O progresso tecnológico aumenta as vantagens de quem nasce em ambientes privilegiados
Michael França Ciclista, doutor em teoria econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.
Folha de São Paulo, 19/10/2021
No passado, o esforço individual permitiu que milhões de jovens de baixa renda ascendessem socialmente ao redor do mundo. Diversas profissões não requeriam deles elevado nível de qualificação. Predominava o trabalho braçal.
Nesse contexto, era mais factível para os desfavorecidos prosperar e criar melhores condições de vida para suas famílias. Entretanto, esse cenário mudou.
Com o passar do tempo, o mundo do trabalho se transformou. O progresso tecnológico aumentou a demanda por mão de obra altamente qualificada e portadora de habilidades complexas. Para atender às novas exigências do mercado, famílias de alta renda passaram a investir intensamente na formação de seus filhos.
Contudo, na ausência de um sistema educacional público de qualidade, investimentos privados na educação representam consideráveis vantagens para os descendentes da elite adquirirem melhor qualificação e, assim, ocuparem os empregos que apresentam maiores remunerações.
Fora do mercado de trabalho, eles também têm altas chances de obter posições de prestígio em praticamente todo contexto socioeconômico. Na política, sabe-se que países com expressiva desigualdade tendem a apresentar maior concentração de poder em determinados grupos ao longo do tempo.
O caso brasileiro é emblemático. Algumas poucas famílias tradicionais detêm considerável poder para manter suas vantagens e, até mesmo, para influenciar nos rumos do país.
Além disso, deve-se pontuar que o progresso tecnológico aumentou a disponibilidade de produtos e serviços. Porém, dado que nem todos possuem capacidade financeira para comprar as facilidades da vida moderna, as vantagens daqueles que nascem em ambientes privilegiados aumentaram com o passar do tempo.
Isso tem profundas implicações na transferência de renda intergeracional. Os filhos dos ricos tendem a acumular cada vez mais recursos e aumentar o patrimônio familiar que será herdado pelos descendentes.
Nesse contexto, tem-se que na parte de cima da pirâmide social brasileira existem poucas famílias competindo pelos espaços de poder e usufruindo de uma estrutura social que permite a manutenção de seu status socioeconômico ao longo do tempo de maneira quase automática.
Na base da pirâmide o cenário é outro. Existem milhares de famílias batalhando pela sobrevivência. Por sua vez, a desigualdade nas oportunidades que um indivíduo terá na vida começa antes mesmo do seu nascimento.
A literatura acadêmica mostra que filhos de mães que não tiveram cuidados adequados durante a gravidez apresentaram resultados significativamente piores na vida. Quando nascem, muitas dessas crianças vivem em ambientes e famílias desestruturadas.
O baixo nível educacional dos pais e do círculo social em que a criança está inserida afeta negativamente o seu desenvolvimento individual. Nas escolas, ela não consegue aprender o suficiente e a taxa de evasão é acentuada.
Adicionalmente, muitas delas sofrem tanto com preconceito racial quanto com o de classe.
Na falta de melhores oportunidades, os descendentes das famílias desfavorecidas vão obter baixo nível educacional e, consequentemente, não conseguirão desenvolver as habilidades necessárias para um mercado de trabalho cada vez mais competitivo.
Sem perspectivas no trabalho, o custo de ter filhos quando se é relativamente jovem é pequeno. Assim, dada a baixa mobilidade social brasileira, o que se percebe é que as famílias de baixa renda acabam transferindo para as futuras gerações o legado de sua miséria.
Nesse mês o Google Fotos me lembrou que faz um ano que me mudei da favela São Remo em São Paulo, lugar onde morei por oito anos. Assim, não poderia deixar de escrever um pouco mais sobre desigualdade de oportunidades. Por fim, o texto é uma homenagem à música “A cidade”, de Chico Science, interpretada conjuntamente com Nação Zumbi.