Marcelo Viana, Diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France.
Folha de São Paulo, 30/09/2025.
Nas décadas que se seguiram à independência dos Estados Unidos, pensadores e estudiosos europeus como o aristocrata francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) viajaram extensivamente pelo jovem país, admirando e analisando criticamente o nascimento de uma nação, uma cultura e uma sociedade como o mundo nunca vira. Hoje, algo semelhante está acontecendo na China.
São as pequenas coisas, como o robozinho do meu hotel em Pequim. Nos conhecemos no elevador. Entrou no terceiro andar, deu oi (“Ni hao!”) e girou para encarar a saída. Não sei como disse ao elevador para onde ia. Quando a porta abriu no sétimo andar, saiu para ir à sua vida.
A segunda interação foi mais substancial. Encomendei o jantar por aplicativo, para entrega no quarto. Algum tempo depois ligaram da recepção: eu não falo chinês, a pessoa não falava inglês, foi um diálogo bem curto. Alguns minutos depois ouvi a campainha do quarto. Abri a porta e lá estava o robozinho, entregando a minha comida e me desejando bom apetite (acho…).
São coisas maiores, como o centro de treinamento de última geração onde a Universidade Beihang forma anualmente centenas de profissionais para a indústria aeronáutica e aeroespacial da China (Beihang é a número um do mundo na área). Novos modelos de avião são testados em simuladores equipados com softwares avançados, muito antes de qualquer protótipo da aeronave começar sequer a ser construído para testes reais. A matemática e a computação guiando a engenharia.
E são as coisas realmente grandes, como a incrível rede de trens de alta velocidade que a China construiu nos últimos 15 anos. Cerca de 50 mil quilômetros de linhas eletrificadas que já ligam todas as cidades acima de 1 milhão de habitantes, a velocidades entre 200 e 350 km/h. E não para de crescer: até 2035 deverão alcançar 70 mil quilômetros.
O conforto e a eficiência, econômica e ambiental, estão muito além dos sonhos do transporte rodoviário ou aéreo baseado em combustíveis fósseis. A viagem de cerca de 1.250 quilômetros entre Pequim e Hangzhou, na região de Xangai, tomou 4h40 e foi muito repousante. Vou lembrar na próxima vez que eu for do Rio a Brasília (mesma distância) de carro, ônibus ou avião.
Certos aspectos do modelo de desenvolvimento da China são um pouco perturbadores para um visitante ocidental. Nas universidades chinesas, não há folha de frequência para os alunos assinarem: a presença de cada um é aferida automaticamente pela detecção do respectivo celular na sala de aula. Em algumas instituições, as aulas são filmadas e as imagens ficam acessíveis a uma comissão interna da universidade. O objetivo oficial é aferir a qualidade da docência.
A minha entrada na Cidade Proibida, a espetacular residência histórica dos imperadores da China, foi validada por reconhecimento facial. O estudante de doutorado da Universidade de Pequim que gentilmente me servia de guia e tradutor questionou: “Quando eles tomaram seus dados?”. “Só pode ter sido a polícia no aeroporto, na chegada”, respondi. Aparentemente, a minha biometria ficou automaticamente acessível a uma miríade de instituições em todo o país.
As pessoas com quem interagi durante as três semanas no país parecem aceitar tais coisas com naturalidade, estimando que o lucro em comodidade e eficiência supera o prejuízo em privacidade individual. O que não elimina os riscos, obviamente. Continuarei na semana que vem.