas internacionais herdados de Joe Biden, como os agrava em sua maioria. E abre novas frentes de conflito, aprofundando provavelmente a tendência de isolamento dos EUA. Distancia-se dos parceiros tradicionais do Atlântico Norte e piora a situação no Oriente Médio, radicalizando a política pró-Israel e ameaçando o Irã. E deve aumentar as pressões sobre a China.

Os planos de intensificar a confrontação com a China dificilmente alcançarão o seu objetivo estratégico. Parece tarde demais para bloquear a ascensão econômica e comercial da China, que se tornou a fábrica do mundo à custa da desindustrialização de vários países, inclusive os EUA e o Brasil. O máximo que se conseguirá é desacelerar o crescimento economia e do comércio exterior da China, não sem pagar o preço de gerar tarifas retaliatórias e perder mercados para os exportadores americanos.

O que se quer, fundamentalmente, é deter a perda de expressão econômica dos EUA e refazer a indústria o país. O objetivo é válido por vários motivos, inclusive porque, no longo prazo, não há segurança nacional e poder militar sem base industrial no país. Contudo, as medidas econômicas iniciais não convencem.

A aplicação mais ou menos indiscriminada de tarifas de importação é uma faca de dois gumes. Por um lado, pode reforçar a produção industrial no país e trazer indústrias de volta; pode, também, forçar outros países a abrir mais espaço para as exportações americanas. Por outro lado, gera aumento da inflação para os consumidores e custos mais elevados para setores que usam insumos importados. E provocam tarifas retaliatórias em mercados tradicionais dos EUA.

Com essa inevitável ambiguidade, é pouco provável que as tarifas de importação tenham o impacto salvador com que sonha Donald Trump. Além disso, a deportação em massa de imigrantes e restrições severas à sua entrada nos EUA diminuem a oferta de trabalhadores menos qualificados e solapam a competitividade de empresas mais intensivas em mão-de-obra. Por sua vez, os cortes drásticos de gastos e fechamentos de agências do governo podem desarticular a atuação do Estado americano.

Por esses e outros motivos, a economia dos EUA deve continuar a trajetória de declínio relativo que marcou as décadas recentes, não se devendo excluir a possibilidade de que esse declínio venha a se intensificar com as políticas adotadas pelo novo governo.

A melhora nas relações com a Rússia, se acontecer de fato, não deve provocar distanciamento real entre a Rússia e a China. Vladimir Putin, um estrategista muito superior a Donald Trump, a Joe Biden e a qualquer outro presidente americano recente, tira partido das iniciativas de paz dos EUA e está, tudo indica, interessado na paz.

Mas alguém acredita, em sã consciência, que ele irá romper, ou mesmo enfraquecer, as suas relações estratégicas com Xi Jinping? Os americanos, inclusive o errático Donald Trump, merecem confiança? Putin certamente não esqueceu as diversas ocasiões em que a Rússia foi enganada, desde o colapso da União Soviética, por gestos e promessas do Ocidente, sempre liderados pelos EUA. Deve continuar colocando o grosso das suas fichas na aliança com a China.

“Nunca interrompa seu inimigo enquanto ele estiver cometendo um erro”, dizia Napoleão Bonaparte. Os chineses observam cuidadosamente as trapalhadas dos EUA e, com a sua típica paciência estratégica, vem se preparando para a tempestade que se avizinha. Preferem a paz e a continuação da sua ascensão econômica pacífica, mas estão se armando, com sucesso até agora, para a confrontação econômica e tecnológica com os EUA. E não descartam nenhum tipo de guerra com os americanos, como disse recentemente um porta-voz do governo chinês. Não serão intimidados.

Em suma, pelo que se pode depreender desses dois primeiros meses de governo, Donald Trump não conseguirá interromper a decadência dos EUA. Ele próprio, grosseiro e prepotente, despreparado e arrogante, é um sintoma dessa decadência. Como nas tragédias gregas, as tentativas de escapar do destino leva a comportamentos que aceleram a sua realização.

O que temos é MAWS,e não MAGA.

Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre livros, de Estilhaços (Contracorrente)

 

Sobre os críticos de “Ainda estou aqui”, por Lúcio Verçoza

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Lúcio Verçoza – a Terra é Redonda – 05/03/2025

A capacidade do cinema de Walter Salles de adentrar os raquíticos fios do debate público no Brasil – ou da opinião publicada

O filme Ainda estou aqui circula. Prossegue circulando. E sua circulação não é como a de um ventilador de padaria: que gira, gira e permanece no mesmo lugar – soprando pouco vento. O começo da circulação da película se deu, sobretudo, na pele e nos pelos das pessoas que saíram de casa para ir ao cinema.

O segundo circuito de circulação, que é um desdobramento do primeiro, está na capacidade do cinema de Walter Salles de adentrar os raquíticos fios do debate público no Brasil – ou da opinião publicada. Logo, nessa segunda esfera da circulação, não tardou para que os autores de resenhas alimentassem os blogsYouTubeInstagramTikTok e páginas da grande mídia – tanto com análises elogiosas, quanto implacáveis.

Dentre as críticas mais duras, gostaria de sublinhar o texto de Raul Arthuso, divulgado recentemente no jornal Folha de S. Paulo. O escrito tem sua relevância, pois desloca a discussão para o campo da estética. Porém, no afã de sustentar a tese na qual o filme de Walter Salles seria um passo atrás no contexto do cinema nacional contemporâneo, o autor contorce o argumento, rebaixando o peso político de Ainda Estou Aqui.

Numa rápida análise, é possível destacar trechos nos quais Raul Arthuso carrega excessivamente nas tintas – fazendo com que o filme analisado pareça outro: “sua ênfase está na narrativa íntima, na memória, nas relações pessoais em detrimento da história e da realidade social, mesmo que isso esteja presente como pano de fundo difuso.” “[…] a realidade política é só um detalhe na trama.” “[…] não consegue construir um mundo ficcional que diga algo para a nossa realidade.” “[…] produzir efeitos de emoções, sem agredir ou tensionar questões locais”.

Toda essa linha argumentativa leva à construção de um retrato de filme que seria politicamente minúsculo e quase irrelevante: “que pouco tem a dizer sobre a nossa realidade”; no entanto, se trata do inverso: pela via da estética do detalhe íntimo, Walter Salles conseguiu atar um nó que liga o passado ao presente – fazendo o espectador sentir o passado como algo que diz respeito ao que está em nossa frente. E esse traço, de conseguir reavivar a memória por meio da arte, tem uma enorme potência política.

Tanto os críticos que gostariam que o filme fosse algo próximo de um panfleto (a exemplo das análises de viés excessivamente programático de Jones Manoel, ou do Chavoso da USP), quanto os que exigem uma estética de vanguarda, desconsideram que o forte impacto político do longa decorre de uma abordagem que toca na grande política pela chave da sutileza do detalhe e da micro-história.

A obra forma uma espécie de nó artístico – sem adotar uma linguagem explicitamente herdeira do Cinema Novo dos anos 1960, nem das vanguardas recentes do mangue ou dos sertões nordestinos –; um nó que não escreve um tratado da política econômica dos governos da ditadura militar, nem da luta sindical (como reivindicaram os críticos programáticos).

Todavia, é um nó ainda mais arguto, pois liga a ponta do passado à do presente em frente aos olhos e ouvidos do grande público: dando um tapa simbólico no rosto e na máscara do bolsonarismo. E, faz isso, sem dizer explicitamente o que faz. E faz isso construindo uma estética que sintoniza muito bem a forma ao conteúdo – sem pertencer às vanguardas da forma, e sem conceder a patrulha estreita dos que exigiram um filme-panfleto.

Talvez o grande acerto do filme esteja justamente nisso: em captar uma forma de pertencer a um tempo pelo 3×4 de uma família. E o faz sem a pretensão de lançar um tratado. E o faz demonstrando que uma linguagem aparentemente simples (em termos de inovação) pode ser sutil e profunda. A plateia, por diferentes caminhos, sacou o que estava na tela e sentiu, por alguns minutos, o sentimento do mundo. E o sentimento do mundo é ambíguo: carregado de choro, fúria, esperança, aplauso e memória.

Lúcio Verçoza é professor de sociologia na Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

 

Confusão e ameaças

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Nos últimos sessenta dias a comunidade internacional vem passando por grandes controvérsias econômicas e políticas, com confusões variadas e preocupações crescentes, motivadas pelas políticas equivocadas implementadas pela nova administração dos Estados Unidos da América, espalhando críticas imediatas na comunidade internacional, aumentando o ódio e o ressentimento entre adversários e, pasmem, até mesmo estas políticas estão afetando os aliados, criando pânico, revolta e desconfiança.

Neste período, o governo norte-americano vem adotando políticas fortemente unilaterais, impondo tarifas comerciais e medidas protecionistas para todos os parceiros, apresentando desejo de anexar territórios externos, gerando preocupações para toda a comunidade internacional, impactando sobre acordos comerciais assinados anteriormente, prejudicando as estratégias de empresas nacionais e internacionais e criando um clima de insegurança, incertezas e preocupações sobre os rumos dos negócios na economia internacional.

Das medidas destacamos os confrontos crescentes com aliados históricos dos Estados Unidos, como a Europa Ocidental, levando seus governos a alterarem suas políticas de defesa nacional e, desta forma, a União Europeia está se preparando para uma verdadeira escalada militar, num projeto ambicioso e orçado em quase 1 trilhão de euros, recursos inexistentes atualmente no bloco e que tendem a criar novos descontentamentos com a população, servindo de um verdadeiro combustível para o crescimento da extrema direita. Neste cenário de grandes incertezas na União Europeia, onde os governos nacionais europeus vão levantar recursos para a indústria da defesa? A pergunta é intrigante e urgente, mas a resposta passa pelas políticas do Estado do Bem-estar Social que devem minguar para financiar os fabulosos gastos bélicos e militares, contribuindo efetivamente para espalhar em toda a região, misérias, pobrezas e indignidades.

As políticas implementadas pelo governo norte-americano estão gerando calafrios para os aliados do norte da América, levando países como o México e o Canadá a estudarem e, posteriormente, adotarem como forma de defenderem seus setores produtivos e seus interesses nacionais, protegendo as suas empresas e toda economia, defendendo seus trabalhadores e garantindo seu mercado interno. 

As medidas implementadas pelo governo de Donald Trump estão criando novos constrangimentos na comunidade internacional, levando inúmeros países a recorrerem a Organização Mundial do Comércio (OMC), buscando a mediação de organismos mundiais para evitar o crescimento do protecionismo global, cujos impactos tendem a ser devastadores para o comércio global, levando as nações a aumentarem o isolacionismo.

Numa sociedade centrada no imediatismo, no individualismo, no narcisismo e na busca frenética pelo lucro monetário, onde os atores econômicos e produtivos olham apenas para o curto prazo e pelos ganhos imediatos, os confrontos crescem fortemente na seara do comércio internacional e na geopolítica tendem a se espalhar para todas as áreas da comunidade global, aumentando as tensões entre as nações, com o incremento dos investimentos bélicos e militares e a redução sistemática dos gastos sociais e das políticas públicas que beneficiam a maioria da população, desta forma, estamos caminhando a passos largos para uma destruição total e inimaginável, atuando como seres humanos irracionais e individualistas, nos distanciando rapidamente do comportamento daqueles que chamamos de animais.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Sociologia do Trabalho e Exclusão Social, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

 

Como vai a Europa pagar por sua própria defesa? por Rui Tavares.

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Problema nunca foi de falta de recursos, mas de vontade política; quando é para sobreviver, a vontade política aparece

Rui Tavares, Historiador, deputado na Assembleia da República de Portugal e ex-deputado no Parlamento Europeu; autor de ‘Agora, Agora e Mais Agora’

Folha de São Paulo, 19/03/2025

A opinião convencional dominante nos dias que correm parece ser que a Europa deixou de cuidar da sua defesa após a Segunda Guerra Mundial, delegando essa função aos Estados Unidos e praticamente não gastando dinheiro em armamento. A mesma opinião sustenta agora que a Europa ficou desorientada perante a guinada geopolítica de Donald Trump e que não terá chance de defender-se perante Vladimir Putin.

Essa opinião convencional está errada.

A Europa nunca gastou propriamente pouco em defesa. O Reino Unido e a França são potências nucleares, e os gastos acumulados dos países-membros da União Europeia foram no ano passado bem superiores a € 300 bilhões, não tão longe da Rússia e da China.

A questão na Europa nunca foi gastar pouco em defesa, mas antes gastar sem visão de conjunto e comprando grande parte do seu material dos EUA. É isso que vai mudar agora. Trump conseguiu quebrar os laços de confiança entre europeus e americanos e com isso deu um novo foco estratégico à Europa, e em particular à UE.

A União Europeia irá com toda a probabilidade avançar para a compra conjunta de armamento, repetindo o mecanismo que provou ser um grande sucesso com a compra de vacinas pelo bloco, assegurando ganhos de escala e baixando custos. E o material será produzido na Europa, para ajudar na reindustrialização do continente e para evitar a utilização de caríssimo armamento dos EUA (como os famosos caças F-35) que se suspeita que possa ser desativado à distância.

Além disso, há países-membros da UE que têm capacidade para gastar mais, e o caso mais relevante agora é o da Alemanha, que já aprovou alterações à sua legislação para possibilitar mais gastos em defesa.

Mesmo assim, há investimentos iniciais que precisarão de somas mais avultadas nos primeiros anos. Têm feito debate aqui no continente as declarações do secretário-geral da Otan, Mark Rutte, que sugeriu que os europeus deveriam ter de prescindir do seu estado social para investir na defesa.

A União Europeia pode lançar os chamados eurobonds, títulos de dívida emitidos em nome da União como um todo, não dos seus Estados-membros. A dívida da UE, bem como o seu orçamento, representa pouco mais de 1% do PIB da União. Há espaço mais do que suficiente para emitir dívida, há interesse dos mercados globais em comprá-la, e o momento é o mais oportuno, num momento em que Trump lança a economia dos EUA na turbulência e os investidores procuram outros portos seguros.

Em segundo lugar, a União Europeia (ou apenas os Estados que o desejarem) pode lançar um imposto comum de apenas 2% sobre fortunas acima de € 1 milhão. Nos cálculos do economista Gabriel Zucmán, isso daria mais de € 60 bilhões por ano.

Em terceiro lugar, há € 300 bilhões em ativos russos congelados, que podem ser confiscados e usados na reconstrução da Ucrânia.

O problema da Europa nunca foi de falta de recursos, mas de falta de vontade política. Quando é para sobreviver, a vontade política aparece.

 

Liberou geral? por Candido Bracher

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Estaríamos agindo como o personagem da música ‘E o Tal do Mundo Não Se Acabou’, interpretada por Carmem Miranda?

Candido Bracher, Administrador de Empresas formado pela FGV. Foi executivo do setor financeiro por 40 anos.

Folha de São Paulo, 16/03/2025

A leitura da seção de Clima e Meio Ambiente dos jornais internacionais nos últimos dois meses certamente causaria surpresa e desconforto às mentes cartesianas acostumadas a estabelecer relações lógicas entre os fatos.

Além da confirmação de que 2024 foi o ano mais quente já registrado, o leitor encontraria manchetes como: “Janeiro mais quente já registrado choca cientistas” (Financial Times, 6/2), “Janeiro mais quente já registrado intriga cientistas do clima” (The Guardian 6/2), “Este foi o janeiro mais quente já registrado, segundo cientistas” (The New York Times, 6/2).

A leitura dos artigos explicaria que a surpresa decorre da permanência de temperaturas recordes, a despeito do resfriamento do oceano Pacífico, decorrente do fenômeno La Nina.

Outras manchetes teriam o mesmo tom: “Renomado cientista do clima adverte que o objetivo de (limitar o aquecimento a) 2ºC está morto” (The Guardian 4/2), “Geleiras da Europa encolheram 40% desde 2000” (Financial Times, 20/2), “Califórnia enfrenta seca agravada, apesar de temporais recentes” (The Guardian, 24/2), “No estado do hóquei, mudanças climáticas reduzem o número de ringues de patinação” (The Washington Post, 24/2), “A corrida de trenós puxados por cães mais famosa do mundo está com falta de neve” (The Wall Street Journal, 4/3).

No mesmo período e nos mesmos jornais, outras manchetes diriam: “Earth Fund com US$ 10 bilhões de Jeff Bezos corta vínculos com agência de clima” (Financial Times, 6/2), “UE exagera nas regras verdes, alerta chefe da Siemens Energy” (Financial Times, 12/2), “Suspensão de regra da SEC é presente antecipado para os apoiadores de Trump do setor de óleo e gás” (The Washington Post, 17/2), “Big Techs aprendem a compartilhar o entusiasmo de Trump pelos combustíveis fósseis” (The Washington Post, 23/2), “Eleições alemãs mostram o quanto a onda verde recuou na Europa” (The Guardian 24/2), “BP deve abandonar meta de renováveis e voltar a focar em combustíveis fósseis” (The Guardian 24/2), “Bancos rebaixam cargos de sustentabilidade” (Financial Times, 24/2), “Como Trump sabotou a política climática americana” (The New York Times, 2/3) e “Autoridades do governo Trump destroem proteções climáticas e consideram ocultar descobertas-chave sobre gases de efeito estufa” (Guardian, 13/03).

Procurando ater-se à racionalidade, esse leitor poderia supor que tais retrocessos decorrem da descrença honesta de certas pessoas nas projeções científicas, acreditando que as “mudanças climáticas” são uma farsa engendrada pela esquerda.

Afinal, não seria a primeira vez que previsões apocalípticas se mostrariam infundadas. Gosto da definição de Idade Média que Rui Tavares oferece em seu admirável “Agora. Agora e Mais Agora”: “Cerca de mil anos em que o fim do mundo estava para breve”.

Outras previsões também falharam: o cometa Halley, em 1910, a crise dos mísseis em Cuba, em 1962, a previsão de Nostradamus para 1999 e mesmo a pandemia de Covid, em 2020. Não seria assim inverossímil que pessoas bem-intencionadas manifestassem uma descrença atávica em teorias de colapso.

Nosso leitor cartesiano poderia, porém, achar improvável que pessoas bem formadas, com vasto acesso a informações, simplesmente desconsiderem a abundância de evidências científicas do aquecimento global e todas as suas consequências desastrosas.

Nesse caso, poderia atribuir a intensificação da exploração e uso de combustíveis fósseis ao fenômeno, que também tem precedentes históricos, da adoção de atitudes tresloucadas diante da certeza do ocaso.

Como ilustração, em vez de recorrer à história, prefiro lembrar a música “E o Tal do Mundo Não Se Acabou”, interpretada por Carmem Miranda, na qual a personagem diz: “Acreditei nessa conversa mole/pensei que o mundo ia se acabar/e fui tratando de me despedir/e sem demora fui tratando de aproveitar”.

Uma última hipótese a considerar seria a de que os responsáveis pelo aumento de emissões de carbono, embora não desacreditem das previsões científicas, creiam que algo acontecerá —uma nova tecnologia, possivelmente— de modo a evitar o apocalipse.

Nosso leitor, porém, duvidaria da honestidade dessa crença, por ser demasiadamente autoindulgente, e a enquadraria juntamente com a simples indiferença egoísta diante do destino da humanidade. Irracional, porém humano.

Seja como for, esse comportamento deletério, além dos efeitos diretos sobre o aquecimento, tem consequências ainda mais graves. Refiro-me ao desalento resultante da percepção de uma situação de “liberou geral”, de “passagem da boiada”, diante da qual é inútil resistir.

É importante termos presente que será nesse cenário conflagrado que em novembro se realizará a COP 30, em Belém. Não devemos nos sentir desestimulados por isso, ao contrário, mas deixar de reconhecer dificuldades nunca foi bom método para as superar.

Caberá à coordenação da reunião, em vez de ceder às pressões contrárias, usá-las como elemento promotor da união entre países e agentes privados comprometidos com o combate ao aquecimento.

Entre os objetivos a serem perseguidos, podemos enumerar a costura de uma aliança entre países interessados em desenvolver um mercado comum de carbono; redobrar esforços para atingir a meta de financiamento de US$ 1,3 trilhão; avançar na discussão sobre uso da terra, tão relevante para a agricultura e para a promoção dos biocombustíveis; buscar estabelecer critérios globais para a mensuração do conteúdo de carbono dos diversos produtos e estimular a China a ocupar o espaço deixado pelos EUA.

Sabemos que nossa equipe, chefiada pelo embaixador André Corrêa do Lago, já está empenhada na articulação de diversos desses objetivos; sabemos também que a tarefa é extremamente árdua e desafiadora.

É importante termos presente que o combate ao aquecimento global é um processo longo e descontínuo; uma maratona, não uma corrida de 100 metros. Cada passo dado é importante, ainda que o efeito seja apenas o de fazer uma profissão de fé e denunciar aqueles que sabotam o esforço.

A verdade dessa afirmação pode ser aferida ao pensarmos no papel singular que teve a anticandidatura de Ulysses Guimarães, em 1974, no também longo processo do Brasil em direção à democracia. Em seu discurso diante do Colégio Eleitoral que confirmou a vitória do general Ernesto Geisel, tomou emprestada de Fernando Pessoa a frase que designa o combate pelas boas causas, que agora aplico também à resistência que a COP30 exercerá contra um cenário adverso: “Navegar é preciso, viver não é preciso”.

 

Como a economia explica o mundo, por Hélio Schwartsman

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Livro mostra como conceitos abstratos do tipo utilidade marginal decrescente produzem efeitos concretos na história

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”

Folha de São Paulo, 16/03/2025

Breve e certeiro são dois adjetivos que descrevem bem “How Economics Explains the World” (Como a Economia Explica o Mundo), de Andrew Leigh. Em menos de 200 páginas, ele narra como forças econômicas moldaram a história.

Leigh começa com a agricultura, que criou a possibilidade de acumular riqueza e permitiu a especialização do trabalho, e termina na pandemia, cujo impacto inflacionário, agravado pela invasão da Ucrânia, até hoje afeta o resultado de eleições mundo afora.

Uma coisa que Leigh faz muito bem é mostrar como conceitos econômicos que podem parecer abstratos, como estrutura de incentivos, custos de oportunidade, utilidade marginal decrescente, geram efeitos concretos.

Um exemplo: foram restaurantes europeus e não americanos que primeiro desenvolveram sistemas eletrônicos de registrar pedidos. Fizeram-no décadas antes do iFood. E por causa dos incentivos. Contratar um funcionário na Europa é muito mais caro que nos EUA.

Outro resultado inesperado da estrutura de incentivos é que, quando os EUA mudaram os impostos sobre a herança, moribundos responderam, morrendo um pouco mais tarde a fim de extrair maiores benefícios fiscais.

Apesar do espaço apertado, Leigh traz até discussões filosóficas para o livro. Dinheiro traz felicidade? As primeiras pesquisas sugeriram que sim, mas só até certo ponto. Análises mais recentes mostram que a felicidade sempre aumenta, tanto entre nações como dentro de cada país. Ainda assim, o autor, com base no princípio da utilidade marginal, recomenda a adoção de um imposto fortemente progressivo. É que um dólar adicional traz mais felicidade para quem não tem quase nenhum do que para quem já tem muitos.

Apesar da brevidade, e, portanto, da densidade do livro, Leigh ainda encontra espaço para contar boas historietas, como a de que o jogo Banco Imobiliário (Monopoly) foi inspirado nos barões ladrões, como era chamada a elite empresarial dos EUA no final do século 19. E o jogo era uma crítica, não uma bajulação, a eles.

Sobrepeso e obesidade, a nova epidemia? por Márcia Castro

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Envelhecimento não saudável vai gerar demandas do sistema de saúde que poderiam ser evitadas

Márcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo, 15/03/2025

É inquestionável que a pandemia de Covid-19 foi um marco na história (tal qual a pandemia da gripe cerca de um século antes). Como tal, não pode ser esquecida.

A Unifesp lançou o Acervo da Pandemia de Covid-19, uma plataforma digital que documenta as ações e inações do governo durante 2020 a 2022. Esse acervo é extremamente importante. Como disse George Santayana, “aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”.

Nas últimas semanas houve discussões sobre os cinco anos da pandemia. Um tema recorrente é se o mundo está preparado para a próxima. Aqui, é preciso discutir dois aspectos.

Primeiro, há emergências que surgem de forma rápida, como um novo patógeno. Nesse caso, tudo é novo, o conhecimento vai se expandindo junto com a emergência, e o desenvolvimento de medicamentos e imunizantes demanda tempo. Esse foi o caso da Covid-19.

Apesar de todos os desafios relacionados a controlar um novo patógeno, o manejo da emergência foi falho. Ficou evidente que sistemas de saúde na grande maioria dos países não era resiliente, ou seja, não conseguiram prevenir, preparar, detectar, adaptar, responder e se recuperar de uma emergência, garantindo que funções essenciais de saúde não fossem comprometidas.

Segundo, há emergências que se desenvolvem ao longo do tempo. Batem na porta, mandam recado, e só recebem atenção quando a situação já virou uma emergência de fato. De certa forma, a situação da dengue é um exemplo. Afinal, o que esperar de um crescimento urbano desordenado, que gera verdadeiros paraísos para o mosquito?

Outro exemplo é o envelhecimento populacional. Demógrafos já alertavam há muito tempo que a população vinha envelhecimento rapidamente. O Censo Populacional de 2022 mostra isso. Não é novidade. Um envelhecimento não saudável vai gerar demandas do sistema de saúde que poderiam ser evitadas com prevenção.

Some-se a isso os resultados de uma pesquisa publicada na revista Lancet que estima a prevalência de sobrepeso e obesidade entre crianças e jovens (5 a 24 anos) e adultos (25 ou mais).

Em 2021, cerca de 20% da população menor de 25 anos e quase metade daqueles com 25 anos ou mais no mundo viviam com sobrepeso ou obesidade. Até 2050, caso a tendência não mude, cerca de 30% das crianças e jovens e 60% dos adultos terão sobrepeso ou obesidade.

No Brasil, a estimativa é que um terço das crianças e jovens e 65% dos adultos estejam com sobrepeso ou obesos em 2050. Esses números são preocupantes, mas não uma surpresa.

Dados do Vigitel, do Ministério da Saúde, mostram, desde 2006, um crescimento consistente no sobrepeso e obesidade.

As consequências serão inúmeras, incluindo problemas no desenvolvimento infantil, saúde mental, pressão alta, diabetes, doenças cardiovasculares, entre outras. Entretanto, ainda carecemos de medidas concretas para mudar essa tendência.

Que fique claro que esse problema não será resolvido com medicamentos antiobesidade (tais como Ozempic).

Uma emergência de saúde pública devido ao sobrepeso e obesidade vem se desenhando há algum tempo. No Brasil e no mundo. Ou o Brasil se antecipa e encara isso agora, ou teremos outra tragédia anunciada.

 

A China aposta numa globalização peculiar, por Elias Jabbour

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Enquanto Trump ameaça com anexações e tarifas, Pequim sugere que vai se abrir cada vez mais ao mundo. Mas sob alguns princípios: a “civilização global” sem hierarquias ou valores absolutos e a ideia de que nenhum país é detentor dos “valores universais”

Elias Jabbour, professor de Planejamento Econômico FCE/UERJ – OUTRAS PALAVRAS – 14/03/2025

No dia 15 de março de 2023 o presidente Xi Jinping fez um importante discurso no âmbito da Reunião de Alto Nível para o Diálogo entre o Partido Comunista da China (PCCh) e Partidos Políticos do Mundo. Naquela ocasião, a ideia-força lançada pelo presidente chinês foi o “respeito às civilizações e sua diversidade”. Essa histórica apresentação instou todos à defesa dos princípios de igualdade, aprendizado mútuo, diálogo e inclusão entre as civilizações, permitindo que os intercâmbios culturais transcendam o afastamento, que o aprendizado mútuo transcenda os conflitos e que a inclusão transcenda qualquer sentimento de superioridade.

O presidente da República Popular da China, em tom de amplitude e respeito à história de todos os povos e nações, deu ênfase à importância dos “valores comuns da humanidade” como guia para relações internacionais e aspirações de todos os povos. Esses valores seriam: a paz, o desenvolvimento, a equidade, a justiça, a democracia e a liberdade. Ele afirmou que a herança e a inovação das civilizações devem ser altamente valorizadas e que os países precisam aproveitar plenamente a relevância de suas histórias e culturas para os tempos atuais, promovendo a transformação criativa e o desenvolvimento inovador de suas valiosas culturas tradicionais.

Para alcançar os objetivos de formação de uma “Civilização Global”, faz-se muito necessário a promoção do intercâmbio entre os povos do mundo, bem como a construção de uma rede global para o diálogo e a cooperação intercivilizacional. Interessante notar que, atualmente, existe uma verdadeira onda de expulsões e deportações em massa de trabalhadores estrangeiros em países que se autodenominam “civilizados”. Essa Iniciativa de Civilização Global, ao propor uma abordagem mais enfática no sentido do respeito e absorção da diferença, coloca a China como o país do mundo cuja defesa da paz, do respeito e da soberania passou a ser um princípio existencial da nação chinesa e parte dos conceitos que formam a teoria do “socialismo com características chinesas”.

Por outro lado, a iniciativa é muito clara e remete à necessidade de cada país ou povo manter uma mente aberta para apreciar e absorver os valores de diferentes civilizações, ao mesmo tempo em que se deve evitar a imposição de seus próprios valores a outros países. Essa iniciativa chinesa busca demarcar uma visão tolerante e civilizatória de mundo, em contraposição às tentativas de exportar valores, modelos de sociedade e incitar o racismo, a xenofobia e a confrontação ideológica. Outro ponto a ser observado é o fato de cada país seguir seu próprio caminho para alcançar a paz social e o desenvolvimento, sem necessariamente importar valores e fórmulas de outros países.

Nesse sentido, a modernização e o desenvolvimento não podem ser vistos como uma “marca exclusiva” de alguns países, nem podem ter uma única fórmula. Para que qualquer nação alcance a modernização, é necessário não apenas seguir as leis gerais que regem esse processo, mas, sobretudo, considerar as suas próprias condições nacionais e características únicas.

O desenvolvimento da China deve ser observado dentro do escopo de um processo que traz benefícios não somente ao seu povo, mas também ao mundo. Cada país deve tirar o melhor proveito da experiência chinesa para iniciativas baseadas em suas próprias realidades. Outro ponto importante sobre o desenvolvimento da China é seu caráter pacífico, sem a necessidade de colonizar, pilhar outros países ou subverter os valores de outras nações. Tampouco deverá seguir o caminho de outras potências que se transformaram em forças imperialistas, dispostas a moldar o mundo à sua imagem e semelhança.

Devemos entender o contexto do lançamento da Iniciativa de Civilização Global. Desde a crise financeira de 2007-2008, passando pela pandemia de Covid-19 e pelo avanço do protecionismo econômico dos Estados Unidos, o mundo adentrou em uma era marcada por grandes incertezas, ameaças à globalização econômica e conflitos (armados ou não) em todos os cantos do planeta. A intolerância, o racismo e a xenofobia passaram a fazer parte do cotidiano global, e a ascensão de forças políticas de extrema-direita em vários países ameaça o mundo com um retrocesso a tempos sombrios. A força dos Estados Unidos reside em sua capacidade de influenciar povos e países em favor de seus objetivos. A exportação de seu modelo de “democracia” serve a objetivos puramente políticos, subvertendo a história de cada nação e provocando mais confusão, intolerância e guerra.

A cada ano que passa, a Iniciativa de Civilização Global ganha relevância e atualidade. A marca registrada das iniciativas lançadas pela China está na antecipação dos problemas que afligem o desenvolvimento mundial. Por exemplo, a Iniciativa Cinturão e Rota previu a necessidade de uma onda de investimentos em interconexão global e intercâmbio industrial, produtivo, financeiro e comercial, algo que hoje se mostra plenamente acertado. O mesmo acontece na Iniciativa de Civilização Global, na qual a China e sua diplomacia, partindo de seu próprio exemplo de tolerância à diversidade, enviam ao mundo os sinais necessários para promover a paz e o direito ao desenvolvimento.

 

Eis a nova estrutura do poder global, por Ladislau Dowbor

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Após quatro décadas de disputa política, os homens mais ricos do mundo são mais poderosos que qualquer poder estatal no Ocidente. As lógicas que comandam vão reduzir o planeta a um inferno social e ambiental – até que alguém os detenha

Por Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 14/03/2025

O Fórum Econômico Mundial em Davos, Suíça,
onde o grupo é conhecido por se reunir anualmente,
para limpar sua reputação
Peter S. Goodman – O Homem de Davos, 2024

Esses Estados neoliberais abriram
cada território nacional para o saque corporativo
transnacional de recursos, mão de obra e mercados
William I. Robinson, 2016

Nossas atividades econômicas diárias geralmente são bem simples. A farmácia, as lojas, o supermercado, o ônibus, eventualmente um Uber, o posto de gasolina, levar as crianças para a escola e assim por diante. Parece bem local. Mas olhar para cima, em vez de obedecer ao filme Don’t Look Up, é o mais necessário, se quisermos entender por que os preços sobem, por que há tanto plástico e por que as prateleiras dos supermercados estão cheias de comida ultraprocessada. Sabemos que tudo isso é ruim, e as lojas também sabem. Tudo isso deveria ser regulado – mas se espalha, cada vez mais. Na verdade, quem está no comando?

Finalmente, muitos pesquisadores ousaram olhar para cima e aos poucos trouxeram luz à bagunça que temos e às formas estamos começando a distinguir. Um bom ponto de partida é a crise financeira global de 2007, que levou o ETH, o principal instituto público de pesquisa suíço, a apresentar em 2011 o primeiro estudo abrangente sobre a rede de controle corporativo global. Os resultados foram impressionantes: 737 corporações controlam 80% do mundo corporativo global. Destas, 147 controlam 40% — e 70% delas são instituições financeiras. Este é o topo da pirâmide: basicamente, gestão de dinheiro.

O governador do Banco da Inglaterra comentou à época que o estudo mudava nossa visão sobre como a economia funciona. Os autores da pesquisa afirmavam no artigo: não havia como evitar a constatação de que estávamos diante do “clube dos ricos”. Igualmente impressionante é o fato, destacado por eles, de que este foi o primeiro estudo global sobre o poder corporativo, embora o processo de sua formação estivesse em andamento por décadas – basicamente desde que Margareth Thatcher e Ronald Reagan colocaram-se a serviço das corporações. Claramente, não havia interesse em jogar luz sobre o assunto. Mas agora temos uma imagem mais clara.

A corporação Vale é um bom exemplo. É uma multinacional e a maior produtora de minério de ferro e níquel do mundo. De acordo com a Wikipedia, “também produz manganês, ferroligas, cobre, bauxita, potássio, caulim e cobalto, operando atualmente nove usinas hidrelétricas e uma grande rede de ferrovias, navios e portos usados para transportar seus produtos.” O total de ativos em 2021 é de cerca de US$ 90 bilhões, pertencentes a Ma’aden, Previ, BlackRock e Mitsui & Co. Foi uma empresa estatal brasileira, e na época seus lucros permitiam ao Estado financiar distintos projetos de desenvolvimento, como ocorria também com a Petrobrás. Atualmente, a Vale basicamente exporta matérias-primas brasileiras, gerando dividendos para acionistas internacionais e seus parceiros brasileiros. É uma corporação enorme e diversificada que serve interesses dos que estão no topo da pirâmide.

Privatização também é desnacionalização e representa, em essência, um escoamento das riquezas minerais do país. Isso fragiliza a capacidade de investimento público em políticas sociais como educação, saúde, segurança e outros serviços públicos essenciais que representam os “salários indiretos” da população. Também afeta infraestruturas como energia, transporte, comunicações e o complexo de água/esgoto, essenciais para a população, mas também para a produtividade da economia como um todo. A privatização tornou-se um dreno: a população e as empresas locais pagam o preço. As corporações de gestão de ativos, no topo, enriquecem mais. Tudo isso aprofunda o abismo global de desigualdade.

O processo de decisão é essencial aqui. É o que podemos chamar de governança corporativa. A empresa está no Brasil e os materiais extraídos estão no território brasileiro, mas o processo de decisão migrou para alguns acionistas-chave como BlackRock, Vanguard, UBS, JP Morgan e afins. Eles são os chamados proprietários ausentes, e isso mudou o sistema geral de governança. A Vale e sua empresa dependente Samarco sabiam que precisavam consertar as barragens que continham subprodutos contaminados da mineração – mas os proprietários ausentes decidiram que aumentar os dividendos era mais importante. O resultado foi a tragédia de Mariana e Brumadinho, enormes rompimentos de barragens, perda de vidas e contaminação geral. Os acionistas da Vale – como a empresa saudita Ma’aden, a americana BlackRock e a japonesa Mitsui – tomavam as decisões, maximizando os dividendos no curto prazo.

Uma impressionante série de processos judiciais seguiu-se e continua até hoje; as empresas terão que pagar dezenas de bilhões, mas estão “negociando”. Lembra-se a tragédia da plataforma Deepwater Horizon, da British Petroleum, no Golfo do México? Agora temos os relatórios, e o próprio processo foi encontrado. A BP havia suspendido a manutenção para aumentar os dividendos. E, como os bônus dos gerentes estão ligados aos dividendos, o processo de decisão privilegia o fluxo do dinheiro para o topo, não os resultados na base. É simples assim. O crescimento fantástico dos salários dos CEOs — de 20 para 300 vezes o salário médio da empresa, em algumas décadas – está diretamente ligado à explosão dos lucros financeiros (rentas, na verdade, já que não se baseiam em contribuição produtiva) no nível de gestão de ativos no topo, e ao crescimento lento no nível dos que produzem.

É difícil para as pessoas imaginarem onde fica o topo ou com o que ele se parece. A edição de 2024 da Forbes Bilionários do Mundo mostra as 2.781 pessoas nesta condição, no mundo, sentados sobre uma riqueza acumulada de US$ 14 trilhões — mais da metade do PIB dos Estados Unidos. Sua riqueza cresceu 17% em 12 meses. Como o crescimento do PIB foi de cerca de 3%, estamos enfrentando uma extração líquida pela pequena elite feliz . O principal processo de acumulação de riqueza é apenas marginalmente baseado em investimento produtivo, sendo essencialmente derivado de investimento financeiro. Basta controlar uma pequena parte das ações, no universo geral de acionistas dispersos, para impor o controle das empresas por parte das principais corporações de gestão de ativos.

Em Titans of Capital (2024), Peter Phillips nos traz o panorama geral do sistema de governança global. “Os 0,05% mais ricos do mundo são 40 milhões de pessoas, incluindo mais de 36 milhões de milionários e 2.600 bilionários, que repassam seu capital excedente para empresas de gestão de investimentos como BlackRock e JP Morgan Chase. As dez maiores entre estas empresas controlavam juntas cerca de 50 trilhões de dólares em 2023. Essas empresas são gerenciadas pelas 117 pessoas identificadas abaixo. As dez maiores empresas de investimento de capital investem extensivamente umas nas outras. Os investimentos cruzados entre elas totalizaram US$ 320 bilhões em 2022. As práticas de investimento cruzado implicam um monitoramento próximo e recíproco das políticas de cada uma, e uma comunalidade de interesses mútuos na manutenção e crescimento do mercado. Os 117 Titãs decidem como e onde o capital global será investido.

As dez corporações gerenciaram US$ 26,1 trilhões em 2017 e US$ 49,5 trilhões em 2022, um crescimento de 89,4% em cinco anos. Isso nos dá não apenas a dimensão da concentração de poder econômico, mas também o nível de aceleração. Ao focar no que ele chama de titãs — os principais gestores desses 10 gigantes corporativos — Phillips traz uma nova abordagem, mas que converge de perto com a pesquisa suíça sobre a rede de controle corporativo mundial e a lista de bilionários da Forbes mencionadas acima. Temos, assim, o controle corporativo e os gigantes de riqueza resultantes, e agora passamos aos 117 diretores das 10 principais corporações. “Embora possa haver milhares de pessoas com riqueza pessoal igual ou maior do que a dos 117 titãs individuais, o que os torna significativos é sua responsabilidade pelas decisões de investimento de cerca de US$ 50 trilhões”.

“Sentados nos conselhos da mais alta concentração de riqueza de capital na rede global de investimentos, suas decisões aceleram a concentração de capital, impactam o meio ambiente, garantem lucros com guerras regionais e globais, minam as democracias e colocam em risco a estabilidade socioeconômica para todos.” Esses são os gestores do sistema global. Dois terços deles são americanos. “Eles nasceram nos Estados Unidos ou na Europa, foram criados em uma família rica e frequentaram uma universidade privada de elite… Eles levam a sério sua responsabilidade fiduciária de maximizar os retornos sobre os investimentos de capital sob seu controle.”

Isso tem pouco a ver com a competição de livre mercado. A maioria desses diretores gerencia simultaneamente interesses semelhantes, em corporações situadas entre as dez primeiras. Phillips apresenta suas posições em 133 corporações desse grupo. Assim, por exemplo, a BlackRock tem 17 diretores, com ativos sob gestão (AUM) de US$ 9,5 trilhões em 2022, e investimentos cruzados na Vanguard, StateStreet, CapitalGroup, FidelityInvestments e MorganStanley. Apenas como referência de proporções, enquanto em 2024 os diretores da BlackRock gerenciam mais de US$ 10 trilhões, o orçamento federal manejado pelo presidente dos Estados Unidos é de cerca de US$ 6 trilhões.

A maioria dessas 10 principais corporações de gestão de ativos investe e exerce controle em outro grupo de gigantes, as 7 empresas de tecnologia dos EUA5:

Os interesses convergentes de gestores de dinheiro e corporações de alta tecnologia alcançam cada um de nós por meio de diferentes áreas ou de intermediação, para compras ou na indústria da atenção — horas do nosso tempo diário. Também geram um novo sistema de controle pesado no topo, com poder extremamente concentrado, além de uma rede capilar global que atinge a todos nós. Eles controlam os três conselhos políticos de elite (Conselho de Relações Exteriores, Business Roundtable e Business Council), exercem uma influência-chave no Fórum Econômico Mundial, participam das principais instituições de inteligência e militares e das corporações produtoras de equipamentos bélicos; das 10 maiores corporações de petróleo e gás; das 6 maiores produtoras de carvão; das 5 maiores corporações de tabaco; das indústrias de plásticos, armas de fogo e jogos de azar; e do sistema prisional privado, em expansão. Tudo o que gera muito dinheiro.

Descendo a pirâmide, podemos ver como esses diretores da BlackRock determinarão decisões no mundo corporativo brasileiro:

A BlackRock está em muitas áreas da economia brasileira, mas também em muitos outros países. O denominador comum no processo de decisão é a maximização de curto prazo para os acionistas. Esse dinheiro virtual pode atingir, literalmente, todos os bolsos. A enorme dívida estudantil em todo o mundo afeta incontáveis estudantes, a dívida de saúde tornou-se um problema gigante – particularmente nos países onde os serviços de saúde foram privatizados – e todos nós contribuímos com parte de nossos gastos em todas as áreas, pagando através da Visa, por exemplo, pegando um Uber ou fazendo compras na Amazon. A desigualdade global tornou-se absurda, como documentado em muitos relatórios. Os dramas ambientais são igualmente desafiadores. Este estudo de Peter Phillips mostra os titãs desempenhando um papel fundamental em ambos os processos.

Larry Fink, bilionário e CEO da BlackRock, atua como curador do Fórum Econômico Mundial e continua se referindo a ESGs e responsabilidade corporativa. Jamie Dimon, presidente do Business Council e CEO da JP Morgan Chase, enfatiza que “esses princípios modernizados refletem o compromisso inabalável da comunidade empresarial em promover uma economia que sirva a todos os americanos.” De acordo com Phillips, “o Manifesto de Davos fornece aos Titãs uma justificativa moral para continuar seu caminho de desigualdade, enquanto se posicionam como sensíveis às preocupações com direitos humanos e meio ambiente.”

A concentração de poder econômico, social e político em nível planetário tem se acelerado nas últimas décadas, à medida que as tecnologias avançam e o poder gera mais poder, permitindo mais concentração. Estamos enfrentando uma enorme pirâmide de poder de geração de dinheiro, que devasta o mundo por meio da desigualdade e de catástrofes ambientais, e derrubam qualquer tentativa de regulamentação.

1Texto publicado originalmente em inglês, na revista digital Meer.

2 S. Vitali et al., A rede de controle corporativo global – ETH – 2011.

3 Forbes Brasil, ano XI, n. 118, 2024.

4 Peter Phillips – Titans of Capital: como a riqueza concentrada ameaça a humanidade – The Censored Press, Nova York, 2024.

5 US Big Stocks Surge – Visual Capitalist – O Valor Crescente dos Sete Magníficos

6João Peres – No Brasil, maior gestora de fundos do planeta tem investimento três vezes mais poluidor que na Europa e nos EUA – O Joio e o Trigo, 18 de maio de 2024.

Tradução: Antonio Martins

Keynes: sua ousadia e seus limites, por Eleutério F. S. Prado

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Novo livro tenta interpretar papel do economista mais influente nos “anos dourados” do pós-guerra. Ele rechaçava a idea do mercado ordenador da sociedade. Mas jamais almejou uma democracia radical, por não ir além do horizonte burguês

Eleutério F. S. Prado – OUTRAS MÍDIAS – 12/07/2021

De modo bem sintético, o keynesianismo talvez possa ser exposto por meio de uma analogia atrevida que emprega o circuito do capital em geral. Pelo menos está assim apresentado no livro de Geoff Mann,[i] No longo prazo estaremos todos mortos (2017): “Assim como a mercadoria foi posta por Marx, no circuito do capital em geral, isto é, em D – M – D’, como um termo médio na expansão do valor, a dialética keynesiana captura a dinâmica central do liberalismo iliberal pondo o Estado como um termo médio no circuito L – E – L’, o qual realmente vem existindo há dois séculos” (Mann, 2017, p. 386).

Ora, como a tese contida nessa analogia se afigura bem atilada mesmo após uma segunda vista, a nota que se segue visa explicá-la.

Note-se logo que Mann caracteriza John M. Keynes como um liberal iliberal, como alguém que atua como advogado da intervenção do Estado para modificar e preservar o liberalismo, isto é, a liberdade forçada e a prosperidade restritiva que o sistema econômico realmente existente faz existir. Mas isto, segundo ele, não é novo. Pois, o capitalismo não tem subsistido por força apenas dos mercados, mas, ao contrário, tem sido renovado e reconstituído pelo Estado e pela economia política intervencionista há muito tempo. Segundo esse autor, tem sido assim pelo menos desde o golpe de novembro de 1799, quando Napoleão Bonaparte tomou o poder em França, após a Revolução de 1789.

Keynes, portanto, foi mais um protagonista, mesmo se importantíssimo, num contínuo de atuação econômica e política estatal contra-arrestante que vem de bem longe. Tal como outros antes e depois dele, julgava de modo iliberal que as sementes de sua própria destruição estão sempre a germinar no capitalismo. E que elas não se desenvolvem até o ponto em que isto realmente acontece porque a atuação do Estado protege, salva e, assim, repõe constantemente o liberalismo.

Eis como Mann explica o keynesianismo: “A contribuição decisiva do keynesianismo para o liberalismo consistiu em legitimar a sua hegemonia, generalizando continua, pragmática e cientificamente uma visão do mundo na qual o bem-estar proporcionado pelo Estado e a prosperidade da sociedade civil se apresentam conceitualmente como inseparáveis. E esta é mesmo a própria definição de “civilização” [na ótica de Keynes]. Este inescapável liberalismo iliberal mostrou-se essencial para a sobrevivência mesmo do liberalismo clássico, bem mais dogmático; pois, lhe abasteceu com uma lógica política ansiosa, sem a qual ele não teria sobrevivido sem um uso constante da força bruta. A burguesia e a classe média são assim tanto efeito como causa da “civilização” keynesiana”. (Mann, 2017, p. 386).

Mas por que menciona que a lógica política do keynesianismo está atravessada pela ansiedade? Mann sugere que um misto de esperança e de medo está subjacente ao legado desse economista que não endossava o liberalismo clássico. E que esse composto contraditório se encontra implícito na declaração emblemática de que “no longo prazo estaremos todos mortos” – expressão esta que, por isso mesmo, foi escolhida como título do seu livro. Eis que o keynesianismo instala-se entre a promessa de sucesso econômico e a ameaça constante de que sobrevenham novos desastres, mesmo eventualmente grandes tais como aquele da Crise de 1929. Ele sabe que o sistema econômico apronta sempre novos acidentes e que, portanto, a vida dos seus gestores não é fácil.

Essa expressão sugere, ademais – como ressalta Mann –, que viver num certo estado de inquietação quanto ao devir é a sina inexorável de toda a “civilização” possível. Sob essa perspectiva, não haveria, também, qualquer caminho para construir outro futuro melhor além daquele que conserva o núcleo do capitalismo do melhor modo possível. Existiriam outras alternativas, mas todas elas, inevitavelmente, trariam de algum modo o espectro do autoritarismo e mesmo do barbarismo. Dito de outro modo, para Keynes o capitalismo seria o fim hegeliano da história.

Do ponto de vista econômico, o keynesianismo é aquilo que os economistas keynesianos fazem em termos teóricos e práticos ou aquilo que está referido a um conjunto bem definido de proposições sobre o funcionamento do sistema econômico, as quais estão presentes e demarcam a herança de Keynes, em particular na Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro? Ainda que a primeira alternativa possa ser aceitável, é evidente que o legado de Keynes tem certas características bem definidas: a atividade do dinheiro, a instabilidade do investimento na manutenção da demanda efetiva, a incerteza sistêmica que envolve as decisões empresariais, o papel contra-arrestante do Estado etc.

Há, entretanto, um ponto fundamental. É central observar que a sua teoria econômica é estagnacionista: “quanto mais rica for a comunidade, mais tenderá a ampliar a lacuna entre a sua produção efetiva e a potencial; e, portanto, mais óbvios e maléficos os defeitos do sistema econômico” (Keynes, 1983, p. 33). Assim como verificar que essa sua visão crítica se alevanta de uma análise focada na circulação – e não na produção de mercadorias, tomando estas como formas de capital (Prado, 2016). Pois, como indicou Marx ironicamente, “a esfera da circulação ou do intercâmbio de mercadorias (…) é de fato um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem (…) liberdade, igualdade, propriedade e Bentham” (Marx, 1983, p. 145).

É, pois, na esfera da sociabilidade do mercado que se encontram as reservas de Keynes ao capitalismo. A exploração, a alienação e o conflito entre as forças produtivas e as relações de produção não são problemas para ele. Diferentemente, ele enfatiza sobretudo que a própria natureza das interações mercantis dificulta a conciliação do interesse individual com o bem-estar coletivo. E, nesse sentido, como ressalta Mann, ele não compartilha o otimismo cínico de Bernard Mandeville exposto em sua Fábula das abelhas. Para ele a busca do auto interesse não teria sempre como consequência o bem-estar comum – mas um latente e permanente mal-estar. Ademais, a má repartição da renda e o desemprego decorrentes, em última análise, das interações movidas pelos interesses próprios, costumam alimentar uma raiva de fundo na sociedade mercantil que pode minar – julga ele – o seu potencial civilizador.

Segundo Geoff Mann, três características distinguem a longa tradição a qual pertence John M. Keynes. A primeira delas é a ausência de um humanismo universalista capaz de projetar um futuro civilizado para todos os seres humanos. Ao contrário, toda a sua preocupação civilizatória concerne apenas ao mundo euro-americano; eis que apenas o bem-estar desta fração da humanidade lhe interessa: “o keynesianismo” – diz – “tem sido quase sempre não apenas uma crítica elaborada no interior do capitalismo liberal dos estados-nações ‘industriais’ da Europa Ocidental e da América do Norte – mas tem sido sobretudo uma crítica que ignora todo o resto”. Nesse sentido, trata-se – como também diz – de uma crítica social moderadora que “espelha perfeitamente o mundo burguês, colonialista, masculino e branco no qual e para o qual fala” (Mann, 2017, p. 47).

A doutrina liberal do keynesianismo é geralmente denominada de “liberalismo embutido” para acentuar que prevê a realização da liberdade burguesa apenas no interior de uma ordem social que põe certa unidade, certa harmonia. Keynes, em particular, é crítico do que também se costuma chamar de “liberalismo desembutido”, o qual embasara a visão de mundo da economia política clássica e do imperialismo do livre-comércio. Em consequência de seu viés euro-americano, essa doutrina, tal como aquela que visa superar, é plenamente consistente com a aceitação ativa ou passiva da falta grosseira de liberalismo na periferia do sistema global. Mais do que isso, é consistente com a tese de que a ordem internacional pode e deve ser posta apenas pelo conjunto dos países ricos que se veem como mais desenvolvidos – mesmo se os países pobres e remediados a recusam.

A segunda característica é a ausência de adesão ao dogma liberal que manda priorizar sempre a liberdade individual frente a igualdade e a justiça social. Diferentemente, essa tradição acolhe costumeiramente um individualismo mitigado, tomando a liberdade da pessoa como condição necessária, mas não exclusiva em si mesma e, assim, não suficiente, para realizar uma sociedade civilizada. Se é um fim, é também um meio para negociar a realização de um estado social em que ela própria pode existir junto como o bem-estar coletivo. Segundo Mann, o projeto keynesiano contém no fundo uma ambição para criar algo novo, um lugar, portanto, que ainda não existe. Eis que acredita que “liberdade, solidariedade e segurança podem ser plenamente alcançadas numa ordem social racional”, isto é, numa ordem construída pela vontade e pela razão humana (Mann, 2017, p. 49).

Nesse sentido, é bem sabido que Keynes considerava o estado lamentável da sociedade de seu tempo como uma confusão colossal (colossal muddle), a qual desejava ver superada. É sabido também que ele próprio estava se esforçando nos anos 1930 para contribuir ao máximo para que isso ocorresse. A sua teoria geral nunca foi um empreendimento puramente acadêmico, ao contrário, pretendia intervir nos rumos da sociedade, isto é, da sociedade que lhe interessava.

A terceira característica do keynesianismo é um certo otimismo prático, uma crença forte na capacidade de resolver os problemas da sociedade por meio de intervenções públicas adequadas. É assim que Mann explica a falsa consciência que obra no interior dessa corrente de pensamento:

Diante das forças autodestrutivas produzidas pela própria sociedade civil, quer mostrar que tais tendências funestas não devem necessariamente levar a um fim trágico ou mesmo a uma ruptura temporária ou ainda a uma severa penitência. Ao contrário, sustenta que mediante paciente e pragmática supervisão, as instituições existentes, as ideias e as relações sociais têm o potencial de produzir, sem quebras, uma transformação radical da ordem social.

Se os conservadores arguem que é possível chegar ao ‘melhor de todos os mundos possíveis’ zelosamente protegendo o status quo, se os liberais falam que é possível alcançá-lo por meio do compromisso com um conjunto de ideais abstratos, se os radicais afirmam que isto é possível por meio de uma reconstrução pela raiz da vida social, os keynesianos dizem que um mundo radicalmente diferente se encontra pacificamente em potência na ordem social existente – na ordem euro-americana, liberal e capitalista, obviamente. (Mann, 1917, p. 50).

O keynesianismo é, portanto, autoconfiante. Propugna por um capitalismo sem capitalismo a ser alcançado por meio de uma revolução sem revolução, afirmando peremptoriamente que sabe muito bem como se chega lá. Em consequência, afirma-se na teoria – e mais ainda na prática-política – com certa arrogância. Quando é chamado por uma força política vencedora, passa a atuar para criar a boa e prospera ordem social que julga possível. Esta – crê – pode ser realizada historicamente mediante o constante emprego de uma inteligência prática de administradores competentes, ou seja, de um construtivismo social capaz de pôr em prática boas correções e reformas em resposta aos problemas que surgem.

É muito claro que Keynes, o pai fundador dessa corrente de pensamento prático-político em sua versão contemporânea, não acreditava nem na capacidade de autorregulação da sociedade nem no bom funcionamento espontâneo dos mercados. Ao contrário, ele pensava que a sociedade e os mercados, ao serem deixados por sua própria conta, tendiam à desordem, aos impasses e às crises, alongar-se-iam na criação de esgarçamentos e rupturas que sempre podem vir a crescer e a ameaçar a sua própria existência. Segundo Mann, com Hobbes, Keynes pressentia que sob o “contrato social” vigente escondia-se o “estado de natureza” e que, portanto, ele apenas se manteria incólume por meio da ação do Estado.

Ou seja, em resumo, L – E – L’. Ou ainda “não L – L”, ou seja, o keynesianismo é uma negação determinada, não radical, do liberalismo clássico.

O keynesianismo tem, pois, fé no Estado – e não mercado – como força constantemente restauradora da “civilização”. Acredita, pois, que apenas o Estado se constitui como potência capaz de integrar a sociedade, de “harmonizar o particular e o universal, material e ideologicamente, sem sacrificar nenhum deles” (Mann, 2017, p. 54). É ele e somente ele que pode fazer existir o “estado de bem-estar social”.

Entretanto, é preciso ver que essa “civilização” almejada pelo imaginário keynesiano não pode advir de uma “democracia popular” ou de um “democratismo populista” ainda no âmbito do capitalismo e muito menos poderia decorrer da democracia radical que, segundo Marx, seria posta historicamente, ao seu devido tempo, pelos “trabalhadores livremente organizados”. Ao contrário, o keynesianismo mantém certo desapreço pelo potencial civilizador da democracia, pois, para nele acreditar, é preciso confiar fortemente na capacidade da sociedade de resolver os seus próprios problemas. Ora, tal como os marxistas secretamente hobbesianos,[ii] ele nunca acreditou nisso. Nesse sentido, o keynesianismo – do mesmo modo que o neoliberalismo – quer resguardar do voto popular um espaço crucial para certas decisões tecnocráticas – aquele âmbito em que se tomam, por exemplo, as decisões que afetam os fundamentos da economia e da segurança nacional.

Em consequência, ambas essas correntes têm algo em comum.

É preciso reforçar, para finalizar, que também o neoliberalismo pode ser sinteticamente explicado pela lógica L – E – L’, com a diferença de que, para ele, a tarefa central do Estado não é realizar o “estado de bem-estar social”, mas, ao contrário, é impor a concorrência e a competição como norma de vida em todas as esferas da sociedade (Dardot e Laval, 2016).

Enquanto o keynesianismo propõe uma metamorfose plástica do liberalismo por meio da mediação do Estado, o neoliberalismo propõe uma metamorfose cínica. Confessa que a “justiça social” não convém à “ordem liberal”; postula que os humanos devem ser apenas sujeitos do dinheiro; e, para chegar aos seus objetivos, quer fracionar ao máximo a sociedade para reforçar o domínio da burguesia. A diferença em relação ao keynesianismo, pois, não é pequena – e pode mesmo ser considerada imensa –, mas ela está posta num fundo comum de identidade. Ora, é este último – o privilégio do Estado na mudança social – que atualmente precisa ser superado.

Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Complexidade e práxis (Plêiade).

Referências

Dardot, Pierre & Laval, Christian. A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

Keynes, John M. Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Mann, Geoff. In the long run we are all dead: Keynesianism, political economy, and revolution. Londres: Verso, 2017.

Marx, Karl. O capital. Crítica da Economia Política. Livro I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Prado, Eleutério F. S. “Como Marx e Keynes demarcam o campo da macroeconomia”. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, nº 45, outubro-dezembro de 2016.

Notas

[i] Professor da área de Geografia da Universidade Simon Fraser, Canada.

[ii] A mediação do Estado, neste caso, não visa repor o liberalismo, mas instalar o “socialismo realmente existente”, isto é, L – E – SOREX.

 

Varoufakis: a Europa em rota de desastre.

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Diante da arrogância de Trump, governantes do Velho Continente agem para remilitarizá-lo. Cortarão gastos sociais e se tornarão ainda mais ilegítimos. A saída: a Europa de Paz, com investimento público e novos acordos com Moscou e Pequim

Yanis Varoufakis – OUTRAS PALAVRAS – 11/03/2025

Incorporar a Ucrânia à OTAN, após forçar a Rússia a recuar para suas fronteiras anteriores a 2014. Este tem sido o único objetivo estratégico que os líderes da União Europeia (UE) conseguem enxergar desde a invasão russa, há três anos. Infelizmente, bem antes da nova eleição de Donald Trump, esse objetivo entrou no reino da inviabilidade. Os sinais já estavam evidentes há algum tempo.

Primeiro, a economia de guerra imposta ao presidente russo Vladimir Putin mostrou-se uma dádiva para seu regime. Segundo, até mesmo o predecessor de Trump, Joe Biden, foi extremamente relutante em pressionar pela adesão da Ucrânia à OTAN, preferindo conduzir o país por um caminho incerto com promessas vagas. E, terceiro, havia nos Estados Unidos uma forte oposição, bipartidária, à ideia de tropas da OTAN lutarem ao lado dos ucranianos.

Em uma demonstração de hipocrisia impressionante, os muitos discursos de “Putin é o novo Hitler” nunca resultaram em um compromisso de lutar ao lado dos ucranianos até que o exército de Putin fosse derrotado. Em vez disso, um Ocidente covarde continuou enviando armas aos ucranianos exaustos, para que eles pudessem derrotar o “novo Hitler” em nome do mundo eurocêntrico – mas sozinhos.

Como era inevitável, o único objetivo estratégico dos líderes europeus virou pó. Esta realidade teria se tornado inegável, independentemente de quem tivesse vencido a presidência dos EUA em novembro passado. Trump apenas acelerou isso com uma brutalidade que reflete seu desprezo de longa data não apenas pelo presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, mas também pela própria UE. E assim, sem um Plano B, uma Europa enfraquecida por uma recessão econômica de duas décadas agora luta para responder à política ucraniana de Trump.

Após o Acordo de Munique em 1938, Winston Churchill proclamou que Neville Chamberlain, o então primeiro-ministro do Reino Unido, teve a chance de fazer a escolha entre a guerra e a desonra. “Você escolheu a desonra, e terá guerra”. Em sua angústia por não cometer o mesmo erro, os líderes da UE estão prestes a repeti-lo, ao contrário: sua abordagem de guerra até a vitória dará lugar à paz humilhante que Trump imporá com prazer a eles e ao governo de Zelensky, quando finalmente vierem a implorá-la.

Embora não haja dúvidas de que ou a Europa se ergue, ou se desintegra, a questão é: levantar-se como? O que realmente está errado com a Europa? O que mais lhe falta?

É difícil acreditar que os europeus não consigam reconhecer a resposta que os encara diretamente: à Europa está faltando um Tesouro, além do equivalente ao Departamento de Estado dos EUA e um Parlamento com o poder de decidir sobre como funciona seu governo (o Conselho Europeu). Pior ainda, ainda não há discussão sobre como preencher essas lacunas na arquitetura institucional da Europa.

A União Europeia sempre temeu o início de qualquer processo de paz na Ucrânia exatamente porque isso exporia a nudez do bloco. Quem representaria a Europa na mesa de negociações, mesmo que Trump a convidasse a participar? Mesmo que a Comissão Europeia e o Conselho Europeu pudessem usar uma varinha mágica para criar um grande exército da UE bem armado, quem teria a autoridade democrática para enviá-lo à batalha para matar e morrer?

Além disso, quem pode arrecadar impostos suficientes para garantir a prontidão permanente de combate do exército da UE? O sistema atual de tomada de decisões da UE significa que ninguém tem a legitimidade democrática para decidir nada.

Quando Ursula von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia, anunciou recentemente sua nova iniciativa ReArm Europe, tristes memórias do Plano Juncker, do Green Deal e Plano de Recuperação voltaram à tona. As manchetes voltaram a mencionar grandes números, apenas para que fossem exposto, sob um exame mais detalhado, seu caráter de fumaça e espelhos. Alguém realmente espera que a França aumente seu já insustentável déficit das finanças públicas para financiar armamentos?

Na ausência das instituições para implementar o keynesianismo militar, a única maneira pela qual a Europa pode se rearmar hoje é desviar fundos de seu Estado social e sua infraestrutura física em ruínas. Isso enfraqueceria ainda mais um bloco que já colhe os frutos amargos do descontentamento popular e que está alimentando o crescimento de forças de extrema-direita em todo o continente. E para quê? Alguém acredita que Putin será dissuadido por uma Europa que pode ter alguns mísseis e canhões a mais, mas está se afastando cada vez mais da perspectiva da governança federal necessária para decidir questões de guerra e paz?

O ReArm Europa não fará nada para vencer a guerra pela Ucrânia. No entanto, quase certamente levará a UE a uma recessão econômica ainda mais profunda – a causa essencial da fraqueza do continente. Para manter os europeus seguros diante dos desafios duplos representados por Trump e Putin, a UE deve embarcar num processo multifacetado de Paz Agora.

Primeiro, a UE deve rejeitar categoricamente o esforço predatório de Trump para se apoderar dos recursos naturais da Ucrânia. Em seguida, após sugerir a possibilidade de relaxar as sanções e devolver US$ 300 bilhões em ativos congelados (que não podem ser usados simultaneamente como moeda de troca e para a reconstrução da Ucrânia), a UE deve iniciar negociações com o Kremlin. Elas teriam como objetivo oferecer a perspectiva de um arranjo estratégico abrangente, no qual a Ucrânia se torne o que a Áustria foi durante a Guerra Fria: soberana, armada e tão integrada à Europa Ocidental quanto seus cidadãos o desejem – porém neutra.

Terceiro, em vez de um impasse permanente entre dois grandes exércitos ao longo da fronteira a ser negociada na Ucrânia, a UE deve propor uma zona desmilitarizada de pelo menos 500 quilômetros de profundidade em cada lado, o direito de retorno de todas as pessoas deslocadas, um acordo para a governança das áreas disputadas e um Green New Deal para as áreas devastadas pela guerra – financiado conjuntamente pela UE e pela Rússia. Todas as questões pendentes devem ser tratadas em negociações realizadas sob a égide das Nações Unidas.
Por fim, a UE deve usar a perspectiva de relaxar as tarifas sobre os produtos chineses (especialmente tecnologia verde) e as sanções às exportações de tecnologia. O objetivo é abrir negociações com a China para um novo arranjo de segurança, que reduza as tensões e envolva os chineses no objetivo de salvaguardar a soberania da Ucrânia.

Se realmente queremos fortalecer a Europa, o primeiro passo não é se rearmar. É forjar a união democrática sem a qual a estagnação continuará a corroer as capacidades do continente, tornando-o incapaz de reconstruir o que restar da Ucrânia quando a guerra terminar.

Tradução: Antonio Martins

 

 

 

As molas mórbidas do capitalismo tardio,, por Ricardo Abramovay

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Nos EUA, 20% do PIB já se originam de doença ou vício: em opioides, tabaco, bets, ultraprocessados e dispositivos digitais. Mobilizar nas pessoas aquilo que elas não controlam é agora indispensável ao sistema. Há um pretexto: liberdade de escolha

Ricardo Abramovay – OUTRAS PALAVRAS – 12/03/2025

A rápida recuperação econômica dos Estados Unidos no pós-pandemia consagrou o lugar comum do “excepcionalismo norte-americano”, que Tej Parikh procura desmistificar, numa recente coluna no Financial Times. É verdade, escreve ele, que, a partir de 2022, o mercado de ações bombou e que as inovações tecnológicas ligadas ao avanço da inteligência artificial deram notável impulso ao setor privado. Mas isso não pode escamotear o fato de que 20% do PIB norte-americano vem de gastos com saúde, muito mais (mesmo em termos per capita) que em outros países da OCDE. 40% dos novos empregos privados criados desde 2023 estão em healthcare.

Na verdade, é mais apropriado falar em gastos com doença e não com saúde: nos EUA, morrem mais jovens e as doenças evitáveis ou passíveis de tratamento matam mais do que em outros países ricos. Dos dez setores econômicos norte-americanos com maior faturamento, em 2020, os três primeiros estão ligados a tratamentos médicos, seguros médicos, remédios e hospitais. A conclusão de Tej Parikh é peremptória: parcela significativa do boom econômico norte-americano é gerada pela doença. E o que propaga e pereniza a doença é o empenho meticuloso em difundir em larga escala o vício.

Cuidadosamente formulado, planejado e propagado, o vício é um vetor decisivo, talvez o mais importante, das doenças que marcam parcela significativa do crescimento econômico contemporâneo e não só nos EUA. Que se trate dos opioides, do tabaco, dos alimentos ultraprocessados, das famigeradas bets ou dos dispositivos digitais em que nossa interação social está compulsivamente mergulhada, conquistar a adesão das pessoas por meio de fatores sobre os quais elas não exercem qualquer controle se tornou um componente decisivo do próprio crescimento econômico contemporâneo. O pior é que esta perda de autonomia, esta interferência corporativa organizada na decisão pessoal é apresentada e cada vez mais socialmente legitimada como seu contrário, ou seja, como expressão de liberdade de escolha. Tudo se passa como se a vontade de cada um de nós tivesse força suficiente para se contrapor ao trabalho de milhares de profissionais especializados em moldar e determinar as preferências humanas. Esta ingerência não seria tão grave se ela não tivesse consequências tão sérias sobre a saúde pública e, quando se trata dos dispositivos digitais, sobre a saúde da própria democracia.

Hoje há uma farta documentação e um conjunto robusto de decisões jurídicas baseadas na evidência de que a indústria do tabaco, por exemplo, sempre soube que seu produto era não apenas tóxico, mas, sobretudo viciante e daí derivava, claro, seu benefício econômico. Mas tanto em sua publicidade, como nos tribunais, os dados vinculando o cigarro a graves enfermidades eram sistematicamente negados por cientistas contratados para chegar aos resultados convenientes à indústria. É verdade que campanhas (das quais o Brasil está entre os pioneiros) antitabagistas vêm provocando a diminuição da quantidade de fumantes em várias partes do mundo. Mas, como mostra um relatório recente da Organização Mundial da Saúde, a pressão da indústria sobre diferentes governos (na tentativa de atenuar as restrições pelo atrativo da arrecadação fiscal) segue firme.

Um dos mais emblemáticos sinais da relevância do vício planejado como base do bom desempenho corporativo é apresentado nas fascinantes Royal Institutions Christmas Lectures pelo médico Chris van Tulleken. Para se ter uma ideia de sua importância, trata-se de um evento criado por ninguém menos que Michael Faraday, em 1825, e que recebe anualmente, desde então, cientistas de grande prestígio e reconhecimento internacionais. Chris van Tulleken montou um evento espetacular onde convidou profissionais que trabalharam na indústria de ultraprocessados e que revelam as técnicas pelas quais estes, que mal podem ser chamados de alimentos, tornam-se irresistíveis e, sobretudo viciantes. E tanto nestas conferências como em seu livro lançado há alguns meses pela Editora Elefante (Gente Ultraprocessada), ele mostra que alguns dos gigantes corporativos do tabaco se tornaram grandes acionistas e atores decisivos na indústria de ultraprocessados. No tabaco e nos ultraprocessados, quando confrontados com os prejuízos à saúde pública trazidos pelo consumo de seus produtos, as empresas respondem cultivando o mito de que quem decide é o indivíduo e que interferir em sua liberdade de escolha abre caminho ao autoritarismo.

A responsabilidade da indústria farmacêutica na crise dos opioides, que já matou mais de 500 mil pessoas nos EUA é exposta nos 1,3 milhão de documentos dos “Opioid Industry Documents Archive”, que demonstram todo um mecanismo de cooptação de médicos para receitarem uma droga cuja natureza viciante e perigosa era conhecida, mas não divulgada. Aí também, o minucioso trabalho junto aos médicos é escamoteado e o vício aparece como produto de fraqueza individual.

Qualquer adulto com filhos sabe o que são vícios digitais e é impossível não reconhecer nossa quase completa impotência para combatê-los. A inteligência artificial e a computação quântica aumentam fantasticamente o poder daquilo que B. J. Fogg da Universidade de Berkeley chama de captologia (em Persuasive Technology: Using Computers to Change What we Think and Do, Stanford University Press), a ciência que estuda a capacidade dos dispositivos digitais em magnetizar a atenção dos indivíduos, sobretudo pelo espetacular, pelo grotesco, pela vulgaridade, muito mais que pelo afeto e pela inteligência.

O vício como força propulsora de parte tão expressiva do crescimento contemporâneo não é incluído nas atuais negociações globais em torno do clima, da biodiversidade ou da desertificação e não está incluído na pauta do G20. Mas se os segmentos pensantes do mundo corporativo não conseguirem, junto com a sociedade civil e os governos democráticos, pautar esta discussão, a distância entre o que estamos vivendo e os valores fundamentais do desenvolvimento sustentável só vai aumentar.

 

Desaceleração econômica

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A economia internacional vem passando por grandes momentos de incertezas e instabilidades, geradas pelas movimentações protecionistas adotadas pelo governo norte-americano, com impactos generalizados para todas as economias nacionais e preocupações para os setores produtivos, inibindo investimentos, postergando parcerias econômicas e movimentações estratégicas.

Nos últimos dias, percebemos preocupações crescentes dos analistas econômicos e financeiros sobre uma possível recessão nos Estados Unidos, com repercussão negativa para toda a economia internacional, aumentando a volatilidade do comércio internacional, impulsionadas pelas políticas protecionistas adotadas pela nova administração norte-americana, que buscam a reestruturação dos setores industriais e produtivos, mas que podem colher resultados adversos.

A adoção sistemática de políticas protecionistas pela administração dos Estados Unidos tende a gerar graves constrangimentos para a sociedade norte-americana, aumentando os preços internos, com incremento sistemático da inflação, exigindo alterações constantes das estratégias produtivas dos setores econômicos, gerando incertezas e instabilidades que tendem a prejudicar as relações comerciais entre as nações, gerando inimizades e ressentimentos crescentes.

Recentemente o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou dados do produto interno bruto (PIB) do ano de 2024, trazendo informações interessantes sobre o comportamento da economia nacional, dados positivos, números robustos e algumas reflexões preocupantes. Segundo o IBGE, a economia brasileira cresceu no ano passado 3,4%, impulsionada pelo consumo das famílias que chegaram a um incremento de 4,8%, um número bastante auspicioso para o governo, mas percebemos uma nítida desaceleração econômica no último trimestre, motivada pelo aumento dos preços dos alimentos, pelas incertezas externas e pelo aumento das taxas de juros internos, tudo isso contribuiu ativamente para o crescimento das incertezas e as preocupações sobre os investimentos produtivos.

O desenvolvimento econômico é imprescindível para todas as nações, servindo como instrumento de melhorias estruturais para toda a população, reduzindo a pobreza, a exploração e a miséria nacionais, aumentando as oportunidades de ascensão social, melhorando e consolidando políticas públicas, investindo fortemente em capital humano, canalizando sólidos recursos no desenvolvimento científico e tecnológico, mas para isso, é fundamental a construção de um consenso interno dos setores econômico, político e social, evitando boicotes e impedindo a limitação das capacidades internas de desenvolvimento nacional.

Percebemos o crescimento dos desajustes econômicos e financeiros globais em todas as regiões do mundo, a recessão econômica com graves constrangimentos sociais e políticos, tendem a pulular em muitas nações, levando os governos a adotarem políticas intervencionistas, além de medidas tarifárias para estimularem seus setores produtivos, tudo isso contribuiu para o crescimento da insegurança interna, aumentando os medos e a desesperança, um espaço crescente para a adoção de políticas populistas que flertam cotidianamente com os ideários da extrema-direita, como estamos vislumbrando nos países europeus e em muitas regiões do planeta.

No mundo globalizado, caracterizado pela interdependência entre nações, se faz necessário, além das integrações econômica e produtiva, viabilizar a integração política e a consistência diplomática, sem estas últimas, e num cenário marcado por uma nação que quer impor seus interesses econômicos e político para a comunidade internacional, o mundo caminha a passo largos para um conflito militar com consequências impossíveis de mensurar.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Podridão cerebral, por José Costa Júnior

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José Costa Júnior – A Terra é Redonda – 10/03/2025

Liberdade cognitiva em tempos de economia da atenção

Conforme amplamente noticiado, a Oxford University Press, editora do prestigiado Oxford English Dictionary, escolheu “brain rot” (“podridão cerebral”) como a palavra do ano de 2024. O termo faz referência aos efeitos da sobrecarga digital de conteúdos superficiais e triviais em nossos cérebros. A exposição constante a vídeos curtos, memes, recortes e reações, entre outros conteúdos nas redes de interação social digital, ocorre em paralelo ao aumento nas dificuldades de concentração, atenção e memorização – o que seria um indício da “podridão” descrita.

O termo reflete preocupações e evidências recolhidas por muitos pesquisadores e usuários. O processo de escolha da palavra contou com pesquisas no banco de dados da editora e uma pesquisa online. Segundo a instituição, a busca pelo termo cresceu 230% ao longo de 2024, que demonstra alguma preocupação por parte de quem está conectado. No entanto, a discussão também envolve temas e conceitos mais profundos, que demandam alguma análise no âmbito da infoética – uma área de estudos que aborda a simbiose humanidade-tecnologia, seus pressupostos e consequências.

Primeiramente, o vocabulário que envolve a conexão intensa nas redes é cada vez mais vasto: influenciadores, seguidores, inteligência artificial, viralização, aplicativo, gestão algorítimica, sugestões, curtidas, reações, notificações, encaminhamentos, mentorias, tendências, entre outras expressões comuns na atualidade. Além de serem termos ligados à experiência digital, esse amplo léxico está ligado também aos impactos esperados em nossas subjetividades, atenção e pensamentos.

O que quer um influenciador senão influenciar nossas escolhas e decisões? Uma notificação não busca chamar a nossa atenção para uma mensagem ou dado que nos chega por um aplicativo? Seguir as tendências (ou trends) não nos incita a ter determinada ação ou comportamento? É possível continuar com essa exposição de questões que exemplificam a situação, mas o ponto básico é que, nas atuais circunstâncias das nossas interações com tecnologias socialmente disruptivas, nossos pensamentos, subjetividades e atenção são a todo momento desafiados por tais meios, com o objetivo de angariar recursos e impacto em nossos corações e mentes.

Essa mobilização é fruto da ação do conglomerado de corporações que atuam no nosso tempo de economia da atenção. As chamadas Big Techs desenvolvem suas tecnologias persuasivas, cuja principal finalidade é desenvolver modos de captura da atenção e produzir estímulos à nossa subjetividade, com o simples objetivo de lucrar. Enquanto no distante século XX as estratégias da propaganda também tinham tais elementos como matéria prima, as tecnologias persuasivas do mundo digital no tempo da economia da atenção operam com mais intensidade e com meios constantemente disponíveis.

Temos assim um cenário de “capitalismo de vigilância” (Zuboff, 2019), no qual o acompanhamento constante de nossas trilhas digitais garante rendimentos à corporações e governos, a partir de um “colonialismo de dados” (Couldry, 2019), no qual nossas informações, dados e subjetividades são constantemente explorados sem que tenhamos muito controle sobre isso. Outra descrição vai literalmente mais fundo e aponta esse cenário como uma forma de “capitalismo límbico” (Courtwright, 2019), no qual nossas reações, emoções e sensações mais profundas também são estimuladas, captadas e quantificadas a partir de nossas experiências no mundo digital.

Porém, uma tensão ronda esse contexto. Algumas das pressuposições da Modernidade que deram forma ao mundo em que vivemos encontram desafios em tais cenários e descrições. O sujeito moderno, do qual se esperava autonomia, liberdade, soberania e razão para deliberar livremente sobre o mundo à sua volta, passa a ter a sua subjetividade constantemente impactada – juntamente com sua autonomia, liberdade e soberania. Se o que vejo, o que sinto, o que desejo e o que escolho são fruto de influências exteriores, quem pensa por mim? Isso traz consequências sociais, políticas e econômicas, assim como para a construção das nossas visões de mundo.

O rico vocabulário descrito no início evidencia o caso. Alguns desafios já haviam sido colocados às alegadas características do sujeito moderno nas teorizações sobre a humanidade no século XX, mas nas décadas iniciais do século XXI o desafio parece ser maior. Com tantas possibilidades de influência a partir da ampliação do alcance de tecnologias persuasivas e seu impacto sobre nossa subjetividade, atenção e racionalidade, é sempre possível perguntar como são formadas nossas concepções e conclusões sobre o mundo. E também sobre o quanto nossa atenção é livre em circunstâncias nas quais os estímulos são constantes e quase irresistíveis.

O que comumente chamamos de atenção é a capacidade de focar numa parte do fluxo de informações provenientes de nossos sentidos. Focamos nosso olhar em uma pequena parte do mundo ao nosso redor, enquanto o resto do campo sensorial desempenha um papel secundário. Num pequeno artigo do começo do século XXI sobre filosofia da mente, intitulado “Zumbis não podem se concentrar”, a filósofa britânica Mary Midgley (1918-2018) defendeu que grande parte da nossa atividade ao longo do tempo é “drasticamente moldada pelo esforço e, portanto, pela atenção”.

Esse esforço cognitivo que envolve a atenção é parte do nosso cotidiano nas circunstâncias mais comuns. Ir ao banheiro e levantar adequadamente a tampa do vaso sanitário, escolher a chave certa no chaveiro para abrir a porta, avaliar as condições climáticas antes de sair de casa são exemplos de atividades que envolvem algum esforço cognitivo e direcionamento de atenção.

Caso não tenhamos a atenção adequada, podemos falhar. Não é incomum que distrações, situações de multitarefas, impactos na atenção e outros elementos até inconscientes possam nos impactar, mas, considerando a análise de Midgley, fica claro que “a atenção consciente é um fator causal no mundo, tão bem reconhecido quanto o envenenamento, a chuva ou o sarampo”. É “um fenômeno natural comum”, que dialoga constatemente com o nossos processos cognitivos, formando nossas visões de mundo e deliberações nas muitas circunstâncias das nossas vidas.

Porém, num mundo com tantos estímulos e possibilidades de distração, nossa capacidade de prestar atenção pode diminuir ou ser direcionada, impactando pensamentos e concepções da realidade. A centralidade das tecnologias persuasivas no âmbito das disputas políticas contemporâneas é um exemplo desse estado de coisas. Debates intensos e acalorados, polêmicas e ataques constantes, recortes de vídeos públicados nas redes sociais capturam a atenção e mobilizam emoções variadas, entre outras abordagens. Tais conteúdos são promovidos no contexto da economia da atenção, angariando resultados para quem os promove.

Temos assim reações indignadas ou de aprovação, compartilhamentos por apoio ou revolta e comentários e viralizações que também são mostras de como as tecnologias persuasivas envolvem acabam por mobilizar nossa atenção, promovendo cada vez mais “engajamento” por parte dos “usuários”. E conforme apontando por Mary Midgley, nossa atenção é um elemento decisivo naquilo que nos compõem, um fator causal no mundo que produz ações e reações, impactando o que somos e o que pensamos.

Todos esses elementos estão diretamente ligados à nossa cognição. Impactada por estímulos diversos e potentes tecnologias disruptivas e persuasivas, passa a ser relevante nos preocuparmos com os impactos na nossa liberdade cognitiva. Essa liberdade dos processos de cognição, atenção e pensamento pode agora ser impactada por meios maquínicos que atravessam nossas subjetividades e que nos são opacos. De acordo com a análise da pesquisadora americana Nita Farahany, nunca foi tão importante considerarmos a liberdade cognitiva, uma vez que as grandes corporações possuem recursos tecnológicos de influência e impacto em nossas consciências jamais observados.

Em sua concepção, qualquer um que valorize sua capacidade de ter pensamentos e reflexões privadas num “mundo interior”, sem grande interferência de ritmos tecnológicos, deveria se preocupar com a liberdade cognitiva. Não se trata de criar proibições ligadas às práticas digitais, mas encontramos regulações, controles e debates sobre os limites das tecnologias que envolvem nossa cognição. No seu livro de 2023, intitulado The Battle for Your, Farahany argumenta que as intrusões nas nossas mentes através da tecnologia já são uma realidade e precisamos estabelecer proteções e direitos sobre o tema.

Cenários distópicos como a leitura de mentes e estímulos à pensamentos e ações ainda são distantes, mas a ampla pesquisa neurocientífica e psicológica desenvolvida para as Big Techs já dá resultados – nos mais diversos âmbitos da política, da economia, da cultura, etc. As mediações algorítimicas da experiência, que garantem o funcionamento da economia da atenção configuram cenários preocupantes. As atuais sociedades polarizadas e o grande potencial para a desinformação são reflexos dessa situação.

Nesse sentido, a liberdade cognitiva é a liberdade de ter algum controle soberano sobre os próprios pensamentos e consciência, um direito a autodeterminação sobre nossos cérebros e nossas experiências mentais. Assim, qualquer manipulação externa ou interna seria passível de discussão e questionamento. Nessa “batalha por nossos cérebros”, Farahany reconhece o potencial das grandes corporações, que exploram o que temos de mais humano, para evitar cenários ainda mais críticos. Em tempos de “podridão cerebral”, é importante que que lutemos essa batalha. Afinal, apenas zumbis não são capazes de prestar atenção na sua própria condição, conforme nos avisou a atenta Mary Midgley.

José Costa Júnior é professor de filosofia e ciências sociais no IFMG –Campus Ponte Nova.

Referências

COULDRY, Nick; MEJIAS, Ulises. The costs of connection: How data are colonizing human life and appropriating it for capitalism. 2019.

COURTWRIGHT, David. The age of addiction: How bad habits became big business. Harvard University Press, 2019.

FARAHANY, Nita. The battle for your brain: Defending the right to think freely in the age of neurotechnology. Nova York: St. Martin’s Press, 2023.

MIDGLEY, Mary. “Zombies Can’t Concentrate” In: Philosophy Now. Número 44, Fevereiro de 2004.

ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power. Londres: Profile Books, 2019.

 

Donald Trump – tempos dramáticos e trágicos, por Leonardo Boff

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Leonardo Boff – A Terra é Redonda – 12/03/2025

O que Donald Trump quer conservar com unhas e dentes é o seu país como o único poder a conduzir os destinos do planeta

Se tomarmos a sério o projeto imperial de Donald Trump sob o lema “America First” (em subentendido só a América) não é impensável que tempos dramáticos e até trágicos possam ocorrer. Seu propósito básico é usar o poder para todos os âmbitos é da vida. Compreendamos bem o tipo de poder. Não como expressão da cidadania, mas o poder como dominação no sentido que os pais fundadores da modernidade, Galileo Galilei, René Descartes, Isaac Newton, especialmente Francis Bacon conferiram a poder: é a vontade de potência/dominação sobre a natureza, sobre os povos (colonização) sobre as classes, sobre a matéria até o último topquark, sobre a vida até seu último gene. Esse projeto formulado na Europa, com o qual dominaram o mundo, foi radicalizado por Donald Trump. E talvez tenha chegado também ao seu fim.

Percebendo o império norte-americano em ocaso, assume o poder como dominação na sua maior radicalidade. Passa por cima da ONU, da OMC, OMS, de acordos internacionais, não respeite lei nenhuma, rompe com os próprios amigos como os europeus. Tenta o diálogo, senão faz funcionar uso da força e da rendição do adversário. Nesse afã de poder bem no estilo de Hobbes, grande teórico do poder, se propõe agregar aos EUA o Canadá, se apropriar da Groelândia e ocupar o canal do Panamá.

Talvez a dimensão mais desumana e cruel seja a expulsão de milhões imigrantes indocumentados, dividindo famílias, negando cidadania americana a nascidos nos EUA, de filhos de imigrantes. Sua arrogância de fazer “a América Novamente Grande” (NAGA) o levou a impor altas tarifas a produtos importados e ameaçando com pesadas penas econômicas e políticas aos países que se negarem a atender a suas pretensões. Deixa claro que os EUA é o único país cujos interesses são globais e se dá o direito de intervir para fazer a “América Grande Novamente”.

Todos os acordos mundiais acertados para minorar o efeito estufa foram por ele abandonados e considerados ridículos como o Acordo de Paris de 2015. Incentiva exploração de energias fósseis e de carvão, principais causadores dos bilhões de toneladas de CO2 e metano lançados anualmente na atmosfera. É um negacionista radical, negando a ciência, fazendo cortes profundos à pesquisa notoriamente avançada nos EUA. Levar a efeito tal propósito que vai contra a corrente mundial preocupada com o aquecimento global, com os efeitos extremos que revelam que a Terra está mudando e até já mudou, faz-se um inimigo da vida e da Humanidade. Possui uma mente assassina e ecocida, obcecado pelo poder absoluto, submetendo todo o planeta como seu fosse o seu quintal ampliado do qual pode dispor como quiser.

Logicamente a todo poder absoluto se opõe outro poder que lhe resiste e rejeita a estratégia de dominação mundial. O que Donald Trump quer conservar com unhas e dentes é o seu país como o único poder a conduzir os destinos do planeta. Opõe-se radicalmente a mundo multipolar, pois potências poderosas como a China e a Rússia e eventualmente os BRICs estão na mesma arena política, disputando poder no cenário mundial.

Como Noam Chomsky e outros analistas da geopolítica mundial têm observado depois de uma guerra econômica segue uma guerra militar. Observa ainda Noam Chomski que há suficientes loucos no Pentágono que arrisquem uma guerra letal segundo a fórmula 1+1=0, vale dizer, um destrói totalmente o outro e leva junto toda a humanidade. Se isso ocorrer, será o fim de grande parte da humanidade, o céu ficará branco pelas partículas, a fotossíntese das plantas e florestas será praticamente impossível, haverá perda das safras, grande fome, doenças derivadas do terror nuclear e morte de milhões. Foi o sonho prognóstico de C. G. Jung antes de morrer.

Tal tragédia não é impossível porque os dados estão aí e nossa cultura insana que instaurou a ditadura da razão analítica sem qualquer consciência e compaixão pelas consequências daí derivadas; criou o princípio de autodestruição; salvaguardados todos os benefícios que essa razão, inegavelmente trouxe para a vida humana. Mas tudo isso pode perder-se.

Outros analistas aventam a possibilidade que não haverá guerras letais mas total reedição da potência que chegou atrás do desenvolvimento da Inteligência artificial autônoma, capaz de controlar cada pessoa, toda a estrutura energética e toda a vida de um país. Por isso há uma desesperada corrida pela Inteligência artificial tipo Deep Seek, pois quem chega primeiro paralisaria o país do concorrente e tornaria totalmente ineficaz seu aparato bélico. Seria a abominação da desolação, em termos bíblicos, um drama atrás do outro e, quem sabe, o fim trágico do experimento humano. Depois que assassinamos o Filho de Deus quando se encarnou em nossa existência, nada mais trágico poderia acontecer, segundo a crença crista.

Nos perguntamos, por que não temos desenvolvido a “emoção radical”, já que esta é a milhões de anos mis ancestral e mais fundamental em nós, que a Inteligência? Esta jamais seria negada por ser uma característica essencial de nossa existência, mas com a incorporação da emoção artificial que prefiro chamar de radical, por ser a raiz de nosso ser profundo e ser onde razão continuamente molha suas raízes, outra seria a atual situação humana: imperaria mais amor que ódio, mais cooperação que competição, mais cuidado que devastação da natureza.

A vida passou por imensas crises e sempre sobreviveu, não será agora que vai desaparecer miseravelmente pela nossa falta de cuidado e de justa medida.

Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Cuidar da Casa comum: pistas para protelar o fim do mundo (Vozes);