Não é a primeira vez que se decreta o colapso de Pequim nem será a última
Tatiana Prazeres, Executiva na área de relações internacionais e comércio exterior, trabalhou na China entre 2019 e 2021.
Folha de São Paulo, 27/08/2022.
Duas patologias correlatas costumam afetar análises sobre a China: o triunfalismo e o colapsismo. O primeiro é diagnosticado entre os que veem como inexorável e inabalável a ascensão do Império do Meio, destinado a reocupar o centro do mundo.
Os desafios atuais da economia chinesa, no entanto, favorecem o segundo viés analítico – o colapsismo. Para começar, o setor imobiliário, que responde por cerca de 25% do PIB do país, enfrenta problemas graves. As vendas caíram mais de 30% no primeiro semestre, mas as construtoras dependem de novos empreendimentos para concluir os que estão em curso. Diante do temor de que obras sejam paralisadas, comprador aderiram a “greves de pagamento”. E, sem receber as prestações, as construtoras não concluem as obras.
Profecia que se autorrealiza, num setor altamente alavancado e endividado. Analistas lembram, não sem razão, do risco de que a crise imobiliária se espalhe para o setor financeiro e contagie o conjunto da economia.
Além disso, há custos crescentes na manutenção da política de Covid zero no país. Em 2020, a China foi a primeira a entrar e a primeira a sair da fase inicial da pandemia. A economia se recuperou em V. Dois anos depois, as autoridades seguem procurando uma porta de saída para a estratégia que, no início, efetivamente funcionou. Lockdowns em Shenzen e Xangai, neste ano, custaram caro para a atividade econômica.
Para piorar, secas sem precedentes estão, hoje, provocando racionamentos de energia. Ainda, o setor de tecnologia sente os efeitos de regulações restritivas recentes. Para completar, aumentam as tensões geopolíticas.
Apesar da meta de crescimento anunciada de 5,5% para 2022, o PIB chinês ficou praticamente estagnado no segundo trimestre. O FMI estima que a expansão será de 3,3%, o que, excluído 2020, seria a menor em mais de quatro décadas.
Nesse cenário, não surpreende que o colapsismo esteja em alta. De todos os cantos, brotam análises que pintam um quadro de derrocada da economia chinesa. E que profetizam que desta vez é para valer. A bolha que nunca estoura —título de um livro sobre a China do economista-chefe da Bloomberg— agora estouraria.
Ocorre que tanto o triunfalismo quanto o colapsismo sofrem de viés de confirmação. Adeptos de ambas as práticas apenas valorizam o que reforça suas teses. Costumam analisar a realidade à luz do que gostariam que acontecesse.
Para os colapsistas, a atual fotografia econômica da China corrobora a visão apocalíptica.
Apesar da gravidade dos problemas, há exagero entre aqueles que enxergam tão somente fragilidades e ignoram tanto a resiliência da economia chinesa quanto o fato de que as autoridades detêm mais ferramentas e menos restrições para corrigir rumos econômicos do que em outras partes. Não é garantido que irão acertar —mas seguramente têm mais instrumentos para isso.
Em 2016, a conhecida Foreign Affairs trouxe um artigo intitulado “O fim da ascensão da China”. Em 2021, a mesma revista trouxe outro artigo exatamente com o mesmo título. No Twitter, um observador perguntou, ironicamente, se a Foreign Affairs estava sob algum tipo de obrigação contratual de publicar periodicamente um texto antecipando a derrocada chinesa.
Um segundo logo postou a capa de outra renomada publicação, a Foreign Policy, cujo título vaticinava, em 1995, “O colapso iminente da China”. O PIB per capita chinês passou de US$ 1.520 para US$ 11,2 mil desde então.
Ambas as patologias analíticas são oportunistas, teimosas e danosas. Longe dos excessos dos extremos, a China pode, sim, estar embarcando numa trajetória de crescimento mais lento —o que não significa que sua economia esteja prestes a esfarelar. Não é a primeira vez que se decreta o colapso chinês. Não será a última.