Brasil precisa descobrir os assassinatos, por Luiz Francisco Carvalho Filho

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Luiz Francisco Carvalho Filho, Advogado criminal, é autor de “Newton” e “Nada mais foi dito nem perguntado”

Folha de São Paulo, 11/10/2025

São mais de 44 mil assassinatos, o mais grave dos crimes, em 2024. O número está em queda desde pelo menos 2012, mas não há motivo para comemorar. O problema brasileiro é gigantesco.

Monitoramento do Instituto da Paz registra uma média estável, entre 35% e 44%, de casos esclarecidos nos últimos nove anos. A média mundial é 63%.

A divulgação da pesquisa “Onde Mora a Impunidade” (em 2023, 36% dos homicídios foram esclarecidos) coincidiu com mais um intrigante assassinato em novelinha da Globo, e não faltaram referências. Quem matou Odete Roitman? “Na vida real”, diz o Sou da Paz, “as chances de essa pergunta ser respondida são bem pequenas”.

O desfecho da trama sem a identificação do autor e do motivo do crime poderia frustrar os telespectadores, mas não estaria distante da realidade.

Matar premeditadamente sempre foi complexo. Antigamente, locais ermos. Agora, lugares sem vigilância de smart cam. A esperteza sempre foi capaz de proteger assassinos, transferir culpas, incriminar falsamente bandidos ou inocentes, confundir autoridades. Com a inteligência artificial, a capacidade de enganar e despistar parece infinita.

O impacto do crime de morte no meio social é dramático. O assassinato é instrumento de poder no âmbito do crime organizado. Assim como o sentimento de impunidade, o efeito colateral do homicídio praticado por agentes policiais (6.243 em 2024) corrói gravemente a credibilidade do poder público.

Sucateamento da Polícia Civil por governadores de todos as linhas ideológicas, despreparo dos agentes, corrupção, falta de vontade política, falta de meios e recursos, falta de inteligência, falta de acesso a banco de dados, desrespeito a protocolos, ineficiência processual, tudo ajuda a explicar os números desalentadores.

O Atlas da Violência revela que entre 2013 e 2023 mais de 135 mil mortes não tiveram a intencionalidade identificada. Os “homicídios ocultos” nas estatísticas proliferam em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia —responsáveis por 66,4% das chamadas MVCI (Mortes Violentas por Causa Indeterminada).

O Brasil ainda não tem um indicador nacional de esclarecimento de homicídios. O Sou da Paz criou o seu indicador para estimular a criação de uma métrica oficial. Os dados que recolhe do Ministério Público e dos Tribunais de Justiça, via Lei de Acesso à Informação, afetados pela falta de padronização, são incompletos e insuficientes, sobretudo em relação a marcadores de gênero, raça e faixa etária de vítimas.

O indicador nacional de esclarecimento de homicídio é ferramenta inestimável para o conhecimento da realidade e para políticas de prevenção e punição de atentados que atingem a vida de famílias e comunidades.

O recente crime contra Luiz Fernando Pacheco, advogado querido e notável, é uma exceção porque, filmados os suspeitos, identificados por reconhecimento facial, a repercussão do caso faz a polícia trabalhar.

O sentimento de segurança conspira contra a privacidade, a intimidade, a liberdade de ir e de estar. Se a erosão dos direitos da personalidade é irreversível, retirar o manto escuro que encobre assassinatos é uma contrapartida obrigatória para o espírito de vigilância extrema que se instala em nossas cidades.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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