Culto armamentista nos EUA avilta valor da vida, por Lúcia Guimarães

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Republicanos preferem matar mulheres com gravidez de risco para controlar seu útero a oferecer proteção contra atiradores

Lúcia Guimarães, É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.
Folha de São Paulo, 30/03/2023

Há tragédias que unem temporariamente cidades, países e até continentes. E há tragédias que desafiam a mais otimista expectativa de humanidade. Não da Humanidade, mas de sinais de compaixão que associamos à condição humana.

Armas de fogo já matam mais criança do que acidentes de trânsito nos EUA e também ultrapassaram as mortes por câncer. Mas números nada podem diante do culto armamentista da ultradireita, o que fica demonstrado a cada novo massacre, como o que ocorreu na escola cristã no Tenessee, com três crianças de 9 anos entre os seis morto.

Os mais cínicos observadores não conseguem prever o grau de niilismo depravado que acompanha o espetáculo de cada pequeno corpo despedaçado pelo poder da munição de rifles semiautomáticos, armas fabricadas para exércitos. O fato de que a pessoa responsável pelo ataque no Tennessee era ex-estudante transgênero da mesma escola naturalmente serviu de mote para “explicar” o massacre.

Na terça (28), Joe Biden explicou o óbvio: sua autoridade é limitada para impedir a dança macabra, que já soma 129 massacres nos primeiros 87 dias do ano. Sem o Congresso passando leis, não há como enfrentar a epidemia.

Mas a Câmara, controlada pelos republicanos, está consumida pela urgência em proteger crianças de exposição a gays e transexuais. Republicanos odeiam a infância. Preferem matar mulheres com gravidez de risco para controlar seu útero, mas, após o nascimento, virem-se os pimpolhos para ter água potável, assistência médica, educação e proteção contra atiradores.

É comum se referir ao zelo religioso com que uma minoria defende a acumulação de arsenais privados como um “culto de morte.” Mas Jeff Sharlet, um autor que monitora a ultradireita militante há 20 anos, diz que as milícias se veem como um culto de inocência. Clamam proteger igualmente o feto e usar a arma de fogo para se preparar para uma guerra defensiva.

O novo livro de Sharlet é “The Undertow: Scenes from a Slow Civil War” (a ressaca: cenas de uma lenta guerra civil). Ele diz que nunca testemunhou tanta acumulação de armas como no período pós-invasão do Capitólio. Encontrou igrejas comprando armas de fogo, na expectativa de uma guerra civil. Não é mais a milícia na zona rural que se arma para o fim do mundo. São líderes religiosos de ultradireita agora armados.

No começo de março, um juiz plantado por Donald Trump num tribunal de apelações se manifestou a favor de reverter uma lei centenária do estado de Nova York, que impede o porte de armas para pessoas sob restrição de ordem judicial por violência doméstica. São mais de um milhão de casos registrados por ano, e armas de fogo têm papel evidente na escalada de agressão.

Os americanos vão conviver por décadas com as consequências das nomeações de 234 dos 870 juízes federais ativos nos EUA, feitas por um presidente no bolso do obscurantista lobby nacionalista evangélico. Há magistrados americanos hoje tão despreparados que fazem um certo medíocre ex-juiz maringaense no Senado em Brasília parecer um intelectual.

O governo Biden pediu à Suprema Corte que dê um basta na orgia pistoleira do juiz trumpista, citando as estatísticas assustadoras de violência doméstica. Mas, como perguntou Linda Greenhouse, uma das mais astutas observadoras da Corte: fatos ainda importam? Para os juízes e para o país?