A crise do coronavírus, por Yuval Harari.

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Extraído de HSM – 16/03/2020

O historiador, filósofo e autor dos best-sellers “Sapiens” e “Homo Deus – Uma breve história do Amanhã”, Yuval Noah Harari, trouxe à tona sua percepção da pandemia que a humanidade está enfrentando.
Trouxemos os principais pontos do artigo publicado na Revista Time, no último domingo (15).

“A melhor defesa que os seres humanos têm contra patógenos não é o isolamento – é a informação”

Muitas pessoas culpam a epidemia de coronavírus pela globalização e dizem que a única maneira de evitar mais surtos desse tipo é “desglobalizar” o mundo. Construa muros, restrinja viagens, reduza o comércio. No entanto, embora a quarentena de curto prazo seja essencial para interromper as epidemias, o isolacionismo de longo prazo levará ao colapso econômico sem oferecer nenhuma proteção real contra doenças infecciosas. Exatamente o oposto. O verdadeiro antídoto para a epidemia não é a segregação, mas a cooperação.

As epidemias mataram milhões de pessoas muito antes da era atual da globalização. No entanto, a incidência e o impacto das epidemias diminuíram drasticamente. Apesar de surtos horrendos, como AIDS e Ebola, no século XXI as epidemias matam uma proporção muito menor de humanos do que em qualquer outro período anterior à Idade da Pedra. Isso ocorre porque a melhor defesa que os seres humanos têm contra patógenos não é o isolamento – é a informação. A humanidade tem vencido a guerra contra epidemias porque, na corrida armamentista entre patógenos e médicos, os patógenos dependem de mutações cegas, enquanto os médicos dependem da análise científica da informação.

Ganhando a guerra contra patógenos
Durante o século passado, cientistas, médicos e enfermeiros em todo o mundo reuniram informações e, juntos, conseguiram entender o mecanismo por trás das epidemias e os meios para combatê-las. A teoria da evolução explicou por que e como surgem novas doenças e doenças antigas se tornam mais virulentas. A genética permitiu que os cientistas espiassem o próprio manual de instruções dos patógenos. Embora o povo medieval nunca tenha descoberto o que causou a Peste Negra, os cientistas levaram apenas duas semanas para identificar o novo coronavírus, sequenciar seu genoma e desenvolver um teste confiável para identificar pessoas infectadas.

Depois que os cientistas entenderam o que causa as epidemias, ficou muito mais fácil combatê-las. Vacinas, antibióticos, higiene aprimorada e uma infra-estrutura médica muito melhor permitiram que a humanidade ganhasse vantagem sobre seus predadores invisíveis. Em 1967, a varíola ainda infectou 15 milhões de pessoas e matou 2 milhões delas. Mas, na década seguinte, uma campanha global de vacinação contra a varíola foi tão bem-sucedida que, em 1979, a Organização Mundial da Saúde declarou que a humanidade havia vencido e que a varíola havia sido completamente erradicada. Em 2019, nenhuma pessoa foi infectada ou morta por varíola.

O que a história nos ensina para a atual epidemia de coronavírus?
Você não pode se proteger fechando permanentemente suas fronteiras. Lembre-se de que as epidemias se espalharam rapidamente, mesmo na Idade Média, muito antes da era da globalização. Portanto, mesmo que você reduza suas conexões globais ao nível da Inglaterra em 1348 – isso ainda não seria suficiente. Para realmente se proteger através do isolamento, ficar medieval não serve. Você teria que ficar na Idade da Pedra. Você pode fazer aquilo?

A história indica que a proteção real vem do compartilhamento de informações científicas confiáveis ​​e da solidariedade global. Quando um país é atingido por uma epidemia, deve estar disposto a compartilhar honestamente informações sobre o surto, sem medo de uma catástrofe econômica – enquanto outros países devem poder confiar nessas informações e devem estender a mão amiga, em vez de ostracizar a vítima. Hoje, a China pode ensinar aos países de todo o mundo muitas lições importantes sobre o coronavírus, mas isso exige um alto nível de confiança e cooperação internacional.

A cooperação internacional é necessária também para medidas efetivas de quarentena. Quarentena e bloqueio são essenciais para impedir a propagação de epidemias. Mas quando os países desconfiam um do outro e cada país sente que é o seu próprio país, os governos hesitam em tomar medidas tão drásticas. Se você descobrisse 100 casos de coronavírus no seu país, iria bloquear imediatamente cidades e regiões inteiras? Em grande medida, isso depende do que você espera de outros países. Bloquear suas próprias cidades pode levar ao colapso econômico. Se você acha que outros países irão ajudá-lo – será mais provável que você adote essa medida drástica. Mas se você pensa que outros países o abandonarão, provavelmente hesitaria até que seja tarde demais.

“Não se trata mais de nações, mas da espécie humana”
Talvez a coisa mais importante que as pessoas devam perceber sobre essas epidemias seja que a disseminação da epidemia em qualquer país ponha em perigo toda a espécie humana. Isso ocorre porque os vírus evoluem. Vírus como a corona se originam em animais, como os morcegos. Quando eles pulam para os seres humanos, inicialmente os vírus estão mal adaptados aos seus hospedeiros humanos. Enquanto se replicam em humanos, os vírus ocasionalmente sofrem mutações. A maioria das mutações é inofensiva. Mas, de vez em quando, uma mutação torna o vírus mais infeccioso ou mais resistente ao sistema imunológico humano – e essa cepa mutante do vírus se espalha rapidamente na população humana. Como uma única pessoa pode hospedar trilhões de partículas de vírus que sofrem replicação constante, toda pessoa infectada oferece ao vírus trilhões de novas oportunidades para se tornar mais adaptado aos seres humanos. Cada transportadora humana é como uma máquina de jogo que fornece ao vírus trilhões de bilhetes de loteria – e o vírus precisa comprar apenas um bilhete vencedor para prosperar.

Enquanto você lê essas linhas, talvez uma mutação semelhante esteja ocorrendo em um único gene no coronavírus que infectou uma pessoa em Teerã, Milão ou Wuhan. Se isso de fato está acontecendo, é uma ameaça direta não apenas aos iranianos, italianos ou chineses, mas também à sua vida. Pessoas de todo o mundo compartilham um interesse de vida ou morte em não dar ao coronavírus essa oportunidade. E isso significa que precisamos proteger todas as pessoas em todos os países.

Na luta contra vírus, a humanidade precisa proteger estreitamente as fronteiras. Mas não as fronteiras entre os países. Pelo contrário, precisa proteger a fronteira entre o mundo humano e a esfera do vírus. O planeta Terra está se unindo a inúmeros vírus, e novos vírus estão em constante evolução devido a mutações genéticas. A fronteira que separa essa esfera de vírus do mundo humano passa dentro do corpo de todo e qualquer ser humano. Se um vírus perigoso consegue penetrar nesta fronteira em qualquer lugar do mundo, coloca toda a espécie humana em perigo.

Ao longo do século passado, a humanidade fortaleceu essa fronteira como nunca antes. Os modernos sistemas de saúde foram construídos para servir de barreira nessa fronteira, e enfermeiros, médicos e cientistas são os guardas que a patrulham e repelem os invasores. No entanto, longas seções dessa fronteira foram deixadas lamentavelmente expostas. Existem centenas de milhões de pessoas em todo o mundo que carecem de serviços de saúde básicos. Isso coloca em perigo todos nós. Estamos acostumados a pensar em saúde em termos nacionais, mas fornecer melhores cuidados de saúde para iranianos e chineses ajuda a proteger israelenses e americanos também de epidemias. Essa verdade simples deve ser óbvia para todos, mas infelizmente ela escapa até mesmo às pessoas mais importantes do mundo.

Um mundo sem líder
Hoje a humanidade enfrenta uma crise aguda, não apenas devido ao coronavírus, mas também devido à falta de confiança entre os seres humanos. Para derrotar uma epidemia, as pessoas precisam confiar em especialistas científicos, os cidadãos precisam confiar nas autoridades públicas e os países precisam confiar uns nos outros. Nos últimos anos, políticos irresponsáveis ​​minaram deliberadamente a confiança na ciência, nas autoridades públicas e na cooperação internacional. Como resultado, agora estamos enfrentando esta crise desprovida de líderes globais que podem inspirar, organizar e financiar uma resposta global coordenada.

Xenofobia, isolacionismo e desconfiança agora caracterizam a maior parte do sistema internacional. Sem confiança e solidariedade global, não seremos capazes de parar a epidemia de coronavírus, e provavelmente veremos mais dessas epidemias no futuro. Mas toda crise também é uma oportunidade. Esperamos que a epidemia atual ajude a humanidade a perceber o grave perigo que representa a desunião global.

Neste momento de crise, a luta crucial ocorre dentro da própria humanidade. Se essa epidemia resultar em maior desunião e desconfiança entre os seres humanos, será a maior vitória do vírus. Quando os humanos brigam – os vírus dobram. Por outro lado, se a epidemia resultar em uma cooperação global mais estreita, será uma vitória não apenas contra o coronavírus, mas contra todos os patógenos futuros.

‘Coronavírus isolou líderes populistas’: Para Steven Levitsky

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Para Steven Levitsky, cientista político americano e coautor de ‘Como as Democracias Morrrem’, ignorar especialistas fez líderes como Trump e Bolsonaro reagirem tarde à pandemia
José Eduardo Barella / O Estado de S. Paulo 
29/03/2020

Acostumados a fazer dos adversários inimigos mortais e desprezar o que chamam de elite política, acadêmica, científica e cultural, muitos líderes populistas estão experimentando o próprio veneno. Pegos de surpresa pelo novo coronavírus, eles reagiram tarde à pandemia e estão às voltas com o aumento de casos e mortes, além da expectativa de uma gravíssima crise econômica. 

Para o cientista político Steven Levitsky, coautor do livro Como as Democracias Morrem, que mostra as razões da expansão populista nos últimos anos, o desprezo pela ciência e pela elite caiu por terra com o avanço da pandemia. Pegos de surpresa pelo surgimento do coronavírus, líderes populistas como Donald Trump, nos EUA, Jair Bolsonaro, no Brasil, e Andrés Manuel López Obrador, no México, correm risco de isolamento e de perder mais popularidade em razão da crise econômica.  

A pandemia, segundo Levitsky, é o maior desafio dos populistas. Primeiro, porque corrói a popularidade que os sustentam. Sem popularidade, fica mais difícil tomar medidas autocráticas para ameaçar a democracia. Em segundo lugar, por colocar a própria sobrevivência desses líderes em risco. “A pandemia está mostrando que o desprezo desses populistas pela ciência e pelos especialistas vai custar caro”, disse. A seguir, trechos da conversa com Levitsky. 

Por que populistas como Trump, Bolsonaro e Boris Johnson foram lentos ao reagir à pandemia?
Líderes populistas costumam se eleger atacando o establishment, dizendo ao povo que, uma vez no poder, varrerão a elite. Mas parte dessa elite é formada por especialistas – economistas, cientistas, técnicos, profissionais de saúde, como os que lideram agora o combate ao coronavírus. E a primeira resposta dos populistas à pandemia foi rejeitar os conselhos dos especialistas, recorrendo a pessoas próximas que não são do ramo. Bolsonaro preferiu ouvir conselhos dos filhos. Trump, do genro. Não é por acaso que Trump, Bolsonaro e (Andrés Manuel) López Obrador (presidente do México) demoraram a reagir. Já o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, é um caso à parte. Embora tenha demorado, ele acabou aceitando os conselhos de especialistas e foi mais rápido em adotar medidas. Mas ficou evidente que a inação inicial deve trazer consequências trágicas, como estamos vendo.  

Se fosse possível formar um ranking, quem levaria a medalha de ouro em performance populista na reação ao coronavírus?
Todos cometeram erros, mas vale citar o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, cuja resposta à pandemia foi péssima – mas eu não chamaria ele de líder populista. Portanto, ele fica de fora dessa disputa. Sem sombra de dúvida, a medalha de ouro vai para Bolsonaro. Ele continua a desdenhar da crise. A maior parte do seu discurso (do dia 24) na TV continha inverdades que refletem um nível de ignorância que vai além da demonstrada por Trump. Vale notar que o desprezo do presidente brasileiro pelas recomendações de especialistas, parte da estratégia populista de rejeitar a elite, não tem precedentes na história recente do País. Políticos tradicionais, independentemente se eram de direita ou de esquerda, como José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Lula, tiveram ajuda de técnicos com experiência de governo. 

No seu livro, o senhor afirma que parte da estratégia dos populistas é ignorar o respeito mútuo e a tolerância. Numa crise profunda, adotar essa estratégia autoritária tende a levar os populistas ao isolamento? 
Depende do líder populista. Situações de emergência nacional, como guerras, desastres naturais e pandemias, exigem cooperação entre a classe política, entre o presidente e o Congresso, entre presidente, governadores e prefeitos, e entre governo e oposição. Os populistas costumam fazer de seus oponentes inimigos ferozes, o que dificulta esse tipo de cooperação durante uma crise.  

Essa disputa costuma levar o líder populista ao isolamento?
Normalmente, o populista cria uma espécie de ambiente tóxico na política entre ele e seus oponentes. Isso não torna impossível reunir a classe política para responder a uma crise, mas certamente é mais difícil. Muitas vezes, durante situações do tipo, é comum uma união em torno do presidente. Aparentemente, isso não está acontecendo com Bolsonaro, que parece ser um caso claro de isolamento. 

Tanto Trump quanto Bolsonaro culparam a China pela crise e evitaram adotar medidas drásticas, com medo de afetar a economia. Isso configura uma estratégia política populista?
Não sei se essa reação similar é coincidência ou o quanto Bolsonaro está copiando Trump. Mas não acredito que se trata de um movimento ideológico. Um dos mentores do trumpismo, Steve Bannon, foi defensor de uma resposta de saúde pública mais agressiva. Ou seja, neste aspecto, Bolsonaro agiu de forma diferente da preconizada pelo cérebro do trumpismo. Já Obrador, um populista de esquerda, agiu de forma semelhante à de Bolsonaro, criticando a paralisia da economia. Portanto, não acho que seja uma questão ideológica, e sim uma atitude intuitiva de um político personalista, nacionalista e, mais importante, antielitista. Um político com uma grossa camada narcisística, que acredita que ele mesmo, sozinho, sabe mais que os especialistas.  

A gravidade da crise pode estimular os populistas a acumular mais poder?
É provável que líderes autoritários respondam a essa crise com medidas para ampliar seu poder. Mas não está claro quantos serão bem-sucedidos se começarem a tomar essas medidas. Um político isolado, como Bolsonaro, tentar aproveitar a situação para acumular poder tem menos chance de obter sucesso. O mesmo vale para Trump. 

Mesmo numa situação especial como essa?
Sim. Se um líder não tem confiança do povo durante uma crise, deve evitar criar mais problemas para ele mesmo. É o que estamos começando ver no Brasil. Os brasileiros não estão respondendo bem a esse grande poder que o Bolsonaro tem para lidar com a pandemia.  

Então o temor de que Bolsonaro se aproveite da crise para obter mais poder é exagerado?
Se você imaginar o cenário daqui a seis meses, com a economia em situação mais delicada do que hoje, Bolsonaro provavelmente terá menos apoio do que tinha, o que torna arriscado tentar algum movimento fora do jogo democrático.  

É possível que o pronunciamento de Bolsonaro, no dia 24, tenha sido uma manobra para forçar uma situação que justifique medidas autoritárias?
Na crise em que o Brasil se encontra, não há nenhuma garantia de que Bolsonaro se comportará democraticamente. Precisamos nos preocupar todos os dias com o fato de Bolsonaro tentar quebrar as regras do jogo democrático. O fato de estar perdendo popularidade, e também porque muitos atores da política e da sociedade brasileira se recusam a apoiar uma aventura por parte dele, me leva a crer que, caso tente quebrar a ordem democrática, Bolsonaro fracassará. 

Por que os populistas sempre buscam a polarização, mesmo em uma crise grave como agora?
Líderes populistas tendem a usar a mesma estratégia que funcionou para eles no passado. Se você chegar ao poder como populista, provavelmente continuará usando essa estratégia no poder. 

Você ficou surpreso com o pronunciamento de Bolsonaro, indo na contramão das medidas de isolamento? 
O que me impressionou mais foi como ele está copiando Trump. O pronunciamento foi consistente com seu comportamento desde que comecei acompanhar sua trajetória. Fiquei chocado com seu grau de ignorância – e, para ser sincero, não sei se ele é de fato tão ignorante quanto demonstra, como quando afirma acreditar que 90% dos jovens não serão contaminados pelo coronavírus e, portanto, devem voltar às aulas. Mas é arrepiante ver os dois maiores países do hemisfério, Brasil e EUA, governados por presidentes que vivem mentindo, respondendo a essa crise dessa maneira ignorante e irresponsável. Infelizmente, é o custo que temos de pagar por tê-los escolhido. O mundo estará olhando para a eleição presidencial nos EUA deste ano com atenção redobrada.  

Com o impacto do coronavírus na economia, uma derrota de Trump sinalizaria que a onda populista pode murchar?
É o que espero. Tudo que Trump pretende agora é reviver a economia para que possa ganhar a reeleição – é com isso que ele se importa. Não há como prever os efeitos que ocorrerão nos próximos meses. De qualquer forma, a tendência é termos uma eleição muito disputada. 

Mesmo a economia tendo pouco tempo para se recuperar?
Antes do coronavírus, apesar de a economia estar indo bem e Trump tivesse boas chances de se reeleger, é importante lembrar que sua aprovação era de apenas 43%. Ele não é um presidente muito popular, mas tem uma base muito forte. Não sabemos o que vai acontecer com a economia. Mas há projeções que indicam uma forte queda no segundo trimestre, com recuperação ao fim do terceiro trimestre – o que ajudaria Trump. Mas os EUA são vistos como um modelo para o restante do mundo. Se um líder populista for tirado do poder aqui nos EUA, acho que será um duro golpe para o populismo. É o que espero. 

O coronavírus revelou o essencial: o professor. Por Alexandre Schneider

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Mesmo com escolas fechadas, o papel deles é central no desenho e implementação das políticas educacionais

Um momento de distração ao olhar pela janela a rua vazia é interrompido por um chamado de meu filho de 11 anos, às voltas com uma pesquisa sobre o confucionismo. Tomás, assim como seus mais de um milhão de colegas da rede pública da cidade de Nova York, iniciou a semana com uma nova experiência: suas aulas agora são à distância.
 
No Brasil e no mundo, escolas públicas e privadas estão enfrentando o desafio de manter o processo de aprendizagem em novas bases, com o fechamento das escolas por tempo indeterminado, uma das medidas de contenção do coronavírus. A medida já alcançou 157 países e cerca de 1,4 bilhão de alunos, segundo a Unesco.

Diante da necessidade de isolamento social, há duas decisões possíveis, a de antecipar as férias ou a de lançar mão do uso de plataformas digitais e do ensino à distância. Qualquer das escolhas depende de outros dois aspectos fundamentais: a existência de um bom planejamento pedagógico e, sobretudo, a liberdade de escolha pedagógica do professor.

Há inúmeras evidências na literatura educacional a demonstrar que, controlados os demais fatores, estudantes submetidos ao ensino à distância aprendem menos do que aqueles que frequentam aulas presenciais. Como agravante, os mais vulneráveis aprendem ainda menos.

A cidade de Nova York tomou a decisão de cancelar as aulas de sua rede pública na semana passada. O secretário de educação propôs que cada escola realizasse um plano de implantação de ensino à distância, a partir de sua realidade.
Umbigo do mundo capitalista, Nova York é uma cidade muito desigual. Dos cerca de 1,1 milhão de alunos, 300 mil não possuem um equipamento ou acesso a internet.

Para esses, a Prefeitura garantiu o empréstimo de computadores — em muitos casos os das próprias escolas— e o fornecimento de roteadores de acesso à internet com apoio de parceiros da iniciativa privada.

Conversei com estudantes, professores e gestores de escolas públicas e privadas da cidade. Os estudantes me revelaram que se sentem mais cansados no final do dia e que sentem falta dos colegas. Por outro lado, percebem que há continuidade entre o que vinham aprendendo nas aulas presenciais e nas aulas à distância.

O testemunho dos gestores e professores também é o mesmo: estão aprendendo enquanto fazem. Os princípios comuns são os de respeitar o planejamento previsto antes da crise, preparar materiais que provoquem reflexão e pesquisa dos estudantes e estarem preparados para mudar sua estratégia de acordo com a resposta dos mesmos.

Os pais de Helena, que tem 16 anos e estuda em uma disputada escola pública de ensino médio com foco em ciências e matemática, receberam o planejamento das aulas à distância e o calendário escolar no domingo anterior ao início das aulas em modo remoto. O mesmo ocorreu com Tomás, que tem 11 anos e estuda em uma middle school pública (o que equivale ao Fundamental 2 no Brasil).

As duas escolas já utilizavam uma plataforma de relacionamento com alunos e pais. Por ela, além de informações gerais, cada professor envia tarefas de casa, vídeos, materiais de apoio, avaliações dos alunos, realiza mentoria e acompanha se os estudantes estão ou não conectados e se dedicando às tarefas.

Nina tem a mesma idade de Helena e estuda em uma escola privada de qualidade alta. Sua experiência foi um pouco distinta. A escola escolheu utilizar uma plataforma de comunicação em vídeo para que os professores dessem aulas à distância nos mesmos horários em que ocorriam as aulas presenciais. A iniciativa não fez muito sucesso com os estudantes, que se disseram cansados com o método.

A escola rapidamente mudou o desenho, intercalando aulas à distância via plataforma de vídeo, tarefas, mentoria e trabalho em grupo.

No Brasil temos dois grupos de iniciativas. Nas escolas particulares, vêm sendo utilizados vários recursos, como o de vídeo ao vivo ou gravado, reproduzindo o ambiente de uma sala de aula, o envio de tarefas, a mentoria e sessões em grupos menores para tirar dúvidas dos alunos. Muitas vezes essas estratégias são combinadas.

O grande desafio que as escolas particulares terão caso as medidas de isolamento sejam prolongadas é sua sustentabilidade. Os pais precisam compreender que os custos não mudam e que a maior riqueza de uma escola é a qualidade de seus profissionais.

As melhores escolas públicas e privadas de Nova York, assim como as escolas de elite no Brasil, se basearam na continuidade do que foi planejado pelos professores e pelas escolas. Ninguém adotou soluções mágicas que batem à porta nesse momento, como a venda de sistemas, aplicativos e plataformas de apoio didático. Mais do que a tecnologia, as soluções se estruturaram na confiança do compromisso das pessoas que estão no coração do processo: os professores.

A escolas públicas brasileiras estão fechadas. Algumas redes anteciparam o recesso de julho, o que é uma decisão correta. É hora de os secretários estaduais e municipais discutirem com suas equipes pedagógicas as diretrizes para o retorno às aulas presenciais e o que fazer em caso de se optar pelas aulas à distância.

No caso de um prolongamento das medidas de quarentena, um sistema de comunicação simples entre as escolas, estudantes e pais, com a distribuição de materiais preparados pelos professores é suficiente. Para aqueles estudantes que não possuem computadores ou internet, poderia se adaptar espaços que respeitem as regras sanitárias de distância necessárias.

A principal lição desse momento é que mesmo com as escolas fechadas, o papel dos professores é central no desenho e implementação das políticas educacionais.

Para que eles consigam apoiar seus alunos em pleno exercício de suas capacidades, a sociedade precisa garantir-lhes recursos à altura dos desafios que a profissão lhes impõe, como uma carreira que possibilite a esses profissionais trabalhar em uma única escola, como ocorre nas melhores redes públicas do mundo e nas melhores escolas particulares do Brasil.

Deixo aqui sugestões mais gerais a quem está na linha de frente, gerenciando nossas redes públicas. Desenhem soluções capazes de garantir o melhor aos alunos mais vulneráveis de suas redes. Uma solução que os atenda será capaz de atender a todos.

Confiem nos seus profissionais. Peçam a cada uma das escolas um plano específico para esse momento difícil e criem um método de monitoramento dos mesmos. Por fim, deixem os professores livres para realizarem suas escolhas pedagógicas.

Alexandre Schneider
Pesquisador visitante e professor adjunto da Universidade Columbia em Nova York, pesquisador do Centro de Economia e Política do Setor Público da FGV/SP, consultor e ex-secretário municipal de Educação de São Paulo.

Uma depressão ainda maior? Por Nouriel Roubini

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Project Syndicate 
26 de março de 2020

Com a pandemia da covid-19 ainda fora de controle, o melhor resultado econômico que se pode esperar é uma recessão mais profunda do que aquela que se seguiu à crise financeira de 2008. Mas, dada a instabilidade das respostas políticas até agora, as chances de um resultado muito pior estão aumentando a cada dia.
NOVA YORK – O choque da covid-19 na economia global foi mais rápido e mais severo que a Crise Financeira Global de 2008 (GFC, na sigla em inglês) e até mesmo que a Grande Depressão. Nos dois episódios anteriores, as bolsas de valores caíram em 50% ou mais, os mercados de crédito congelaram, grandes falências se sucederam, as taxas de desemprego saltaram acima de 10% e o PIB se contraiu a uma taxa anualizada de 10% ou mais. Mas tudo isso levou cerca de três anos para acontecer. Na crise atual, resultados macroeconômicos e financeiros igualmente terríveis se materializaram em três semanas.

No início deste mês, foram necessários apenas 15 dias para o mercado de ações dos Estados Unidos despencar para um território de baixa (um declínio de 20% em relação ao pico, o mais rápido já registrado).

Agora, os mercados já caíram 35%, os mercados de crédito se paralisaram e os spreads de crédito (como os de títulos indesejados) subiram para os níveis de 2008. Até mesmo as empresas financeiras mainstream, como Goldman Sachs, JP Morgan e Morgan Stanley, esperam que o PIB americano caia a uma taxa anualizada de 6% no primeiro trimestre e de 24% a 30% no segundo. O secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Steve Mnuchin, alertou que a taxa de desemprego pode subir para mais de 20% (o dobro do maior nível registrado durante a GFC).

Em outras palavras, todos os componentes da demanda agregada – consumo, investimento em bens de capital, exportações – estão em uma queda livre sem precedentes. Ainda que a maioria dos comentaristas prefira antecipar uma desaceleração em forma de V – com a produção caindo acentuadamente por um trimestre e se recuperando rapidamente no próximo –, agora já deveria estar bem claro que a crise da covid-19 é uma coisa completamente diferente. A contração que está em andamento não parece ter forma de V, nem de U, nem mesmo de L (desaceleração acentuada seguida de estagnação). Pelo contrário, parece um I: uma linha vertical que representa os mercados financeiros e a economia real em queda. 

Nem mesmo durante a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial a maior parte da atividade econômica foi literalmente fechada, como está ocorrendo na China, nos Estados Unidos e na Europa nos dias de hoje. O melhor cenário seria uma desaceleração mais severa que a GFC (em termos de redução da produção global), mas de vida mais curta, possibilitando um retorno ao crescimento positivo até o quarto trimestre deste ano. Nesse caso, os mercados começariam a se recuperar assim que aparecesse a luz no fim do túnel. 

Mas o melhor cenário pressupõe várias condições. Primeiro, os Estados Unidos, a Europa e outras economias fortemente afetadas precisariam implementar vastas medidas de teste, rastreamento e tratamento da covid-19, quarentenas forçadas e um bloqueio generalizado do tipo que a China implementou. E, como pode levar 18 meses para que uma vacina seja desenvolvida e produzida para toda a população, antivirais e outros medicamentos precisariam ser introduzidos em larga escala. 

Segundo, os formuladores de políticas monetárias – que já fizeram em menos de um mês o que demoraram três anos para fazer depois da CGF – precisariam continuar tirando da cartola medidas não convencionais para combater a crise. Isso significa taxas de juros zero ou negativas; intensificação do forward guidance [ou seja, mais clareza por parte dos bancos centrais na sinalização da trajetória futura da taxa de juros]; flexibilização quantitativa; e facilitação do crédito (compra de ativos privados) para ajudar bancos, instituições financeiras não bancárias, fundos do mercado monetário e até grandes corporações (commercial papers [notas promissórias comerciais] e títulos privados). O Federal Reserve dos Estados Unidos expandiu suas linhas de swaps para atender à enorme escassez de liquidez em dólar nos mercados globais, mas agora precisamos de mais instrumentos para incentivar os bancos a emprestar a pequenas e médias empresas sem liquidez, mas ainda solventes. 

Terceiro, os governos precisariam implantar estímulos fiscais maciços, inclusive por meio de “dinheiro jogado de helicóptero”, ou seja, transferências diretas em dinheiro para as famílias. Dado o tamanho do choque econômico, os déficits fiscais nas economias avançadas precisariam aumentar de 2 a 3% do PIB para cerca de 10% ou ainda mais. Somente os governos centrais têm balanços grandes e fortes o suficiente para impedir o colapso do setor privado. 

Mas essas intervenções financiadas pelo déficit devem ser totalmente monetizadas. Se elas forem financiadas por meio da dívida pública padrão, as taxas de juros subiriam acentuadamente e a recuperação morreria sufocada antes de sair do berço. Dadas as circunstâncias, as intervenções há muito propostas pelos esquerdistas da escola da Teoria Monetária Moderna, entre elas o “dinheiro de helicóptero”, tornaram-se mainstream. 

Infelizmente, a reação da saúde pública nas economias avançadas ficou muito aquém do necessário para conter a pandemia, e o pacote de políticas fiscais hoje em debate não está amplo nem rápido o suficiente para criar condições para uma recuperação oportuna. Assim, o risco de uma nova Grande Depressão pior que a original – uma Depressão Ainda Maior – aumenta a cada dia. 

A menos que a pandemia seja interrompida, as economias e os mercados do mundo todo continuarão em queda livre. Mas, mesmo que a pandemia seja mais ou menos contida, o crescimento geral não retornará até o final de 2020. Afinal, até lá, é provável que comece outra temporada de vírus, com novas mutações; intervenções terapêuticas com as quais muitos estão contando podem se mostrar menos eficazes do que se espera. Assim, as economias se contrairão mais uma vez, e os mercados cairão mais uma vez. 

Além disso, a resposta fiscal pode chegar a um limite se a monetização de déficits maciços começar a gerar inflação alta, especialmente se uma série de choques negativos na oferta, relacionados ao vírus, reduzir o crescimento potencial. E muitos países simplesmente não conseguem fazer esses empréstimos em sua própria moeda. Quem socorrerá governos, corporações, bancos e famílias em mercados emergentes? 

De qualquer forma, mesmo que a pandemia e as consequências econômicas forem controladas, a economia global ainda poderia se ver sujeita a vários riscos da chamada cauda de “cisne branco”. Com a eleição presidencial americana se aproximando, a crise da covid-19 dará lugar a novos conflitos entre o Ocidente e pelo menos quatro potências revisionistas: China, Rússia, Irã e Coréia do Norte, que já estão se valendo da ciberguerra assimétrica para minar os Estados Unidos por dentro. Os inevitáveis ataques cibernéticos ao processo eleitoral americano podem gerar contestação do resultado final, com acusações de “manipulação” e possibilidade de violência e desordem civil. 

De maneira similar, como já argumentei em outra ocasião, os mercados estão subestimando enormemente o risco de uma guerra entre os Estados Unidos e o Irã ainda este ano; a deterioração das relações sino-americanas vem se acelerando, pois um lado culpa o outro pela escala da pandemia da covid-19. É provável que a atual crise precipite a balcanização e o esfacelamento da economia global nos próximos meses e anos. 

Essa trindade de riscos – pandemias não contidas, arsenais de política econômica insuficientes e cisnes brancos geopolíticos – será o bastante para jogar a economia global em uma recessão persistente e produzir um colapso descontrolado do mercado financeiro. Depois do crash de 2008, uma resposta forte (ainda que demorada) afastou a economia global do abismo. Pode ser que não tenhamos tanta sorte desta vez. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

* Nouriel Roubini, professor de economia na Stern School of Business da Universidade de Nova York e presidente da Roubini Macro Associates, foi economista para assuntos internacionais do Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca durante o governo Clinton. Ele trabalhou para o Fundo Monetário Internacional, o Federal Reserve dos Estados Unidos e o Banco Mundial. Seu site é NourielRoubini.com.

‘O Brasil precisa construir sua própria escada rumo ao desenvolvimento’, diz Ha-Joon Chang

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Jornal da Unicamp, 15/05/2018

Docente da Universidade de Cambridge, o economista sul-coreano fez duas conferências no Instituto de Economia e falou ao Jornal da Unicamp
O sul-coreano Ha-Joon Chang, professor da Universidade de Cambridge, é considerado um dos mais proeminentes economistas heterodoxos da atualidade. Conhecido por ser um crítico do liberalismo econômico, Chang conta com muitos admiradores no mundo inteiro, inclusive no Brasil. Prova disso foi o interesse demonstrado por estudantes e docentes da Unicamp nas duas conferências apresentadas por ele no Instituto de Economia (IE), nos últimos dias 8 e 9 de maio. Na primeira delas, o auditório superlotou e parte do público teve que se acomodar no chão. A presença de Chang na Universidade faz parte de uma série de eventos em comemoração aos 50 anos de criação do IE. 
Entre uma atividade e outra, o docente de Cambridge fez uma pausa para falar ao Jornal da Unicamp. Na entrevista que segue, ele aborda diversas questões, várias delas relacionadas ao desenvolvimento econômico. Segundo ele, ao contrário do que muitos pensam, as economias dos países ricos avançaram por causa da adoção de políticas protecionistas, e não porque se basearam no livre comércio. “Somente depois de que suas economias se fortaleceram foi que essas nações passaram a defender o livre comércio”, afirma.

Jornal da Unicamp – Esta é a sua segunda visita à Unicamp. Como avalia o contato com a comunidade universitária nesta oportunidade?
Ha-Joon Chang – Agradeço ao convite do Instituto de Economia da Unicamp para falar aos seus estudantes e professores. Não poderia ter ficado mais satisfeito com a presença e a participação do público nas minhas duas conferências. Os participantes fizeram perguntas de muita qualidade. Também fiquei feliz porque alguns dos meus livros são adotados para reflexão em disciplinas do Instituto de Economia. É um prazer estar aqui para participar deste momento no qual o Instituto comemora 50 anos de atividades.

JU – Em seu trabalho, o senhor afirma que os países ricos, embora defendam o livre comércio, desenvolveram suas economias a partir de políticas protecionistas. Como isso ocorreu?
Ha-Joon Chang – Os países ricos tiveram maior autonomia para implementar essas políticas protecionistas ao longo do Século XIX. Fizeram isso por meio de tratados de comércio desiguais em relação a economias mais frágeis. Já no Século XX, após a Segunda Guerra Mundial, abriu-se um novo espaço, diante do contexto geopolítico da Guerra Fria. Foi quando os países em desenvolvimento também adotaram políticas protecionistas para fomentar indústrias nascentes. Esse cenário vai se reverter a partir dos anos 1980 com a crise da dívida externa enfrentada por muitas economias em desenvolvimento. Em 1995, com a constituição da OMC [Organização Mundial do Comércio], reforça-se a política do livre comércio. Como consequência, nos últimos 20/30 anos, temos observado a deterioração da indústria em muitas economias.

JU – Por falar em deterioração da indústria, o senhor também tem alertado para o risco da desindustrialização das economias emergentes. No caso do Brasil, quais os perigos de o país sustentar a sua economia na produção de commodities? 
Ha-Joon Chang – Esse fenômeno teve início nos anos 1980. É um fenômeno que um colega de Cambridge, Gabriel Palma, denomina de “desindustrialização prematura”. O termo classifica a queda da participação da indústria na economia antes mesmo de o processo de industrialização ter se consolidado totalmente. O Brasil teve uma das principais economias manufatureiras do mundo. Até o início dos anos 1980 a indústria respondia por quase 30% do PIB brasileiro. Depois disso, ocorreu um processo importante de deterioração. Atualmente, essa participação está em torno de 10%. A indústria tem uma importância grande no processo de desenvolvimento econômico. Uma vez desestruturado esse setor, fica muito difícil reconstruí-lo e torná-lo competitivo novamente. 

JU – Num passado recente, sempre que se discutia a necessidade de investimentos em pesquisa e desenvolvimento no Brasil, a Coreia do Sul era apontada como exemplo a ser seguido. Esse modelo continua sendo válido?
Ha-Joon Chang – A Coreia do Sul continua sendo um importante investidor em P&D. Está entre os cinco principais investidores do mundo na área, junto com países como Suécia, Finlândia e Israel, quando consideramos os gastos com P&D em relação ao PIB. Uma questão importante é que, uma vez perdida a capacidade industrial, o país também reduz a demanda por investimentos em pesquisa e desenvolvimento. A indústria está muito atrelada ao desenvolvimento de novas tecnologias. Tanto é assim que nos Estados Unidos e Inglaterra, por exemplo, a indústria responde por 60% a 70% dos investimentos em P&D. 

JU – O senhor se autointitula um economista pragmático. Como é defender uma economia pragmática num mundo totalmente polarizado?
Ha-Joon Chang – Ser pragmático nos tempos de hoje, num mundo polarizado como você diz, é muito difícil porque as críticas surgem de todos os lados. É preciso entender que não existe um modelo único de desenvolvimento. Precisamos ser mais pragmáticos. A Suécia, que é um país igualitário, tem uma família que detém metade das corporações do país. Em Singapura, onde a economia é altamente desenvolvida, o Estado é que detém mais de 90% das terras. São modelos diferentes que responderam aos objetivos de cada sociedade.
JU – Falando em sociedade, o senhor considera que o bem-estar social deva ser premissa ou consequência do desenvolvimento?
Ha-Joon Chang – Penso que o desenvolvimento tem que contemplar as duas dimensões. É muito importante que as bases sociais sejam colocadas. Questões como saúde, educação e estabilidade social dos trabalhadores são fundamentais para que a sociedade possa se desenvolver. Ao mesmo tempo em que a economia avança, os indivíduos percebem que têm novos direitos e novas demandas. Nesse ponto, concordo com a vertente marxista que considera que as necessidades da população mudam conforme a sociedade se desenvolve. O desenvolvimento econômico pode trazer consequências positivas em termos sociais.

JU – No Brasil, seguidos governos demonstraram obsessão em relação ao controle da inflação. Foi criada até a figura de um dragão que precisava ser derrotado. O senhor, porém, critica essa sanha anti-inflacionária, dizendo que tão importante quanto controlar a inflação é promover a estabilidade da produção e do desenvolvimento. Pode explicar melhor essa sua posição?
Ha-Joon Chang – Obviamente, uma taxa de inflação muito elevada, na faixa dos 40% ou 50% ao ano, desencoraja os investimentos e compromete o horizonte de decisão. Muitos economistas, porém, dizem que uma inflação abaixo dos 20% não traria grande impacto para a economia, principalmente se o índice girar em torno dos 10%. Essa obsessão pelo combate à inflação prejudica outros setores. Por trás do interesse de manter a inflação baixa está o setor financeiro, que tem ganhos por meio de contratos e aplicações em valores nominais. Ou seja, inflação baixa é sinônimo de vantagem para o setor financeiro. As políticas que garantem a inflação baixa afetam negativamente a indústria. No Brasil, durante os governos do Partido dos Trabalhadores, governos de perfil progressista, houve continuidade dessa política que favoreceu mais o setor financeiro que o industrial. 

JU – Retomando a questão do protecionismo, em um dos seus livros, intitulado “Chutando a Escada – A estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica”, o senhor diz que os países ricos utilizaram políticas protecionistas para desenvolver suas economias, mas depois chutaram a escada para que os países emergentes não galgassem o mesmo patamar. No caso do Brasil, o senhor considera possível que essa escada seja reposicionada?
Ha-Joon Chang – Todos os países, uma vez que conseguem alcançar um nível de desenvolvimento maior, acabam chutando a escada. Estados Unidos e Inglaterra fizeram isso. Hoje, a China também vem adotando essa prática. O que talvez caiba ao Brasil e a outras economias em desenvolvimento é pensar em como construir suas próprias escadas. Buscar outros campos, sobretudo no contexto do surgimento de novas tecnologias. As economias avançadas levam vantagem sobre as economias mais atrasadas, principalmente em relação às indústrias tradicionais existentes. Entretanto, as economias em desenvolvimento, inclusive a brasileira, podem buscar oportunidades em indústrias novas, principalmente nas áreas de bioenergia, novos materiais etc. 

JU – Para finalizar, uma questão que não está diretamente relacionada com a economia, mas que tem implicações sobre ela. Como cidadão sul-coreano, como o senhor vê o movimento de reaproximação entre Coreia do Sul e Coreia do Norte?
Ha-Joon Chang – Vejo esse movimento como positivo. Fico satisfeito em poder presenciar isso. A divisão, que persiste há 70 anos, ainda é resultado da Guerra Fria. Apesar dessa reaproximação ser positiva, há um caminho repleto de desafios pela frente. Mesmo que um tratado de paz seja assinado, vários fatores ainda precisarão ser trabalhados. Uma possível reunificação terá que enfrentar questões complexas como as distintas condições econômicas, os diferentes padrões de vida e as especificidades de cada regime político. Esse processo certamente vai requerer muito tempo e diálogo.
 

‘O Brasil está à deriva, não vejo nenhuma estratégia’, diz economista

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Para Eduardo Giannetti, presidente “encarna o corporativismo”, e governo precisa deixar claro conteúdo e cronograma de reformas

O Estado de São Paulo – 06/03/2020

Ainda é cedo para dizer que o resultado do Produto Interno Bruto (PIB) de 2019 – que surpreendeu não tanto pelo crescimento fraco, de 1,1%, mas por sua composição, com baixo nível de investimento – vai se repetir em 2020, segundo o economista Eduardo Giannetti. A ausência de um plano econômico claro, com propostas e cronogramas definidos publicamente, no entanto, pode fazer com que isso volte acontecer, o que, por sua vez, frustraria a população.

“Aí voltamos a um ponto: a sequência de ondas de insatisfação que vem se manifestando na sociedade. O desapontamento com o (presidente Jair) Bolsonaro prepara o terreno para uma nova onda”, diz o economista.

Para ele, o País está “à deriva” – “não vejo nenhuma estratégia, nenhum plano definido” -, e uma possível perda de poder da ala liberal dentro do governo, além do coronavírus, acentuam a imprevisibilidade. A seguir, trechos da entrevista.

No fim do ano passado, o sr. falou que acreditava que 2020 não repetiria a decepção com o PIB registrada em 2018 e 2019. Ainda acha isso?

Em função de fatores externos e domésticos, estou menos convencido agora de que a recuperação cíclica é irreversível. Mas acho que é cedo para dizer que vamos repetir o que aconteceu nos últimos três anos.

Mas as revisões para baixo já começaram.

Já, mas acho que é cedo para determinar, diante de tantas incertezas, inclusive externas, qual vai ser o desempenho em 2020. O mundo está mais imprevisível. Nos últimos 12 meses, tivemos ameaça de guerra comercial, de guerra entre EUA e Irã e agora o coronavírus. Cada um desses eventos gera incerteza. Seria improvável um mundo em que eventos de baixa probabilidade nunca acontecessem. Eles acontecem. O que mudou é que antes eles eram locais e agora são globais. Isso torna o mundo mais imprevisível.

Três fatores aumentam a imprevisibilidade mundial. Primeiro, a maior interdependência. Quando teve a Sars, em 2003, a China era muito menor do que é hoje. Uma queda da produção da China hoje faz cair o preço das commodities e afeta os emergentes. A interdependência de comércio, finanças, pessoas e informação aumenta a imprevisibilidade. A segunda coisa é a tecnologia. Ninguém sabe qual será a estrutura econômica futura e se ela sancionará os atuais modelos de negócio que são vitoriosos. A indústria digital é um serial killer, mata um setor econômico de cada vez. Isso gera enorme insegurança nos tomadores de decisão e muita imprevisibilidade microeconômica. A terceira coisa é a polarização política. Estamos nas mãos de governos que agem de acordo com uma lógica que não era a estabelecida no sistema democrático de poucos anos atrás. Isso é uma novidade que aumenta a imprevisibilidade no processo decisório. Então, é bom a gente se preparar porque o mundo ficou mais imprevisível. Talvez esse seja o novo normal. O aumento da imprevisibilidade torna mais difícil o processo decisório e afeta investimentos.

A tendência, então, é uma queda geral de investimentos?

As pessoas vão ter de aceitar correr mais riscos. Não vão poder se ausentar completamente. Ao mesmo tempo, as taxas de juros estão baixas, o que leva os detentores de ativos a buscar alternativas para investir. São forças em direções contrárias.

E como o sr. vê a questão de previsibilidade doméstica?

Aí o governo Bolsonaro deixa muito a desejar, porque não está nem um pouco empenhado em dar sequência ao movimento reformista.

O presidente ou o governo como um todo?

É o governo como um todo. O Brasil está à deriva em termos de governo. Não vejo nenhuma estratégia, nenhum plano definido.

Não há um plano liberal sendo implementado?

Não vejo estratégia, comprometimento ou clareza. É espantoso que a equipe econômica não tenha, até agora, dito o que deseja de reforma tributária. Eles sabem da importância desse assunto para a vida empresarial e não se manifestam. A única coisa que aparece desse governo é corporativismo. É, por exemplo, liberar terra indígena para mineração. O presidente confunde defender os grupos de interesse que interessam a ele politicamente com o governo do Brasil. Ele defende os militares na reforma da Previdência, se omite na greve das polícias militares, defende os canais de televisão dos grupos de mídia que o apoiam liberando sorteios, quer abrir terras indígenas para garimpo para defender grupos até paralegais que atuam em mineração ilegal na região amazônica.

O corporativismo era tido como uma das grandes características do governo PT…

Ninguém encarna mais o corporativismo pequeno do que o nosso presidente. Ele não vê problema em usar o poder para favorecer aqueles que os apoiam.

O sr. já disse várias vezes que vê risco à democracia no Brasil sob Bolsonaro. Como o sr. avalia o fato de o presidente ter compartilhado um vídeo convocando para protesto contra o Congresso?

Concretamente, a linha não foi atravessada. Mas fica cada vez mais claro que o sentimento é de atropelar instituições. Temo que, num momento de crise, esse sentimento se transforme em ação. O risco é alto e tenho certeza de que a insegurança política gerada pelos pronunciamentos do Bolsonaro em nada contribui para a economia brasileira. Houve um rumor, pouco tempo atrás, de que o Paulo Guedes poderia sair do governo. E se o Bolsonaro resolve dar um cavalo de pau na economia e chamar um militar? Aliás, isso é curioso. Há três grupos no governo: o militar geopolítico, o liberal econômico e o familiar astrológico. Essa correlação de forças tem mudado e o familiar astrológico se enfraqueceu, enquanto o militar avançou e aparentemente está de olho na economia.

O sr. dizia que o familiar o preocupava. Como vê essa mudança?

A força que me parecia menos ameaçadora era a econômica. O enfraquecimento dela é mais um elemento de incerteza.

Voltando ao PIB, o resultado de 2019 e a possível debilidade que deve haver neste ano ameaçam a agenda reformista?

Pouca reforma foi feita até agora, mas uma conquista é que o Brasil saiu da UTI fiscal. Isso começou no governo Temer e teve continuidade neste início do governo Bolsonaro.

Mas isso é algo que a população não sente. As pessoas percebem o desemprego.

Está faltando essa agenda de reforma administrativa, tributária, de marco regulatório adequado para investimento em infraestrutura e de um governo que tranquilize, em vez de hostilizar. Um governo que mostre seriedade e compromisso em criar um ambiente estável para que as pessoas possam se sentir confiantes em relação ao futuro. O governo Bolsonaro não contribui em nada para isso. Essa maluquice que fez, se recusando a comentar os números do PIB, é um desastre para a credibilidade. Mas as reformas não foram feitas ainda. Se forem feitas e não derem resultado, aí tem duas possibilidades: elas podem ser necessárias, mas não suficientes, ou se mostrarem contraproducentes. Mas, se acontecer uma boa reforma tributária, isso só pode contribuir para o melhor desempenho da economia brasileira. Não tem como piorar.

O que mais precisa ser feito?

Reforma administrativa. A questão do pacto federativo é importante. Temos de descentralizar as decisões em relação ao uso de recursos públicos no Brasil. Essa é uma boa agenda que a equipe econômica do governo Bolsonaro tem, mas não está acontecendo. O governo tem de apresentar propostas, apresentar um cronograma de encaminhamento da reforma administrativa, definir uma agenda exequível de iniciativas. Isso não está acontecendo. E a impressão que dá é que eles (ala liberal do governo) estão se enfraquecendo dentro daquele arranjo tripartite de forças do governo.

Sem propostas e cronograma, além dessa ala perdendo força, o que podemos esperar para os próximos três anos?

Vamos continuar nessa frustração e aí voltamos a um ponto: a sequência de ondas de insatisfação que vêm se manifestando na sociedade. Tivemos junho de 2013, a quase vitória da Marina (Silva) na eleição de 2014 foi um sentimento anti-establishment violento, o impeachment da Dilma também foi uma onda anti-establishment, a greve dos caminhoneiros e a própria eleição do Bolsonaro. Bolsonaro capturou na eleição esse sentimento anti-político. O desapontamento com o Bolsonaro prepara o terreno para uma nova onda. As pessoas vão começar a ficar muito inquietas, insatisfeitas e aí um acontecimentozinho pode deflagrar, com as novas tecnologias, uma nova onda (de protestos).

Como o sr. vê a ameaça do coronavírus?

Tem dois cenários. Um de que é um fenômeno de grande impacto, mas de curto prazo, que, no segundo semestre, haverá uma volta à normalidade e até um movimento de recuperação do que se perdeu no primeiro semestre. A mais pessimista é de que é um choque de oferta, como foi o do petróleo nas décadas de 70 e 80, que tem implicações duradouras e que vai gerar problemas de demanda também. O choque de oferta interrompe cadeias produtivas, leva à queda de suprimentos, a fechamento de fábricas, ao aumento do desemprego, á perda de renda. E aí você tem uma recessão. O fato de o BC americano ter se precipitado e usado boa parte da sua munição tão rápido. mostra que ele está assustado e que pode ter usado rápido e cedo demais a pouca munição que tem para baixar juros.

Em qual desses cenários o sr. apostaria?

Esses cenários dependem de coisas difíceis de se modelar, quanto mais de ter um resultado para o qual se possa atribuir probabilidade. Qualquer resposta muito confiante em relação a isso mostra ignorância.

Joseph Stiglitz: ”Em todas as dimensões, o neoliberalismo foi um fracasso incontestável”

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O Prêmio Nobel de Economia dispara contra Donald Trump e afirma que o mundo está passando por uma crise tripla hoje

O Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz acredita que estamos passando por uma crise tripla: de capitalismo, do clima e de valores. E ele atribui isso à crença em mercados irrestritos, ao neoliberalismo seguido desde o governo de Ronald Reagan nos Estados Unidos.

Pouco antes de viajar de Nova York ao Vaticano, para participar de um simpósio sobre economia justa, o ex-economista-chefe do Banco Mundial e consultor econômico de Bill Clinton conversou dias atrás com o La Vanguardia sobre seu novo livro, “Capitalismo progressista para uma era de descontentamento”, no qual ele dispara contra Donald Trump e diz que os EUA está em guerra consigo mesmo, que a classe média mais poderosa do planeta não para de perder poder de compra. E levanta a necessidade de retornar a um capitalismo de prosperidade compartilhada, no qual a política controla a economia e assume que a educação e, a criatividade e a produtividade dos cidadãos são a base da riqueza de um país.

La Vanguardia – Taxas de juros negativas, manifestações, populismo, crise climática… O que acontece?

Joseph Stiglitz – É o efeito cumulativo de vários fatores, e um é claramente o aumento da desigualdade. A crise financeira criou muita insegurança e a maneira como ela foi resolvida sugere a muitos que o sistema está quebrado. Na Europa, a crise do euro levou ao desencanto com o funcionamento da União Europeia. Há uma sensação de falta de poder diante de problemas muito sérios. E isso é combinado com problemas de desindustrialização em muitos países, de transformação estrutural, com perda de empregos e sistemas inadequados para as pessoas passarem dos empregos antigos para a nova economia.

Às quatro décadas de revolução neoliberal, desde Reagan, cumpriram o que prometeram?

Não, e a evidência é muito sólida de que o crescimento tem sido muito mais lento após o início do reaganismo e thatcherismo que antes. E praticamente todo esse crescimento foi para as pessoas que são mais ricas. Além disso, a crise de 2008 mostrou a instabilidade do sistema. Em todas as dimensões, o neoliberalismo foi um fracasso.

Por que falhou?

O principal fator é que os mercados desregulados muitas vezes levam à exploração e à ineficiência. Os benefícios são alcançados, mas não produzindo produtos melhores a preços melhores, mas tirando vantagem de outros, como temos visto com os bancos. E há um fenômeno relacionado, que é subestimar a necessidade de ação coletiva. Muitos dos sucessos da pesquisa básica em ciência e tecnologia são financiados pelo governo e, se você cortar seus fundos, diminuirá o crescimento. Vemos isso de maneira extrema nos EUA. agora com Trump propondo cortar um terço no orçamento da ciência. O Congresso não permitiu, mas é visível sua falta de compreensão do que leva ao progresso.

Você disse que Trump é como reaganismo, mas com esteroides.

(risos) É. Reagan em seu orçamento de 1981 não se preocupou com o déficit fiscal, que foi o início de grandes déficits. Em 1986, ele tentou corrigi-lo, porque estava claro que a redução de impostos não aumentara a renda como ele acreditava. Em vez disso, a irresponsabilidade de Trump em seu corte de impostos em 2017 foi que ele já sabia o que ia acontecer. E se Reagan reduziu os impostos corporativos, Trump fez muito mais. No que Reagan tentou ser razoável, embora errado em seguir a economia do lado da oferta do neoliberalismo, Trump não estava ciente de nenhum limite. Também existem diferenças importantes. O reaganismo, o republicano padrão, acredita no livre mercado. Trump, em protecionismo. E Reagan não tentou a desinformação que parece o centro da política de Trump. É por isso que estou falando sobre esteroides: é pegar todos os princípios do padrão neoliberal, exacerbá-los e adicionar ingredientes muito piores que os republicanos tradicionais.

Reagan foi melhor?

Com ele, pessoas como Eisenhower parecem santas. Até Reagan parece muito melhor, não tínhamos percebido o quanto as coisas poderiam ficar ruins. Até Nixon criou leis ambientais, como água limpa. Trump nega as mudanças climáticas e tenta piorar o meio ambiente a qualquer custo. Mesmo quando empresas como Ford dizem que poderiam e gostariam de assumir padrões ambientais mais altos, ele diz que não deveriam. É fenomenal. Não sei se houve um caso assim.

Mais do que um conservador, ele diz, Trump é um revolucionário.

Está derrubando muitas normas básicas da sociedade. O funcionamento da economia e da política baseia-se em regras e convenções como a de que o presidente é civilizado. Baseia-se no funcionamento das leis, separação de poderes, burocracia independente. Ele está minando as instituições que ajudamos a criar durante mais de 200 anos para dar estabilidade à sociedade e dar voz às pessoas e contribuir para a eficiência econômica.

Qual é o seu objetivo?

Em parte, ele não tem estrutura intelectual e é incapaz de trabalhar com conselheiros: os razoáveis são demitidos ou vão embora. E todo presidente precisa de pessoas com experiência no governo e na execução de projetos produtivos e criativos. Mas ele vem do setor imobiliário, um setor que não é exatamente criativo ou líder, e era conhecido por seu mau comportamento e falências, por tirar proveito de fornecedores e trabalhadores, por ser basicamente desonesto. Ele não é o empresário com quem você negociaria, e é por isso que os bancos dos EUA o rejeitaram e daí seu relacionamento com o Deutsche Bank e com os russos. Ele tem muito pouco entendimento e um narcisismo que dificulta sua orientação. Ninguém esperava que ele fosse melhor do que ele é, mas ele seria controlado pelo partido republicano. Esse foi o grande engodo. Isso o transformou em um partido pelo nativismo populista extremo que divide os americanos. Trump não apenas não entende o que é necessário para fazer a democracia funcionar, nem que a maioria dos líderes tenta criar coesão social. Em vez disso, sua vontade é governar dividindo o país.

O impeachment foi justo?

Sem dúvida. O impeachment é que o Congresso o acuse de crimes e ofensas graves. Outra questão é sua destituição. Ele deveria ter sido destituído, o que ele fez é inadmissível, mas a mesma liderança republicana que se rendeu a ele disse que não haveria um julgamento justo e decidiu absolvê-lo sem sequer ouvir evidências não disponíveis antes.

Os democratas podem derrotá-lo?

Ainda é possível. Há ruido nas divisões do Partido Democrata, mas em seus objetivos elas são muito pequenas, existe um grande consenso no controle de armas, nos direitos reprodutivos das mulheres, no salário mínimo, na saúde para todos e na educação. Existem diferenças na melhor maneira de alcançá-las. E, acima de tudo, Trump não cumpriu, é outra mentira. A economia criou menos empregos mensais do que no segundo mandato de Obama. Ele não superou seu rival.

Vivemos um crescimento surpreendentemente lento em uma economia tão inovadora. Por quê?

Tem a ver com desigualdade. Investimos bem abaixo do necessário em pesquisa, educação e infraestrutura, porque aqueles que estão da faixa 1% mais rica não querem um governo que impõe impostos mais altos. E também, quando você redistribui o dinheiro da base para o topo e dá mais dinheiro aos ricos, eles gastam menos de sua renda, o que diminui o crescimento.

A classe média se apaixona pelo neoliberalismo ou pela tecnologia?

O problema básico é o neoliberalismo, o mercado irrestrito. A falta de uma política adequada contribuiu para moldar a tecnologia. Qualquer um que olhe o desejável em termos de nossos investimentos em P&D (pesquisa e desenvolvimento) diria que precisamos fazer coisas que ajudem contra as mudanças climáticas, não precisamos de inovação que tente criar mais desemprego, como agora.

Peça um papel maior do governo. Qual?

Precisamos de melhores regulamentações para proteger o meio ambiente e contra a exploração, contra o poder de mercado em uma série de áreas onde [a competição] não funciona. Depois, mais investimento público em educação, infraestrutura e tecnologia. Precisamos mudar as regras da economia, que agora minam os direitos dos trabalhadores, aumentam o poder das corporações, permitem a poluição excessiva e os gerentes extraem muito dinheiro das empresas. Precisamos de mais ação coletiva.

A globalização como foi feita foi um erro?

Nossos acordos comerciais são feitos principalmente de maneira tendenciosa em favor das corporações e muitos precisam mudar. Por outro lado, há áreas em que são necessários mais acordos, como a tributação das multinacionais. Ao mesmo tempo, devemos reconhecer que a globalização ajudou muitos países em desenvolvimento, como China e Índia, embora tenha prejudicado alguns dos mais pobres da África.

Que responsabilidade os economistas têm no que aconteceu?

Muitos jovens economistas estão convencidos de que o caminho da profissão estava errado, havia muita fé nos mercados, mais baseada na ideologia do que na ciência econômica. É por isso que eles exploram novas áreas, como economia comportamental. Para pessoas que dedicaram 40 anos de vida ao neoliberalismo, é mais difícil mudar.

O mercado não será mais rei?

Há uma desilusão real com os mercados. Como as empresas se comportam: a indústria farmacêutica e a crise dos opioides, a indústria de alimentos e a crise do diabetes infantil, os bancos e a crise financeira. E que o capitalismo não funcionou para uma grande faixa da sociedade, que a expectativa de vida nos EUA caiu, a decepção aumenta. A ideia de que o mercado é rei não é mais verdadeira, principalmente entre os jovens. Eles procuram outra forma de economia. Por isso escrevi este livro.

Nada se compara ao parasita brasileiro, por Ladislau Dowbor.

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A economia está parada. Há 50 milhões de desempregados e precários. A fome voltou e os sem-teto estiram-se nas calçadas. Duzentos homens engordam suas imensas fortunas, sem nada produzir. Coincidência? Como nos livraremos deles?

Primeiro, a coisa óbvia: nosso problema não é falta de dinheiro. Com um PIB de 6,8 trilhões de reais e uma população de 210 milhões, o que produzimos hoje representa 11 mil reais por mês por família de quatro pessoas. Com o que produzimos hoje, mesmo sem procurar uma igualdade opressiva, apenas uma desigualdade menos obscena, dá para todos viverem de maneira digna e confortável. Nosso problema não é pobreza, e sim desgoverno. Ou, para dizê-lo de maneira hoje atualizada, é falta de governança, de fazer o conjunto funcionar.

Na minha modesta aritmética econômica – sou avesso à econometria – faço as contas, follow the money por assim dizer, apresentando o fluxo financeiro integrado. Calculando o quanto se tira da capacidade de compra das famílias por meio do absurdo nível de juros sobre o cheque especial, do rotativo do cartão, dos crediários e do empréstimo bancário, somando os juros sobre os créditos concedidos às empresas, chegamos a 1 trilhão de reais. Dado que coincide com os cálculos das financeiras, apresentados na manchete dominical do Estadão de 18 de dezembro de 2016: “Crise de crédito tira R$1 tri da economia e piora recessão”. São 15% do PIB esterilizados, transformados em lucros financeiros. Acrescentem a isso os R$ 300 a R$ 400 bilhões transferidos para os que aplicam as suas fortunas em títulos da dívida pública, e chegamos a 20% do PIB, alimentando fortunas. A taxa Selic baixou, realmente, mas é cobrada sobre um estoque da dívida muito maior. Em 2018 o Estado foi desfalcado em R$ 320 bilhões. São lucros e dividendos que, uma vez distribuídos, desde 1995 sequer pagam impostos. É um dreno poderoso.

Thomas Piketty abriu a caixa do capitalismo moderno para constatar que no século XXI rende mais fazer aplicações financeiras do que investir na produção. E o dinheiro segue naturalmente para onde rende mais. O capitalismo do século passado, que tanto criticávamos por explorar os trabalhadores, pelo menos investia, produzia bens e serviços de razoável utilidade, gerava empregos e pagava impostos. O do século XXI não investe, não produz e sequer paga impostos. David Harvey diz corretamente que não se trata de “capital no século XXI” e sim de patrimônio, porque não retorna ao processo produtivo senão marginalmente.

Sem entrar em excessivos detalhes, lembremos que a tributação no Brasil não só não corrige os desequilíbrios, como os agrava, pela estrutura regressiva na cobrança dos impostos e favorecimento dos mais ricos na alocação. E também que, segundo o Tax Justice Network, o Brasil tem cerca de 520 bilhões de dólares em paraísos fiscais, mais de 2 trilhões de reais que nem produzem nem pagam impostos. Acrescentem o vazamento que representam as seguradoras, as pensões complementares e os planos de saúde – fundos que “aplicam” em vez de investir, e temos aqui mais uma obviedade: a nossa economia está vazando por todos os lados. Apresentamos esses dados, com detalhes e fontes, no nosso A Era do Capital Improdutivo, em texto impresso, online, em vídeos e em plataformas de discussão. É aritmética, só não vê quem não quer. Aliás, a capacidade de não ver pode ser impressionante.

Os americanos nos ajudam a ver. A revista Forbes, em edição especial de 2019, traz em detalhe quem são os 206 bilionários brasileiros. A importância deste levantamento é óbvia. Primeiro, porque é confiável, a revista é americana e entende de bilionário, a imprensa brasileira não faz levantamentos deste tipo. Segundo, é um artigo em que os donos das fortunas, felizes em aparecer na Forbes, em vez de se esconder e de esconder como chegam às fortunas, aparecem sorridentes e orgulhosos. Afinal, é uma a revista que já explicita para quem é escrita: acima das manchetes, recomenda-se aderir à “Forbeslife – carros, jatos e iates: chegou a hora de escolher o seu”. Sim, caro leitor, o artigo que aqui analiso não foi escrito para você, foi escrito para eles mesmos, os bilionários. A nós interessa muito, pois este grupinho de bilionários constitui o lastro do poder real, o deep power do país. E representa um poder impressionante de sucção dos recursos financeiros.

Tomemos o número 2 da lista, Joseph Safra. Hoje, Joseph “tem um império bancário que leva seu nome: é dono do Banco Safra (Brasil), do J. Safra Sarasin (Suíça) e do Safra National Bank (EUA). É dono, ao lado do bilionário José Cutrale, da gigante Chiquita Brands, maior produtora de bananas do mundo”. Ter um pé na Suíça é ótimo para um banco, todos eles hoje têm pés em paraísos fiscais. Outro pé nos Estados Unidos ajuda, faz parte da articulação com a nossa economia. E Chiquita é o nome simpático hoje adotado pela antiga United Fruit, que de tantos crimes, golpes e mortes – é a empresa de bananas que aparece em Cem Anos de Solidão – decidiu mudar de nome. Mas o essencial para nós é que o patrimônio do Joseph Safra é de R$ 95,04 bilhões, e que nos meses entre março de 2018 e março de 2019 aumentou em R$ 19,31 bilhões. Sem precisar produzir nada, apenas amealhando dividendos. É o que Marjorie Kelly (e tantos outros) hoje chamam de “capitalismo extrativo”. São 19 bilhões, dois terços do Bolsa Família, em 12 meses, para uma pessoa.

O artigo apresenta a imagem de conjunto: em 2012, tínhamos no Brasil 74 bilionários, que dispunham de uma fortuna total de 346 bilhões de reais. Em 2019, são 206 bilionários, com uma fortuna total de R$ 1.205,8 bilhões (17,7% do PIB brasileiro). Como se acelerou de maneira tão dramática o enriquecimento dos bilionários no Brasil? Implicaria, imaginamos, um crescimento dinâmico da economia? Sabemos, na realidade, que desde 2013, que é quando, com manifestações e boicote, começa o ataque generalizado ao modelo distributivo, o PIB do Brasil não só não cresceu como, depois de dois anos de recessão em 2015 e 2016, continua paralisado.

Estão, para dizê-lo claramente, se entupindo de dinheiro. Não ver a relação entre o enriquecimento dos mais ricos e a paralisia da economia sugere analfabetismo econômico. O dinheiro não pode simultaneamente alimentar ganhos especulativos e evasão fiscal e financiar investimentos produtivos. Entre março 2018 e março 2019, os bilionários brasileiros aumentaram a sua fortuna em R$ 230,2 bilhões, 8 vezes o Bolsa Família. A economia brasileira cresce menos de 1%, sequer acompanha a progressão demográfica, implicando uma queda do PIB per capita do país. Há seis anos disseram que estariam “consertando” a economia. Na realidade, estão drenando.

Analisando um por um os bilionários, é impressionante a dificuldade de se encontrar alguém que produza algo. Seguindo as classificações do próprio artigo, basicamente, trata se de donos de bancos, de holdings financeiras, de acionistas e controladores acionários, de fundos de investimento (no sentido virtual de “investimento”, naturalmente), de donos de cotas acionárias, de holdings familiares, de “investidores”, e aparece até um “proprietário de terras cultivadas” (fortuna 118). Naturalmente não se trata de Jorge Luiz Silva Logemann, dono desta fortuna de R$ 2,68 bilhões, efetivamente se aproximar das terras cultivadas…

Já vimos acima como em 12 meses Joseph Safra aumentou a sua fortuna em R$ 19 bilhões. Mas a instituição de Roberto Balls Sallouti, a BTG Pactual Holding, “só no segundo trimestre de 2019, anunciou um salto de 56% no lucro líquido, para R$ 971 milhões. Sallouti é membro do conselho de administração do Mercado Livre” (fortuna 116). Associar este pequeno clube de magnatas financeiros que drenam as capacidades produtivas do país ao conceito de “mercado livre” é de causar arrepios a quem já leu Adam Smith. Aliás, vários bilionários aumentaram as suas fortunas na esfera do BTG Pactual. É bom lembrar que o banco tem 38 filiais em paraísos fiscais, e tem como atividade principal gestão de fortunas, tecnicamente asset management.

A análise detalhada das 206 fichas que este dossiê da Forbes apresenta é muito produtiva, pois constatamos que não só se trata de gigantes de intermediação, na realidade atravessadores das atividades produtivas, como estão intensamente interligados. Vamos encontrar, no imenso dreno econômico que representa o Itaú, pelo menos 13 das grandes fortunas apresentadas no relatório. No conjunto, são poucas famílias, muito interligadas, e constituindo um poderoso cluster de poder financeiro e político. Drenam as capacidades econômicas da população, das empresas produtivas e do próprio Estado. A leitura deixa claro por que este país com tantos ricos está paralisado.

Frente ao dreno geral deste capital improdutivo, atribuir os nossos problemas aos velhinhos que envelhecem demais e criariam problemas no orçamento é francamente um insulto à inteligência elementar. Lembrando que temos apenas 33 milhões de pessoas formalmente empregadas no país, para uma força de trabalho de 105 milhões – ou seja, só 31% do total. E temos 37 milhões em atividades informais, o que somado aos 13 milhões de desempregados, significa que 50 milhões de trabalhadores estão fora do sistema. A solução não está no apertar o cinto, austeridade para os que já estão na austeridade, mas cobrar os impostos devidos dos que ganham sem produzir, pois talvez, ao ver as suas fortunas tributadas, se interessem por fazer algo de útil. No essencial, o que precisamos é produzir. O empresário efetivamente produtor não precisa de discurso ideológico ou de “confiança”: precisa de famílias com poder de compra, para ter para quem vender, e de juros baixos para poder investir. Neste Brasil de grandes parasitas, ele não tem nem uma coisa nem outra.

 

 

Agenda liberal deste governo é tropicalizada, não vale para empresário, diz Edmar Bacha

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Para economista, é preciso dar uma chacoalhada no setor privado para aumentar a produtividade, a partir da abertura comercial

Joana Cunha

Folha de SÃO PAULO – 25/02.2020

Com o diagnóstico de que “a máquina quebrou” no Brasil, o economista Edmar Bacha vê um caminho difícil pela frente. Segundo sua avaliação, é preciso chacoalhar o empresariado para elevar a produtividade, mas o presidente Jair Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes (Economia) parecem postergar a solução.

“Dependemos, basicamente, de dar uma chacoalhada no setor privado brasileiro. O passo fundamental é a abertura comercial, que foi para as calendas, tanto do ponto de vista da percepção de Guedes, que diz que só vai fazer isso depois que resolver a reforma tributária e reduzir o custo Brasil, quanto do ponto de vista de Bolsonaro, que está se aliando a Paulo Skaf [presidente da Fiesp].”

Para Bacha, um dos formuladores do Plano Real, a agenda liberal do governo é tropicalizada, ou seja, vale para trabalhadores e aposentados, mas poupa os empresários.

Na reforma tributária Bacha considera que Guedes “tem culpa no cartório” pelo avanço da defesa da CMPF por grupos específicos, bandeira levantada pelo setor de serviços contra a proposta da Câmara. “Sempre foi fixação dele.”

Como o sr. avalia a economia hoje?

Está se comportando de uma forma com poucas experiências históricas anteriores comparáveis. Quando houve recessão mais profunda, a recuperação em geral foi quase em forma de V. Hoje, estamos patinando em L e não conseguimos sair.

Acho que é cedo para ter diagnóstico preciso, mas eu imagino que tenha algo como: a máquina quebrou e tem que trocar. Nesse processo de substituir uma máquina estatizada por uma privatizada, não estamos conseguindo achar o caminho. E este governo não ajuda.

Como não ajuda?

Por um lado, tem toda essa atitude. O pessoal antigamente dizia que o governo era de coalizão no tempo do Fernando Henrique e o Lula transformou em governo de cooptação. Agora o Bolsonaro está fazendo governo de colisão. Está batendo de frente com todos, Câmara, Senado, governadores. Bolsonaro dá muita insegurança.

Essa insegurança é só por Bolsonaro? E o perfil combativo de Guedes?

Paulo Guedes fala demais. Ele sempre foi assim e nunca teve experiência no setor público. Acho que até agora não sentou na cadeira direito. E o fato de ter alguém como Bolsonaro como presidente dele não ajuda muito em termos de estilo. Além disso, tem uma questão da agenda, porque é uma agenda liberal tropicalizada.

Como o sr. avalia essa agenda liberal?

Acho que vale para os trabalhadores, para os aposentados, para os funcionários, mas não vale para os empresários. Para aumentar a produtividade, dependemos, basicamente, é de dar uma chacoalhada no setor privado.

E o passo fundamental é a abertura comercial, que foi para as calendas, tanto do ponto de vista da percepção do Guedes, que diz que só vai fazer isso depois que resolver a reforma tributária e reduzir o custo Brasil, quanto do ponto de vista do Bolsonaro, que está se aliando a Paulo Skaf.

Há uma agenda complexa de reformas de que o Brasil precisa e que depende fundamentalmente da boa vontade do Rodrigo Maia e do Senado.

Na declaração sobre dólar alto e domésticas na DisneyGuedes fala de substituir importação. Soou protecionista?

Tirando a grosseria, substituir proteção tarifária por cambial é um avanço. Na hora em que a gente baixar as tarifas, em vez de ter a proteção tarifária, tem o câmbio para poder compensar o aumento das importações com o aumento das exportações. Nesse sentido não é protecionista, porque é um protecionismo cambial.

Não é protecionismo no sentido de que distorce a alocação de recursos, porque vale para todo o mundo.

Algumas pessoas dizem que Guedes acerta no conteúdo, mas erra na forma como fala as coisas.

Acho que isso era nos bons tempos. Ultimamente ele anda extravasando.

E os juros?

Ainda não vimos o efeito total do juro baixo.

E a reforma tributária? O setor de serviços questiona a proposta da Câmara. Como fica?

Aí eu acho que o Guedes tem culpa no cartório porque esse negócio de CPMF sempre foi uma fixação dele. Não era só do Marcos Cintra [ex-secretário da Receita].

Há uma dificuldade de aceitar que a proposta relevante é a do Bernard Appy [que tramita na Câmara]. Tem um problema sério porque o setor de serviços está reagindo com força. Na hora em que você passa de uma tributação tão variada por setores para uma uniforme, quem era menos tributado antes vai chiar.

A proposta do Appy é muito avançada, usa o princípio básico da uniformidade da taxação independentemente de setor e faz efeito distributivo com isenção para os pobres. Tudo o que afeta empresário…

Fazem choradeira?

E o governo não tem, aparentemente, disposição de enfrentar.

O setor de serviços fala em desonerar a folha com CPMF. Qual é a alternativa e como explicar para o leigo?

Desonerar a folha é outro assunto. Desonerar com imposto sobre movimentação financeira é fazer o bem com o mal. Não sei qual é o resultado líquido disso porque você está tributando atividade econômica.

A CPMF tributa sem existir renda, valor adicionado, tributa tudo indiscriminadamente e, portanto, tende a travar a economia. Não é um bom meio de financiar a eventual desoneração da folha. Talvez se consiga fazer isso quando mexer com a tributação do IR.

Em 2020 tem eleição, é pouco tempo para reforma administrativa, tributária e privatizar. Como o governo deveria escolher prioridades?

Tem tempo. Pelas experiências anteriores de eleições municipais, se consegue fazer o Congresso trabalhar até agosto.

Mas 2019 ficou todo na Previdência.

Fizeram a reforma da Previdência e não entraram com a tributária logo em seguida porque não conseguiram se entender. Deixaram passar o fim do ano passado e o começo deste. A tal da comissão que ia discutir o assunto ficou para as calendas.

Neste governo, há um problema de articulação política e de uma ideia clara sobre as prioridades e a sequência de ações, além de bate-cabeça no BNDES e na Secretaria de Privatização. Eles não conseguem formular o modelo adequado.

E o Banco Central (BC)?

É um oásis, porque nessa questão do confronto com os empresários, em que a Economia está tímida na questão da abertura, o BC enfrenta os banqueiros de uma maneira audaz para forçar o aumento da concorrência e com medidas muito substantivas.

Está reagindo à revolução do setor?

Ele está permitindo que essa revolução aconteça, porque ele precisa abrir o caminho para as fintechs entrarem. E os bancos reclamam porque dizem que é concorrência desleal, porque eles são regulados, e as fintechs, não. Mas acho que, na medida em que elas crescerem, terão de ter as mesmas regras.

Para economista, é preciso dar uma chacoalhada no setor privado para aumentar a produtividade, a partir da abertura comercial

 

 

 

 

 

Claudio Ferraz: “Congresso não consegue conter todo o avanço autoritário do Governo Bolsonaro”

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Economista avalia que Governo enfraquece democracia no Brasil e diz que principal falha da equipe de Paulo Guedes é ignorar o debate sobre desigualdade no país

Heloísa Mendonça – El Pais – 15/02/2020.

O Brasil voa hoje às cegas com o Governo de Jair Bolsonaro, em que vigoram políticas públicas baseadas em achismos, contrárias à ciência e à evidência empírica. A cada ataque diário à imprensa, às minorias ou a cada recusa a prestação de contas e manipulação de dados, a atual gestão vai minando a democracia. A avaliação é do economista brasileiro Claudio Ferraz, professor da Universidade de British Columbia, em Vancouver no Canadá. Ferraz, que também é professor da PUC-Rio e especialista em medir o impacto da implementação de medidas e programas, diz que, em sua visão, nem o contrapeso do Congresso é capaz de conter todo o avanço autoritário imposto pelo Planalto. “Não acho que estamos em um momento em que você possa acordar e achar que a democracia não sofre perigo nem probabilidade sofrer algo mais drástico”, pontua.

Morando há mais de seis meses fora do país e sem data para voltar, o professor acredita que a visão atual do exterior é que o Brasil hoje é governado por um presidente autoritário com políticas esdrúxulas, o que afugenta os investidores estrangeiros em um momento em que a economia brasileira caminha para sua recuperação em passos lentos. O economista, que se declara como de centro-esquerda, acredita que parte do discurso da equipe econômica vai na direção correta, mas critica a falta de uma discussão sobre desigualdade na pasta comandada pelo Paulo Guedes, que nesta semana chocou mais uma vez o país com suas declarações sobre empregadas domésticas e consumo.

Pergunta. Muito se discute se o Governo de Jair Bolsonaro representa hoje um risco para a democracia brasileira. Qual a sua avaliação?

Resposta. A dificuldade de conversar sobre risco à democracia é conseguir medir o que significa exatamente esse risco. Se levarmos em conta as perguntas que cientistas políticos usam para medir índices de democracia —se há eleições livres, se há liberdade de imprensa, de formar partidos etc.—, o Brasil não está em risco. Mas é uma forma de ver muito ruim e tosca, porque mesmo se você olhar para países onde claramente a democracia já está ameaçada e tem sido deturpada constantemente, como Hungria e Turquia, percebemos que esses índices não capturam esses fenômenos. Muitos analistas e acadêmicos estão chegando à conclusão que, desde que Donald Trump e outros populistas de direita chegaram ao poder ao redor do mundo, a democracia já não se rompe como antes, com um grande golpe de Estado em que chegam militares ao poder ou algum outro grupo. A democracia vai se enfraquecendo devagar, com pequenos desvios, usurpação de poder, com quebras institucionais, que, muitas vezes, você não consegue nem perceber. Em um ano de poder de Bolsonaro há vários quesitos em que isso está acontecendo. Desde ataques contínuos à imprensa, manipulação para quem se dá a informação, negação de prestação de contas, manipulação de quem vai estar à frente da Polícia Federal. Podemos ver ataques a grupos minoritários feitos diretamente pelo presidente e por vários ministros do Governo, sejam ataques diretos ou indiretos que têm efeitos nas políticas públicas. Todos são exemplos de ataques à democracia diários.

Pergunta: Mas todos eles representam um perigo real à democracia brasileira ou ela é forte o suficiente para aguentar?

As opiniões diferem. Algumas pessoas interpretam, por exemplo, algumas falas do Rodrigo Maia e o papel que o Congresso tem tido em contrabalancear algumas das loucuras do presidente e dos ministros como um sinal de que a democracia está funcionando. Ou seja, que hoje temos uma separação de poderes de forma que o Legislativo consegue conter alguns avanços do Executivo contra a democracia. A minha percepção é que isso funciona em algumas dimensões, principalmente nas políticas grandes, que geram grandes impactos. Mas existem mais políticas e medidas adotadas diariamente que não passam pelo Congresso. Funciona em parte, não controla todo o avanço autoritário. Observar o que está acontecendo agora também não quer dizer que, eventualmente, em algum momento essa corda não vá se romper de uma forma ou outra. Acho que foi o [cientista político] Cláudio Couto que usou essa analogia de você descer a serra de carro e ir freando até que em um dado ponto o freio já não funciona. Acho que o grande perigo é que tudo que aconteceu até agora foi em apenas um ano. São quatro de Governo. Até quando a democracia brasileira sustenta esses constantes puxões? Eu não acho que estamos em um momento que você possa acordar e achar que está tudo ótimo e que a democracia não sofre perigo nem probabilidade sofrer algo mais drástico.

Pergunta: Você estuda bastante sobre os impactos de políticas públicas. Uma das que gerou bastante crítica recentemente foi a campanha da ministra Damares Alves que incentiva abstinência sexual para a prevenir a gravidez na adolescência. Quais os efeitos práticos de uma medida como essa?

R. Há algo muito ruim nesse Governo, que é uma visão do mundo onde ciência e evidência empírica não são importantes para a tomada de decisões de políticas públicas. Não estou falando só da Damares. É algo mais amplo, que passa pelo Ministério da Educação, pela forma de combate ao crime, pela posição com relação a Amazônia e a mudança climática, o papel de radares de velocidade de reduzir mortes no trânsito. As políticas públicas deste Governo, com muitas raras exceções, como as do Ministério da Economia, são uma falta completa de diagnóstico de problemas, de estudos do que pode ser feito olhando para outras experiências exitosas, tanto realizadas em municípios e Estados brasileiros como em outros países. No final, há uma falta completa de avaliação para essas políticas públicas. No momento em que você não acredita em ciência e números verdadeiros, não tem porque avaliar uma política pública. O grande perigo é você voar num avião cego, sem nenhum mapa sobre o que fazer. Vira uma política pública de achismos. E o mais grave é que é um Governo conservador, com uma grande influência de ideias religiosas. Em várias dimensões que pode vir desde “a gente não deve ter educação sexual dentro de escola” ou abstinência ou como pensar em Amazônia. A grande gravidade em termos de políticas públicas é essa visão totalmente ideológica em relação ao que fazer.

Pergunta: Você elogiou o Ministério da Economia. Acredita que a equipe de Paulo Guedes está na direção correta, apesar da verborragia do ministro?

Resposta. Não sei se correta. Tanta proposta já foi feita e tão pouca coisa implementada no sentido do que se fala e do que se fez. A minha visão de fora é que existem duas coisas, o que acho que o ministro e o Ministério da Economia querem fazer e, por outro lado, o que muita gente já imaginava que ia acontecer, que o presidente não tem muito de liberal. Se você olhar o histórico como deputado e mesmo diversas falas ao longo da história, ele está muito longe de liberal. Acho que esse conflito entre favores para grupos específicos da sociedadevis à vis liberalismo vai estar intrínseco no Governo durante o tempo que existir um ministro como o Guedes e um presidente como o Bolsonaro. No final, vai ser um equilíbrio político, um toma lá, dá cá. Alguma concessão de um lado em troca de outras políticas de outro lado. Eu acho que em termos de algumas ideias e políticas do Ministério da Economia a visão é acertada.

Pergunta: Quais?

R. Por exemplo, o aumento de concorrência, no sentido da necessidade de liberalização comercial no Brasil. Hoje o país é um dos mais fechados do mundo. A necessidade de aumento da produtividade na economia, de reduzir má alocação de recurso, de simplificação tributária. Todas essas propostas vão eventualmente na direção correta.

Pergunta: A recuperação econômica em curso é a mais lenta da história e oferece um paradoxo. Fatores muito positivos são insuficientes para estimular o crescimento. A inflação e os juros estão baixos, a nova Previdência foi aprovada no ano passado. O desemprego ainda segue alto. Quais políticas faltam para reativar a economia?

R. É complicado. As políticas de criação de emprego muitas vezes no curto prazo podem ser inimigas das políticas de geração de crescimento e desenvolvimento no longo prazo. A desoneração é um exemplo disso. A gente sabe que no Governo de Dilma Rousseff foi tentado, mas não deu certo e continua no menu. Porque existe uma percepção de que se você reduzir a carga tributária de empresas específicas e incentivar a contratar mão de obra, vão contratar gente. No longo prazo, o que a gente precisa são de políticas que aumentem a produtividade da economia brasileira. Nenhum país cresce no longo prazo de forma sustentável sem aumento da produtividade. Uma política que aumente emprego no curto é a melhor para o país crescer no médio. E é onde essa pressão populista de entregar resultado no curto pode ser complicada. Você pode pensar a mesma coisa sobre a discussão de liberalização comercial, ela é complexa. Apesar dos economistas gostarem dessa ideia como um choque na economia pelo aumento da concorrência, por outro lado há evidências bastante concretas que aberturas de mercado criam desempregos em algumas áreas e quebram empresas. Ela pode, inclusive, no curto prazo, aumentar a desigualdade. Então políticas boas no longo prazo têm um custo de transição no curto. Em um momento em que você possui uma taxa de desemprego e está saindo lentamente da crise, os incentivos e as pressões políticas para não adotarem algumas dessas políticas é ainda mais forte. Acho que o que falta na verdade na equipe econômica é uma discussão de que a desigualdade importa. Falta comunicação entre Ministério da Economia e da Educação, de proteção social. A princípio você gostaria de ter um Governo em que essas coisas caminhassem juntas.

Pergunta: Acredita que desigualdade no país também emperra o crescimento?

R. Essas coisas estão ligadas, porque parte da desigualdade brasileira —e existe um mea culpaa ser feito pelo Governo do PT— é que a política industrial implementada no Brasil desde a crise de 2008 favoreceu grandes empresas. Grandes grupos, campeões nacionais se beneficiaram de forma desproporcional comparado a pequenas e micro empresas que poderiam ter ativado a dinâmica econômica e gerar redistribuições. Apesar das pessoas falaram que a JBS, por exemplo, cria milhares de empregos, proporcionalmente o custo para o Governo da política industrial e de crédito do BNDES para criar esses empregos é altíssimo e ineficiente. Não faz o menor sentido. E outro lado que é uma das grandes causas de desigualdade no Brasil e que, eventualmente, também gera grandes ineficiências é o setor público com alguns salários exorbitantes, como no caso do Judiciário. Mas não é só o Judiciário.

Pergunta: O próprio Banco Mundial mostrou em estudo que hoje muitos dos salários públicos não são compatíveis com o da iniciativa privada.

R. Com certeza. Mas o grande perigo é que também não podemos ir para o outro lado. Existe uma grande correlação entre a qualidade da burocracia, a qualidade de implementação de políticas e o desenvolvimento e crescimento econômico. Esse Governo, depois de um ano, é um estudo de caso de diversos ministérios. Não estou só falando da catástrofe do Enem, mas existem vários exemplos que ter gente ruim no Governo tem impacto direto e custosíssimo para a implementação de políticas públicas. Então não adianta dizer que vai cortar salário de todo mundo do Governo. Não é só cortar salário. É gerar responsabilização, criar incentivo dentro do Governo para as pessoas trabalharem, melhorar salário baseado em produtividade e mérito. Mas mais uma vez se entra em choque. Há o que o ministério quer, com proposta de reforma administrativa, mas que politicamente é muito custosa.

Pergunta: O investimento público baixo é inevitável dado o momento crítico das contas públicas?

R. Eu acho que não tem como fugir. Investimento baixo é uma consequência do momento, mas mesmo dentro do investimento público existem escolhas que sempre são feitas. Há como escolher na margem onde colocar o dinheiro. Você ter na cabeça que há restrição orçamentária é importante também, não dá para fingir que ela não existe. Existe uma discussão eterna sobre quanto o investimento público faz a economia girar ou não. Se está investindo pouco ou se você deveria estar investindo mais para gerar emprego, que é uma discussão controversa. Dentro dos gastos públicos existem escolhas e ela deveria ser feita com base em onde na margem seu dinheiro dá mais retorno em termos de política pública. Em vários ministérios, essa escolha não está sendo feita dessa forma.

Pergunta: Estamos mergulhados em uma polarização gigante no Brasil. O quanto isso afeta o momento político econômico?

R. Acho que afeta muito, é péssimo. A polarização faz com que você se permita fechar os olhos e passar o pano sobre absurdos que acontecem porque caso contrário o outro time chegaria ao poder. Os republicanos passam pano sobre os absurdos do Trump porque senão corre o perigo de chegar um comunistacomo Bernie Sanders ao poder. A mesma coisa no Brasil. Muitas pessoas que não se consideram bolsonaristas de carteirinha, mas ignoram os absurdos do presidente em relação gênero, LGBTs, indígenas e o que for, porque, caso contrário, Lula, o grande corrupto, irá voltar ao poder e o que será de nós? A polarização dá uma carta branca pra quem está no poder e ela acaba fazendo coisas que em outras circunstâncias não seriam admitidas. E, de certa forma, ela tem um efeito forte na economia, porque gera muito incerteza. O mundo polarizado é um mundo em que quem está no poder importa muito. As políticas variam muito. Se o Trump ganhar ou perder tem um efeito enorme nas políticas públicas e na economia dos EUA.

Pergunta: No caso do Brasil é um ingrediente a mais para esse momento de lenta recuperação?

R. Acho que sim. Não sei se a polarização em si, mas certamente essas atitudes autoritárias do Governo elas afugentam investidores estrangeiros. Em geral, as pessoas sentem medo das loucuras do Bolsonaro. Isso afeta a percepção de estrangeiros. Se ele é louco em diversas coisas, como vou saber que amanhã ele não fará algo que irá me afetar. A visão internacional hoje é que o Brasil tem um presidente autoritário com políticas esdrúxulas em relação a várias áreas: educação, passando por meio ambiente e Amazônia, até cultura, minorias.

Perguta. Você defende mais as análises dos dados micro para responder às grande questões da macroeconomia brasileira. O que o país ou os economistas deveriam estar discutindo?

R. Infelizmente, essa revolução da macroeconomia aqui fora de usar dados micros para responder questões macros ainda não chegou no Brasil. São poucos os acadêmicos que usam microdados de empresas de empregos etc. para responder perguntas. Acho que há muitos questionamentos em aberto, desde impacto de políticas implementadas até perguntas como por que o país está demorando tanto para sair da crise. Para isso seria preciso aprofundar em microdados do IBGE de empresas. Quais são as companhias que sobreviveram tanto tempo em épocas de bonança de crédito de bancos públicos? Será que são as mais ineficientes? Será que em parte porque as mais ineficientes sobreviveram elas não conseguem contratar porque não conseguem vender seus produtos? Quem está contratando agora? Maiores ou menores? Há varias coisas da dinâmica de produtividade e dinâmica de emprego de emprego no Brasil que não são discutidas. Não é porque o pesquisador brasileiro é pior em nenhuma dimensão, mas sim porque no país temos menos dados e são mais difíceis de acessar. Para ver os microdados do IBGE é complexo, você precisa estar lá, há uma sala de sigilo, você precisa apresentar um projeto, demora. O acesso é mais difícil.

Pergunta: Entre economistas heterodoxos e ortodoxos, onde o senhor se posiciona? E no espectro político, esquerda ou direita?

R. Honestamente, essa discussão dos economistas é inexistente aqui fora. No Brasil, ela também é deturpada. O que muita gente chama de economista ortodoxo no Brasil é o que usa modelos neoclássicos e matemáticos e que utiliza técnicas estatísticas e econométricas. Essa coisa do heterodoxo no Brasil surgiu um pouco contra o uso de modelos matemáticos. E as críticas são deturpadas. “Os economistas heterodoxos acreditam que os agentes são racionais e é só isso que você olha” ou “O economista ortodoxo não olha para a desigualdade”. Eu me posiciono como centro esquerda. Acho que existe uma confusão no Brasil que se você é um economista ortodoxo e usa modelos matemáticos, você é de direita, e se você é heterodoxo, você é de esquerda e não usa estatística. Existe uma série de economistas que se consideram ortodoxos no sentido da metodologia que usam, mas podem ser considerados de centro esquerda, no sentido de preocupações sociais e desigualdades. E esse tipo de economista no Brasil é mal visto. As pessoas pedem essa polarização entre esquerda e direita, ortodoxo e heterodoxo. Eu acho que isso é uma deturpação ruim para economistas, onde as pessoas não vêem que você pode usar métodos neoclássicos, estatísticos, econometria e mesmo assim fazer trabalhos importantes para pensar em grandes questões que tem a ver com igualdade de oportunidades, desenvolvimentos e coisas afins.

Revisão da macroeconomia encontra enorme resistência, afirma André Lara Resende

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Agosto de 2019 – Jornal daUnicamp

Ex-diretor do Banco Central esteve na Unicamp para ministrar a palestra de abertura da Semana da Economia

O economista André Lara Resende, ex-diretor do Banco Central e um dos integrantes da equipe que formulou o Plano Real, abriu na noite desta segunda-feira (12) a Semana da Economia, evento organizado pelos alunos de graduação do Instituto de Economia (IE) da Unicamp. Convidado para falar sobre macroeconomia, Resende alinhavou as suas reflexões com um tema que vem defendendo e que tem provocado ampla controvérsia entre os seus pares: a Teoria Moderna da Moeda, também chamada de Teoria Monetária Moderna (MMT, em inglês). Um dos pressupostos da MMT, e que tem causado maior resistência por parte dos críticos, assevera que os países que emitem a sua própria moeda soberana não enfrentam restrições financeiras. Ou seja, por maiores que sejam os gastos, eles não podem se tornar insolventes. “Quanto a esta questão, não há o que discutir. É uma questão lógica. A resistência me impressiona”, afirmou. Antes de falar a uma plateia que lotou o Auditório “Zeferino Vaz” do IE, Resende recebeu o Jornal da Unicamp para a entrevista que segue, na qual ele ofereceu maiores detalhes sobre a MMT.

Jornal da Unicamp  Que reflexões o senhor trouxe para a Semana da Economia, organizada pelos estudantes de graduação do Instituto de Economia da Unicamp?

André Lara Resende – O tema da minha conferência é a crise da macroeconomia. A macroeconomia, como toda a teoria econômica, é algo em mutação permanente. A crise de 2008 deveria ter forçado uma revisão da macroeconomia. Essa revisão ainda está em curso, mas encontra enorme resistência.

JU – O atual contexto político brasileiro é um elemento dificultador dessa revisão no âmbito doméstico?

André Lara Resende – Penso que não. A resistência independe das circunstâncias políticas dos países. Essa resistência existe sempre.

JU – Um tema que o senhor trouxe para a sua conferência, e que tem sido objeto de vários artigos seus, é a Teoria Moderna da Moeda ou Teoria Monetária Moderna. Para os que s não estão familiarizados com o assunto, quais são os princípios da MMT?

André Lara Resende – Toda vez que damos uma denominação para uma dada teoria, isso ajuda de certa forma a organizar as ideias em torno delas. Por outro lado, pode também prejudicar o entendimento daquilo que está se falando, pois vira um rótulo. E o rótulo tende a identificar, sem que haja reflexão. Uma vez rotulada, a teoria pode ser associada, por exemplo, a certo tipo de posição política, o que dificulta ainda mais o entendimento das ideias que estão sendo discutidas. O que se convencionou chamar de Teoria Monetária Moderna, que considero um mau nome, visto que o moderno já é velho, parte da observação de que a teoria monetária num sistema de moeda fiduciária tem implicações muito diferentes da teoria monetária clássica. No mundo da moeda fiduciária, o que choca algumas correntes é a afirmação de que o governo que emite a sua própria moeda não tem restrição financeira. Isso, embora seja um corolário lógico e irrefutável, tem gerado enorme resistência.

JU – Os críticos da MMT dizem que ela é um tanto confusa. Esta posição é um indício dessa resistência à qual o senhor se refere?

André Lara Resende – Não tem nada de confusa. Para ser sincero, a maioria das críticas que eu vi demonstra que os seus autores não se deram ao trabalho de tentar entender. Não viram, não leram e não gostaram. Isso evidentemente não é aceitável do ponto de vista de um posicionamento intelectual, acadêmico.

JU – Os pressupostos da teoria são válidos indistintamente para todos os países que emitem moeda fiduciária?

André Lara Resende – Qualquer país que emite moeda fiduciária não sofre restrição financeira. Quando ele gasta, inevitavelmente emite moeda. Quando tributa, forçosamente destrói moeda. Essa vinculação entre política fiscal e política monetária durante muito tempo foi mantida separada pela teoria convencional. A própria teoria convencional, de duas ou três décadas para cá, entendeu que essa desvinculação é equivocada. A Teoria Monetária Moderna, por entender melhor o funcionamento da emissão de moeda – a palavra emissão é ruim; é preferível ‘criação’ –, desmascara algumas das teses da teoria monetária convencional. A partir daí, isso tem implicações na política monetária e na política fiscal.

Voltando à sua pergunta, o fato de o governo que emite a sua moeda fiduciária não ter restrição financeira, não significa que tudo é possível. A restrição da oferta, da realidade dos recursos, continua a ser uma ciência da escassez. Você tem que tomar decisões sobre a alocação dos recursos. Quando você aumenta os gastos públicos, a despeito de você ter como financiá-los ou não, isso significa que algum outro tipo de gasto, caso você esteja perto do limite da capacidade, deixará de ser feito. São decisões técnicas e políticas. A teoria convencional, por alguma razão, defende que a decisão é meramente técnica, mas não é.

JU – Diferentes gerações testemunharam economistas e governantes afirmarem que as contas de um país se assemelham às contas de uma residência. Ou seja, o princípio é de que não se deve gastar mais do que se ganha ou arrecada. A MMT considera que a comparação não procede. Poderia explicar melhor esse entendimento?

André Lara Resende – O senso comum diz que todos devemos respeitar as nossas restrições orçamentárias. Isso não é verdade, e Keynes [John Maynard Keynes, economista britânico considerado o “pai” da macroeconomia moderna] mostrou isso claramente na sua Teoria Geral. Ele demonstrou que existe uma falácia da composição. O que é verdade no nível individual pode não ser no nível agregado. Tomemos como exemplo a poupança. Quando uma pessoa poupa, ela terá mais renda no futuro. Se a economia toda aumenta a sua taxa de poupança, isso pode levar a uma redução da renda e do emprego. Portanto, o comportamento dos agregados não é igual ao comportamento microeconômico dos indivíduos. O mais difícil de ser entendido é que, como a moeda é fiduciária, criada quando o governo gasta, o governo não tem uma restrição financeira. Ele não precisa encontrar fontes de recursos para seus gastos. Isso vai contra o senso comum, mas é uma dedução lógica da moeda fiduciária.

JU – Quem cria a moeda é o governo central. Como ficam estados e municípios nesse contexto?

André Lara Resende – Estados e municípios não têm capacidade de emissão. Eles estão submetidos a uma restrição financeira. Portanto, não têm a mesma flexibilidade que o governo central. Pode-se gastar bem ou gastar mal. Alguma restrição a gastos correntes, especialmente com pessoal, faz todo o sentido. Isso porque existe uma tendência política demagógica inevitável, adotada por homens públicos que querem aumentar a sua área de influência, de contratar pessoas no setor público, inchando-o. Esse tipo de funcionário público tende a se organizar do ponto de vista corporativo para obter vantagens. Com isso, aumenta-se o gasto corrente no orçamento. Isso achata o que sobra para gastos de investimentos e de transferências, visto que o governo tem um papel importante de transferência de renda. Se o governo gasta tudo na operação da máquina pública, ele torna-se incapaz de cumprir todas as suas obrigações.

JU – É possível outro entendimento sobre o déficit e a consequente reforma da Previdência Social à luz da MMT?

André Lara Resende – O déficit da Previdência no Brasil é um fato. A Previdência ficou crescentemente deficitária. Isso estava evidente há 15 anos. Eu dirigi um grupo de estudos para propor a reforma da Previdência. Na época, nós estimamos que a Previdência ficaria inviável entre 2010 e 2015. São duas as razões principais desse déficit. A primeira é de ordem demográfica. O sistema de repartição, com o qual os trabalhadores da ativa contribuem para o pagamento dos benefícios dos aposentados, é altamente superavitário no início, especialmente quando a população é crescente e jovem. À medida que ocorre um inflexão demográfica, situação na qual a população envelhece e que há mais pessoas se aposentando que ingressando no mercado de trabalho, esse sistema tende a se tornar deficitário. Isso é normal e ocorreu no mundo todo. No Brasil, essa inflexão foi mais rápida.

A segunda razão é que setores com força política se organizaram para arrancar benefícios previdenciários muito acima da contribuição. Gente se beneficiando sem tempo de contribuição, com idade mínima reduzida e recebendo o último salário incorporado de diversos benefícios, coisas que não existem em lugar nenhum do mundo. Essa combinação de reversão demográfica com corporativismo que adquiriu vantagens tornou o sistema inviável. Ele precisaria ser reformado.

JU – Os artigos publicados pelo senhor na imprensa sobre a MMT repercutiram muito e causaram polêmica. Como andam as discussões sobre o tema neste momento?

André Lara Resende – Os meus artigos deste ano são uma continuação dos artigos que estão no livro que publiquei em 2017, intitulado “Juros, Moeda e Ortodoxia”, nos quais eu já discutia essas questões. Desde lá, meus artigos realmente têm causado bastante controvérsia. Em relação aos artigos do livro, eu até compreendia a polêmica. Quanto à questão mais recente, de que o governo que emite moeda fiduciária não tem restrição financeira, não há o que discutir. É uma questão de lógica. A resistência me impressiona.

JU – O senhor identifica os motivos desta resistência?

André Lara Resende – É estranho. Penso que tem uma combinação política, de interesses constituídos. Esses interesses políticos não me parecem ser conscientemente organizados. Isso é grave porque são interesses inconscientes. E existe também um fator psicológico, do ponto de vista dos economistas, que enxergam nisso uma perda de status e poder. Os economistas são percebidos como técnicos de alta competência, que falam uma linguagem matematizada, hermética. Quando alguém aponta que eles estão dizendo a coisa errada há muitos anos, eles resistem. Do ponto de vista intelectual, e foi o que aconteceu comigo, é preciso analisar as proposições e, se for o caso, admitir que estava errado. Quando se usa o conhecimento como arma de poder político e de influência, você se sente ameaçado pela desmoralização da tese que você defende. Isso explica em grande parte a resistência.

JU – Qual a importância de trazer reflexões dessa ordem para um evento como este do Instituto de Economia da Unicamp, que é organizado pelos estudantes de graduação?

André Lara Resende – Acho muito importante. Essa discussão, e eu tenho feito conscientemente isso, tem que ser feita nos fóruns que têm interesse de debater as ideias. Uma das coisas que estou criticando é a ideia de despolitizar a teoria econômica. Como alguém já afirmou, a perigosa homenagem que a macroeconomia faz à política é torná-la invisível. Minha preocupação é escrever e discutir minhas ideias nos ambientes acadêmicos e intelectuais, e não nos ambientes políticos.

 

‘Bolsonaro é qualquer coisa menos liberal’

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Para economista, que foi professora em Chicago, liberalismo é confundindo com violência e visão reacionária no Brasil.

Entrevista com

Deirdre McCloskey, economista e professora da Universidade de Illinois em Chicago

Luciana Dyniewicz, O Estado de S.Paulo 

24 de janeiro de 2020

Defensora do liberalismo e professora na Universidade de Chicago entre 1968 e 1980 – época em que o ministro brasileiro da Economia, Paulo Guedes passou por lá –, a economista Deirdre McCloskey afirma que o governo de Jair Bolsonaro é “qualquer coisa menos liberal”, pois, para ela, não é possível separar as questões econômicas das sociais. “A ideia principal do liberalismo é que não haja hierarquias: homem sobre mulher, heterossexuais sobre gays ou Estado sobre indivíduos”, disse Deirdre, que estará em São Paulo na próxima quarta-feira,29, para um evento do banco Credit Suisse.

Em uma época marcada por polarizações, a economista ganhou destaque no debate econômico mundial por criticar aspectos tanto da direita quanto da esquerda. Deirdre, que já esteve no Brasil há dois anos para o projeto Fronteiras do Pensamento, dessa vez também fará palestra para funcionários da Petrobrás.

A economista, que hoje é professora da Universidade de Illinois em Chicago, vê com descrédito a possibilidade de Guedes conseguir transformar a economia brasileira em liberal e não se mostra satisfeita com os rumos do governo brasileiro. “Um ministro da Economia não faz tudo funcionar, é preciso ter outras políticas por trás. (…) Bolsonaro pode ser capturado pelos interesses, especialmente dos mais ricos”. A seguir, os principais trechos da entrevista.

A sra. já disse que o liberalismo é incompatível com violência e divisões na sociedade por gênero ou raça. Considerando isso, acha que o governo Bolsonaro é liberal?

Não. No meu país e no seu, há uma grande confusão sobre liberalismo. Nos EUA, significa uma versão suave de socialismo. Na América Latina, principalmente no Brasil, significa reacionário e violento. Os governos de Trump e Bolsonaro são qualquer coisa menos liberais. A palavra liberalismo vem do latim, ‘liber’, o que significa não-escravo. No resto do mundo, as pessoas sabem o que liberal significa. O presidente Emmanuel Macron, na França, é um liberal. A ideia principal do liberalismo é que não haja hierarquias: homem sobre mulher, heterossexuais sobre gays ou Estado sobre indivíduos.

Não podemos separar o econômico do social? O governo brasileiro se diz liberal na economia e conservador nos costumes.

Acho que não. Claro, pessoas como Bolsonaro dizem que sim. Acham que pode haver livre mercado na economia, ainda que haja um fascismo contra gays, por exemplo. Não concordo com isso. Para mim, assim como era para Adam Smith e John Stuart Mill, liberdade é liberdade.

A plataforma econômica do governo tem apoio do mercado…

O apoio do mundo dos negócios não é ao liberalismo. O apoio do que na América Latina vocês chamam de governos liberais vem porque os empresários querem o monopólio. Na Itália, os fascistas eram donos das indústrias e os empresários amavam Mussolini. Isso porque o Estado os ajudava. Isso é fascismo. Outra palavra para isso é corporativismo. As corporações parecem controlar o governo e o usam em benefício próprio. Em um mercado livre, as corporações têm de competir, o que é bom para você e para mim. Mas não é bom para nós quando há tarifas de importação, subsídios ou políticas para inovação. Não importa se as políticas são de direita ou de esquerda. Qualquer privilégio para um grupo machuca as pessoas comuns. É por isso que o Brasil tem crescimento econômico lento.

Acha que podemos comparar a Itália fascista com o Brasil atual?

Sim, mas não estou falando algo apenas sobre o Brasil. Há um movimento populista e fascista global. Você o vê na Hungria, na Polônia, nas Filipinas, na Rússia e nos EUA.

Há uma discussão corrente no Brasil sobre a relação entre crescimento e democracia, de que, caso a economia se recupere, questões como liberdade de imprensa e homofobia se tornam menores para muitas pessoas…

Isso é certamente correto. É o caso da China. A economia chinesa vai bem e acho que, se houvesse eleições de verdade lá, o partido comunista venceria. As pessoas estão dispostas a sacrificar a liberdade de imprensa e de expressão e tribunais honestos se seus bolsos estiverem cheios.

Vê alguma forma de mudar isso?

Tentando persuadir as pessoas de que liberdade é melhor. Se você oprime gays ou mulheres, também será pobre, porque, no mundo moderno, o liberalismo funciona. Ele faz as pessoas mais ricas e livres ao mesmo tempo.

Falando estritamente de economia, o Brasil está indo na direção correta?

Não sou especialista em Brasil, mas peguemos o exemplo da Amazônia. Não é do interesse dos brasileiros que as plantas da Amazônia sejam usadas sem nenhum direito de propriedade. Isso é entregar a Amazônia a empresas madeireiras privadas sem fazê-las pagar nada. É uma ideia muito ruim. Bolsonaro já cortou impostos?

Não.

A mesma coisa com Trump, que elevou impostos para beneficiar indústrias específicas, como a de painéis de energia solar. Eu esperaria que Bolsonaro fizesse algo parecido. Posso estar errada, mas acho que ele pode ser capturado pelos interesses, especialmente dos mais ricos. E eu não sou contra ricos, não quero atacá-los. Mas os donos das empresas precisam competir uns com os outros e com os estrangeiros também, e vice-versa. O Brasil faz bem aviões, os quais vende em todo o mundo. Mas, nos EUA, a Boeing é protegida pelos EUA, contra o Brasil. Isso é uma loucura. Deveríamos ser capazes de comprar aviões em qualquer parte do mundo.

A situação fiscal do Brasil é delicada. Acha que mesmo assim deveria haver redução?

Impostos são fonte de receita para governos e tornam a economia menos eficiente. Eles impedem a competição. (Para reduzir impostos no Brasil) seria melhor cortar o investimento nas forças armadas, o que Bolsonaro obviamente não fará.

O ministro Paulo Guedes foi seu aluno em Chicago? Ele defende uma postura liberal em relação ao comércio…

Se ele esteve lá nos anos 70, quase certeza que foi meu aluno. As turmas eram grandes, mas acho que me lembro desse nome. Se ele está fazendo o que aprendeu em Chicago, está colocando a economia na direção correta. Mas um ministro da Economia não faz tudo funcionar. É preciso ter outras políticas por trás.

A sra. sempre afirma que o problema das sociedades não é a desigualdade, mas a pobreza. O liberalismo é suficiente para reduzir a pobreza? Políticas para ajudar pessoas a saírem da extrema pobreza são desnecessárias?

Sou a favor dessas políticas. O governo deve taxar pessoas como você e eu para pagar educação fundamental e talvez educação secundária. Não acho que deva pagar por universidades. Também devemos ser taxadas para pagar o Bolsa Família. E é isso. Mas também tem de haver políticas liberais que quebrem monopólios. Vamos pegar o exemplo dos sistemas de saúde: o problema que temos nos EUA é que a indústria é monopolista. Os preços de medicamentos são extremamente altos e ainda tem uma lei que proíbe os cidadãos americanos de comprarem remédios no Canadá ou no México. É uma loucura. É uma proteção especial para os donos das empresas de remédios.

Como liberal e mulher transexual, acha que políticas de igualdade de gênero ou de raça devem ser adotadas?

Não, elas transformam transgêneros ou gays ou negros em crianças. Vamos pegar um exemplo concreto de transgêneros: quem deve pagar pela operação de mudança de sexo? O Estado ou o indivíduo? Pra mim, deve ser o indivíduo. As operações de mudança de sexo não são tão caras. Custam quase o mesmo que um carro pequeno. O problema de o Estado assumindo coisas é que você pode se tornar um escravo do Estado. Se você tem uma pessoa legal no comando do Estado, como o Barack Obama, tudo está bem. Mas, se você tem pessoas desagradáveis e loucas, como Bolsonaro ou Trump, as mesmas regras – os mesmos subsídios, as mesmas proteções que ajudam as pessoas transexuais – podem se virar instantaneamente contra elas. O Trump, por exemplo, para satisfazer suas bases, tirou os transgêneros das Forças Armadas. Eu quero tirar o Estado grande do que é da minha e da sua conta. Quero que as pessoas convençam uns aos outros com trocas monetárias: eu ofereço meu trabalho para você, você me dá dinheiro em troca e eu compro coisas. É assim que os pobres melhoraram de vida nos últimos dois séculos, não é através da ação do Estado.

Não existe ser liberal na economia e intolerante nos costumes, diz Elena Landau

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Para economista que atuou nas privatizações de FHC, liberalismo é progressista e respeita direito LGBT

Eduardo Cucolo e Alexia Salomão 

SÃO PAULO – Folha de São Paulo – 30/12/2019

A economista e advogada Elena Landau, uma das responsáveis pelo programa de privatizações dos governos Itamar Franco e FHC, em meados da década de 1990, diz que o governo atual não tem obtido grandes avanços que possam ser considerados uma agenda verdadeiramente liberal na área econômica.

Afirma também que, no caso da gestão Jair Bolonaro, aquilo que se chama de conservadorismo em termos de costumes se trata, na realidade, de retrocesso civilizatório. Em entrevista à Folha, ela afirma ainda que o programa de privatizações do Ministério da Economia está sem rumo.

Há hoje uma discussão sobre o que é liberalismo, se o governo atual é liberal, se o governo FHC, do qual você participou, era neoliberal ou social-democrata. O ministro Paulo Guedes (Economia) afirma que este é o primeiro governo liberal depois de 30 anos de social-democracia. Afinal, o que é liberalismo?

Eu sempre uso a definição do Vargas Llosa: é uma questão da atitude. A atitude liberal é de tolerância e de diálogo.

Muitas correntes hoje são tratadas como liberais e não têm nenhuma atitude liberal. Não permitem que você pense diferente de seus integrantes. Se você acredita que o Estado tem funções, que há falhas de mercado ou fala em mobilidade social, você é considerado de esquerda. Eles são dogmáticos. Isso não é liberalismo. Um liberal é tudo menos dogmático. Essa briguinha é coisa de adolescente.

Me diga: o que seria equivalente, no governo de hoje, a colocar de uma só vez na linha da privatização o Sistema Telebrás, o Sistema Eletrobrás e a Vale? Eu quero que o Guedes me responda se isso é social-democracia ou se é liberalismo. Eu tenho certeza de que sou liberal. Tenho certeza de que o presidente Fernando Henrique é uma pessoa liberal.

Tem gente chamando o ex-presidente FHC de comunista.

A equipe econômica do Fernando Henrique era muito liberal. O Fernando Henrique é um liberal clássico. Ele tem uma formação de centro-esquerda. Qual o problema?

Liberais são progressistas. Essa ideia de que não há progressismo no liberalismo é absurda. O desfavor que esse grupo liberal de direita, alguns “liberminions”, que apoiam o governo Bolsonaro acima de qualquer coisa, não entendem que o liberalismo clássico era progressista. Quem inventou Imposto de Renda negativo, quem batalhou pelo voto da mulher? Não tem ninguém que diga que você é ou não um liberal avaliando se você é a favor ou contra posse de arma.

As pessoas acham que falar sobre desigualdade, mobilidade social, identidade de gênero, é coisa de comunista. Isso ocorre porque as pessoas não conhecem o liberalismo clássico. Olham para a agenda econômica e acham que aquilo é o suficiente. O Livres, não.

O ministro Paulo Guedes [Economia] costuma dizer que o governo atual é liberal na economia e conservador nos costumes. Existe essa diferença?

Não há possibilidade de ser um liberal se você não respeita identidade de gênero, se você não respeita religiões, se você quer calar a cultura, como se está fazendo. A palavra “conservador” é mal utilizada.

Esse governo não tem nada de conservador. A gente está usando conservador como sinônimo de obscurantismo, retrocesso civilizatório. Você não pode dizer que é conservador um cara que defende e elogia um torturador. Isso não é conservadorismo. Isso é absurdo.

E como está a posição liberal na economia, então? Para muitos, o Brasil avançou nessa questão. Qual é a sua opinião?

Não acho que a gente tenha tido grandes avanços assim no que se refere a uma economia liberal. Não posso duvidar de que o ministro tem uma pauta e um pensamento liberal, mas, na prática, ainda falta muita coisa para fazer. Até agora, a gente fez a reforma da Previdência. E o que mais?

Cadê a abertura comercial, a grande privatização, a grande reforma do Estado, a liberação das poupanças compulsórias do trabalhador? Cadê o fim do Sistema S e das desonerações prometidas? Não fui eu quem prometi acabar com essas coisas todas. Eles ganharam a campanha com essa promessa. Então, cumpram.

Você participou das grandes privatizações no governo FHC. Como você avalia o atual programa de desestatização?

Não adianta dizer que o Salim [Mattar, secretário de Desestatização do Ministério da Economia] vai privatizar se ele não tem poder para privatizar. Os presidentes das estatais, por decisões empresariais, indicam de qual subsidiária, de qual participação vão se desfazer e como vão se desfazer. É decisão individual. Você vende a BR Distribuidora, e o recurso recebido vai para o caixa da Petrobras. Não vai para o caixa da União.

Não é o que foi prometido.

Você diz que o presidente Bolsonaro é o maior privatizante da história. Aí você fala em Banco do Brasil. Não pode. Petrobras não pode. A Caixa não está pronta. Nem Valec. Nem a TV do Lula. Enquanto a Valec não for privatizada, eu não considero que está tendo programa de privatização. A Eletrobrás está no meio e ninguém toma conta dessa privatização. Está sem comando. Não tem rumo.

O Guedes prometeu US$ 20 bilhões, R$ 100 bilhões. Antes do leilão de cessão onerosa, quanto tinha chegado ao Tesouro dos R$ 96 bilhões que foram para o governo? Foram R$ 6 bilhões de concessão e de outorga. O resto tinha indo tudo para o caixa das empresas estatais. O dinheiro que entrou da TAG no caixa da Petrobras foi usado para comprar Búzios. Se a Petrobras não tivesse comprado nada, tinha ficado no seu caixa.

Não precisa de lei para vender empresas estatais, exceto as quatro grandes: Petrobras, Banco do Brasil, Caixa e Eletrobrás. Então, não vamos dar desculpa de que o Congresso Nacional não está contribuindo.
Falta Casa Civil também. Na minha época, a Casa Civil era fundamental, porque ela representava o presidente da República. Era a Casa Civil que ajudava o BNDES.

O BNDES foi o alvo de questionamentos, passaram o ano procurando uma caixa-preta na instituição e Guedes já falou que, por ele, fechava o BNDES. Qual a sua visão sobre o banco?

Poucas vezes eu concordo com o Guedes. Eu não sei se tem de fechar o BNDES, mas certamente ele tem de diminuir de tamanho, o que passa por uma reforma de RH, de redução de funcionários, de reestruturação do banco e da BNDESPar.

Eu costumava dizer que o BNDES era um banco em busca de uma missão. O [presidente atual, Gustavo] Montezano criou uma função para o BNDES, que é virar um banco do investimento, no sentido de estruturar negócios para municípios e estados que precisam desse apoio. Na BNDESPar, ou vende a carteira toda para um banco ou divide ou terceiriza. É ineficiente o desinvestimento através da BNDESPar.

Muitas pessoas têm dito que, se o governo arrumar a economia, o restante vai caminhar bem, e que não tem problema polêmicas causadas em outras áreas, como Ministério da Educação e Funarte. A economia caminha separado do resto da gestão e, se a economia for bem, basta?

Economia ir bem é mais do que obrigação. E não, não basta.

É ótimo que o país melhore. Estamos torcendo para que o Brasil tenha recuperação de crescimento, que volte a ter investimento.

E, do ponto de vista econômico, eu pergunto: é possível fazer o Brasil dar salto de produtividade sem educação? O ministro da Educação está preocupado em olhar o passado. Ele olha os números do Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Alunos, no qual o Brasil costuma ser mal avaliado] e fica falando do PT.

Gente, desapega do PT. Esquece o PT. Se as pessoas quisessem o PT, teriam votado no PT. O PT perdeu as eleições. Eu quero saber do futuro.

Agora, do ponto de vista social, a gente está vendo pelo resto do mundo que não adianta a economia ir bem com a desigualdade piorando.

O ruim da polarização é que o debate está proibido. Então eu gosto de ver que o Livres está incomodando, porque o Livres é um movimento liberal que permite o debate.

Você mencionou várias vezes o Livres. Pode falar sobre sua relação com o movimento e a saída do PSDB? 

Eu saí do PSDB por causa da questão do Aécio [Neves, deputado que é réu em ação envolvendo a delação de Joesley Batista, da J&F] e pela questão de titubear na discussão da reforma da Previdência e todas essas reformas que o PSDB defendeu na minha época e que agora abandonou.

Eu acompanhava o Livres pelo Twitter, tinha dois amigos meus que trabalhavam nesse movimento suprapartidário. Fui conversar com essas pessoas e me convidaram para ir para a fundação do Livres.

Começamos com alguns deputados, a bancada está crescendo. A gente leva discussões como plantio da maconha, desobrigação de serviço militar versus prestação de serviço para comunidade, apoio à questão LGBT. Na economia, a gente passa o dia inteiro falando que não está suficiente. Liberalismo não se resume a economia. No Livres, você vê um movimento liberal progressista ganhando o coração e a adesão de uma juventude.

O Livres tem posição sobre legalização das drogas? O Milton Friedman, da Universidade de Chicago, era defensor aberto da legalização das drogas. O Livres é a favor da descriminalização, da legalização.

Agora saiu a medicinal, e os nossos deputados federais, Tiago Mitraud (Novo-MG) e Marcelo Calero (PPS-RJ), do Livres, entraram com projeto para permitir o plantio, para não ter de depender de indústrias farmacêuticas para usos medicinais. Depois a gente vai do plantio para discussão de uso recreativo. Aos poucos avançamos.

Vira e mexe você é agredida nas redes sociais. Sempre foi difícil ou o ambiente agora é mais agressivo?

No governo do PT, por causa da minha atuação na privatização, diziam que eu vendi o patrimônio público. Eu simplesmente bloqueava. Umas três vezes, eu fechei minha conta e comecei do zero, jurando que ia ter conta fechada para não entrar em polêmica. Chega uma hora, porém, vem a pergunta: qual a graça de ter uma conta fechada?

Mas agora é muito pior do que no tempo do PT. A agressão, a baixaria, o nível e o tom da agressividade, as palavras usadas, tudo tem outro padrão. E não é só robô. Eu devo ter bloqueado mais de mil contas. Botou petralha ou tucanália na minha tela, é bloqueado. O mais novo xingamento que eu recebo é de ser “isentona”, virou um xingamento hoje em dia. Eu sou agredida pelos dois grupos.

Você está otimista para 2020? Será que agora a economia vai? 

Temos uma retomada cíclica. Já tem gente falando em 3%. O problema é quanto disso vai se refletir em emprego formal, em emprego de qualidade, em aumento de produtividade, infraestrutura, se de fato a gente vai ter uma virada na educação. Você pode ser oposição, pode não gostar do governo, mas a obrigação é torcer para dar certo.

Um ano de bizarrices, sectarismo e ideologia, por Marco Aurélio Nogueira

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Complexidade do Brasil e do mundo esteve além do entendimento médio do governo em 2019 – O Estado de São Paulo, 28/12/2019.

Para dizer o mínimo: 2019 foi perturbador.

Chegamos a dezembro com sinais de que a economia começa a se recuperar. A taxa de crescimento bateu em 1% no ano, mas o desemprego e a renda continuaram a martelar os brasileiros. A produtividade permanece baixa, o crescimento não se mostra sustentado. Nos bastidores da estridência governamental, escorreu uma política econômica que se proclama liberal, mas age em nome de um governo que ameaça as liberdades básicas.

Nenhum país anda só com as pernas da economia. Depende de coisas que têm alto poder de determinação. É preciso olhar o todo, avaliar o que impacta o cotidiano da população, prestar atenção na política, naquilo que fazem as oposições e o governo, na repercussão de escândalos como o do senador Flávio Bolsonaro, nas atitudes intempestivas do presidente.

O balanço do ano não é animador. A política externa, ideologizada de modo caricatural, converteu o País em chacota mundial. Combinou sem critério o fundamentalismo religioso e o patriotismo rasteiro, trocando o pragmatismo característico do Itamaraty por pregações moralistas, subservientes, fechadas ao interesse nacional: uma visão que se aliena do mundo e do próprio País.

O meio ambiente foi tratado com desdém. As populações indígenas foram vistas como “entraves” à exploração do território e das florestas. Queimadas, desmatamento, óleo emporcalhando mares e praias, todo um cenário complicado a requerer uma atenção que não apareceu: em vez dela, sucederam-se insultos que isolaram o País.

A letalidade policial continuou a assustar. As mortes absurdas afetam principalmente os jovens, os mais pobres, os negros e mulatos, as periferias das grandes cidades. Uma parcela importantíssima da sociedade está sendo dizimada, encurralada, amedrontada.

A área da Cultura concentrou as principais aberrações, com encarregados a exibir seu reacionarismo e seu desprezo pelos produtos e produtores culturais. O aparelhamento é ostensivo: o que importa é a fidelidade ao chefe, não a competência. Artistas foram caçados como inimigos públicos. A Educação não ficou muito atrás, com a agravante de que o responsável por ela não só demonstrou completa falta de cultura e educação, como foi de uma inoperância a toda prova. Travou uma “guerra cultural” de baixíssimo nível contra escolas, professores, universidades, pesquisadores. Fez do MEC um deserto de ideias e iniciativas.

Das áreas que deveriam iluminar e fornecer diretrizes somente saíram fachos de obscurantismo e ideologia.

Um bizarro festival de besteiras assolou o País. Entre tapas, mentiras e fake news, instituiu-se a era da pós-verdade. A complexidade do Brasil e do mundo foi ignorada, esteve além do entendimento médio do governo. Autoridades públicas e agentes do Estado disputaram entre si para estabelecer quem fala a barbaridade maior, quem exibe a grosseria mais extremada ou demonstra a ignorância mais avessa à ciência e aos valores básicos da vida moderna. O presidente não demonstrou compostura ou respeito à liturgia do cargo que ocupa. Houve racismo explícito, preconceitos, difamações, ataques a direitos. A milícia digital foi abertamente incentivada. Consta que é coordenada por um “gabinete do ódio” instalado no Palácio do Planalto. O sectarismo deu o tom.

Obscurantistas empedernidos, monarquistas sem nobreza, filósofos de araque capricham em discursos e postagens que usam a religiosidade xucra para imbecilizar a população. O compósito é chocante. A Terra é plana, o aquecimento global é uma balela, o rock é satânico, os territórios e a natureza devem ser apropriados sem dó. Aos que pensam de outro modo, o fogo do Inferno.

Os colaboradores de Bolsonaro – civis e militares – mostraram-se mais serviçais do que se poderia imaginar. O capitão submeteu os generais. 2019 terminou com o País em regressão civilizatória, com muitos ataques e denúncias, à esquerda e à direita, mas nenhum debate.

Reforçou-se uma estranha dialética: o presidente tem alta impopularidade, mas é seguido por uma trupe de apoiadores que bebem suas palavras como se destilassem o soro da verdade e acreditam que é preciso, mesmo, “evitar a volta da esquerda”. É o que permite a um governo fraco falar grosso e sonhar com o futuro.

O Executivo não produziu, mas houve quem fez por ele. A Câmara e o Senado organizaram uma pauta “reformadora” e compensaram a inação governamental. O Supremo Tribunal Federal limitou excessos. Até a alquebrada Lava Jato ficou em evidência. A impressão foi de que havia um governo ativo, mas a falta de articulação entre os Poderes foi completa.

Consolidou-se a ideia de que é preciso administrar a crise fiscal e dinamizar a economia. Mas, no jogo que está sendo jogado, as cartas escondem blefes, os jogadores não revelam seus truques e a plateia acompanha sem entender os desfechos prováveis. Nada se fala sobre bem-estar, distribuição de renda, igualdade social e respeito. Na falta de um projeto nacional que proponha a reorganização democrática do País, as propostas governamentais vão passando, sem alternativas.

Um gestual, uma narrativa, atos em série – coerção à imprensa, ataques às instituições, agressões a minorias – soltaram um bafo de autoritarismo. O oficialismo quis passar a sensação de que tudo está “normal”. É uma “normalidade” fajuta, que intimida a população e abre espaços para fanáticos e radicais de direita, impulsionados pela ignorância que vai sendo decantada para a população a partir das cúpulas do governo.

Os democratas não podem assistir passivamente à onda de boçalidade e autoritarismo que se impõe, meio como pastiche, meio como pantomima. Precisam organizar uma agenda que congregue os que fazem da democracia uma praia comum, a ser defendida e valorizada. Não há mais tempo para projetos personalistas e cálculos partidários egoístas. Basta de divergências inúteis, diversionistas.

* PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP

A nova fase do Neoliberalismo, por Dardot e Laval

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Por Pierre Dardot e Christian Laval, no Viento Sur

Traduzido pelo IHU

Há uma dezena de anos vem se anunciando regularmente o fim do neoliberalismo: a crise financeira mundial de 2008 se apresentou como o último estertor de sua agonia, depois, foi a vez da crise grega na Europa (ao menos até julho de 2015), sem esquecer, é claro, o terremoto causado pela eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, em novembro de 2016, seguido do referendo sobre o Brexit, em março de 2017.

O fato de Grã-Bretanha e Estados Unidos, que foram terras de promissão do neoliberalismo em tempos de Thatcher e Reagan, deixarem parecer que lhe viraram as costas mediante uma reação nacionalista tão repentina, marcou os espíritos em razão do seu alcance simbólico.

Depois, em outubro de 2018, ocorreu a eleição de Jair Bolsonaro, que promete tanto o retorno da ditadura como a aplicação de um programa neoliberal de uma violência e uma amplitude muito parecidas com as dos Chicago Boys de Pinochet.

O neoliberalismo não só sobrevive como sistema de poder, como também se reforça. É preciso compreender esta singular radicalização, o que implica discernir o caráter tanto plástico, como plural do neoliberalismo. Mas, é necessário ir ainda mais longe e perceber o sentido das transformações atuais do neoliberalismo, ou seja, a especificidade do que aqui chamamos o novo neoliberalismo.

A crise como modo de governo

Recordemos de início o que significa o conceito de neoliberalismo, que perde uma grande parte de sua pertinência quando é empregado de forma confusa, como acontece muitas vezes. Não se trata somente de políticas econômicas monetaristas ou de austeridade, de mercantilização das relações sociais ou de ditadura dos mercados financeiros. Trata-se mais fundamentalmente de uma racionalidade política que se tornou mundial e que consiste em impor por parte dos governos, na economia, na sociedade e no próprio Estado, a lógica do capital até a converter na forma das subjetividades e na norma das existências.

Projeto radical e inclusive, caso se queira, revolucionário, o neoliberalismo não se confunde, portanto, com um conservadorismo que se contenta em reproduzir as estruturas desiguais estabelecidas. Através do jogo das relações internacionais de concorrência e dominação e da mediação das grandes organizações de ‘governança mundial’ (FMI, Banco Mundial, União Europeia, etc.), este modo de governo se tornou com o tempo um verdadeiro sistema mundial de poder, comandado pelo imperativo de sua própria manutenção.

O que caracteriza este modo de governo é que se alimenta e se radicaliza por meio de suas próprias crises. O neoliberalismo só se sustenta e se reforça porque governa mediante a crise. Com efeito, desde os anos 1970, o neoliberalismo se nutre das crises econômicas e sociais que gera. Sua resposta é invariável: em vez de questionar a lógica que as provocou, é preciso levar ainda mais longe essa mesma lógica e procurar reforçá-la indefinidamente.

Se a austeridade gera déficit orçamentário, é preciso acrescentar uma dose suplementar. Se a concorrência destrói o tecido industrial ou desertifica regiões, é preciso aguçá-la ainda mais entre as empresas, entre os territórios, entre as cidades. Se os serviços públicos já não cumprem sua missão, é preciso esvaziar esta última de qualquer conteúdo e privar os serviços dos meios que precisam. Se a diminuição de impostos para os ricos ou empresas não dão os resultados esperados, é preciso aprofundar ainda mais nisto, etc.

Este governo mediante a crise só é possível, está claro, porque o neoliberalismo se tornou sistêmico. Toda crise econômica, como a de 2008, é interpretada em termos de sistema e só recebe respostas que compatíveis com o mesmo. A ausência de alternativas não é tão somente a manifestação de um dogmatismo no plano intelectual, mas a expressão de um funcionamento sistêmico, em escala mundial. Para amparar a globalização e/ou reforçar a União Europeia, os Estados impuseram múltiplas regras e imperativos que os levam a reagir no sentido do sistema.

Contudo, o que é mais recente e sem dúvida merece nossa atenção é que agora se nutre das reações negativas que provoca no plano político, que se reforça com a mesma hostilidade política que suscita. Estamos assistindo a uma de suas metamorfoses, e não é a menos perigosa. O neoliberalismo já não precisa de sua imagem liberal ou democrática, como nos bons tempos que é necessário chamar, com razão, de neoliberalismo clássico. Esta imagem inclusive se tornou um obstáculo para sua dominação, coisa que somente é possível porque o governo neoliberal não hesita em instrumentalizar os ressentimentos de um amplo setor da população, falta de identidade nacional e de proteção pelo Estado, dirigindo-os contra bodes expiatórios.

No passado, muitas vezes, o neoliberalismo se associou com a abertura, o progresso, as liberdades individuais, com o Estado de direito. Atualmente, conjuga-se com o fechamento de fronteiras, a construção de muros, o culto à nação e a soberania do Estado, a ofensiva declarada contra os direitos humanos, acusados de colocar em perigo a segurança. Como é possível esta metamorfose do neoliberalismo?

Trumpismo e fascismo

Trump é incontestavelmente um marco na história do neoliberalismo mundial. Esta mutação não afeta apenas os Estados Unidos, mas todos os governos, cada vez mais numerosos, que manifestam tendências nacionalistas, autoritárias e xenófobas até o ponto de assumir a referência ao fascismo, como no caso de Matteo Salvini, ou à ditadura militar, como Bolsonaro.

O fundamental é compreender que estes governos não se opõem em nada ao neoliberalismo como modo de poder. Ao contrário, reduzem os impostos para os mais ricos, cortam os subsídios sociais e aceleram as desregulamentações, particularmente em matéria financeira e ambiental. Estes governos autoritários, dos quais a extrema direita cada vez mais faz parte, assumem na realidade o caráter absolutista e hiperautoritário do neoliberalismo.

Para compreender esta transformação, primeiro convém evitar dois erros. O mais antigo consiste em confundir o neoliberalismo com o ultraliberalismo, o libertarianismo, o retorno a Adam Smith ou o fim do Estado, etc. Como já nos ensinou há muito tempo Michel Foucault, o neoliberalismo é um modo de governo muito ativo, que não tem muito a ver com o Estado mínimo passivo do liberalismo clássico. Deste ponto de vista, a novidade não consiste no grau de intervenção do Estado, nem em seu caráter coercitivo. O novo é que o antidemocratismo inato do neoliberalismo, manifesto em alguns de suas grandes teóricos, como Friedrich Hayek, se plasma hoje em um questionamento político cada vez mais aberto e radical dos princípios e as formas da democracia liberal.

O segundo erro, mais recente, consiste em explicar que estamos diante de um novo fascismo neoliberal, ou então diante de um momento neofascista do neoliberalismo [2]. Que seja ao menos frustrante, se não perigoso politicamente, falar com Chantal Mouffe de um momento populista para apresentar melhor o populismo como um remédio ao neoliberalismo, isto está fora de qualquer dúvida. Que seja necessário desmascarar a impostura de um Emmanuel Macron, que se apresenta como o único recurso contra a democracia iliberal de Viktor Orbán e consortes, isto também é certo. Mas, por acaso, isto justifica que se misture em um mesmo fenômeno político a ascensão das extremas direitas e a deriva autoritária do neoliberalismo?

A assimilação é evidentemente problemática: como identificar se não mediante uma analogia superficial o Estado total tão característico do fascismo e a difusão generalizada do modelo de mercado e da empresa no conjunto da sociedade? No fundo, se esta assimilação permite lançar luz, centrando-nos no fenômeno Trump, sobre certo número de traços do novo neoliberalismo, ao mesmo tempo mascara sua individualidade histórica. A inflação semântica em torno do fascismo, sem dúvida, tem efeitos críticos, mas tende a afogar os fenômenos ao mesmo tempo complexos e singulares em generalizações pouco pertinentes, que por sua vez não podem a não ser dar lugar a um desarme político.

Para Henry Giroux [3], por exemplo, o fascismo neoliberal é uma “formação econômico-política específica”, que mistura ortodoxia econômica, militarismo, desprezo pelas instituições e as leis, supremacismo branco, machismo, ódio aos intelectuais e amoralismo. Giroux toma emprestado do historiador do fascismo, Robert Paxton (2009), a ideia de que o fascismo se apoia em paixões mobilizadoras que voltamos a encontrar no fascismo neoliberal: amor ao chefe, hipernacionalismo, fantasmas racistas, desprezo ao débil, inferior, estrangeiro, desconsideração pelos direitos e a dignidade das pessoas, violência para com os adversários, etc.

Embora encontramos todos estes ingredientes no trumpismo e mais ainda no bolsonarismo brasileiro, por acaso, não nos escapa sua especificidade em relação ao fascismo histórico? Paxton admite que “Trump retoma vários motivos tipicamente fascistas”, mas vê nele sobretudo os traços mais comuns de uma “ditadura plutocrática” [4]. Porque também existem grandes diferenças com o fascismo: não impõe o partido único, nem a proibição de qualquer oposição e de qualquer dissidência, não mobiliza e enquadra as massas em organizações hierárquicas obrigatórias, não estabelece o corporativismo profissional, não pratica liturgias de uma religião laica, não preconiza o ideal do cidadão soldado totalmente consagrado ao Estado total, etc. (Gentile, 2004).

A este respeito, todo paralelismo com o final dos anos 1930, nos Estados Unidos, é enganoso, por mais que Trump tenha feito seu o lema “America first”, nome dado por Charles Lindbergh à organização fundada em outubro de 1940 para promover uma política isolacionista frente ao intervencionismo de Roosevelt. Trump não converte em realidade a ficção escrita por Philip Roth (2005), que imaginou que Lindbergh triunfaria sobre Roosevelt nas eleições presidenciais de 1940. Ocorre que Trump não é para Clinton ou Obama o que Lindbergh foi para Roosevelt e que, neste sentido, qualquer analogia é precária. Se Trump estimula cada vez mais a escalada antiestablishment para agradar sua clientela eleitoral, não trata, no entanto, de suscitar revoltas antissemitas, ao contrário do Lindbergh do romance, inspirado diretamente no exemplo nazista.

Mas, sobretudo, não estamos vivendo um momento polanyiano, como acredita Robert Kuttner (2018), caracterizado pela recuperação do controle dos mercados pelos poderes fascistas frente aos estragos causados pelo não intervencionismo. Em certo sentido, é totalmente o contrário, e o caso é bastante mais paradoxal. Trump pretende ser o campeão da racionalidade empresarial, inclusive em sua maneira de realizar sua política, tanto interior como exterior. Vivemos o momento em que o neoliberalismo segrega a partir do interior uma forma política original que combina autoritarismo antidemocrático, nacionalismo econômico e racionalidade capitalista ampliada.

Uma crise profunda da democracia liberal

Para compreender a mutação atual do neoliberalismo e evitar confundi-la com o seu fim é preciso ter uma concepção dinâmica do mesmo. Três ou quatro decênios de neoliberalização afetaram profundamente a própria sociedade, instalando em todos os aspectos das relações sociais situações de rivalidade, de precariedade, de incerteza, de empobrecimento absoluto e relativo. A generalização da concorrência nas economias, assim como, indiretamente, no trabalho assalariado, nas leis e nas instituições que marcam a atividade econômica, teve efeitos destrutivos na condição das pessoas assalariadas, que se sentiram abandonadas e traídas. As defesas coletivas da sociedade, por sua vez, se fragilizaram. Os sindicatos, em particular, perderam força e legitimidade.

Os coletivos de trabalho se decompuseram, muitas vezes, por efeito de uma gestão empresarial muito individualista. A participação política já não tem sentido diante da ausência de opções alternativas muito diferentes. Por certo, a social-democracia, assentida à racionalidade dominante, está em vias de desaparecimento em um grande número de países.

Em suma, o neoliberalismo gerou o que Gramsci chamou de ‘monstros’ mediante um duplo processo de desfiliação da comunidade política e de adesão a princípios etnoidentitários e autoritários, que colocam em questionamento o funcionamento normal das democracias liberais. O trágico do neoliberalismo é que, em nome da razão suprema do capital, atacou os próprios fundamentos da vida social, do modo como havia sido formulado e imposto na época moderna, através da crítica social e intelectual.

Para dizer isso de maneira um tanto esquemática, a implementação dos princípios mais elementares da democracia liberal comportou rapidamente muito mais concessões às massas do que poderia ser aceito pelo liberalismo clássico. Este é o sentido do que se chamou justiça social ou também democracia social, que não deixou de ser criticada pelos grupos de teóricos neoliberais. Ao querer converter a sociedade em uma ordem da concorrência que só conheceria homens econômicos ou capitais humanos em luta uns contra outros, minaram as próprias bases da vida social e política nas sociedades modernas, especialmente em razão da progressão do ressentimento e da cólera que semelhante mutação não poderia deixar de provocar.

Como se surpreender então com a resposta da massa de perdedores ao estabelecimento desta ordem competitiva? Ao ver se degradar suas condições e desaparecer seus pontos de apoio e de referência coletivos, refugiam-se na abstenção política ou no voto de protesto, que é antes de mais nada um chamado à proteção contra as ameaças que pesam sobre sua vida e seu futuro. Em poucas palavras, o neoliberalismo engendrou uma crise profunda da democracia liberal-social, cuja manifestação mais evidente é a forte ascensão dos regimes autoritários e dos partidos de extrema direita, apoiados por uma ampla parte das classes populares nacionais. Deixamos para trás a época do pós-guerra fria, na qual ainda era possível acreditar na expansão mundial do modelo de democracia de mercado.

Assistimos agora, e de forma acelerada, um processo inverso de saída da democracia ou de desdemocratização, para retomar a justa expressão de Wendy Brown. Os jornalistas gostam de misturar a extrema direita e a esquerda radical no vasto marasmo de um populismo antissistema. Não veem que a canalização e a exploração desta cólera e destes ressentimentos pela extrema direita dão luz a um novo neoliberalismo, ainda mais agressivo, ainda mais militarizado, ainda mais violento, do qual Trump é tanto a bandeira como a caricatura.

O novo neoliberalismo

O que aqui chamamos de novo neoliberalismo é uma versão original da racionalidade neoliberal na medida em que adotou abertamente o paradigma da guerra contra a população, apoiando-se, para se legitimar, na cólera dessa mesma população e invocando, inclusive, uma soberania popular dirigida contra as elites, contra a globalização ou contra a União Europeia, de acordo com os casos.

Em outras palavras, uma variante contemporânea do poder neoliberal fez sua a retórica do soberanismo e adotou um estilo populista para reforçar e radicalizar o domínio do capital sobre a sociedade. No fundo, é como se o neoliberalismo aproveitasse a crise da democracia liberal-social que provocou e não cessa de agravar para impor melhor a lógica do capital sobre a sociedade.

Esta recuperação da cólera e dos ressentimentos requer sem dúvida, para ser realizada efetivamente, o carisma de um líder capaz de encarnar a síntese, outrora improvável, de um nacionalismo econômico, uma liberalização dos mecanismos econômicos e financeiros e uma política sistematicamente pró-empresarial. No entanto, atualmente, todas as formas nacionais do neoliberalismo experimentam uma transformação de conjunto, da qual o trumpismo nos oferece a forma quase pura.

Esta transformação acentua um dos aspectos genéricos do neoliberalismo, seu caráter intrinsecamente estratégico. Porque não esqueçamos que o neoliberalismo não é conservadorismo. É um paradigma governamental cujo princípio é a guerra contra as estruturas arcaicas e as forças retrógradas que resistem à expansão da racionalidade capitalista e, mais amplamente, a luta para impor uma lógica normativa a populações que não a querem.

Para alcançar seus objetivos, este poder emprega todos os meios que lhe são necessários: a propaganda dos meios de comunicação, a legitimação pela ciência econômica, a chantagem e a mentira, o descumprimento das promessas, a corrupção sistêmica das elites, etc. Contudo, uma de suas alavancas preferidas é o recurso às vias da legalidade, leia-se da Constituição, de modo que cada vez mais o marco no qual todos os atores devem se mover se torne irreversível. Uma legalidade que evidentemente é de geometria variável, sempre mais favorável aos interesses das classes ricas que aos do restante.

Não é necessário recorrer ao estilo antigo, aos golpes de Estado militares, para colocar em prática os preceitos da escola de Chicago, se é possível colocar um cadeado no sistema político, como no Brasil, mediante um golpe parlamentar e judicial. Este último permitiu, por exemplo, ao presidente Temer congelar durante 20 anos os gastos sociais (sobretudo em detrimento da saúde pública e da universidade). Na realidade, o brasileiro não é um caso isolado, por mais que lá os recursos da manobra sejam mais visíveis que em outras partes, sobretudo após a vitória de Bolsonaro como ponto de chegada do processo. O fenômeno, para além de suas variações nacionais, é geral: é no interior do marco formal do sistema político representativo que se estabelecem dispositivos antidemocráticos de uma temível eficácia corrosiva.

Um governo de guerra civil

A lógica neoliberal contém em si mesma uma declaração de guerra a todas as forças de resistência às reformas em todas as camadas da sociedade. A linguagem vigente entre os governantes de todos os níveis não engana: a população inteira precisa se sentir mobilizada pela guerra econômica, e as reformas do direito trabalhista e da proteção social são realizadas justamente para favorecer o envolvimento universal nessa guerra. Tanto no plano simbólico como no institucional, ocorre uma mudança a partir do momento em que o princípio de competitividade adquire um caráter quase constitucional.

Posto que estamos em guerra, os princípios da divisão de poderes, dos direitos humanos e da soberania do povo já possuem apenas um valor relativo. Em outras palavras, a democracia liberal-social tende progressivamente a se esvaziar para passar a não ser mais que o revestimento jurídico-político de um governo de guerra. Aqueles que se opõem à neoliberalização se situam fora do espaço público legítimo, são maus patriotas, quando não traidores.

Esta matriz estratégica das transformações econômicas e sociais, muito próxima a um modelo naturalizado de guerra civil, se junta com outra tradição, esta mais genuinamente militar e policial, que declara a segurança nacional a prioridade de todos os objetivos governamentais. A fragilização das liberdades públicas do Estado de direito e a extensão concomitante dos poderes policiais se acentuaram com a guerra contra a criminalidade e a guerra contra a droga dos anos 1970.

Contudo, foi sobretudo após a declaração de guerra mundial contra o terrorismo, imediatamente depois do 11 de setembro de 2001, que se deu o desdobramento de um conjunto de medidas e dispositivos que violam abertamente as regras de proteção das liberdades na democracia liberal, chegando inclusive a incorporar na lei a vigilância massiva da população, a legalização do encarceramento sem julgamento e o uso sistemático da tortura.

Para Bernard E. Harcourt (2018), este modelo de governo, que consiste em “fazer a guerra contra todo cidadão”, procede em linha direta das estratégias militares contrainsurgentes colocadas em prática pelo exército francês na Indochina e na Argélia, transmitidas aos especialistas estadunidenses da luta anticomunista e praticadas por seus aliados, especialmente na América Latina e no sudeste asiático.

Hoje, a “contrarrevolução sem revolução”, como a denomina Harcourt, busca reduzir por todos os meios a um inimigo interior e exterior onipresente, que tem muito mais cara de jihadista, mas que pode adotar muitas outras caras (estudantes, ambientalistas, camponeses, jovens negros nos Estados Unidos ou jovens dos subúrbios na França, e talvez, sobretudo neste momento, migrantes ilegais, preferentemente muçulmanos). E para levar a bom término esta guerra contra o inimigo, convém que o poder, por um lado, militarize a polícia e, por outro, acumule uma massa de informações sobre toda a população com a finalidade de impedir qualquer rebelião possível. Em suma, o terrorismo de Estado se encontra novamente em plena progressão, até mesmo quando a ameaça comunista, que lhe havia servido de justificativa durante a Guerra Fria, desapareceu.

A imbricação destas duas dimensões, a radicalização da estratégia neoliberal e o paradigma militar da guerra contrainsurgente, a partir da mesma matriz de guerra civil, constitui atualmente o principal acelerador da saída da democracia. Este enlace só é possível graças à habilidade com a qual certo número de responsáveis políticos da direita, ainda que também da esquerda, se dedicam a canalizar, mediante um estilo populista, os ressentimentos e o ódio aos inimigos escolhidos, prometendo às massas ordem e proteção em troca de sua adesão à política neoliberal autoritária.

O neoliberalismo de Macron

No entanto, não é exagerado meter todas as formas de neoliberalismo no mesmo saco de um novo neoliberalismo? Existem tensões muito fortes em escala mundial ou europeia entre o que se deve qualificar como tipos nacionais diferentes de neoliberalismo. Sem dúvida, não assimilaríamos Trudeau, Merkel e Macron a Trump, Erdogan, Orbán, Salvini e Bolsonaro.

Alguns ainda permanecem fiéis a uma forma de concorrência comercial supostamente leal, sendo que Trump decidiu mudar as regras da concorrência, transformando esta última em guerra comercial a serviço da grandeza dos Estados Unidos (America is Great Again). Alguns invocam ainda, de palavra, os direitos humanos, a divisão de poderes, a tolerância e a igualdade de direitos das pessoas, quando aos outros tudo isto não é cuidado. Alguns pretendem mostrar uma atitude humana frente aos migrantes (alguns muito hipocritamente), quando outros não têm escrúpulos na hora de rejeitá-los e repatriá-los. Portanto, convém diferenciar o modelo neoliberal.

O macronismo não é trumpismo, ainda que só fosse pelas histórias e as estruturas políticas nacionais em que se inscrevem. Macron se apresentou como o baluarte frente ao populismo de extrema direita de Marine Le Pen, como sua aparente antítese. Aparente, porque Macron e Le Pen, se não são pessoas idênticas, na realidade, são perfeitamente complementares. Um se faz de baluarte, quando a outra aceita vestir os hábitos do espantalho, o que permite ao primeiro se apresentar como garantidor das liberdades e dos valores humanos. Se preciso, como ocorre hoje nos preparativos para as eleições europeias, Macron se dedica a alargar artificialmente a suposta diferença entre os partidários da democracia liberal e a democracia iliberal do estilo de Orbán, para que as pessoas acreditem mais facilmente que a União Europeia se situa como tal do lado da democracia liberal.

No entanto, talvez não se tenha percebido suficientemente o estilo populista de Macron, que pode parecer uma simples máscara por parte de um puro produto da elite política e financeira francesa. A denúncia do velho mundo dos partidos, a rejeição ao sistema, a evocação ritual do povo da França, tudo isto era talvez suficientemente superficial, ou inclusive grotesco, mas não por isso deixou de fazer uso do emprego de um método característico, justamente, do novo neoliberalismo, o da recuperação da cólera contra o sistema neoliberal. Não obstante, o macronismo não tinha o espaço político para tocar esta música durante muito tempo. Logo, revelou-se como o que era e o que fazia.

Em linha com os governos franceses precedentes, mas de maneira mais declarada ou menos vergonhosa, Macron associa ao nome de Europa a violência econômica mais crua e mais cínica contra as pessoas assalariadas, aposentadas, funcionárias e assistidas, assim como a violência policial mais sistemática contra as manifestações de oponentes, como se viu, em particular, na Notre-Dame-des-Landes e contra as pessoas migrantes. Todas as manifestações sindicais ou estudantis, inclusive as mais pacíficas, são reprimidas sistematicamente por uma polícia armada até os dentes, cujas novas manobras e técnicas de força são pensadas para aterrorizar aqueles que se manifestam e intimidar o restante da população.

O caso de Macron está entre os mais interessantes para completar o retrato do novo neoliberalismo. Levando mais longe ainda a identificação do Estado com a empresa privada, até o ponto de pretender fazer da França um start-up nation, não para de centralizar o poder em suas mãos e chega, inclusive, a promover uma mudança constitucional que convalidará a fragilização do Parlamento em nome da eficácia.

A diferença com Sarkozy neste ponto salta à vista. Enquanto este último se agarrava a declarações provocadoras, ao mesmo tempo em que alcançava um estilo relaxado no exercício de sua função, Macron pretende devolver todo o brilho e solenidade à função presidencial. Deste modo, conjuga um despotismo de empresa com a subjugação das instituições da democracia representativa em benefício exclusivo do poder executivo.

Falou-se com razão de bonapartismo para lhe caracterizar, não só pela maneira como tomou o poder, acabando com os velhos partidos governamentais, como também por causa de seu desprezo manifesto a todos os contrapoderes. A novidade que introduziu nesta antiga tradição bonapartista é justamente uma verdadeira governança de empresa. O macronismo é um bonapartismo empresarial.

O aspecto autoritário e vertical de seu modo de governo se encaixa perfeitamente no marco de um novo neoliberalismo mais violento e agressivo, imagem e semelhança da guerra travada contra os inimigos da segurança nacional. Por acaso, uma das medidas mais emblemáticas de Macron não foi a inclusão na lei ordinária, em outubro de 2017, de disposições excepcionais do estado de emergência, declarado após os atentados de novembro de 2015?

A aplicação da lei contra a democracia

Não cabe descartar que se produza no Ocidente um momento polanyiano, ou seja, uma solução verdadeiramente fascista, tanto no centro como na periferia, sobretudo caso seja produzida uma nova crise da amplitude da de 2008. O acesso ao poder pela extrema direita na Itália é um toque de advertência suplementar. Enquanto isso, neste momento que prevalece até nova ordem, estamos assistindo a uma exacerbação do neoliberalismo, que conjuga a maior liberdade do capital com ataques cada vez mais profundos, contra a democracia liberal-social, tanto no âmbito econômico e social, como no terreno judicial e policial. É necessário se contentar em retomar o tópico crítico de que o estado de exceção se tornou a regra?

Ao argumento de origem schmittiano do estado de exceção permanente, retomado por Giorgio Agamben, que supõe uma suspensão pura e simples do Estado de direito, devemos opor os fatos observáveis: o novo governo neoliberal se implanta e cristaliza com a promulgação de medidas de guerra econômica e policial. Dado que as crises sociais, econômicas e políticas são permanentes, corresponde à legislação estabelecer as regras válidas de forma permanente, que permitam aos governos responder a elas a todo momento e inclusive preveni-las.

Deste modo, a crise e urgências permitiram o nascimento do que Harcourt denomina um “novo estado de legalidade”, que legaliza o que até agora não eram mais que medidas de emergência ou respostas conjunturais de política econômica e social. Mais que um estado de exceção que opõe regras e exceções, precisamos vê-las com uma transformação progressiva e muito sutil do Estado de direito, que incorporou em sua legislação a situação de dupla guerra econômica e policial para a qual os governos nos conduziram.

Para dizer a verdade, os governantes não estão totalmente desprovidos para legitimar intelectualmente semelhante transformação. A doutrina neoliberal já havia elaborado o princípio desta concepção do Estado de direito. Assim, Hayek subordinava explicitamente o Estado de direito à lei. Segundo ele, a lei não designa qualquer norma, mas, sim, exclusivamente, o tipo de regras de conduta que são aplicáveis a todas as pessoas por igual, incluídas os personagens públicos. O que caracteriza propriamente a lei é, portanto, a universalidade formal, que exclui qualquer forma de exceção.

Por conseguinte, o verdadeiro Estado de direito é o Estado de direito material (materieller Rechtsstaat), que requer da ação do Estado a submissão a uma norma aplicável a todas as pessoas em virtude de seu caráter formal. Não basta que uma ação do Estado seja autorizada pela legalidade vigente, à margem da classe de normas das quais deriva. Em outras palavras, trata-se de criar não um sistema de exceção, mas, ao contrário, um sistema de normas que proíba a exceção. E dado que a guerra econômica e policial não tem fim e reivindica cada vez mais medidas de coerção, o sistema de leis que legalizam as medidas de guerra econômica e policial precisa se estender por força para além de qualquer limitação.

Dizendo de outra forma, já não há freio ao exercício do poder neoliberal por meio da lei, na mesma medida em que a lei se tornou o instrumento privilegiado da luta do neoliberalismo contra a democracia. O Estado de direito não está sendo abolido de fora, mas destruído por dentro para fazer dele uma arma de guerra contra a população e a serviço dos dominantes.

O projeto de lei de Macron sobre a reforma das aposentadorias é, a este respeito, exemplar: em conformidade com a exigência de universalidade formal, seu princípio é que um euro cotado confere exatamente o mesmo direito a todos, seja qual for sua condição social. Em virtude deste princípio, está proibido, portanto, levar em conta a penúria das condições de trabalho no cálculo do valor da aposentadoria. Nesta questão, também fica evidente a diferença entre Sarkozy e Macron. Enquanto o primeiro fez aprovar uma lei após outra, sem que lhe acompanhassem respectivos decretos de aplicação, o segundo se preocupa muito com a aplicação das leis.

Aí está a diferença entre reformar e transformar, tão cara a Macron: a transformação neoliberal da sociedade requer a continuidade da aplicação no tempo e não pode se contentar com os efeitos do anúncio, sem mais. Além disso, este modo de proceder comporta uma vantagem inestimável: uma vez aprovada uma lei, os governos podem escapar de sua parte de responsabilidade sob pretexto de que se limitam a aplicar a lei.

No fundo, o novo neoliberalismo é a continuação do antigo de maneira pior. O marco normativo global que insere indivíduos e instituições dentro de uma lógica de guerra implacável, reforça-se cada vez mais e acaba progressivamente com a capacidade de resistência, desativando o coletivo. Esta natureza antidemocrática do sistema neoliberal explica em grande parte a espiral sem fim da crise e o aceleramento diante de nossos olhos do processo de desdemocratização, pelo qual a democracia se esvazia de sua substância, sem que se suprima formalmente.

Referências

Gentile, Emilio (2004) Fascismo: historia e interpretación. Madri: Alianza.

Harcourt, Bernard E. (2018) The Counterrevolution, How Our Government Went to War against its Own Citizens. Nova York: Basic Books.

Kuttner, Robert (2018) Can democracy survive Global Capitalism? Nova York/Londres: WW. Norton & Company.

Paxton, Robert O. (2009) Anatomía del fascismo. Madri: Capitán Swing.

Roth, Philip (2005) La conjura contra América. Barcelona: Mondadori.

Notas

  1. Prefácio à tradução em inglês, publicada pela editora Verso, de La pesadilla que no acaba nunca (Gedisa, 2017), obra publicada originalmente por La Découverte, Paris, em 2016.
  2. Éric Fassin, “Le moment néofasciste du néolibéralisme”, Mediapart, 29 de junho de 2018, https://blogs.mediapart.fr/eric-fassin/blog/290618/le-moment-neofasciste-du-neoliberalisme .

3 Henry Giroux, Neoliberal Fascism and the Echoes of History, Neoliberal Fascism and the Echoes of History, 08/09/2018.

4 Robert O. Paxton, “Le régime de Trump est une ploutocratie”, Le Monde, 6 de março de 2017.

Superciclos de Liquidez, por Paulo Gala

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GGN – 20/12/2019

Num cenário onde a leniência do FED vai ampliando o ciclo mundo afora, até que no final venha uma ajuda mais forte e rápida. Fiquemos atentos para a subida e a descida.

Os grandes movimentos de preços de ativos são, no fundo, reflexos de superciclos. Os mais tradicionais são os de liquidez e de commodities. Hoje vivemos um superciclo de expansão de liquidez por conta das respostas à crise de 2008 e um superciclo de aumento de preços de commodities devido à entrada de China e Índia de fato na economia mundial. É claro que a alta das commodities é também turbinada pela liquidez excedente. Uma chave de leitura fácil para entender a segunda metade do século XX e primeira do século XXI é estudar esses ciclos de liquidez. O maravilhoso texto “Capital flows to developing countries in a historical perspective”, de Yilmaz Akyuz, ajuda muito a entender. O autor apresenta quatro grandes ciclos de fluxos de capital para países emergentes medidos em bilhões de dólares e porcentagem do PIB desde o início dos 70. Dá para ver claramente o ciclo dos anos 70, que foi capitaneado por empréstimos para governos desenvolvimentistas na Ásia e América do Sul. A liquidez mundial veio dos déficits externos americanos e da reciclagem dos petrodólares depois de 1974. Foi também uma boa época para preços de commodities, e o endividamento no mundo emergente correu solto. E assim foi até a crise da dívida em 1980. Com medo da inflação, o FED deu uma paulada nos juros no final dos 70 e colocou todo o mundo emergente de joelhos.

A festa voltou com força nos anos 90, depois da digestão dos excessos dos 70. Essa nova festa foi também disparada por um excesso de liquidez decorrente da crise dos Savings and Loan nos EUA e do estouro da bolha japonesa em 1990. Dinheiro farto. E como diz meu amigo, o brilhante economista Gabriel Palma, lá estava de novo a América Latina como tomadora de empréstimos e liquidez de última instância. Nessa a Ásia surfou junto. Quem não se lembra por aqui da primeira metade da década de 90? Foi uma farra. Tudo subindo, todos se endividando. O segundo ciclo de boom e bust começou a terminar em 1997, com a crise asiática. Depois vieram Rússia, Brasil e Argentina. Nesse segundo ciclo, os investimentos diretos estrangeiros tiveram mais importância do que os empréstimos comerciais dos anos 70. Mas foi uma festa bonita de se ver também. Algumas pérolas do período: Puerto Madero, Petronas Towers.

Depois veio o terceiro ciclo. Turbinado pela redução das taxas de juro do Greenspan no rescaldo do estouro da bolha pontocom. Além disso houve a reciclagem dos superávits asiáticos, especialmente China, reinvestindo seus capitais em títulos americanos, jogando as taxas longas ainda mais para baixo. Juros baixos for all (menos aqui no Brasil). Então essa farra da liquidez que já conhecemos ajudou a criar a super-bolha americana. E se espraiou para o mundo emergente. Nessa época, a bolsa brasileira saiu de 10.000 para 70.000 pontos. Foi um belo ciclo. Aliás, nesse período entrou também o atual superciclo de commodities, graças a China e Índia. O ciclo acabou na quebra da Lehman Brothers em 2008. No terremoto seguido de tsunami, que todos nós sofremos. E por que estudar esses ciclos? Como isto tudo nos afeta? Bom, estamos agora entrando no quarto ciclo. Um ciclo de liquidez somado a um ciclo de commodities

E nesse novo superciclo a sincronia é ainda maior. Tudo anda junto agora. Quer ver? Commodities, moedas emergentes e bolsas sobem juntos. É um play de todos contra o dólar. Quando a liquidez vaza, os ativos emergentes sobem. Quando a liquidez volta para os EUA, os emergentes caem. A crise de 2008 foi emblemática. E as bolsas no mundo emergente estão absolutamente correlacionadas com os fluxos de capital. A enxurrada de dólares para esses países causou subidas simétricas. Cenas dos próximos capítulos. Em algum momento o FED vai começar a subir a taxa de juros e adotar estratégias de saída para as políticas de estímulo. O que vai ocorrer? Valorização do dólar, queda de commodities, depreciação de moedas e bolsas emergentes. Pode ser um processo gradual, é claro. Mas pode acontecer também de supetão. Num cenário onde a leniência do FED vai amplificando o ciclo mundo afora, até que no final venha um ajuste mais forte e rápido. Fiquemos atentos para a subida e a descida.

Paulo Gala é graduado em Economia pela FEA/USP. Mestre e Doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas FGV/EESP de São Paulo, onde é professor desde 2002. 

“Deus não morreu. Ele tornou-se Dinheiro”, entrevista com Giorgio Agamben.

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“O capitalismo é uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro”, afirma Giorgio Agamben, em entrevista concedida a Peppe Salvà e publicada por Ragusa News 16-08-2012.

Giorgio Agamben é um dos maiores filósofos vivos. Amigo de Pasolini e de Heidegger, foi definido pelo Times e pelo Le Monde como uma das dez mais importantes cabeças pensantes do mundo. Pelo segundo ano consecutivo ele transcorreu um longo período de férias em Scicli, na Sicília, Itália, onde concedeu a entrevista.

Segundo ele, “a nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governabilidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas”. Assim, “a tarefa que nos espera consiste em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”, afima Agamben.

A tradução é de Selvino  J. Assmann, professor de Filosofia do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC [e tradutor de três das quatro obras de Agamben publicadas pela Boitempo], para o site do Instituto Humanitas Unisinos.

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O governo Monti invoca a crise e o estado de necessidade, e parece ser a única saída tanto da catástrofe financeira quanto das formas indecentes que o poder havia assumido na Itália. A convocação de Monti era a única saída, ou poderia, pelo contrário, servir de pretexto para impor uma séria limitação às liberdades democráticas?

“Crise” e “economia” atualmente não são usadas como conceitos, mas como palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar. “Crise” hoje em dia significa simplesmente “você deve obedecer!”. Creio que seja evidente para todos que a chamada “crise” já dura decênios e nada mais é senão o modo normal como funciona o capitalismo em nosso tempo. E se trata de um funcionamento que nada tem de racional.

Para entendermos o que está acontecendo, é preciso tomar ao pé da letra a ideia de Walter Benjamin, segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro.  Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro.  O Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas – assumiu o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania), manipula e gere a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo. Além disso, o fato de o capitalismo ser hoje uma religião, nada o mostra melhor do que o titulo de um grande jornal nacional (italiano) de alguns dias atrás: “salvar o euro a qualquer preço”. Isso mesmo, “salvar” é um termo religioso, mas o que significa “a qualquer preço”? Até ao preço de “sacrificar” vidas humanas? Só numa perspectiva religiosa (ou melhor, pseudo-religiosa) podem ser feitas afirmações tão evidentemente absurdas e desumanas.

A crise econômica que ameaça levar consigo parte dos Estados europeus pode ser vista como condição de crise de toda a modernidade?

A crise atravessada pela Europa não é apenas um problema econômico, como se gostaria que fosse vista, mas é antes de mais nada uma crise da relação com o passado. O conhecimento do passado é o único caminho de acesso ao presente. É procurando compreender o presente que os seres humanos – pelo menos nós, europeus – são obrigados a interrogar o passado.  Eu disse “nós, europeus”, pois me parece que, se admitirmos que a palavra “Europa” tenha um sentido, ele, como hoje aparece como evidente, não pode ser nem político, nem religioso e menos ainda econômico, mas talvez consista nisso, no fato de que o homem europeu – à diferença, por exemplo, dos asiáticos e dos americanos, para quem a história e o passado têm um significado completamente diferente – pode ter acesso à sua verdade unicamente através de um confronto com o passado, unicamente fazendo as contas com a sua história.

O passado não é, pois, apenas um patrimônio de bens e de tradições, de memórias e de saberes, mas também e sobretudo um componente antropológico essencial do homem europeu, que só pode ter acesso ao presente olhando, de cada vez, para o que ele foi. Daí nasce a relação especial que os países europeus (a Itália, ou melhor, a Sicília, sob este ponto de vista é exemplar) têm com relação às suas cidades, às suas obras de arte, à sua paisagem: não se trata de conservar bens mais ou menos preciosos, entretanto exteriores e disponíveis; trata-se, isso sim, da própria realidade da Europa, da sua indisponível sobrevivência. Neste sentido, ao destruírem, com o cimento, com as autopistas e a Alta Velocidade, a paisagem italiana, os especuladores não nos privam apenas de um bem, mas destroem a nossa própria identidade. A própria expressão “bens culturais” é enganadora, pois sugere que se trata de bens entre outros bens, que podem ser desfrutados economicamente e talvez vendidos, como se fosse possível liquidar e por à venda a própria identidade.

Há muitos anos, um filósofo que também era um alto funcionário da Europa nascente, Alexandre Kojève, afirmava que o homo sapiens havia chegado ao fim de sua história e já não tinha nada diante de si a não ser duas possibilidades: o acesso a uma animalidade pós-histórica (encarnado pela american way of life) ou o esnobismo (encarnado pelos japoneses, que continuavam a celebrar as suas cerimônias do chá, esvaziadas, porém, de qualquer significado histórico). Entre uma América do Norte integralmente re-animalizada e um Japão que só se mantém humano ao preço de renunciar a todo conteúdo histórico, a Europa poderia oferecer a alternativa de uma cultura que continua sendo humana e vital, mesmo depois do fim da história, porque é capaz de confrontar-se com a sua própria história na sua totalidade e capaz de alcançar, a partir deste confronto, uma nova vida.

A sua obra mais conhecida, Homo Sacer, pergunta pela relação entre poder político e vida nua, e evidencia as dificuldades presentes nos dois termos. Qual é o ponto de mediação possível entre os dois pólos?

Minhas investigações mostraram que o poder soberano se fundamenta, desde a sua origem, na separação entre vida nua (a vida biológica, que, na Grécia, encontrava seu lugar na casa) e vida politicamente qualificada (que tinha seu lugar na cidade). A vida nua foi excluída da política e, ao mesmo tempo, foi incluída e capturada através da sua exclusão. Neste sentido, a vida nua é o fundamento negativo do poder. Tal separação atinge sua forma extrema na biopolítica moderna, na qual o cuidado e a decisão sobre a vida nua se tornam aquilo que está em jogo na política. O que aconteceu nos estados totalitários do século XX reside no fato de que é o poder (também na forma da ciência) que decide, em última análise, sobre o que é uma vida humana e sobre o que ela não é. Contra isso, se trata de pensar numa política das formas de vida, a saber, de uma vida que nunca seja separável da sua forma, que jamais seja vida nua.

O mal-estar, para usar um eufemismo, com que o ser humano comum se põe frente ao mundo da política tem a ver especificamente com a  condição italiana ou é de algum modo inevitável?

Acredito que atualmente estamos frente a um fenômeno novo que vai além do desencanto e da desconfiança recíproca entre os cidadãos e o poder e tem a ver com o planeta inteiro. O que está acontecendo é uma transformação radical das categorias com que estávamos acostumados a pensar a política. A nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governamentalidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas. E que este modelo seja, do ponto de vista do poder, mais econômico e funcional é provado pelo fato de que foi adotado também por aqueles regimes que até poucos anos atrás eram ditaduras. É mais simples manipular a opinião das pessoas através da mídia e da televisão do que dever impor em cada oportunidade as próprias decisões com a violência. As formas da política por nós conhecidas – o Estado nacional, a soberania, a participação democrática, os partidos políticos, o direito internacional – já chegaram ao fim da sua história. Elas continuam vivas como formas vazias, mas a política tem hoje a forma de uma “economia”, a saber, de um governo das coisas e dos seres humanos. A tarefa que nos espera consiste, portanto, em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”.

O estado de exceção, que o senhor vinculou ao conceito de soberania, hoje em dia parece assumir o caráter de normalidade, mas os cidadãos ficam perdidos perante a incerteza na qual vivem cotidianamente. É possível atenuar esta sensação?

Vivemos há decênios num estado de exceção que se tornou regra, exatamente assim como acontece na economia em que a crise se tornou a condição normal. O estado de exceção – que deveria sempre ser limitado no tempo – é, pelo contrário, o modelo normal de governo, e isso precisamente nos estados que se dizem democráticos. Poucos sabem que as normas introduzidas, em matéria de segurança, depois do 11 de setembro (na Itália já se havia começado a partir dos anos de chumbo) são piores do que aquelas que vigoravam sob o fascismo. E os crimes contra a humanidade cometidos durante o nazismo foram possibilitados exatamente pelo fato de Hitler, logo depois que assumiu o poder, ter proclamado um estado de exceção que nunca foi revogado. E certamente ele não dispunha das possibilidades de controle (dados biométricos, videocâmeras, celulares, cartões de crédito) próprias dos estados contemporâneos. Poder-se-ia afirmar hoje que o Estado considera todo cidadão um terrorista virtual. Isso não pode senão piorar e tornar impossível aquela participação na política que deveria definir a democracia. Uma cidade cujas praças e cujas estradas são controladas por videocâmeras não é mais um lugar público: é uma prisão.

A grande autoridade que muitos atribuem a estudiosos que, como o senhor, investigam a natureza do poder político poderá trazer-nos esperanças de que, dizendo-o de forma banal, o futuro será melhor do que o presente?

Otimismo e pessimismo não são categorias úteis para pensar. Como escrevia Marx em carta a Ruge: “a situação desesperada da época em que vivo me enche de esperança”.

Podemos fazer-lhe uma pergunta sobre a aula que o senhor deu em Scicli? Houve quem lesse a conclusão que se refere a Piero Guccione como se fosse uma homenagem devida a uma amizade enraizada no tempo, enquanto outros viram nela uma indicação de como sair do xeque-mate no qual a arte contemporânea está envolvida.

Trata-se de uma homenagem a Piero Guccione e a Scicli, pequena cidade em que moram alguns dos mais importantes pintores vivos. A situação da arte hoje em dia é talvez o lugar exemplar para compreendermos a crise na relação com o passado, de que acabamos de falar. O único lugar em que o passado pode viver é o presente, e se o presente não sente mais o próprio passado como vivo, o museu e a arte, que daquele passado é a figura eminente, se tornam lugares problemáticos. Em uma sociedade que já não sabe o que fazer do seu passado, a arte se encontra premida entre a Cila do museu e a Caribdis da mercantilização. E muitas vezes, como acontece nos templos do absurdo que são os museus de arte contemporânea, as duas coisas coincidem.

Duchamp talvez tenha sido o primeiro a dar-se conta do beco sem saída em que a arte se meteu. O que faz Duchamp quando inventa o ready-made? Ele toma um objeto de uso qualquer, por exemplo, um vaso sanitário, e, introduzindo-o num museu, o força a apresentar-se como obra de arte. Naturalmente – a não ser o breve instante que dura o efeito do estranhamento e da surpresa – na realidade nada alcança aqui a presença: nem a obra, pois se trata de um  objeto de uso qualquer, produzido industrialmente, nem a operação artística, porque não há de forma alguma uma poiesis, produção – e nem sequer o artista, porque aquele que assina com um irônico nome falso o vaso sanitário não age como artista, mas, se muito, como filósofo ou crítico, ou, conforme gostava de dizer Duchamp, como “alguém que respira”, um simples ser vivo.

Em todo caso, certamente ele não queria produzir uma obra de arte, mas desobstruir o caminhar da arte, fechada entre o museu e a mercantilização.  Vocês sabem: o que de fato aconteceu é que um conluio, infelizmente ainda ativo, de hábeis especuladores e de “vivos” transformou o ready-made em obra de arte. E a chamada arte contemporânea nada mais faz do que repetir o gesto de Duchamp, enchendo com não-obras e performances em museus, que são meros organismos do mercado, destinados a acelerar a circulação de mercadorias, que, assim como o dinheiro, já alcançaram o estado de liquidez e querem ainda valer como obras. Esta é a contradição da arte contemporânea: abolir a obra e ao mesmo tempo estipular seu preço.

Sobre o autor

Giorgio Agamben nasceu em Roma em 1942. É um dos principais intelectuais de sua geração, autor de muitos livros e responsável pela edição italiana das obras de Walter Benjamin. Deu cursos em várias universidades europeias e norte-americanas, recusando-se a prosseguir lecionando na New York University em protesto à política de segurança dos Estados Unidos. Foi diretor de programa no Collège International de Philosophie de Paris. Mais recentemente ministrou aulas de Iconologia no Istituto Universitario di Architettura di Venezia (Iuav), afastando-se da carreira docente no final de 2009. Sua obra, influenciada por Michel Foucault e Hannah Arendt, centra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, política. Entre seus principais livros destacam-se Homo sacer (2005), Estado de Exceção (2005), Profanações (2007), O que resta de Auschwitz (2008) e O reino e a glória (2011) os quatro últimos publicados no Brasil pela Boitempo Editora. 

A grande divergência, por Rodrigo Zeidan

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Estamos no meio de um processo de retrocesso como na década de 1930

As eleições no Reino Unido e na Argélia, o novo acordo comercial entre EUA, México e Canadá, o quase abandono da Organização Mundial do Comércio e a nova lei para cidadania na Índia são parte de um movimento de desglobalização. O Brasil, um país já isolado, vai ter que se contentar com migalhas, como vender carne para a China.

As sociedades estão dispostas a pagar um alto preço pelo isolamento e pela maior autonomia de decisão sobre migração e comércio. No Reino Unido, o brexit já tem afetado a economia, e as coisas devem piorar.

Mais de 60% das empresas britânicas colocam a saída da União Europeia como um dos três maiores riscos para os negócios. O brexit deve custar pelo menos 2% do PIB por ano até 2023.

Estimativas indicam que cada família vai perder £ 870 (cerca de R$ 4.700) por ano, permanentemente. As coisas ainda podem piorar, dependendo de quão atabalhoado seja o brexit.

O outro resultado relevante da eleição britânica é o fato de que o Partido Nacional Escocês (SNP, em inglês) levou praticamente toda a Escócia. Não deve demorar para nova votação para independência (no referendo de 2014, 55% votaram por manter a Escócia no Reino Unido).
Na Argélia, os cinco candidatos eram ex-membros do governo, em uma eleição de fachada na qual, inicialmente, o presidente pretendia concorrer ao quinto mandato. Isolado o país estava e continuará.

O acordo EUA-Canadá-México (USCMA, em inglês) substitui o Nafta com raro apoio dos dois partidos americanos. O USCMA é uma versão bem aguada do Nafta e acaba com o livre-comércio na região.

Na Índia, o isolacionismo vem alienar mais de 200 milhões de muçulmanos. Uma nova lei de imigração torna praticamente impossível que refugiados muçulmanos (e também ateus e judeus) consigam cidadania indiana.

O governo de Narendra Modi tem uma trajetória similar ao atual governo brasileiro.

Assumiu prometendo reformas, mas concentrou a maior parte dos seus esforços numa agenda ultranacionalista de costumes. Resultado? A economia desacelera fortemente.

Globalmente, os organismos multilaterais estão definhando. Na quarta-feira (11), o painel de juízes da OMC parou de funcionar, já que os mandatos venceram e os Estados Unidos bloqueiam novas nomeações. Simplesmente não há mais quem analise disputas comerciais entre países por árbitros razoavelmente lentos. O protecionismo comercial não vai ser mais punido.

O isolacionismo não afeta somente comércio, mas também investimentos. Há sinais claros de que as cadeias de suprimento globais estão se reorganizando e encolhendo.

Em 2018, foram 60.500 os projetos de investimento de empresas estrangeiras na China.

Em 2019, esse número não deve passar de 40 mil (no acumulado do ano até setembro, eram pouco mais de 30 mil).

Os investimentos chineses nos Estados Unidos e no mundo também se contraíram, com previsão de queda de mais de 30% para este ano. E isso depois de esses investimentos, somente nos EUA, terem despencado mais de 80% em 2018.

O que vale para a China vale para o resto do mundo. Investimentos estão sendo adiados, e a incerteza torna mais difícil qualquer recuperação, seja chinesa, indiana ou brasileira.

Estamos no meio de um processo de retrocesso como na década de 1930, com a onda protecionista varrendo o sistema global. Esperemos que desta vez não acabe em tragédia. De qualquer forma, a onda nacionalista pode ser temporária, mas os efeitos serão sentidos por muito tempo.

Rodrigo Zeidan

Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

 

Economia Brasileira, lenta recuperação e mudanças estruturais

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Depois de um período de forte degradação econômica, marcado por uma recessão que gerou mais de 13 milhões de desempregados e um contingente de quase 40 milhões de pessoas na indignidade, onde além dos desempregados somamos os subempregados e os desalentados, a economia brasileira dá sinais, ainda medíocres e inconsistentes, de recuperação econômica, gerando de um lado os ventos ufanistas daqueles que querem acreditar que encontramos os caminhos concretos do crescimento e logo estaremos nos destacando no cenário internacional, rumo ao tão almejado desenvolvimento econômico.

Neste período de crise econômica, as condições sociais pioraram consideravelmente, comprometendo todas as melhoras que tivemos no período 2003/2013, quando o país conseguiu a façanha de crescer e incluir mais pessoas dentro do sistema econômico, gerando mais emprego e melhorando as perspectivas do país, dando a grupos, até então excluídos ou marginalizados, algumas perspectivas de sonhar com um futuro melhor, estes sonhos acabaram se transformando em um verdadeiro pesadelo na atualidade, comprometendo conquistas importantes e gerando fortes preocupações políticas e econômicas, que passaram a colocar em xeque a nossa frágil democracia, como estamos vendo acontecer em outros países e regiões da comunidade internacional.

A economia brasileira vivenciou um momento de grande crise econômica e constrangimentos sociais, a recessão degradou grande parte das conquistas anteriores e gerou forte descontentamento na sociedade, depois de quedas no produto interno bruto de 3,9% em 2015 e de 3,6% em 2016, a economia apresentou algum espasmo de crescimento no período 2017/2018, onde crescemos baixíssimos 1,1 e 1,2%, números estes insuficientes para melhorar as condições econômicas e abrir novas oportunidades de investimentos e geração de empregos. Na atualidade estamos percebendo alguns sinais de melhorias, embora tímidas e limitadas, estamos percebendo que o crescimento de 2020 deve chegar na casa dos 2%, número ainda baixo para resolver os graves desajustes econômicos, mas depois de anos de baixíssimo crescimento, até mesmo estes números estão sendo comemorados pela elite econômica nacional.

A dureza do período 2014/2016 pode ser compreendida como um período de grandes equívocos na condução da política econômica, marcado por desonerações exageradas, por políticas de controle de preços em setores como os combustíveis e energia elétrica, além de queda nos juros sem se atentar para os indicadores macroeconômicos, tudo isso culminou numa situação de insolvência generalizada na estrutura produtiva, descontrole nos gastos governamentais e uma grande confusão na condução na política monetária, cujas intervenções foram vistas pela sociedade como desastrosas e seus resultados extremamente negativos para a economia brasileira.

A partir de 2016, as bases da política econômica se alteraram imensamente, neste momento o governo passou a diminuir as intervenções estatais, deixou que os preços dos serviços controlados pelo Estado se acomodassem em um patamar maior, levando a inflação a um incremento que obrigou o governo federal a adoção de medidas fortes para reduzir as atividades econômicas e combatesse a inflação que crescia de forma acelerada, gerando desconfortos crescentes para o governo. A opção pela austeridade nos gastos públicos era descrita pelo governo como uma forma de reestruturar as finanças do setor público e colocar as despesas em ordem, evitando, com isso, o descontrole fiscal e financeiro que permeava a economia brasileira a algumas décadas e as autoridades via nesta oportunidade um momento exato e propício para que o ajuste fiscal, sempre postergado, fosse feito de forma rápida, generalizada e agressiva, evitando que o Estado Nacional continuasse a pagar juros elevados para financiar suas despesas e conseguisse recursos para o tão esperado e desejado investimento público.

A recuperação, ora em curso, deve ser vista com entusiasmo reduzido, isto porque estamos num momento muito particular da economia brasileira, percebemos e nos alegramos com a retomada, todos almejam que a economia volte ao tão acalentado crescimento econômico, visando algo maior e mais consistente, parecido com um sustentável desenvolvimento econômico. Nestes anos percebemos que a desindustrialização crassa a economia brasileira, os indicadores nos mostram que passamos por um processo perigoso de desindustrialização, nosso setor industrial vem perdendo participação no produto interno bruto, estes dados deveriam acender uma luz na sociedade, mostrando-a que nenhum país conseguiu se aventurar no desenvolvimento econômico sem, antes, construir uma estrutura industrial de relevo, diversificada e dotada de tecnologias, máquinas e equipamentos altamente sofisticados.

Embora tenhamos grande vocação agrícola, tema este que sempre esteve presente nos espaços de discussões política e econômica, como no grande debate materializado por dois expoentes da sociedade brasileira, Eugênio Gudin, economista  liberal e defensor da vocação agrícola nacional e Roberto Simonsen, grande industrial paulista, idealizador da FIESP e defensor ardoroso do desenvolvimento de uma base industrial de destaque, que colocasse a sociedade brasileira na condição de destaque no cenário internacional. Neste momento, o Brasil começava a trilhar caminhos sólidos e consistentes para reverter sua condição de país subdesenvolvido, o debate auxiliou na construção de bases concretas para a indústria nacional e o sonho, da época, de que o apoio a indústria traria ganhos incomensuráveis para a sociedade brasileira e nos levaria ao panteão dos países desenvolvidos, deixando para trás anos de colonização e exploração.

Depois desta discussão e da vitória dos industrializantes, a economia começou a galgar espaços de industrialização, marcadas por um projeto fortemente intervencionista, centrado no Estado nacional, nas políticas industriais ativas e nacionalistas, o país conseguiu construir uma base industrial de destaque, nos destacando entre as maiores economias do mundo e nos colocando como o país que mais cresceu no período 1900/1980, onde saímos de uma condição de fragilização econômica, centrada no meio rural e fortemente dependente do trabalho desqualificado, para uma economia industrializada, numa sociedade urbana e marcada por trabalhadores em crescente qualificação, com isso, éramos descritos como um país em ascensão no cenário internacional e com potencial econômico que gerava grandes ciúmes em países desenvolvidos e naqueles que caminhavam na estrada do desenvolvimento.

Depois dos anos 1980, o Brasil perdeu o rumo do crescimento econômico, nossos indicadores pioraram de forma acelerada, nossa indústria perdeu força e nossas questões sociais se agravaram fortemente, entramos num período de reestruturação e a agenda econômica se tornou a mais relevante para definir os rumos futuros do país, para voltar a crescer e fazer com que os ventos do desenvolvimento voltassem, eram necessários que debelássemos a inflação que crescia de forma avassaladora e controlássemos o endividamento externo, cujo potencial de degradação era bastante acelerado. Os anos 90 foram responsáveis pela estabilização econômica, políticas de estabilização foram implementadas para que nossos indicadores voltassem a valores aceitáveis na economia internacional, estes indicadores demoraram a cair para números civilizados, na atualidade podemos considerá-los mais parecido com os que encontramos internacionalmente, hoje a inflação está na casa dos 4% ao ano, uma grande conquista para um país que, em épocas anteriores, registrou números próximos de 80% ano mês ou mais de 2000% ao ano.

A recuperação econômica, ora em curso, nos parece consistente, embora devemos destacar ainda, que além da desindustrialização, estamos bastante preocupados com a qualidade da economia que vai emergir desta crise, estamos vendo claramente uma forte degradação do emprego, estamos gerando novas ocupações em situação bastante precária, com proteção social reduzida e com grande parte da força de trabalhando na informalidade, culminando em empregos piores e grande degradação para a classe trabalhadora.

Estamos criando empregos em setores com baixa produtividade, tais como a construção civil, serviços não sofisticados em geral (lojas, restaurantes, cabeleireiros, serviços médicos, call centers, telecom, etc..), além de serviços de transportes (motoristas de ônibus, caminhões e taxis), entre outros. A produtividade destes empregos gerados na economia brasileira é bastante reduzida e muito parecida com estes empregos em países como os Estados Unidos, Europa e Ásia. Nas comparações internacionais, percebemos que o grande diferencial de produtividade entre as economias está justamente no setor de bens transacionáveis, especialmente nos empregos industriais, justamente aqueles empregos que não estamos gerando na atualidade, longe dos chamados serviços não sofisticados.

Os empregos gerados devem ser descritos como de baixa complexidade econômica, neles estamos pagando salários reduzidos e deixando de incorporar novas tecnologias, de agregar valores aos produtos vendidos e, quando necessitamos dos produtos de alto valor agregado, temos que recorrer aos grandes conglomerados globais, sediados em países que conseguiram desenvolver um parque industrial de altíssima complexidade econômica, com isso, nos tornamos importadores de tecnologias, máquinas, equipamentos e pesquisas científicas e nos especializamos em exportar produtos agrícolas, as chamadas commodities. Estamos retornando ao debate descrito acima que, embora bastante relevante, nos mostra um final diferente dos anos 1930/1940, neste novo debate da contemporaneidade, os vencedores tendem a ser os defensores da especialização nos produtos primários, como sempre desejaram os economistas liberais.

O setor agrícola brasileiro passa por um amplo processo de desenvolvimento, a agricultura nacional está ganhando espaço no mercado global, trazendo ganhos financeiros consideráveis, o grande problema é que setor agrícola tradable, que já foi intensivo em mão de obra, encontra-se inteiramente mecanizado, diante disso, percebemos que o que sobra para a formação de capital fixo são migalhas. Embora devemos ter orgulho do setor agrícola nacional, devemos compreender, que nenhum país conseguiu alçar espaços consistentes de desenvolvimento econômico dependendo do setor agrícola, ainda mais quando percebemos que as grandes tecnologias utilizadas na agricultura nacional são importadas e são produzidas por grandes conglomerados internacionais, sediados em países desenvolvidos que possuem um setor industrial sólido e desenvolvido, baseado em altos investimentos tecnológicos, em máquinas sofisticadas e em equipamentos de grande complexidade, exigindo mão de obra altamente qualificada e dotada de uma educação de destaque internacional, que os colocam nas melhores posições nos principais indicadores de educação da sociedade internacional.

Não existe atalho ao desenvolvimento econômico das nações, todos que conseguiram construir uma sociedade mais desenvolvida, se utilizaram do Estado como agente planejador, investidor e regulador, além de um mercado centrado na concorrência e em instituições sólidas e consistentes, onde a educação sempre recebeu os mais sólidos investimentos, onde as leis eram sempre claras e precisas, marcados por um ambiente de estabilidade política, onde as decisões se davam de forma ágil e rápidas e a interação entre Estado e Mercado visavam o bem comum da coletividade, neste cenário todos os agentes econômicos e sociais sabiam exatamente sua importância dentro da construção de um ambiente propício ao investimento produtivo e a uma melhora das condições sociais.

Em pleno século XXI, o país precisa rever questões centrais em sua inserção na economia internacional, sem indústria relevante e com trabalho precário, baseado em aplicativos, com baixos salários e condições degradantes, estamos nos condenando a uma posição de indignidade e de subalternidade aos grandes conglomerados internacionais, estes sim os verdadeiros donos do mundo, controladores dos recursos financeiros, das grandes mídias, dos grandes bancos, dos complexos industriais e das mentes de todos os indivíduos, o futuro que se desenha é preocupante e assustador, com isso, os movimentos sociais e as reivindicações dos trabalhadores, que crescem em todas as regiões do mundo, desde os países mais miseráveis até os desenvolvidos  tendem a aumentar e a se intensificar, pois estes movimentos retratam as angústias das pessoas e os medos mais íntimos e secretos que todos carregamos dentro de nossas intimidades.

Descontentamento e insatisfação social na sociedade global

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Depois da crise financeira que afetou a economia internacional em 2008, a sociedade vem passando por aumento das instabilidades, dos medos e dos descontentamentos, levando população as ruas, movimentos separatistas, conflitos étnicos e divergências políticas crescentes, criando instabilidades e incertezas generalizadas em todos os rincões do globo.

Nestes movimentos encontramos reivindicações generalizadas, desde movimentos reivindicando mais espaço de participação democrática, passando por movimentos defendendo políticas públicas mais específicas para o combate a pobreza e a desigualdade, movimentos reivindicando o impeachment de governantes até movimentos com bandeiras mais conservadoras, em defesa da família e dos bons costumes, o mundo se encontra em um momento de grandes reflexões, todos reivindicam um novo modelo de sociedade, mais oportunidades, mais democracia e uma melhor perspectiva para um futuro próximo, onde a tecnologia e os progressos científicos e tecnológicos sejam empregados para melhorar as condições de todos os indivíduos e não se restrinja a um grupo social ou a um conjunto de afortunados e bem nascidos.

Nestas movimentações que se espalham por todas as regiões do mundo, encontramos de tudo, desde movimentos mais pacíficos e tolerantes até grupos mais agressivos e violentos, que acreditam que apenas com o uso da força vão conseguir demonstrar para a sociedade seus anseios e suas mais íntimas angústias. São movimentos que denotam uma angústia global da sociedade, atingindo desde países ricos e desenvolvidos, como países pobres e também países que se encontram em ascensão econômica, sendo descrito por muitos, como uma economia com potencial elevado de desenvolvimento.

Para que compreendamos estes movimentos precisamos deixar claro, que a ciência econômica se encontra em um momento de grande inquietação, não conseguindo dar as respostas demandadas pela sociedade, sendo vista mais como um instrumento de dominação e de legitimação dos interesses dos donos do capital, que dominam ainda a ciência, a tecnologia, as finanças e os grandes conglomerados, do que como um instrumento político de organização e de combate ao subdesenvolvimento econômico e da escassez, como era de seu interesse em seus mais íntimos primórdios de existência. Neste novo momento, a economia está se negando a visualizar as evidências em curso na sociedade, os movimentos da economia monetária e financeira se sobrepondo a produção e o desenvolvimento se colocando cada vez mais distante da sociedade, onde apenas poucos estão usufruindo das benesses do desenvolvimento econômico.

Nesta discrepância que vivemos de riqueza, de prosperidade e de oportunidade na sociedade global, as pessoas estão cada vez mais desgostosas com a situação que vivem, indivíduos trabalhando em condições degradantes, sendo que muitos indivíduos estão sem nenhum trabalho, o crescimento de uma tecnologia que reduz as oportunidades de emprego para uma parcela considerável da sociedade, o enfraquecimento dos sindicatos, dos partidos e dos movimentos dos trabalhadores, embora muitos acreditem que estes eram muito corporativistas, dificilmente encontramos sindicatos, sejam patronais ou de trabalhadores, que não possuem perfis corporativistas, vivemos num momento de  grandes perdas para as classes trabalhadores e neste momento o lema deve ser, união e resistência, pois o drama pode aumentar de forma exponencial.

Só para que tenhamos uma mínima ideia do descalabro que vivemos na contemporaneidade, 82% de toda a riqueza criada no ano de 2018 ficou concentrada nas mãos de apenas 1% da população mundial, ou seja, apenas 70 milhões de pessoas embolsaram mais de 80% da riqueza global, enquanto as outras 99% ou 6,93 bilhões de pessoas do mundo, dividiram apenas 18% da riqueza gerada pela economia internacional, estes números ajudam a compreender alguns dos motivos das reivindicações dos indivíduos nos mais variados países do mundo.

Nestes movimentos, muitos se tornam guerras e conflitos abertos, como estamos vendo no Chile, um país que poucos imaginavam que seria acometido com reivindicações assim, afinal, desde o governo autoritário de Augusto Pinochet, as condições econômicas estão melhorando de forma acelerada, como defendem os apoiadores do general, que para implementar estas medidas liberais, milhares de pessoas foram mortas ou desapareceram e nunca mais foram encontradas. Na atualidade, percebemos que a situação real dos chilenos não é tão agradável como o discurso oficial quer demonstrar, os ventos do liberalismo econômico implementado pelos Chicago Boys não foram tão auspiciosos, mesmo com inflação sob controle e indicadores macroeconômicos positivos, a população se encontra em situação de desalento e de desesperança, os serviços públicos foram privatizados, as universidades foram todas repassadas a iniciativa privada e todos que possuem condições podem acessar estes serviços, desde que possuam recursos para pagar ou condições para angariar créditos financeiros para usufruir destes benefícios, o que percebemos é que os descontentamentos cresceram, os endividados aumentaram e a insatisfação cresce de forma acelerada, tudo isso culminou na situação degradante que estamos vivenciando.

Encontramos movimentos em países desenvolvidos, a França depois de ser acossada pelo movimento dos coletes amarelos, o país se encontra em um momento de grandes reivindicações contra a proposta de reforma da Previdência defendida pelo presidente Emmanuel Macron. Nestes movimentos, encontramos milhares de cidadãos franceses indo para as ruas e rechaçando a reforma proposta pelo governo, percebemos ainda, que todas estas medidas que estão sendo apresentadas pelo governo francês, estiveram presentes na pauta de inúmeros países, em decorrência do envelhecimento da população e das transformações no emprego e nos modelos de trabalho da contemporaneidade, embora estas justificativas sejam corretas, elas não nos mostra os grandes ganhadores destas reformas, o sistema financeiro e as finanças internacionais, todos os grupos dotados dos grandes recursos globais, que controlam os grandes conglomerados e mantem grande influência sobre os governos, controlando indicações em setores estratégicos, desde os altos cargos da equipe econômica, até os responsáveis pela política monetária, todos oriundos dos grandes bancos nacionais e estrangeiros.

Os conflitos em curso em Hong Kong também estão chamando a atenção da comunidade internacional, são manifestações que confrontam diretamente o governo chinês e reivindicam maior abertura política, maior transparência e uma maior autonomia com relação ao poderio autoritário da China. Embora seja um movimento forte e consistente, destoa dos movimentos citados anteriormente, tanto no Chile quanto na França, pois estão sendo motivados por direitos imateriais, ao contrário dos movimentos dos outros países, que podem ser descritos como um medo maior do rumo que sua respectiva sociedade está tomando, os chilenos estão denunciando ao mundo uma condição de degradação, onde uma parcela menor está usufruindo dos benesses deste capitalismo globalizado, enquanto uma parcela considerável da população vive em condições de degradação e sem perspectivas de melhoras no médio prazo. No caso da França, percebemos um movimento de resistência da população, que anteriormente vivia sob o manto de um Estado de Bem-Estar social que incluía e garantia uma condição econômica e social de destaque, mas agora percebe que todas as conquistas estão sendo deixadas de lado e as perspectivas são sombrias e perturbadoras.

Neste ambiente de inquietação na sociedade internacional, os cidadãos estão percebendo que os políticos não representam os anseios e os desejos da comunidade, que a política está carcomida com corrupção, desmandos e interesses privados e que os interesses da população estão cada vez mais distantes dos interesses dos donos do poder e, principalmente, dos donos do capital. Estes últimos dominam as questões financeiras, controlam os grandes conglomerados econômicos e produtivos e influenciam as escolhas da coletividade, são eles que dominam a ciência e a tecnologia e estão prestes a controlar as grandes empresas estatais, defendendo as privatizações de forma radical e unilateral, mostrando suas vantagens e escondendo seus malefícios, o exemplo chileno pode servir como um instrumento de reflexão, a retirada do Estado de países pobres com população tão dependentes e carentes dos serviços públicos pode ser um erro fatal, cujos constrangimentos não tardam a se materializar.

A sociedade começa a perceber a insustentabilidade deste sistema altamente tóxico, onde de um lado degradamos o meio ambiente, aumentamos as queimadas e ameaçamos terras demarcadas, de outro estimulamos o trabalho precário e degradante, com cargas excessivas e com jornadas que não mais poupam os domingos e feriados, tudo isso para produzir e aumentar os lucros dos grupos que mais ganham. Neste ambiente percebemos uma degradação dos laços sociais e uma forte fragilização das famílias, onde a carga de trabalho é tão excessiva que os filhos não mais se encontram com seus pais, onde os casais não mais tem tempo para ficar juntos, conversar e planejar suas existências, neste ambiente entregamos os rebentos para a escolha educar e transmitir conhecimentos, exigências excessivas para uma escola mal preparada, mas instrumentalizada e com recursos humanos ultrapassados, o resultado desta equação estamos vendo todos os dias na comunidade, professores ausentes das aulas por depressão, escolas violentas e degradadas, polícias agressivas e defasadas e uma comunidade amedrontada e indivíduos imaturos e despreparados para os embates da vida, tudo isso se materializa em ansiedades, depressões generalizadas e, nos extremos do mundo contemporâneo, em um crescimento acelerado e vertiginoso do suicídio, principalmente entre indivíduos entre 15 e 29 anos, que cansaram de sonhar, perderam as esperanças e encontram nas drogas a fuga de um mundo que não lhes garante oportunidades.

O mundo contemporâneo ressente de valores mais concretos, nos últimos anos estamos percebendo que os valores da sociedade estão dominados pelo poder do dinheiro e do capital, estes pensam a sociedade através da busca constante pelos rendimentos, pelos ganhos materiais e pelos prazeres do imediatismo, com isso, percebemos que o novo Deus da sociedade capitalista é o Dinheiro, por ele, pessoas rendem as maiores homenagens, concedendo-lhes os prêmios mais robustos e transformando-o em um grande mantra, nos valores do mundo contemporâneo, os valores baseados na ética e na moral coletiva são substituídos por valores dos indivíduos, vivemos e cultivamos o individualismo e depois reclamamos da competição excessiva e da solidão, vivemos em uma sociedade líquida, como nos mostrou o grande sociólogo polonês Zygmunt Baumman, com Amores Líquidos e Medos Líquidos, retratando a alma e as dores dos indivíduos na contemporaneidade. Estamos regredindo a passos largos, estamos perdendo como civilização e como seres humanos, deixando valores passageiros dominarem o comportamento social e nossa coesão como indivíduos, nossos sentimentos e emoções. Estamos nos deixando levar pelo imediatismo do consumo e os gozos dos prazeres insaciáveis do sexo e do dinheiro, para que tenhamos uma visão menos pessimista e introduzir um pouco de esperança em um mundo tão marcado pela desesperança, recorramos a história, esta nos mostra que, depois da tormenta, da tempestade e da degradação, o ser humano sempre busca a bonança, acreditemos nisso, sempre!