Tarso Genro – A Terra é Redonda – 04/05/2025
A disputa hegemônica migrou para o controle digital e a financeirização do Estado, com atores globais e elites locais corroendo a democracia em favor de interesses privados
Os protagonistas da disputa pela hegemonia política e cultural na sociedade capitalista dos anos 1980, então conceituada (Adam Schaff) como “sociedade informática” – hoje já selada como “infodigital” – não tinham em mãos um instrumental tecnológico tão diverso e variado, com a capacidade tão ampla de fazer circular dados, opiniões, recursos, com a velocidade e a precisão tão aproximadas das regras espontâneas do mercado, como no fim deste quarto de século.
Na sociedade industrial contemporânea, a partir do rádio e depois da televisão, já predominavam – embora presentes de forma atenuada – as influências dos novos meios e instrumentos tecnológicos, tanto de sedução para concertos e acordos políticos, como de verificação e disseminação de conflitos políticos, embora tudo isso corresse em tempos mais lentos. As técnicas mais adequadas à propagação de produtos para o mercado (como publicidade) predominavam nesta primeira etapa, embora já difundindo informações para semear novos sentidos para a política, numa sociedade com suas classes tradicionais em diluição.
As informações de interesse público ou simplesmente importantes (em diferentes formatos) eram selecionadas pelos grupos empresariais de comunicação locais e nacionais e disputadas, no seu enquadramento, com os partidos políticos, sindicatos, grupos de “interesse” – grupos de pressão de diversas origens – que compunham, à época, sistemas de relacionamento com fontes visíveis de poder para tentar, com seus movimentos rebeldes ou conservadores, mudar a ordem, melhorá-la ou conservá-la, de acordo com seus interesses imediatos.
Pode ser dito que a disputa, neste momento, era principalmente – ainda que anterior às revoluções tecnológicas em curso – determinada pela verticalidade do poder concentrado e que hoje se dá principalmente pela horizontalidade do poder repartido. No atual ciclo de relação das tecnologias informacionais com a política e com a cultura, todavia, há uma nova concentração de poder: externa à nação, ao Estado-nação, ao município e ao território.
Esta concentração de poder também é verticalizada, contudo movida pelos fluxos em rede, com mensagens na velocidade da luz. A sua transferência de mensagens e dados tem também mais precisão, na sua difusão espacial, não só no que refere à parte que penetra na estrutura de classes que ela quer alcançar, como também no que toca aos lugares do território soberano, que as mensagens querem influenciar.
De outra parte, esta transferência de informações planejadas por estes novos centros de poder, só é passível de ser controlada por estes, até o momento da sua dispersão pelas redes sociais, nas quais o poder de transferir e comunicar se socializa. Ali estão organizados os grupos de ação que dominam tecnologias mais fáceis de serem comandadas, embora muito mais complexas para serem produzidas.
Hoje a disputa pela hegemonia no mundo integrado pela circulação do capital financeiro “legal ou ilegal”, passa, portanto por outros caminhos e ocorre internamente ao Estado, como parcerias público-privadas e pactos de privatização de seus serviços essenciais, que integram – cada vez mais – os grandes conglomerados privados globais nos mandos diretos do poder de Estado.
Estes, que passam a prestar serviços públicos essenciais com um monopólio de fácil lucratividade e direcionado para clientelas cativas, instauram – então – nas instituições sua força imperial. E externamente ao Estado, a disputa pela hegemonia passa igualmente pelos processos eleitorais e pelas mobilizações da sociedade civil, através das alianças políticas para atacar ou defender o Estado social e a democracia.
A relação política reformista e democrática com o Estado, com as redes sociais dispersas e com uma intersecção planejada e centralizada de ações políticas digitais, são os novos espaços de disputa que os partidos, governos sociais-democratas e democrático-republicanos, devem ter como prioridade na disputa pela hegemonia. É preciso considerar que este trabalho, para as classes dominantes e facções neoliberais, é feito pela imprensa tradicional e comercial, de maneira “voluntária” (ou paga), mais (ou menos) espontânea, em favor dos seus interesses privatizantes de natureza selvagem.
Os grupos empresariais e os Estados dos países dominantes, vinculados ao novo sistema-mundo da globalização, também em crise de hegemonia, olham este processo com objetivos claros, simplesmente considerando-os como renovação da abertura de uma nova fronteira de acumulação de capital e também de acumulação de força política.
A primeira, para prepararem-se para as guerras inevitáveis, a segunda, para apoiarem os regimes democráticos apenas nos limites dos seus interesses de acumulação.
Os seus pactos políticos de composição de alianças e os seus contratos financeiros de publicidade refletem, abertamente, a aglutinação sistêmica e a força que têm os líderes partidários “das classes altas” – com ou sem partido – que fazem de cada momento de privatização dos serviços públicos um degrau mais avançado de domínio do poder político. Tal conduta dissolve – lenta e seguramente – as fronteiras do público e do privado, asfixiando a democracia eleitoral com o uso da força destes poderes “de fato”.
Esta interação permite fazer, não só a conversão do Estado social em uma estrutura privada de caráter monopolista para prestar serviços essenciais a alto custo, mas também um processo de intervenção permanente nos processos eleitorais, com a proliferação de privatizações selvagens, leniência acrítica com os governos ímprobos e com os cuidados do ambiente natural, bem como na prevenção de catástrofes, gerando dinheiro vivo – com as privatizações – que servem de oxigênio financeiro para as suas alianças contra as formas consagradas do Estado social de direito.
Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).