Desprezo pelos direitos humanos é a receita certa para o fracasso
Oscar Vilhena Vieira Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
Folha de São Paulo, 23/10/2021
Acusado de deliberadamente “causar pandemia, mediante a propagação de germes patogênico”, além de diversos outros delitos, que resultaram na morte milhares de pessoas, Bolsonaro emerge da CPI como uma figura destituída de qualquer capacidade de expressar empatia pelo povo que governa. O sofrimento, a dor e mesmo as mortes não foram capazes de provocar no presidente, ainda que por mero cinismo, nenhum sinal de compaixão – “todo mundo morre um dia”; “e daí?”; menos ainda foram suficientes para induzi-lo a atos concretos voltados a mitigar a pandemia, concluiu o relatório.
A questão que se coloca é como chegamos até aqui? Como uma parcela substantiva do eleitorado, que certamente não é formada por uma maioria de pessoas destituídas de senso moral, foi capaz de se identificar com uma figura que passou a vida a repudiar e desprezar a dignidade e os direitos das pessoas? Como confiaram em alguém obcecado pela violência, pelas armas, pela destruição do meio ambiente e da cultura; um defensor intransigente de uma liberdade absoluta de discriminar, ofender e excluir mulheres, negros, indígenas e gays; um político empenhado por décadas em demonizar todos aqueles que se contrapõem às suas ideias, como ficou registrado na recente e infame imputação de pedofilia dirigida a ex-ministros de direitos humanos?
Certamente a ascensão de Bolsonaro é resultante de graves fatores de natureza política e econômica, que convulsionaram a vida dos brasileiros nos últimos anos, gerando muito ressentimento e desconfiança em relação a políticos tradicionais. A escolha de Bolsonaro, no entanto, só foi possível porque uma parcela significativa do eleitorado, que se apresenta como liberal ou democrata, aceitou se juntar a uma outra parcela minoritária do eleitorado, que jamais escondeu o seu repúdio à democracia e aos direitos humanos.
Isso indica um preocupante descompromisso de amplos setores de nossa sociedade com o imperativo político, jurídico e moral, inerente à gramática dos direitos humanos e da democracia liberal, de que todas as pessoas têm igual valor, devendo ser tratadas dignamente.
As desigualdades estruturais e persistentes, de natureza social, econômica e racial, certamente têm contribuído para que o respeito recíproco à dignidade, que deveria cimentar uma sociedade democrática, não tenha se consolidado entre nós. Nesse sentido, ainda que muitos não cheguem a dar de ombros à morte ou o sofrimento alheio –ou mesmo repudiem o comportamento tosco do presidente–, o fato é que assumiram o risco de instalar no poder e apoiar alguém que jamais escondeu seu desprezo por esses princípios civilizatórios. Os resultados estão aí.
Como salientaram os redatores da Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, “o desprezo e o desrespeito aos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade”. Assim como as vacinas, os direitos humanos constituem um instrumento imprescindível para evitar catástrofes que com frequência ameaçam a vida e o bem-estar das pessoas, no dizer do grande jurista argentino Carlos Santigo Nino. Quando são negligenciados, estamos automaticamente fomentando desastres, como o vivenciado pela sociedade brasileira neste período.
O desastre pandêmico, devidamente registrado pela CPI, não é, portanto, apenas um inelutável infortúnio sanitário, mas o resultado necessário de uma escolha política inconsequente, pautada por um profundo desprezo à dignidade humana.