Muitos gostam de colher onde nunca semearam
Michael França, Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.
Folha de São Paulo, 08/08/2023
Em um recente artigo, Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia e colunista do jornal The New York Times, trouxe interessantes perspectivas sobre a atual conjuntura do mercado de trabalho dos Estados Unidos.
Krugman começa sua coluna com uma citação de Bernie Marcus, cofundador de uma grande loja americana, na qual ele afirma que o socialismo destruiu a ética do trabalho. Segundo a visão de Marcus, ninguém quer trabalhar atualmente. Os americanos teriam virado preguiçosos e dependentes do Estado.
Tal afirmação contrasta com a realidade vivida por aquele país. A economia mostrou o quanto os americanos querem trabalhar. Dado o envelhecimento da população, deveria ter ocorrido uma queda no percentual de trabalhadores no mercado de trabalho. Porém o que se observa é justamente o contrário.
Quando se consideram características como gênero e idade, o emprego nos Estados Unidos está no nível mais alto da história. Com o atual mercado de trabalho aquecido, até grupos historicamente marginalizados, como os que têm algum tipo de deficiência e os imigrantes, estão conseguindo considerável espaço.
Os fatos não costumam mudar as opiniões das pessoas. Talvez isso seja ainda mais saliente entre conservadores. No Brasil, por exemplo, o Bolsa Família, famoso programa de transferência de renda para os pobres, é visto por um amplo conjunto de especialistas no meio acadêmico como uma política bem-sucedida, dado que diversas pesquisas mostraram que ela teve vários impactos sociais positivos a um baixo custo.
Apesar de o respaldo empírico sugerir o contrário, não é raro encontrar alguém no país dizendo que o programa produz preguiçosos. Em especial, entre os mais ricos, corriqueiramente, tal afirmação se faz presente. Entretanto é preciso subverter esse debate.
Quando se olha demais para a parte inferior da distribuição de rendimentos e riqueza, se esquece de questionar a parte superior. Nesse contexto, a “bolsa família” recebida pelos filhos dos mais ricos tem o potencial de deixar muitos deles relativamente preguiçosos.
Isso porque, visto que parte das ações humanas é movida pelas aspirações individuais, vários daqueles que nascem em ambientes ricos e com baixa competitividade podem não ter incentivos suficientes para se esforçarem em ir além daquilo que já foi construído nas gerações anteriores.
Afinal, quase tudo lhes é dado.
Sabe-se que vários membros das elites não construíram seus patrimônios sozinhos. Desse modo, o legado familiar afeta o conjunto de escolhas e a potencial oferta de trabalho. Alguns usam seus privilégios para se desenvolver. Trabalham duro e avançam os limites daquilo que foi construído pelos antepassados.
Outros apenas herdam as riquezas criadas por terceiros e vivem da renda gerada por ela. Não acrescentam muito valor à sociedade. São o que se convencionou chamar de rentistas. Algo que não é novo na história da humanidade.
Adam Smith, considerado como o pai da economia, já tinha destacado padrão análogo ao analisar a renda derivada dos aluguéis, séculos atrás. De acordo com Smith, os proprietários de terra, como todos os outros homens, gostam de colher onde nunca semearam.