Michel Aires de Souza Dias – A Terra é Redonda – 09/10/2025
A personalidade autoritária floresce onde o eu é fraco e a experiência formativa, deteriorada. Mais que uma patologia individual, é o resultado previsível de uma sociedade que produz sujeitos incapazes de resistir às promessas de poder e pertencimento
1.
Os estudos de Theodor Adorno, na década de 1940, sobre a personalidade autoritária continuam atuais, pois nos oferecem instrumentos teóricos para refletirmos sobre o advento de regimes autoritários nos dias de hoje.
Ao chegar aos Estados Unidos, os frankfurtianos ficaram espantados com o antissemitismo daquele país. Eles descobriram que o fascismo não se restringia ao contexto histórico e político da Europa, não se tratava de um fenômeno isolado, mas estava presente de forma latente na estrutura psíquica dos indivíduos, em uma grande parcela da população norte-americana.
Como observou Costa (2019), ao se exilarem nos Estados Unidos, os pensadores alemães se depararam com um grande preconceito contra judeus, que correspondiam a 3,5% da população nacional. Tratava-se de uma grande contradição para um país que se orgulhava da liberdade e dos princípios democráticos, mas que convivia com um enorme preconceito racial. Essa experiência culminou na seguinte indagação: seria possível um fenômeno análogo ao nazifascismo em um país que se diz democrático, como os Estados Unidos?
O livro A personalidade autoritária é considerado um clássico da psicologia social. Foi um trabalho interdisciplinar, dirigido pela equipe da Universidade de Berkeley, fundamentado em pesquisas empíricas nos Estados Unidos, que usou escalas de atitudes, entrevistas e testes projetivos. Todos esses instrumentos foram usados ao lado de uma teoria social e a uma teoria do inconsciente, procurando entender a psicologia do homem autoritário.
A grande preocupação foi com os indivíduos potencialmente fascistas, que possuíam certa estrutura de personalidade, tornando-se suscetíveis à propaganda antidemocrática. Os pesquisadores descobriram que os indivíduos que apresentam extrema suscetibilidade à propaganda autoritária possuíam características em comum, que formavam uma síndrome. A partir disso foi elaborada uma escala denominada escala F, que buscou avaliar o preconceito etnocêntrico e as disposições latentes, que tornam uma pessoa inclinada ao caráter autoritário.
Nove traços de personalidade mais comuns foram vistos como autoritários: convencionalismo; submissão acrítica; agressividade autoritária; destruição e cinismo; poder e rudeza; superstição e estereotipia; exteriorização; projeção; e obsessão com a sexualidade (ADORNO, 2019).
As pesquisas feitas nos Estados Unidos mostraram que, em alguns indivíduos, o antissemitismo formava um padrão de comportamento antidemocrático. Não se tratava apenas de características psíquicas. Para os pesquisadores, os preconceitos racistas têm uma origem socialmente determinada. Ao serem expostos a determinadas condições sociais, alguns indivíduos responderiam de forma preconceituosa. Desse modo, os estudos encontraram um tipo antropológico autoritário, com um padrão psicológico, determinado por certas condições sociais objetivas (COSTA, 2019).
Como o próprio Theodor Adorno aponta: “Estamos convencidos de que a fonte última do preconceito deve ser buscada em fatores sociais incomparavelmente mais fortes que a ‘psique’ de qualquer indivíduo envolvido” (ADORNO, 2021, p. 352). Significa, portanto, que a psicologia do indivíduo não pode ser hipostasiada, uma vez que os aspectos sociais são fundamentais para a compreensão do caráter autoritário. As convicções econômicas, políticas e sociais de um indivíduo fascista formam um padrão amplo e coerente, desenvolvendo um tipo de mentalidade específica, que expressa certas tendências preconceituosas de sua personalidade.
2.
O que é bastante relevante nas descobertas de Theodor Adorno é que, mesmo com o fim dos regimes totalitários na Europa, os pressupostos sociais objetivos que produziram o nazifascismo ainda estavam presentes. Desse modo, a personalidade fascista não pode ser compreendida apenas como um fenômeno circunscrito a um período histórico particular, mas deve, antes, ser entendida a partir da ordem e organização econômica da realidade, que transformam as pessoas em átomos sociais dessubjetivados.
A superioridade do aparato técnico e econômico exerce enorme pressão sobre os indivíduos. Para sobreviver, eles precisam se adaptar e aceitar as coerções impostas pela realidade. Como Theodor Adorno (1995) avalia, personalidades com características autoritárias, de modo geral, se identificam com instâncias de poder, independentemente de seu conteúdo. Os indivíduos carregam consigo uma identidade fragilizada, que as leva a se identificar com toda espécie de coletivo.
No capitalismo avançado, as pessoas se tornaram objetos de controle, organização e coordenação em larga escala, sendo determinadas por um grande aparato técnico e burocrático. Desse modo, a formação dos indivíduos tornou-se tecnologicamente mediada, sendo estabelecida pela indústria cultural, impossibilitando que eles adquiram autonomia e liberdade de pensamento. Hoje, mesmo com o avanço das tecnologias da informação, onde se reduziu o tempo e o espaço para a circulação da informação e do conhecimento, as pessoas se tornam presas fáceis do discurso ideológico.
Na sociedade tecnológica, as formas de dominação e controle se tornaram cada vez mais interligadas, cada vez mais conectadas. Essas novas tecnologias, como smartphones, tablets, notebooks, celulares, câmeras, vídeo games, inserem-se na mesma lógica de dominação da indústria cultural. Com o processo de globalização, essas novas tecnologias possibilitaram o desenvolvimento de uma nova cultura internacional popular e, em consequência disso, permitiram um maior controle sobre os indivíduos.
Como avalia Rodrigo Duarte (2003), com o processo de globalização, os meios de comunicação de massa vêm passando por enormes transformações. Observa-se uma grande concentração de capitais, de modo que apenas uma dúzia de corporações controla quase toda oferta de mercadorias culturais colocadas à disposição do mercado mundial.
3.
Na avaliação de Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985), a produtividade econômica, que poderia ser usada para a construção de um mundo mais justo e igualitário, conferiu ao aparelho técnico e aos grupos sociais que o controlam um poder descomunal sobre o resto da população. Desse modo, a autonomia do indivíduo foi anulada em face dos poderes econômicos. Ele se tornou um átomo social isolado, mediado socialmente, sem consciência da totalidade reificada que o subjuga.
Na esfera da interioridade, a subjetividade foi capturada pelos mecanismos ideológicos da indústria cultural, tornando-se incapaz de desenvolver a consciência crítica da realidade. O resultado disso foi a massificação do indivíduo, que se tornou parte das engrenagens sociais: “Na sua individualização, o indivíduo reflete a lei social estabelecida da exploração” (ADORNO, 2008, p.145).
Na sociedade de massas a racionalidade instrumental se impõe como forma predominante do pensar e agir. Desse modo, o sujeito moderno não se constitui de maneira autônoma. O “eu” (Ich) semiformado pela indústria cultural e pelo aparato técnico é moldado pelas exigências sociais objetivas do capitalismo administrado. Os pensadores frankfurtianos partem do princípio materialista de que o indivíduo é determinado pela totalidade social. A subjetividade não possui uma natureza fixa, acabada, mas é moldada na interação com as estruturas econômicas, políticas e culturais da sociedade.
Nesse sentido, o “eu” se torna fraco e impotente, tornando-se incapaz de resistir às pressões sociais externas. O indivíduo passa a reproduzir os valores impostos de fora, tornando-se psicologicamente vulnerável a manipulação e a sedução autoritária. A falta de autonomia e o conformismo dos indivíduos decorrem, portanto, da forma como a sociedade está organizada. A cultura do consumo e a avalanche de mercadorias impedem uma verdadeira consciência da realidade. A grande consequência disso é que os sujeitos se tornam presas fáceis de instâncias heterônomas. Os mecanismos de controle do mundo administrado determinam a interioridade do indivíduo em seu íntimo, naquilo que deveria constituir o núcleo de sua autonomia. A deterioração da experiência formativa produz sujeitos impotentes, paralisados e incapazes de ação.
Os estudos de Theodor Adorno mostraram que a personalidade autoritária não se define a partir de características psicológicas e, também, não é resultado de ideologias políticas conservadoras, mas ela se desenvolve devido à impotência, à paralisia e à incapacidade do indivíduo de reagir frente à racionalidade opressora do mundo administrado.
No fundo os indivíduos fascistas “dispõem de um eu fraco” (ADORNO, 1995, p. 37). Para o pensador frankfurtiano, o caráter opressor do aparato técnico-industrial – que submete o indivíduo a exigências de eficiência e desempenho previamente estabelecidas – anula qualquer possibilidade de autonomia, liberdade e espontaneidade subjetiva. Na sociedade reificada, as pessoas só podem se afirmar como sujeitos a partir de padrões externos de adaptação, desempenho e eficiência, que são colocados como imperativos para a sobrevivência.
Elas vivem em permanente pressão econômica e instabilidade material, tornando-se debilitadas e ansiosas. Assim, a personalidade autoritária “[…] seria definida muito mais por traços como pensar conforme as dimensões de poder — impotência, paralisia e incapacidade de reagir, comportamento convencional, conformismo, ausência de autorreflexão, enfim, ausência de aptidão à experiência” (ADORNO, 1995, p. 37)
4.
Embora Theodor Adorno expresse um certo pessimismo em relação à cultura de massa, ele acredita que a emancipação é possível. Em sua opinião, os indivíduos propensos à personalidade autoritária podem ganhar consciência da fragilidade de seu ego e podem desenvolver uma resistência frente às tendências fascistas na sociedade. No seu texto, Educação e emancipação, Adorno (1995, p. 119) afirma que “a exigência mais importante da educação é que Auschwitz não se repita”.
Enquanto o aparato técnico e a indústria cultural fragilizam os indivíduos para ajustá-los cada vez mais ao sistema produtivo, o frankfurtiano propõe a reconstrução da individualidade por meio da experiência formativa, de modo que essa singularidade se torne uma força propulsora de resistência. Nesse contexto, a educação assume o papel de instrumento de conscientização da realidade e das formas de dominação social, ao formar sujeitos esclarecidos, críticos e autônomos. [1]
Michel Aires de Souza Dias é doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP).
Referências
ADORNO, Theodor W. Observações sobre a Personalidade autoritária, de Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson e Sanford. Trans/Form/Ação, Marília, v. 44, n. 2, p. 345-384, Abr./Jun., 2021.
ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Unesp, 2019.
ADORNO, Theodor W. Minima Moralia: reflexões da vida lesada. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.
ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
COSTA, Virginia H. Ferreira. Apresentação a edição brasileira. In: ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Unesp, 2019.
DUARTE, Rodrigo. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
Nota
[1] Esse texto é parte do artigo “Neoliberalismo e a produção da subjetividade fascista”, publicado em Aurora: revista de arte, mídia e política, São Paulo, v.17, n.51, p. 63-81, janeiro-abril 2025