Dowbor: A tirania do mérito e como superá-la

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A ideia de que todo esforço será recompensado esconde a filosofia neoliberal de guerra de todos contra todos. Justifica a captura das riquezas pelo 0,01% e impõe o fardo da culpa aos mais pobres. Enfrentá-la exigirá combates políticos e éticos

OUTRASPALAVRAS – Ladislau Dowbor – 29/07/2022

“O ideal meritocrático não é remédio para desigualdades;
ele é justificativa para desigualdade.” – Sandel, p.181

A desigualdade tem de estar no centro das nossas preocupações. Para muita gente, basta se preocupar com o seu próprio bem-estar, e da sua família. É o nível em que a insegurança joga um papel determinante na indiferença relativamente ao que acontece com os outros. No caso dos empresários, predomina a busca do lucro apenas, sem pensar nos impactos sociais e ambientais. É uma visão de curto prazo. Como escreveu Peter Drucker, “não haverá empresa saudável numa sociedade doente”. Quanto aos muito ricos, com fortunas acima de 30 milhões de dólares, ganhar mais já não é questão de bem-estar seu ou da empresa, pois têm muito mais do que jamais poderão gastar, e sim de sentimento de dominância: basta ver o comportamento surrealista, de mandar um carro para o cosmos, de subir no espaço com o seu próprio foguete, de batalhar o seu ranking na Fortune ou na Forbes. Considerando os dramas que se acumulam no planeta, econômicos, sociais e ambientais, bem conhecidos no andar de cima dos afortunados, isso já é área do patológico. É a tirania do ego, e burrice social.

Estamos num mundo em que nem os pobres merecem a sua pobreza, nem os ricos a sua riqueza. Os pobres, evidentemente, porque não foram eles que montaram esse sistema em que os direitos sobre o excedente que a sociedade produz sai da mão deles e vai para os mais ricos. O botijão de gás que a família mais pobre paga pelo absurdo preço de 130 reais gera lucro adicional para acionistas em qualquer parte do mundo, sem precisarem produzir mais. Cobrar taxas de juros mais elevadas – até o botijão já é vendido a prazo – ou ainda, e particularmente, extrair mais dividendos das empresas, asseguram enriquecimento com o esforço dos outros. Na era do dinheiro virtual, o enriquecimento dos improdutivos é generalizado.

Sandel insiste no crescente papel das finanças: “A financeirização da economia pode ser mais destrutiva para a dignidade do trabalho e mais desmoralizante. Isso porque oferece talvez o mais elucidativo exemplo, em uma economia moderna, da distância entre o que o mercado recompensa e o que realmente contribui para o bem comum…Isso não seria problema se toda atividade financeira fosse produtiva, se aumentasse a capacidade da economia de produzir bens e serviços de valor. Mas esse não é o caso…Cada vez mais envolve engenharia financeira complexa que resulta em grandes lucros para pessoas envolvidas, mas que não fazem qualquer coisa para tornar a economia mais produtiva.”(306) Equivale a ganhar dinheiro com dinheiro.

O argumento moral tem muito peso. Porque há um imenso esforço da mídia comercial, seja tradicional ou utilizando as mídias sociais, de apresentar o enriquecimento como legítimo, portanto merecido, ainda que não corresponda à contribuição produtiva. O merecimento tornou-se uma questão central: sou rico porque batalhei, por que você não se esforça mais? A grande justificativa moderna do sistema grotesco em que vivemos é que quem é rico é porque se esforçou, e, portanto, quem é pobre é porque não soube batalhar. A grande vitória da comunicação dos mais ricos não é só de aparecer como merecedores da sua fortuna, mas de acusar os pobres de serem incapazes de seguir o seu exemplo. Ao orgulho da riqueza, acrescentam o desprezo da pobreza. Mas de que os donos de grandes fortunas têm de se orgulhar? Mereceram?

Michael Sandel traz no centro do seu livro este tema: a tirania do mérito. Não está sozinho nesta indignação. Gar Alperovitz e Lew Daly traçaram os mecanismos no Unjust Deserts: how the rich are taking our common inheritance; Emmanuel Saenz e Gabriel Zucman apresentam os mecanismos mais escandalosos no The Triumph of Unjustice: how the rich dodge taxes and how to make them pay; Marjorie Kelly e Ted Howard mostram como os dividendos se tornaram um dreno sobre a economia, Joseph Stiglitz protesta contra o rentismo irresponsável e improdutivo, Thomas Piketty assentou as bases teóricos do novo sistema de exploração, Michael Hudson detalha o FIRE (Finance, Insurance, Real Estate), Mariana Mazzucato detalha a fratura entre gerar valor econômico e dele se apropriar, no seu The Value of Everything: making and taking in the global economy. A indignação cresce, e podemos aqui alongar muito a lista, com Rana Foroohar e tantos outros. Está se gerando um novo consenso nas teorias econômicas, e a indignação cresce.

A força de Sandel está no desmonte dos argumentos com os quais os mais ricos se protegem. O importante para os afortunados é defender o seu merecimento, que traz implicitamente a ideia de que os que não sobem na vida não devem culpar o dreno de riqueza no topo, mas a sua própria incapacidade de imitá-los. Ou seja, os pobres são pobres por sua culpa. Sandel insiste muito no sentimento de humilhação que se gera na base da sociedade. Explorados de maneira ostensivamente injusta pelos aristocratas, pelos senhores da terra em diversos sistemas, os servos eram obrigados a se submeter, mas tinham a compreensão da injustiça que sofriam. Atualmente, não só são reduzidos à pobreza e privados de oportunidades, mas têm de arcar com a narrativa que isso resulta de sua própria incapacidade, ou falta de vontade de trabalhar. Sempre há alguns exemplos de pobres que subiram na vida. Sandel restabelece o bom senso: “Ser bom em ganhar dinheiro não mede nem nosso mérito nem o valor de nossa contribuição.” (201)

“A tirania do mérito é resultado não só da retórica da ascensão. Ela consiste em um conjunto de comportamentos e circunstâncias que, agrupadas, tornaram a meritocracia tóxica. Sob condições de desigualdade desenfreada e mobilidade barrada, reiterar a mensagem de que nós somos responsáveis por nosso destino e merecemos o que recebemos corrói a solidariedade e desmoraliza pessoas deixadas para trás pela globalização… Quando o 1% mais rico recebe mais do que toda a metade inferior da população, quando a receita média fica estagnada por quarenta anos, a ideia de que esforço e trabalho árduo o levará longe começa a parecer vazia.”(105) Mais do que desespero por pobreza “é um descontentamento mais desmoralizante, porque sugere que, no caso das pessoas deixadas para atrás, o fracasso é culpa delas.”(106) “Se, numa sociedade feudal, você nascesse em condição de servidão, sua vida seria dura, mas não se sentiria oprimido ou oprimida pelo pensamento de que a responsabilidade por estar nessa posição de subordinação é sua.” (173) Os ricos não só causam e aprofundam a pobreza, como ensinam os pobres a lamentar as causas.

A inclusão produtiva desempenha aqui um papel fundamental. Não se trata apenas de permitir a ascensão por diploma universitário, e sequer apenas de assegurar igualdade de oportunidades à partida. Trata-se de mais igualdade como resultado final. Muito mais do que assegurar acesso ao consumo, é preciso assegurar a inclusão produtiva, dimensão essencial do sentimento de pertencimento e de dignidade que resulta do fato de contribuir para a sociedade. O trabalho “é uma atividade de integração social, uma arena de reconhecimento, uma forma de honrar nossa obrigação de contribuir para o bem comum.”(299) Neste sentido o governo “tem obrigação de organizar instituições econômicas e sociais para que pessoas possam contribuir com a sociedade de forma que respeite sua liberdade e a dignidade do seu trabalho.”(298)[i]

Sandel insiste muito na ilusão de que o acesso à educação superior resolve a questão da mobilidade social. “Quando as elites meritocráticas colocam sucesso e fracasso tão próximos da habilidade de uma pessoa em conquistar um diploma universitário, de forma implícita, culpam quem não tem diploma por estar em condições difíceis na economia global.”(132) É igualmente forte o argumento de que diplomas podem assegurar capacidades técnicas sem a capacidade moral correspondente: é preciso distinguir o que Aristóteles chamou de sabedoria prática e virtude cívica. “John F. Kennedy montou uma equipe com credenciais brilhantes que, com todo seu brilhantismo tecnocrático, levou os Estados Unidos para a insensatez da guerra do Vietnã.” (133)

Por outro lado, tanta pressão por “sucesso”, inclusive com envolvimento dos pais, da sociedade em geral, leva à impressionante elevação de suicídios entre jovens: “Um em cada cinco estudantes universitários relataram pensamentos suicidas no ano anterior, e um em cada quatro foi diagnosticado com algum transtorno de saúde mental ou foi tratado. O índice de suicídios entre pessoas jovens (20 a 24 anos) aumentou de 36% de 2000 a 2017 – hoje em dia, morrem mais em decorrência de suicídio do que homicídio.”(251) Esses são números referentes aos Estados Unidos, mas há estatísticas convergentes em númerosos países, como a Coréia do sul. Estamos todos correndo para onde?

As implicações políticas são fortes também para quem não tem acesso ao diploma, ao criar uma profunda divisão social. A redução das políticas de inclusão à estreita escada do diploma “distanciou pessoas da classe trabalhadora de partidos dominantes, sobretudo os de centro-esquerda, e polarizou a política ao longo da linha educacional. Uma das mais profundas divisões na política hoje é entre pessoas com e pessoas sem diploma universitário.” (145) Sandel liga essas divisões ao sucesso da política do ódio em numerosos países, em particular com a eleição de Trump nos
Estados Unidos, mas se referindo a numerosos outros países, inclusive à eleição de Bolsonaro.

No conjunto, ao desmontar a farsa do mérito, Sandel nos traz uma visão de reorientação política mais ampla, centrada nos valores, nos resultados efetivos para a sociedade. As soluções não podem se limitar à dimensão econômica. O congelamento da maioria da população na pobreza e na imobilidde social leva por sua vez aos desastres políticos, com tantos oportunistas que se elegem com o discurso do ódio, alimentados pela frustração na base da sociedade. As mudanças que buscamos no sentido do aprofundamento da democracia, da expansão das dimensões colaborativas, da generalização de políticas inclusivas, do deslocamento da filosofia absurda da guerra de todos contra todos – tudo isso envolve mudanças civilizatórias mais amplas. É uma mudança cultural, no sentido mais profundo. Não se trata de sonhos: experiências dessas diversas dimensões já demonstraram os seus resultados em numerosos países. São soluções práticas que necessitam batalhar mais espaço político, buscando mudanças sistêmicas.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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