Dinâmica da desigualdade ajuda a explicar vitória de Bolsonaro, diz economista

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Para Marc Morgan, cenário eleitoral se desenhou com corrupção e descontentamento de quem não viu seus rendimentos crescerem tanto na era PT 

Fernando Canzian – FSP, 22/08/2019

Para o economista Marc Morgan, da Escola de Economia de Paris e participante do Relatório da Desigualdade Global, a vitória de Jair Bolsonaro no Brasil foi influenciada por mudanças na dinâmica da distribuição de renda.

Segundo ele, enquanto os mais pobres e os mais ricos tiveram importantes aumentos na renda até 2014, a classe média alta (os 20% mais ricos, exceto o 1% do topo) perdeu renda e acabou pesando politicamente no processo eleitoral brasileiro.

Para Morgan, vários governos são responsáveis pela elevada desigualdade do Brasil, em que os 10% mais ricos no país concentram cerca de 55% da renda total.

Como avalia a evolução da desigualdade no país ao longo do tempo e o retrato atual? O que há de estrutural nessa questão?

O Brasil tem uma longa história de desigualdade, mesmo antes dos efeitos da crise recente, que piorou ainda mais o quadro. Tudo o que for dito sobre a desigualdade no país tem de levar em conta a responsabilidade de governos anteriores.

Porém, a partir de 2000 parecia que a desigualdade diminuiria, não pela primeira vez na história, mas pelo que pareceu ser o período mais sólido de mudanças na dinâmica econômica da desigualdade por um longo tempo.

Os dados mais antigos do Brasil mostram declínio e mudanças na desigualdade na década de 1970, no período de grande crescimento. Mas a década de 2000 é muito singular porque vemos realmente as primeiras reduções sólidas, não apenas na pobreza, mas nas diferenças nos níveis de renda em toda a cadeia de distribuição.

Isso foi impulsionado pelos segmentos mais pobres, que tiveram maior crescimento de renda do que os segmentos superiores. Entre 2002 e 2014, antes de a economia começar a desacelerar e entrar em recessão, houve grandes ganhos para a parcela dos brasileiros que estão entre os 50% mais pobres.

Mas a PNAD [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios] não mostrava o que estava acontecendo com o resto da distribuição, especialmente no topo. A pesquisa que fizemos e todos os dados que cotejamos [PNAD, contas nacionais, declarações de imposto de renda] mostram que enquanto houve grandes ganhos para os mais pobres, isso também aconteceu nos rendimentos do topo.

Mas a questão é que grandes mudanças ocorreram no emprego e no crescimento. Mudanças no salário
mínimo, na estrutura econômica. A área de serviços cresceu muito, a construção também. Houve muita formalização do trabalho.

Em meio a isso ocorreu um processo que vem desde o final dos anos 1980, que foi o imenso declínio da participação da indústria de transformação na economia brasileira, especialmente nas regiões mais ricas [seu peso no PIB caiu à metade nos últimos 20 anos, para cerca de 12%].

Os trabalhadores mais qualificados e os empregos com as faixas salariais mais altas sentiram esse declínio. De outro lado, indústrias menos especializadas ou setores que empregavam mão de obra com salários menores cresciam muito rapidamente.

A exemplo de outros países, isso afetou a classe média brasileira, certo? Qual o impacto da crise recente?

A virada foi entre 2013 e 2014. E em 2016 se vê a reversão de tudo o que estava acontecendo. Ou seja, a renda dos grupos mais pobres foi a que mais diminuiu, mas os rendimentos dos grupos mais ricos também diminuíram, embora muito menos. No topo, a renda manteve-se estável ou até cresceu.

O aspecto muito interessante dos anos 2000 foi o que chamamos de fenômeno de encolhimento da classe média, especialmente no Brasil, onde isso ficou tão visível.

Ela ficou achatada entre a grande quantidade de pessoas na base cuja renda estava crescendo, uns 60% da população, e o 1% no topo, os mais ricos.

Esse grupo no meio, mas mais perto do topo em termos de renda, foi o que teve o crescimento mais baixo nos rendimentos. Para algumas parcelas desse grupo, o crescimento de renda foi zero ou negativo, no período de 2002 a 2014.

Mas, com a chegada da recessão, foi a renda dos pobres a que mais caiu, seguida pela classe média. Foi uma reversão bastante notável e em pouco tempo. E que gerou muito pessimismo a respeito do processo de crescimento brasileiro, e do processo político.

Levando em conta a desigualdade persistente e o encolhimento da classe média, como avalia a vitória de Jair Bolsonaro? Antes, os pobres identificavam a melhora de vida com o PT. 

Creio que o Brasil também esteja dividido devido à dinâmica que gerou perdas monetárias para alguns grupos nesses últimos anos, especialmente desde que o PT chegou ao poder. Essas dinâmicas fizeram os mais pobres crescerem mais rapidamente do que a classe média, principalmente.

Com isso, o que se desenrolou no cenário político foi somado ao fato de que as pessoas estavam fartas da corrupção, dos escândalos, que passam por quase todos os partidos.

Se você olhar para as pesquisas de opinião, percebe que quanto mais alto se está na distribuição, maior é a preocupação com a corrupção. Mas se você se concentrar na parte inferior, as questões básicas ainda são as mais importantes. O desemprego, a saúde, a renda.

O Brasil criou uma linha bastante dividida entre aqueles que apoiaram e aqueles que parecem se opor fortemente ao PT, especialmente aqueles cujos rendimentos não cresceram tanto nos últimos 15 anos.
Nesse caso, eles podem ser entendidos como a parcela dentro dos 20% mais ricos da distribuição, mas fora do 1% no topo. É um grupo que está no meio, mas perto do topo.

São entre 15% a 20% da população cujos rendimentos não cresceram muito e que não se mostraram representados pelo PT. Além disso, houve os escândalos de corrupção.

Diante da dinâmica da distribuição de renda no Brasil e nos demais países do Ocidente, quais seriam as diferenças em termos de impacto político?

É interessante notar a divisão específica que houve na dimensão econômica e educacional. No geral, quanto maior o nível educacional, maior foi o voto anti-PT. E também quanto maior a renda, maior a probabilidade de um voto anti-PT.

É curioso porque em outros países geralmente não há uma dimensão econômica tão afinada no conflito político. O que se tem documentado em outras partes do mundo é que, quanto mais instruídas as pessoas, mais elas tendem a votar em partidos de centro-esquerda.

Então, há quase que um equilíbrio entre duas elites: de um lado a elite educacional e, de outro, a elite empresarial. E esses grupos se dividem entre esquerda e direita.

No Brasil, o curioso foi que aqueles com os maiores níveis de educação e os ligados a segmentos empresariais estavam do mesmo lado. E os pobres ficaram do outro lado.

Comparado a outros países, embora isso também tenha ocorrido na Ásia, o crescimento da renda da metade mais pobre no Brasil foi bastante forte [entre 2002 e 2014].

Na Europa e no mundo desenvolvido, o crescimento da renda dos 50% mais pobres desde 1980 foi pequeno e praticamente zero nos Estados Unidos. Enquanto que no Brasil, pelo menos na década de 2000, essa parcela cresceu 70% em termos reais.

O topo, os ricos, cresceram muito, de modo semelhante aos ricos em outras partes.

Mas o que é diferente no Brasil é a parcela mais baixa. Essa foi a característica mais singular da dinâmica do país em relação à desigualdade.

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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