Extermínio yanomami é resultado de séculos de impunidade, por Itamar Vieira Jr.

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Vivemos em um país sem memória; é preciso romper com a anistia indiscriminada para que nos reste algum futuro

Itamar Vieira Júnior, Geógrafo e escritor, autor de “Torto Arado”

Folha de São Paulo, 05/02/2023

Toda sociedade possui seus códigos de justiça. A palavra é derivada do latim “iustitia”, que por sua vez vem de “iustos” —justo—, que por fim deriva de “ius” —direito, correto, lei.

Uma sociedade sem os pressupostos da justiça está predestinada ao colapso, à completa anarquia, em que os interesses individuais se sobrepõem aos coletivos. No 8 de janeiro, vimos por algumas horas a violência devastar as sedes dos três Poderes da República, entre as quais a da Justiça.

Em “Ensaio sobre a Cegueira”, José Saramago cria uma alegoria sobre um mundo onde valores éticos e coletivos desmoronam, usando a metáfora de uma epidemia de cegueira. Sem os olhos para ver, o mal aflora, o horror se instaura e o pacto civilizatório se dissolve. Resta a barbárie como a lei da sobrevivência.

A bestialidade que tomou conta de Brasília no primeiro domingo pós-posse do presidente e de governadores é a mesma que devasta o território yanomami e os de outras sociedades indígenas. A tragédia que os assola é brutal e violenta. É um crime contra a humanidade. É um genocídio. É tudo, menos surpresa. A calamidade instaurada na terra indígena não é um evento circunstancial; é o projeto de extermínio mais persistente no país.

Colonizadores foram anistiados. Escravocratas também. Igualmente os militares pelos crimes do passado e do presente. Relatórios de inteligência da Funai apontam para um conluio entre garimpeiros e militares, incluindo uma possível relação de parentesco e o compartilhamento de informações em grupos de redes sociais para facilitar a atividade ilegal na terra indígena.
A anistia nos trouxe até aqui.

Nos trouxe também até a tentativa de ruptura da ordem democrática com uma minuta de golpe, para reverter o resultado das eleições, conspirações com propostas de espionagem de um ministro de Suprema Federal e sua posterior prisão. Nos trouxe à confissão de um deputado de que todos os ministros tinham uma minuta golpista em casa. Nos trouxe à revelação de um senador de que teria sido convidado para compor um comitê golpista.

A falta de justiça nos trouxe até aqui.

Em dezembro, a polícia alemã desarticulou uma rede de extrema direita que pretendia um golpe para restituir a monarquia. Para os procuradores alemães, tratava-se de um grupo terrorista que visava atingir o regime democrático. Foram realizados indiciamentos, prisões, restando à sociedade a confiança na Justiça para julgar e punir. Por aqui, prisões também foram feitas, mas sem chegar aos mentores do ato golpista.

A palavra anistia vem do grego e do latim “amnestía” ou “amnestia” e significa esquecimento. Vivemos no país sem memória e, só quando nos dermos conta disso, compreenderemos seu poder para nos devolver à trilha dos avanços civilizatórios.

Nas ruas de inúmeras cidades da Europa, é possível encontrar as “stolpersteine”, que significa “pedras do tropeço” em uma tradução livre. São pequenas chapas douradas fixadas nas calçadas em frente a casas de onde vítimas do Holocausto foram retiradas para a morte.

Somente em Berlim, são quase 9.000 placas com nome, sobrenome, data de nascimento e de morte de pessoas que viveram naquele exato local. São placas individuais para recordar que cada pessoa era única; somadas, dão uma pequena noção da dimensão da tragédia. Sem contar nos inúmeros monumentos e museus que abrigam a história desse evento tão traumático.

A justiça pode ser um poderoso instrumento contra o esquecimento.

Há poucos meses, escrevi um texto sobre a morte do indígena tanaru, último sobrevivente de sua etnia. Viveu sozinho na floresta durante 26 anos. Seus últimos parentes foram mortos por fazendeiros na década de 1990. Como ele, muitas etnias estão em risco pelo garimpo ilegal, pela criminosa extração de madeira, pela derrubada da floresta para criação de pastos e monoculturas, por conflitos fundiários de toda ordem.

As imagens dos yanomamis em grave estado de desnutrição são retratos da devastação de corpos e território atingidos por um projeto de extermínio que perdura há mais de cinco séculos. São resultados da anistia indiscriminada, da falta de justiça, da nossa condescendência quase cúmplice de não exigir o contrário.

É preciso romper com os ciclos de impunidade para que nos reste algum futuro.