País pode se qualificar para ser relevante na reconstrução de uma governança global ora em frangalhos
Armínio Fraga, Sócio-fundador da Gávea Investimentos, presidente dos conselhos do IEPS e do IMDS e ex-presidente do Banco Central.
Folha de São Paulo, 22/05/2022
O mundo vive um inferno astral de ameaças de curto e longo prazo. Em brilhante palestra recente, Tharman Shanmugaratnam, ministro sênior de Singapura, listou cinco riscos que, para ele, configuram uma “longa tempestade perfeita” para o planeta. Neste artigo, discutirei as implicações desse quadro para o Brasil, procurando também
identificar as oportunidades disponíveis.
O pano de fundo é conhecido. Ao acordar do sonho do mundo pacífico e integrado do fim da história de Fukuyama, nos deparamos com crescentes tensões, que se manifestam em múltiplas esferas. A mais chocante de todas e primeiro tema da lista de Tharman é a tragédia ucraniana, que configura o rompimento de uma governança global que garantia a soberania e a integridade territorial de todas as nações.
A esse retorno da Guerra Fria original, de natureza ideológica (modificada) e militar, se soma a Guerra Fria.2 entre os Estados Unidos e a China, também ideológica, mas muito mais complexa em suas frentes de disputa.
O embate entre os dois gigantes caracteriza um período de ausência de uma liderança global hegemônica que, como bem diagnosticou Charles P. Kindleberger, tende a ser muito instável. Do ponto de vista econômico, as duas guerras frias forçosamente demandam um importante repensar de alianças e relações de produção e comércio globais.
Para o Brasil, será necessário retornar à política externa tradicional do Itamaraty, voltada para a busca do interesse nacional através de boas relações viabilizadas pelo nosso histórico apego a princípios universais e pela nossa natural vocação multilateral. Nos cabe primeiramente e o quanto antes uma defesa inequívoca da integridade de todas as nações. Temos também que zelar pela manutenção de relações mutuamente benéficas com a maior parte dos países.
Em seu segundo grande tema, o autor discute o perigo de uma prolongada estagnação. O epicentro do problema encontra-se nos Estados Unidos, onde uma economia superaquecida por políticas expansionistas vem sendo atingida pelos choques de oferta da pandemia e das guerras frias. Para o Brasil, o risco maior advém da real possibilidade de o banco central americano ter de elevar os juros bem além do que os mercados já antecipam. Nos faria lembrar da frase “quando o Norte espirra, o Sul pega pneumonia”.
Um cenário alternativo, também nada reconfortante, seria uma queda ainda maior das Bolsas, acompanhada de um novo colapso nos preços dos imóveis, hoje acima em termos reais dos níveis da bolha que estourou em 2008.
Do lado de cá, o quadro é ainda mais complicado do que nos Estados Unidos, pois mesmo em recessão a inflação atingiu dois dígitos. Não é difícil imaginar uma tempestade perfeita para o Brasil, onde desafios externos e internos se reforçam. O próximo presidente terá que conduzir a política econômica com coragem e competência, de preferência com o apoio qualitativo das respostas aos demais desafios, que discuto a seguir.
A ameaça existencial da mudança climática é o terceiro tema do discurso. Aqui o Brasil terá a oportunidade de promover uma guinada verdadeiramente alquímica: trocar uma posição de pária ambiental, decorrente de posturas que aumentaram o desmatamento e o crime organizado, por uma guinada que nos poria em uma posição de liderança global no tema, com consequências extremamente positivas fora e dentro do país.
A criação de um mercado de carbono, como vem sendo discutido no Congresso e prometido pelo Executivo, seria um passo essencial nessa direção. É fundamental que o mercado seja desenhado de forma a permitir a plena inserção do país no mercado global de carbono, alternativa não disponível no momento. Vejo amplo potencial para investimentos no setor, em ambiente de concorrência e plenamente alinhados com o interesse público (estou investindo nessa área).
O elevado risco de novas pandemias vem a seguir. A ciência recomenda todo cuidado com o tema. Aqui também vejo amplo espaço para um cavalo de pau. Será necessário reforçar sob todos os ângulos o SUS, que, com seus 4% do PIB de recursos, precisa urgentemente subir na escala de prioridades dos orçamentos de todas as esferas de governo.
Cabe também incluir nas prioridades da nação mais apoio à pesquisa. Fontes de recursos para tais esforços não faltam, como tenho argumentado aqui. Falta sim transparência orçamentária e vontade política.
Em último lugar na lista, mas não menos importante, são as desigualdades de crescimento e bem-estar dentro dos países e entre eles, os mais ricos em vantagem em ambos os casos. Essa situação vem se agravando com as “tempestades perfeitas” e representa um terreno fértil para populismos e autoritarismos. O Brasil tem muito a fazer nessa área.
Com sucesso nessas frentes, o Brasil se qualificaria para ser relevante na reconstrução de uma governança global ora em frangalhos. As vantagens seriam imensas, pois ajudaria a si próprio em tudo mais. No entanto, sem sucesso, os prejuízos para a população seriam enormes. Um futuro melhor só virá se e quando a nossa democracia não mais estiver ameaçada e um tanto disfuncional.